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Pensando a intervenção popular (continuação)

Pensando a intervenção popular (continuação)

Samuel Mac Dowell de Figueiredo

Advogado e secretário geral da Associação Brasileira de Juristas Democratas

Publicamos aqui a continuação do ensaio sobre intervenção

popular cuja parte inicial encontra-se no número anterior.

Depois do enfoque teórico, eis tratadas propostas concretas

como a iniciativa e veto popular, o referendum e plebiscito, o

recall, o mandato imperativo; além destas discutem-se as

formas de controle de atos administrativos.

IV

Prosseguindo com a mesma idéia e com a mesma crítica acerca das relações da sociedade com o Estado, veremos que, não obstante, a participação dos administrados na administração permite a estes últimos que exerçam as suas liberdades políticas e ao conjunto do corpo social que se mantenha de algum modo próximo do exercício do poder político.

Mesmo para os indivíduos que manifestam uma postura de oposição ao poder, a participação na administração pode contribuir para que ela se torne, segundo a conveniência e o interesse do conjunto dos administrados, mais eficiente. Esta colocação, se estiver relacionada tão-somente com a participação de certos e determinados indivíduos na administração, poderá, a depender de qual seja essa participação, estabelecer certos questionamentos de ordem ética, moral, ou concernentes, simplesmente, ao acerto de se tentar fazer funcionar o aparelho estatal com os elementos que a ele se opõem. Tais questionamentos serão despropositados, contudo, se a participação mencionada se relacionar, como deve ocorrer, com a idéia de participação da população na gestão de seus próprios assuntos, ou seja, se a participação dos indivíduos, mesmo considerados em si mesmos, existir como uma prática não-egoísta e significar uma real tentativa de refletir o interesse de toda a comunidade nos processos de decisão e execução de competência do Estado.

É tão certo afirmar-se que se estabeleceu grande distância entre a sociedade e o Estado — do que resulta o ambiente político sumariamente descrito nos itens antecedentes —, que as pessoas hoje se referem com inusitada insistência à idéia participativa. Esta insistência não reflete uma realidade participativa — antes, é um sintoma da sua inexistência. Precisamente porque se percebe, com clareza, que o divórcio com o poder político só pode conduzir a sociedade a uma posição inerte e subjugada, como está ocorrendo, é que as discussões sobre a participação se tornaram tão rotineiras, ultimamente. As manifestações mais recentes da sociedade civil no Brasil, por exemplo, revelam-na mais ou menos consciente dessa questão, mas indicam, também, que a sua ação, inócua e desordenada, procura representar o exercício de um poder na verdade inerme, sem defesa: desde o seu "grande despertar" para a campanha por eleições presidenciais diretas, quando foi manipulada o quanto o desejaram os partidos políticos que se reuniram em estranha aliança de contrários, não caminhou, até hoje, além do ponto de conviver com a convocação autocrítica de uma assembléia constituinte. Isto não lhe permitirá mais do que assistir a uma mera reforma constitucional, ditada pelos poderes já constituídos, que saberão fazer prevalecer seu próprio interesse, a começar pelo amplo domínio que exercem sobre os instrumentos de comunicação de massa, como o rádio e a televisão.

De todos os modos, a participação popular tem sido objeto de acentuada preocupação e inúmeros estudos, nos meios onde se pode perceber um real interesse pelo assunto. É oportuno notar que inúmeras formas de participação, especialmente as que se relacionam com o controle dos atos da administração, estão previstas nas legislações da maioria dos países, inclusive os da América Latina. Não são raros os exemplos de legislações que prevêem a participação popular por meios diretos, semidiretos, ou indiretos: formas de consulta popular, descentralização, composição mista de conselhos normativos, participação de usuários e empregados na gestão das empresas e serviços públicos, ombudsman, controle jurisdicional, etc., todas essas são fórmulas conhecidas e às vezes adotadas nas legislações. Não correspondem esses enunciados formais, entretanto, a uma verdadeira prática participativa, além de estarem em contradição com o interesse dos setores que exercem o poder, que repudiam a idéia participativa e de tudo fazem para reduzir os administrados e usuários dos serviços públicos a uma posição passiva e que menos os incomode. Estes fatos impedem, em última análise, que o sistema representativo encontre uma linha auxiliar que lhe permita assegurar o exercício democrático do poder político.

Para que não se limitem as possibilidades da sociedade a um sentimento revolucionário ou a um conformismo de certo modo niilista — aquele romântico e desatento ao real poder que hoje o Estado concentra, este mais consentâneo com a realidade sugerida pelas atuais tendências da administração —, é necessário atribuir eficácia às formas participativas, não somente as erigindo em normas de direito positivo, mas também, e principalmente, procurando fazer com que elas correspondam a uma verdadeira prática democrática.

Claro está que a idéia de participação não se contrapõe ao sistema de representação, mas representa, ao contrário, a tentativa de orientá-lo no sentido de refletir e impor o respeito dos efetivos interesses da sociedade. Pode significar, como de fato significa, uma prática troiana de oposição interna ao poder — mais fácil controlar perto do que à distância. Poderia significar — como em alguns lugares se pensa, distraidamente, que ocorra, mesmo sendo impossível que assim suceda — uma prática toda impregnada de espiritualidades e de desinteressados sentimentos de irmandade, ou uma real permissão para que os mais fracos se juntem aos mais fortes, no exercício da administração. Deixando-se de lado essas cogitações, que sempre serão marcadamente subjetivas, contentemo-nos em examinar as formas participativas, sejam elas de maior ou menor eficácia, como instrumentos auxiliares dos ideais do sistema de representação popular próprio das repúblicas.

É também certo, por outro lado, que a idéia de participação popular não está relacionada com a administração em sentido estrito, mas se estende a todas as formas pelas quais seja possível assegurar à coletividade que seja ouvida na elaboração das leis do país, a começar pela sua Constituição; na elaboração dos regulamentos e atos normativos; em diversas decisões de competência do poder executivo; ou no controle dos atos administrativos. Compreendendo-se participação, portanto, no seu sentido mais amplo e abrangente, devemos examinar, embora superficialmente, algumas formas que se afiguram como as mais importantes para permitir a realização desse propósito:

a) Formas de consulta popular:

Diversas constituições européias prevêem diferentes formas de consulta à população, em matéria de iniciativa e de aprovação de leis.

Constituições de países como a Itália, Suíça, Áustria e Espanha, entre outros, consagram a iniciativa popular de leis, a significar que os projetos a serem votados pelo Legislativo poderão ser formulados por determinado número de cidadãos. Esta forma de participação é limitada, em geral, pelo elevado número de assinaturas de eleitores que são necessárias para a apresentação de um projeto (de 50 mil assinaturas, na Itália, a 500 mil, como na Espanha) e pela sua exclusão com respeito a determinadas matérias (na Suíça, a iniciativa popular só é cabível em matéria constitucional, não sendo permitida para as leis ordinárias; a Constituição espanhola, por sua vez, a exclui em relação a matérias próprias de lei orgânica, tributárias ou de caráter internacional).

Também o veto popular a leis votadas pelo Legislativo está previsto em algumas Constituições, como ocorre na Itália, sob a forma de referendum, quando for solicitado por um mínimo de 500 mil eleitores.

Outras formas participativas, relacionadas com o processo legislativo, seriam o recall, em vigência nos Estados Unidos, na Suíça e também na Alemanha Oriental, através do qual os eleitores podem revogar o mandato parlamentar; e o mandato imperativo, que vincula a validade dos votos proferidos no exercício do mandato a posições previamente declaradas pelo deputado, enquanto candidato. Expressamente vetado pela Constituição da França, o mandato imperativo pode implicar o imobilismo das posições adotadas pelo deputado, no exercício do seu mandato.

b) Outras formas de consulta popular:

Determinadas decisões de competência do poder executivo, relacionadas, por exemplo, com projetos de obras públicas, como as reformas urbanísticas e a instalação de usinas nucleares, interferem diretamente nas condições do meio ambiente e com a qualidade de vida das comunidades. São, por isso, submetidos à prévia aprovação da população, como ocorre nos Estados Unidos e na Inglaterra, comos public hearings, e na França, com as enquêtes publiques.

c) Participação nos órgãos administrativos:

As formas participativas acima mencionadas se referem, de um modo geral, ao processo de elaboração das leis: plebiscito, referendum, iniciativa e veto popular, recall e mandato imperativo e até os public hearings, em alguns casos, são instrumentos que procuram assegurar à população a participação nos processos de decisão, no âmbito legislativo.

Voltando a nossa atenção para a administração propriamente dita, podemos perceber que algumas fórmulas de caráter mais geral são tidas como participativas. Este é o caso da descentralização, que é comumente relacionada com a idéia de que a divisão da administração por setores melhor atende aos interesses regionais e comunitários. Na prática, entretanto, o que ocorre é que a administração descentralizada carrega para si os mesmos vícios da administração centralizada, com a única diferença de que isto se produz em círculos mais restritos do aparelho administrativo, no processo que Agustín Gordillo denomina de "centralização interna" dos órgãos da administração descentralizada.

Com a participação dos usuários nas empresas e nos serviços públicos se poderia, mais concretamente, assegurar a participação, uma vez que permitiria partilhar a gestão entre os setores nela interessados: o governo e o conjunto dos administrados. Via de regra, a idéia de cogestão é também associada à participação de empregados e funcionários, com o que se alcança a fórmula de gestão tripartite (governo, usuários e empregados), mais observada em países europeus.

Outros órgãos que integram a administração pública, como os conselhos normativos (conselhos assessores, comissões de planificação, conselhos econômicos e sociais, etc.), poderiam, na medida em que lhes fosse atribuída uma composição mista, representar instrumentos de participação.

d) Controle dos atos administrativos:

No seu conjunto, as formas participativas representam, também, instrumentos de controle dos atos administrativos. Há fórmulas específicas de controle, através do contencioso administrativo, nos países onde é adotado, e do controle jurisdicional, que pode ser exercido diretamente pelos cidadãos por meio do mandato de segurança, do direito de representação e da ação popular.

Muitas questões formais, concernentes às condições de admissibilidade dessas medidas e à sua legitimidade ativa, são objeto de discussão. A ação popular, por exemplo, para que representasse um meio de controle eficiente, deveria poder ser promovida não apenas pelos cidadãos, mas também por organizações civis (associações de bairro, de ambientalistas, etc.). Essas questões são de grande relevância, uma vez que a eficácia das medidas de controle jurisdicional está em razão direta com a sua amplitude e com a maior possibilidade de sua utilização pelos administrados.

Podemos lembrar, com a atenção voltada para a reforma constitucional que em breve será promovida no Brasil, que a tradição participativa na América Latina é pueril. Se pensarmos, para começar, nas formas mais clássicas de participação, como é o caso da consulta popular, perceberemos que o plebiscito e o referendum são instrumentos poucas vezes utilizados em nosso continente. Causa mesmo perplexidade que exatamente os governos militares do Chile e do Uruguai tenham sido os últimos a submeter reformas constitucionais à aprovação popular, através dos plebiscitos que realizaram em 1980. Ainda que sejam levadas em conta as condições em que se deram essas consultas, especialmente a do Chile, ou os propósitos fraudulentos daquelas ditaduras, a verdade é que a sua lembrança serve para contrastar, por exemplo, a recente recusa do Congresso brasileiro em submeter a referendum a reforma constitucional que em breve votará. Isto não ocorre apenas porque o poder legislativo é exercido, em nosso país, na maior parte das vezes, por indivíduos que ignoram o interesse dos seus representados, ou porque são muitos deles indignos dessa função e moralmente inabilitados para o seu exercício. Mais amplo que este, o motivo reside na inexistência de vínculos entre o interesse da sociedade e o do Estado, e também no forte sentimento de traição que há no modo como é exercido o mandato popular.

Se, por outro lado, forem lembradas as formas participativas não-tradicionais, como é o caso da representação de administrados e usuários na direção das empresas e dos serviços públicos, a experiência latino-americana evidenciará a mesma inaceitação da idéia participativa por parte dos administradores. A questão se torna ainda mais aguda em relação à administração indireta, que foi concebida e segmentada com a utilização de instrumentos que objetivavam permitir à administração pública maior agilidade e eficiência (através das empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações e demais autarquias). É frequentemente utilizada, contudo, para a manipulação fácil de recursos públicos e troca desonesta de favores. Em episódio muito recente, que serve de exemplo dessa mentalidade grosseira, o governador do Estado de São Paulo opôs veto total à lei que modificava o estatuto da fundação que explora a televisão educativa estadual, para conferir maior representatividade à sociedade nos órgãos da sua direção, sob o pretexto injurídico de que a aprovação de lei sobre essa matéria feria a autonomia administrativa daquela fundação. Mais lamentável, no veto, não é apenas o desconhecimento quanto à conformação e à natureza jurídica das fundações da administração indireta; não é, também, a ignorância quanto às funções e à competência do poder legislativo; não é o desprezo pela distinção entre uma eventual ação do poder executivo sobre uma fundação, a violar, aqui sim, a sua autonomia, e a manifestação, muito distinta, do poder legislativo; não é a leviandade com que se desconsiderou o penoso esforço dos deputados estaduais, numa rara tentativa de fazer com que fossem respeitados os reais interesses da coletividade; não é, sequer, a negação de participação por um governo que se fez eleger, precisamente, com promessas de participação; e não é, ainda, o fato de incidir o veto em matéria especialmente vinculada à educação e à utilização pública da televisão. Mais do que tudo isso, o veto destaca que o exercício do poder facilmente se converte em uma prática privada entre grupos associados. Novamente, a evidência da descolagem que separa a sociedade do Estado.

É fácil perceber que o aperfeiçoamento das formas de participação teria que atravessar o obstáculo que a mentalidade não-participativa representa, sem o que será de pouca eficácia a sua enunciação na ordem de princípios. Esta questão é frequentemente posta de lado. Veja-se que, na maioria dos textos escritos sobre participação popular, há uma esforçada reivindicação pela instituição do ombudsman no Brasil. Pretende-se que o defensor do povo, como é designado na Espanha, viria servir como um inovador instrumento de controle da administração, mas geralmente se desconsidera o fato de que a maior parte das funções que lhe poderiam ser atribuídas já se incluem, hoje, entre as funções do Ministério Público e entre as iniciativas cabíveis no âmbito da ação popular e do mandato de segurança. A insistência sobre o ombudsman revela, na verdade, uma indesejável burocratização das discussões que se estabelecem sobre participação, em prejuízo do verdadeiro mérito do problema. Será mesmo provável a sua instituição pelo legislador brasileiro, não porque seja previsível que este adquira uma mentalidade diferente, mas sim pela ilusão que é vendida com essa idéia e pelo que haverá de mais cartorário e vetusto no funcionário que se pretende criar.

Se pensássemos nessas questões a partir de um pressuposto de rompimento da ordem vigente, através das formas autônomas de exercício das liberdades, estaríamos frente a uma perspectiva aberta, diante da qual seria possível e lógico cogitar de qualquer tipo de modificação. O que fazemos agora, entretanto, é restringir inteiramente essa perspectiva à realidade que se apresenta, em face da qual somos obrigados a considerar a supremacia do Estado e a vê-lo como uma força que se opõe ao corpo social. Resta, a este, exercer o esforço permanente pela preservação do equilíbrio das suas relações com o Estado. Além de todas as razões já mencionadas e que se opõem ao sucesso desse esforço, está o fato de que toda e qualquer forma participativa, incluindo o ombudsman, terá a sua eficácia subordinada à autonomia e independência do poder judiciário, que é, contudo, poder do Estado. A inexistência dessa autonomia e independência configura uma situação de verdadeiro impasse.

Por outro lado, e por fim, a afirmação dos princípios de participação não afasta a certeza de que segmentos e setores da sociedade estão muitas vezes inabilitados a participar da gestão, o que se deve a razões diversas: a convivência constante com uma realidade não-participativa, que gera uma inapetência e uma desorganização para a própria participação; a especialização técnica e de conhecimentos exigida pela gestão de certos assuntos públicos; e mesmo a tendência a gerir a coisa pública com objetivos particulares, que desvia a administração de suas finalidades — desvio este do qual não estão livres os agentes da sociedade pela só razão de serem membros da sociedade, como se o Estado e o governo fossem a única fonte de todos os males. É necessário discernir, então, também sobre o grau e a oportunidade da participação, para que não se instale, por esse caminho enganoso, o populismo inconseqüente, o oportunismo ou um certo tipo de "assembleísmo" que entrega a gestão de alguns assuntos a grupos de incompetentes. Embora não caiba agora aprofundar esse tema, é necessário deixar registrado que as funções rigidamente técnicas devem ser desempenhadas pelo Estado com restrita participação de representantes civis, que deve ser exercida, nesses casos, através de um rigoroso sistema de controle dos atos administrativos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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