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Ecopolítica, realismo e a nau dos insensatos

ESPECIAL

Ecopolítica, realismo e a nau dos insensatos

Alfredo Sirkis

Escritor e um dos fundadores do Partido Verde

Até os anos 70 não havia surgido um pensamento com raízes no século XX e nas profundas e radicais transformações que ele produziu. Um pensamento capaz de lidar com as questões da humanidade nessa virada de milênio e que não se apresentaram antes em nenhum momento da história humana. Entre elas, o risco da humanidade perecer pelas suas próprias mãos pela guerra nuclear, ou do planeta se tornar inabitável pela entropia dos recursos naturais, devastação do verde, do meio ambiente e da camada de ozônio que rodeia a atmosfera; a escalada da violência e da fome em escala internacional, combinada com uma explosão demográfica cada vez maior; o poderio cada vez mais opressivo de instituições estatais e grandes grupos econômicos transnacionais: no plano ideológico, a adoração cega da tecnologia, mas também o ressurgimento vigoroso dos fanatismos e integrismo religiosos, com a mensagem apocalíptica dos pastores eletrônicos e aiatolás.

Ao lado dessas ameaças há novas possibilidades: um desenvolvimento extraordinário das comunicações de massa e da interdependência cultural entre povos; um desenvolvimento de tecnologias que, convenientemente geridas, podem alargar espaços e criatividade e racionalizar o trabalho de forma a permitir mais tempo livre aos cidadãos; uma consciência mais aguçada de cidadania e repulsa ao autoritarismo em todas suas formas, a oeste como a leste; uma propensão cada vez maior de milhões de pessoas em todo mundo de se unirem e lutarem pela vida, pela ecologia e pela paz.

Era natural que dessa nova situação da humanidade, no limiar do terceiro milênio, se gestasse um pensamento novo, diferente das correntes dos séculos XVIII e XIX que continuam a dominar o pensamento dos partidos políticos (liberalismo, social-democracia, comunismo, democracia cristã, etc..) e que buscasse respostas novas. Esse pensamento é a ecologia política ou ecopolítica, como preferem alguns.

Diferentemente do marxismo, ela surge sem grandes gênios do pensamento, como Marx e Engels, capazes de criar um edifício teórico completo, sem uma grande obra de referência que possa em algum momento ser um sucedâneo de O Capital ou da Bíblia. Mesmo porque na era em que vivemos é muito) difícil um grande pensador capaz de passar boa parte da vida nas bibliotecas criando uma obra tão abrangente como a de Marx com relação ao seu mundo do século XIX. Por outro lado, o mundo audiovisual que vivemos possibilita uma difusão rápida e instantânea de idéias, lutas e sentimentos, de um canto para outro do mundo. Os profetas da nova era são os artistas que, através de sua expressão, conseguem chegar mais e melhor nos corações e mentes de pessoas sensíveis e jovens de todas as idades, em todo mundo, se tornando os agitadores de novas formas de pensar e viver. A sua mensagem tem uma força infinitamente maior do que a da mensagem ideológica de um tablóide militante impregnado de racionalidade. Os artistas-profetas são capazes de criar um vínculo com o emocional, falar diretamente aos sonhos das pessoas.

Os verdes na política

Isso dito, é claro que são importantes os livros, as pesquisas e a elaboração teórica e "racional" em torno dos problemas que afligem os homens e mulheres do mundo atual. É importante que haja um pensamento político, um guia para a ação. E é importante que haja militantes: homens e mulher dispostos a lutar.

Em alguns países já se constituem partidos que procuram levar esse pensamento, ainda incipiente e fragmentário, para a arena política e a disputa eleitoral. Exemplo clássico é o do Partido dos Verdes (Die Grunnen) da República Federal Alemã, que acaba de ter um grande crescimento nas eleições alemãs, passando de 5% para 8,3%, um escore respeitável, sobretudo num país de voto distrital misto e de eleitorado extremamente estratificado e pouco volúvel como o alemão.

Por outro lado, o peso político e cultural dos verdes é muito maior do que esses 8%. Cada vez mais a sociedade se defrontará com as questões levantadas por eles e que acabam influenciando os outros partidos. Exemplo disso é a mudança radical de posição do SPD, o partido social-democrata alemão, com relação à questão das usinas nucleares, por influência da ação dos verdes.

No Brasil, a ecopolítica esteve presente nas eleições de novembro de 1986, no Rio de Janeiro, através da candidatura Fernando Gabeira e da coligação dos verdes com o PT. Também aqui um resultado respeitável: 9% em todo estado, 11 % na região metropolitana e escores de até 20% em pequenas cidades do interior, como Volta Redonda e Petrópolis. Também aqui o peso das questões levantadas pelos verdes, o impacto de suas manifestações e das polêmicas por eles suscitadas foi bem maior do que o simples resultado quantitativo. Essa parece ser uma marca da ecopolítica na sua fase inicial: uma reverberação cultural de amplitude muitas vezes maior ao de sua capacidade eleitoral ou de mobilização. Mas seria então o verde apenas um pólo irradiador de idéias, de protestos e sugestões a serem no futuro encampadas por outras forças, as grandes máquinas políticas "viáveis", "sensatas" ou "realistas"? Terão algum dia os verdes uma real perspectiva ou possibilidade de poder? Ou serão sempre um contrapoder?

No nosso entender, a ação política só tem sentido dentro de uma perspectiva de poder. E os verdes devem se preparar para exercê-lo dentro de padrões éticos diferentes dos da política tradicional brasileira. Essa discussão se tornará mais interessante com a perspectiva das eleições municipais de 1988. O Partido Verde terá então a sua primeira oportunidade de se apresentar com sua cara própria ao eleitorado, justamente num pleito onde suas potencialidades são maiores: a disputa do poder local.

Um papel no mundo

Ao mesmo tempo que começam a refletir sobre a questão local, municipal, os verdes são remetidos a cada momento às grandes questões nacionais e internacionais. No caso brasileiro, a elaboração sobre essas questões ainda é incipiente, mas já parte de determinados parâmetros. O primeiro deles é o papel do Brasil no mundo. Acreditamos, sem nenhum ufanismo, que ele será cada vez mais importante, numa estratégia mundial ecopolítica e pacifista. O Brasil é ainda um dos países do mundo com mais natureza a defender, com destaque especial para a floresta amazônica, cuja sobrevivência é fundamental para todo ecossistema mundial.

Por outro lado, como civilização multirracial, desaguadouro de variadas culturas, nação pacífica e sem conflitos com nenhuma outra, o Brasil tem um papel importante a desempenhar na luta pela paz, o desarmamento e a distensão entre os dois grandes blocos que ameaçam o planeta e em relação ao Terceiro Mundo. Esse papel não pode ser amesquinhado por uma política externa tímida, pragmática e sem sentido ético, temperada pelo nosso recente, mas cada vez mais promissor, papel de mercadores de canhão. Pode parecer ingênuo cobrar sentido ético à política externa de um Estado nacional e criticar a exportação de armas que tantos outros praticam, mas a base da ecopolítica está justamente na afirmação desse sentido ético. Quanto ao realismo cabe uma inversão de ótica: no fundo, a única política realmente realista nesse final de século é constatar o óbvio — a imensa inutilidade e desperdício do armamentismo, em todos os níveis.

Diante da dívida: quem é realista

A recusa dos atuais dirigentes do país em assumirem um papel internacional digno para a importância do Brasil fica mais patente ainda na questão da dívida externa. Os verdes acreditam que o realismo dos que empurram com a barriga tem pernas curtas. É patente que, em algum momento, nações como o Brasil, a Argentina, o México, a Venezuela, etc... terão que ir para um confronto com o sistema financeiro internacional para impor uma alteração profunda das regras do jogo. Já foi exaustivamente provado que a dívida, conforme está, não pode ser paga. A cada ano cada uma dessas nações passa, separadamente, pelos rituais malabaristas dos foros financeiros internacionais. Ao sempre excluírem, a priori, a hipótese da moratória, nossos governantes já se colocam, ano após ano, numa situação de inferioridade dentro da barganha.

Na verdade, a moratória total se coloca como um tacape a ser brandido, recurso extremo, dentro de uma queda de braço planetária. A melhor solução para a dívida externa é algo parecido com o que empreende, corajosamente, o governo Alain Garcia, no Peru: vinculando seu pagamento a uma porcentagem das exportações, 10%. No caso brasileiro, trocando em miúdos, isso significaria pagar pouco mais de dois bilhões de dólares, em vez dos nove bilhões que se pagam por ano.

O consenso "realista" do establishment político e econômico do país considera o confronto com os bancos uma catástrofe líquida e certa, nas palavras de Sarney, "uma guerra das Malvinas". Sem subestimar os possíveis efeitos recessivos e os prejuízos da perda de créditos internacionais, acreditamos que, até agora, esse cenário não foi estudado, sequer superficialmente, pelos que acham que governar é eternamente empurrar os problemas com a barriga. Não há uma elaboração estratégica, com planos de contingência e cenários diferentes para a hipótese de um confronto com o sistema financeiro. Também foi desperdiçada uma boa oportunidade econômica de fazê-lo no período de euforia do Cruzado I, quando havia bom saldo de divisas. Atualmente, se esboça um momento politicamente favorável, com a crise da administração Reagan, enfraquecida para adotar fortes retaliações. Por outro lado, é evidente que uma ação, concertada e em bloco, de vários grandes países devedores, simultaneamente, colocaria o sistema financeiro numa situação de pensar dez vezes antes de partir para represálias realmente drásticas.

Sem um enfrentamento corajoso da questão da dívida externa a economia brasileira seguirá sendo essa nau dos insensatos, navegada entre rochedos de estagflação e naves piratas, conduzida por um timoneiro míope e assustado que, por não querer correr nenhum risco, acaba correndo todos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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