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Tudo azul 68 a 86: os estudantes franceses "Pour une Planète plus Bleue" (slogan do movimento)

Tudo azul

68 a 86: os estudantes franceses "Pour une Planète plus Bleue" (slogan do movimento)

Olgária Chaim Féres Matos

Filósofa e professora da USP

O movimento estudantil de 1968 inscreveu-se no horizonte das esperanças revolucionárias, esperanças revividas para além do campo do marxismo militante e de suas estratégias de poder. Desenvolveu-se em meio à recusa mais ou menos implícita da política tradicional. O maio de 1968 significou, entre outras, uma crítica radical à fusão do indivíduo na totalidade, quer seja esta entendida como Partido ou Estado. Em 1968, o movimento de jovens estudantes e operários praticou a espontaneidade consciente e criadora. Não considerou o sistema de partidos ou grupos de pressão a qualquer nível; não participou nem do sistema nem de seus métodos. Desde o início ele não tem dirigentes, nem hierarquia, nem disciplina partidária ou outra; contestou os profissionais da contestação, violando as regras do jogo que as oposições dominam. O movimento de 1968 pôs por terra o bolchevismo imaginário do Palácio de Inverno. Não foi uma luta pelo poder ou contra ele. Questionando o mundo burocratizado e desencantado, colocou como lema a verdade triunfante do desejo: "soyons réalistes, demandons l'impossible".

Em 1986, uma vez mais, conflitos têm seu começo na área escolar e universitária. Coloca-se a interrogação acerca destas manifestações — por que os dilaceramentos mais dolorosos na sociedade francesa, exceção feita à descolonização, sempre se iniciaram no terreno da política cultural? Esta peculiaridade pode iluminar a compreensão deste movimento. Jean-Claude Milner, num artigo no jornal Libération, considera que a questão do saber é uma das engrenagens essenciais no funcionamento da democracia na França e, em particular, a cultura histórica: "se as liberdades (as de 1789) ainda encontram cidadania na França, é porque seus princípios foram transmitidos, ensinados". Nessa perspectiva, os eventos de dezembro, ao se insurgirem contra a "lei Duvaquet", contra a profissionalização do ensino, contra sua "'elitização", contra a adequação do conhecimento às leis do mercado, questionava, de fato, a concepção do direito vigente na sociedade. Os estudantes secundaristas e universitários não estavam procurando inventar um mundo ou uma política nova. Simplesmente se perguntavam como o mundo poderia se tornar mais vivível, menos insensato.

Ao se abater a "lei Duvaquet", outros projetos são igualmente afastados: a reforma no código da nacionalidade, a instalação de prisões privadas, a penalização no consumo de drogas. Sobretudo o problema do racismo retorna com a morte do estudante Malik Ouissekine, vítima da violência policial. Este acontecimento não desvitalizou, porém, o movimento: "tivemos um morto, mas somos jovens, amamos a vida". Não faltaram também cartazes contra Chernobyl.

Por outro lado, a crise quase que permanente nos últimos vinte anos na universidade é sintoma de uma profunda ruptura entre a aquisição de conhecimentos tanto universitários quanto profissionais e a utilidade social dos indivíduos. Em verdade, como poderia a universidade preparar eficazmente indivíduos para uma profissão quando é evidente que esta será rapidamente ultrapassada pela vertiginosa transformação das tecnologias e a obsolescência do modo de produção pós-industrial?

A geração de 1986 viveu seu 68 sem barricadas, messianismos ou utopias revolucionárias. Fez emergir uma cultura antiestatal, pois reconhece que a condição de cidadão se esvaziou, o que propicia à juventude a procura de outros laços sociais, outras razões para se estar junto, outros signos de reconhecimento. O jornal Libération caracterizou o movimento de dezembro mais como um método do que um programa: nem violência, nem política, mas uma nova concepção do direito e da vida. Por democracia não se acolhe mais sua forma parlamentar, segundo a qual ela se consolida por representantes periodicamente eleitos. O direito, de agora em diante, se realiza nas ruas.

O direito se manifestou na forma do direito ao saber — na medida em que o conjunto dos direitos são garantidos por uma configuração histórica à qual se tem acesso pelo saber. Trata-se das relações entre o saber e uma vida respeitosa. Desde o início o movimento a qualificou: foi pacífico e generoso. Sua forma de mobilização natural lembrava o SOS racismo ou o "ne touche pas à mon pot".

Se em 1968 encontrava-se uma crítica global à sociedade, com seu cortejo de ilusões e de esperanças, 1986 aceita a sociedade existente — de onde sua reivindicação de apoliticismo. Se em 1968 encontrava-se o desencanto com a racionalidade dos direitos do homem, com o desmoronamento da tênue universidade conferida ao indivíduo nos moldes da liberdade, igualdade, fraternidade — valores estes insuficientes para barrar o advento e a consolidação do totalitarismo, 1986 inova: depois da última guerra — mas principalmente depois das revoltas de 1968 —, as liberdades e os direitos fundamentais são progressivamente assimilados a valores que escapam às legislações. Critérios "morais" substituem-se pouco a pouco aos preceitos legais. O "direito" à diferença ou à dissidência, uma concepção do primado dos direitos do homem sobre toda razão de Estado ou norma constitucional, a exaltação das "identidades culturais" colocam em má situação a função quase sacerdotal da ciência jurídica e de seus praticantes. A lei é agora considerada como uma norma entre outras na organização da sociedade. O "à margem da lei" não é mais um sacrilégio, como diz Carlos de Sá Rego em Une Nostalgie de Grandeur: Essai sur la France Etat-Nation.

E, por último, se o movimento de 1968 tomou as cores do "vermelho e azul" — alusão ao marxismo revolucionário e ao romantismo político —, agora o vermelho cede à predominância do azul, esta cor que é "energia, que em sua pureza suprema constitui (...) uma linda mônada. Seu efeito é uma mescla de excitação e serenidade" (Goethe). Se o homem necessitou sair da órbita terrestre para ver a terra azul, o movimento de juventude estudantil sai do universo preto e branco do mundo político. O azul, no romantismo, domina a visão do sonhador, do poeta, daqueles capazes de ver primeiro e antes de mais nada o azul; são aqueles que, segundo Roberto Romano, "em tudo se opõem aos homens comuns, de olhar descorado e entregues à experiência imediata". Talvez uma "cultura poética" esteja nascendo, cultura que reaviva a "beleza dos astros, da primavera, do amor, da felicidade, da fecundidade, da saúde, da alegria". O direito que se afirma na rua, a céu aberto, recusa a luz mortiça dos corredores parlamentares. Ela poderá estar reencantando o mundo após seu longo processo de despoetização.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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