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Renascença dos liberalismos: a paisagem teórica

MESA-REDONDA

Renascença dos liberalismos: a paisagem teórica

José Guilherme Merquior

José Guilherme Merquior é filósofo, ensaísta e embaixador do Brasil no México

...e o impulso que ordena cidades.

Sófocles, Antígona

"Um conservador", disse Irving Kristol, "não passa de um liberal assaltado pela realidade." O próprio sucesso desse epigrama parece indicar que a "onda" do presente, em teoria política, é neoconservadora—mas a realidade não é bem assim. A julgar pela fermentação doutrinária dos anos 80, ou até pelos balcões de ensaio e teoria nas livrarias da Europa e dos Estados Unidos, a hora pertence aos liberalismos. É preciso, porém, insistir nesse plural. Sob uma etiqueta habitualmente empregada para classificar tanto um Friedrich von Hayek quanto um Raymond Aron, ou tanto um John Rawls quanto um Norberto Bobbio, é óbvio que há liberalismo e liberalismo. A mesma velha palavra—liberal — cobre hoje o new look da direita e a mais recente reedição do socialismo democrático. Nessas condições, como entender o surto dos liberalismos sem cair na pura e simples confusão ideológica?

Talvez não seja mau começar anotando a atmofera político-ideológica que cerca a renascença da idéia liberal. Outrora, o liberalismo vivia na defensiva, porque os imperfeitos, incompletos e em boa parte injustos regimes liberais eram sempre comparados, com evidente desvantagem, com o ideal socialista de liberdade na justiça. Mas o envelhecimento das realidades políticas subseqüentes à Segunda Guerra Mundial, quando o socialismo de Estado foi autoritariamente implantado, acabou fazendo com que as mazelas do "socialismo real" fossem ficando mais e mais visíveis. Se o liberalismo, atualmente, passou à ofensiva na produção teórica, isso se deve ao fato de que seu segundo grande adversário histórico, o socialismo, está longe de ter as mãos limpas e o coração leve. Na observação de Ralf Dahrendorf, o liberal raramente precisa se envergonhar das realidades criadas em seu nome. Ou, quando precisa, resta-lhe o consolo de verificar que o iliberal de esquerda (como ainda ontem o iliberal de direita) possui muito mais esqueletos em seu armário.

Podemos chegar à mesma conclusão por um prisma mais teórico, levando em conta a evolução da crítica do poder. Conforme apontei n'O Argumento Liberal (Nova Fronteira, 1983, pp. 99-104), a linguagem da crítica do poder conheceu basicamente duas transformações, uma referente ao objeto e a outra à natureza do poder. Quanto ao objeto, a crítica ao poder arbitrário primeiro se expressou na língua da opressão de classe, e só mais tarde é que veio a tematizar o indivíduo vitimado pela dominação ilegítima. A burguesia das comunas, na Idade Média, reclamou (e obteve) franquias e privilégios estamentais. Só bem depois, na época das Luzes e das revoluções atlânticas (americana e francesa), é que o discurso da liberdade cobraria, com os direitos humanos, a emancipação do indivíduo. Curiosamente, o marxismo, de certa forma, refez esse percurso: falou primeiro, sobretudo, da exploração de classe; mais tarde, no marxismo pós-marxiano tardio, passou a privilegiar o tema da alienação, cujo sujeito não é, a rigor, a classe trabalhadora e sim o homem e, portanto, o indivíduo.

E quanto à natureza do poder? Aqui, a evolução caminhou da crítica do poder político para o questionamento do poder social. Os primeiros clássicos da doutrina liberal — Locke, Montesquieu, Constant — ainda estavam essencialmente preocupados com o problema do despotismo; o que os obcecava era a excessiva extensão do poder político, do arbítrio do governo. Mas, com os dois maiores clássicos do liberalismo vitoriano — Tocqueville e Mill —, o eixo do cuidado liberal se deslocou para o tema da "tirania da maioria", ou seja, para os malefícios de uma opressão mais social que política: o peso do conformismo de massa sobre o indivíduo "diferente", produto do progresso e glória da civilização.

Acontece que o advento das tiranias modernas — dos totalitarismos — forçou a teoria liberal a refocalizar o poder como dominação política. No passado, o pensamento liberal se esmerara em advogar o instituto da divisão dos poderes como freio ao potencial despótico do mando político. O liberalismo clássico percebera que o autocrata era ou tendia a ser principalmente o chefe de uma monocracia, isto é, de uma situação em que o poder único e absoluto reinava sem limite ou sem contraste; e o antídoto certo contra esse mal era a divisão da autoridade em poderes institucionalizados, funcionalmente diversos e igualmente soberanos.

No nosso século, os regimes totalitários suscitaram o mesmo problema, mas a partir de outro ângulo. Ao concentrarem numa só estrutura de autoridade — o partido único — o poder político e o domínio econômico, esses regimes desenterraram o fantasma da monocracia. Daí a tese neoliberal da indivisibilidade da liberdade, baseada no reconhecimento de que não pode haver liberdade onde as decisões políticas e as decisões econômicas ficam, regularmente, nas mesmas mãos. O Estado pré-liberal monopolizava a ideologia (por meio das religiões de Estado) e a economia (mercantilismo); já o Estado liberal monopoliza apenas, conforme queria Weber, o uso legítimo da força. O Estado detém, soberano, o monopólio da autoridade política; mas não hospeda ou constitui nenhuma monocracia de ilimitado alcance político-social.

II

• A tese da liberdade indivisível representa uma ampliação moderna sociologicamente perspicaz do velho e sadio princípio liberal da divisão de poderes. Além disso, a sociedade moderna, tecnificada e consumista, não requer apenas justiça: exige também eficiência; e a eficiência, por sua vez, implica a liberdade econômica, em vez das rígidas economias de comando do minotauro monocrático. Ao libertarismo moral e político se junta, assim, alimentando o impulso da renascença liberal, o libertarismo econômico. Todavia, o neoliberalismo econômico toma às vezes uma forma extrema e virulenta, em que o antiestatismo — posição das mais lúcidas — vira estado-fobia generalizada, não raro acompanhada de sentimentos antidemocráticos. Esses dois traços — estadofobia e antidemocratismo — são perversões, compostas de muita confusão conceituai, de boa motivação dupla, política e econômica, dos liberalismos contemporâneos. Convém examiná-los brevemente.

No pensamento ocidental, dois princípios de justiça regem, normativamente falando, a interação entre os indivíduos e a organização das instituições. Ambos remontam ao direito romano. O primeiro princípio diz: neminem laedere, não lesar a ninguém. Assim se procura resguardar a independência do indivíduo, o gozo desimpedido da liberdade entendida como ampla esfera da liceidade, onde tudo é, em princípio, lícito, permitido a cada um, desde que não prejudique a igual direito de outrem. Essa liberdade-liceidade foi a que Hobbes definiu, no livro XIV do Leviatã (1650) como "ausência de impedimento externo"; e nela é que Mill pensava ao dissertar, em Sobre a Liberdade (1859), acerca da equação felicidade = liberdade = personalidade.

O segundo princípio tradicional da justiça reza: suum cuique tribuere, dar a cada um o seu, isto é, o que, e quanto, lhe é devido. É uma regra — já se vê pela própria etimologia — eminentemente distributiva. Leibniz julgava o neminem laedere adequado à regulação do direito de propriedade, e o suum cuique à ordenação do direito de sociedade (jus societatis). Ora, basta consultar a história das idéias jurídico-políticas para compreender que o liberalismo crassamente ideológico da era vitoriana — o de Spencer, por exemplo — só teve olhos para o neminen laedere, esquecendo quase totalmente o princípio da justiça distributiva. Com isso, repara Bobbio, reduziu-se o direito público a mero direito penal — e se mutilou a teoria política. Mas existe um ramo do neoliberalismo contemporâneo que reincide abertamente nessa mutilação. Quando Hayek exorciza a idéia de justiça social — a idéia de justiça social em si, não essa ou aquela de suas materializações históricas mais ou menos insatisfatórias—, ele está reeditando Spencer. No entanto, a excomunhão da justiça social não é nenhuma conseqüência lógica automática, nenhum corolário evidente, da defesa hayekeana do liberalismo econômico. É perfeitamente possível defender, ao mesmo tempo, o valor do mercado e a taxação redistributiva, como o faz, briosamente, o neoliberal inglês Samuel Brittan (O Papel e Limites do Governo, 1983).

Os neoliberais de estirpe hayekeana têm marcado muitos pontos na denúncia do estatismo econômico. Até mesmo quando "estatismo" na economia não significa o paquiderme burocrático dos regimes que se querem produtivistas, mas se recusam a reconhecer a lógica do econômico, e sim, apenas, a expansão tentacular de empresas estatais que, longe de serem servas de uma cúpula política, normalmente se comportam como inexpugnáveis baronias econômico-financeiras, exemplos colossais de um verdadeiro feudalismo burocrático, o estatismo industrial faz realmente má figura em termos de desempenho. É irrealista pensar que o Estado pode deixar de dirigir as finanças ou planejar a economia — mas daí a engolfar esta última vai uma vasta distância, jamais franqueada, com êxito econômico, por qualquer país moderno ou modernizante.

No entanto, os neoliberais de direita não param aí. Juntamente com o estatismo econômico, timbram em fazer do moderno Estado assistencial outro bicho-papão. Trata-se — alegam eles — de um sistema fundamentalmente iliberal, porque "paternalista". Pode ser — retruca Bobbio; mas não é menos verdade que, nas sociedades industriais de tipo liberal, esses sistemas assistenciais foram montados por governos democráticos, ao sabor de demandas populares livremente articuladas no mercado político. E ouçam a conclusão, a meu ver impecável, do mestre italiano: a democracia, tal como a temos hoje, é uma conseqüência ou, pelo menos, um prolongamento do liberalismo; mas a prática democrática levou geralmente a uma forma de Estado nada "mínimo" no sentido do ideal do liberalismo clássico.

E será que, como quer o neoliberalismo estadófobo — estadófobo e não só antiestatista —, o Estado planificador e assistencial, consequência da liberdade democrática, é uma conseqüência perversa? A resposta positiva mais categórica ainda é a de Hayek. No famoso O Caminho da Servidão (1944), ele levantou a tese de que o progressivo envolvimento do Estado na economia e na sociedade, mesmo por meio de intervenções tópicas e isoladas, redunda fatalmente, a longo prazo, na subjugação totalitária. Entretanto, as quatro décadas transcorridas desde a guerra mostram que Hayek se enganou. No Ocidente e no Japão pós-bélicos, o capitalismo planificado e o Estado assistencial ajudaram a evitar o totalitarismo, porque contribuíram de modo decisivo para neutralizar os movimentos políticos portadores de um modelo socialista autoritário. Quem tinha razão era Elie Halévy, autor da Eradas Tiranias (1938): os totalitarismos nasceram da violência e da revolução, não do Estado-piloto e previdenciário circunscrito pela ordem jurídica do liberalismo institucional.

Em sociedades como a brasileira, não me canso de repetir, o problema do Estado não tem uma e sim duas faces. Pois a verdade é que temos, ao mesmo tempo, Estado demais e Estado de menos. Demais, certamente, na economia, onde, em diversas áreas, o Estado emperra, desperdiça, onera e atravanca. De menos, no plano social, onde ainda são gritantes — e se tornaram inadmissíveis — tantas carências em matéria de saúde, educação e moradia. Daí, em grande parte, o fogo cruzado num diálogo de surdos: de um lado, muitos (mas não todos) antiestatistas se "esquecem" de ressalvar nossas tremendas necessidades na ordem assistencial; de outro lado, vários paladinos do "social", a pretexto de justiça e igualitarismo, acabam condenando, em bloco, as posições antiestatistas, como se elas não incluíssem a crítica, bem justificada, dos feudalismos burocráticos na esfera econômica.

Em plena agonia da República de Weimar, Hermann Heller (1891-1933) promoveu uma fecunda renovação da teoria do Estado. Heller salvou a idéia de Estado de seu opróbrio marxista, procurando mostrar que a sociedade moderna é intrinsecamente incapaz de uma plena e satisfatória auto-organização. Com essa perspectiva, de índole hegeliana, pretendia superar a noção paleoliberal de um Estado guarda-noturno, mero guardião da ordem pública; e, em seu lugar, introduzir a concepção dinâmica de um Estado social de direito (Sozialer Rechstaat).

O Estado é, efetivamente, o principal, senão o único mecanismo social por cujo intermédio se conseguiu dar força ao direito e não direito à força. O Estado social neo-republicano no Brasil se propõe exatamente isso: como o de Heller, quer ser social sem nem por um instante deixar de ser um Estado de direito, ou seja, uma construção jurídico-liberal. O verdadeiro Estado forte, que é feito de autoridade e não de repressão, consiste no império da lei, e sabe — como disse Tancredo Neves no seu impronunciado discurso de posse — que a lei, na sociedade moderna, é "a organização social da liberdade"; da liberdade e da justiça, sem a qual a primeira se amíngua no privilégio.

Mas, nesse ponto, naturalmente, não há estadofobia que se justifique. Afinal, como lembra Serge-Christophe Kolm (O Contrato Social Liberal, Paris, 1985), liberalismo não quer dizer menos Estado —quer dizer mais liberdade. E o Estado social pode ser um poderoso instrumento de universalização da liberdade. Não foi por acaso que o embrião do welfare state britânico, o célebre Beveridge Report, foi redigido na biblioteca do Reform Club — o próprio templo histórico do liberalismo vitoriano. Bobbio tem razão: a dimensão social da democracia, tanto quanto a sua face política, é um desdobramento do liberalismo.

III

• Como se situam os neoliberalismos diante da questão da democracia? Keynes, que tanto transformou o liberalismo econômico, e sob mais de um aspecto pertence à linha inglesa do social-liberalismo (a linha que vai de Mill a Green e Hobhouse, no fim do século passado), imaginou salvar o capitalismo sem sair da democracia. Isso significava recusar tanto a opção leninista — extinguir o capitalismo com o sacrifício da democracia — quanto a fascista: sacrificar a democracia para salvar o capitalismo. Comentando essa posição keynesiana em O Futuro da Democracia (Turim, 1984), Bobbio observa que os neoliberalismos em voga pretendem realizar a manobra inversa: desejam preservar a democracia sem sair do capitalismo. Com a devida licença do mestre Bobbio, acho alguns neoliberalismos do presente bem frios em matéria de fervor democrático. O próprio Hayek chegou a entreter idéias sobre alternativas institucionais à democracia, e (nos seus New Studies) acha concebível que um governo autoritário atue à base de princípios liberais.

Mas seria altamente injusto sugerir que os neoliberalismos são, em conjunto, refratários à democracia. Pois toda uma vertente dos liberalismos hodiernos nada mais é do que uma restauração do contratualismo democrático encontrável nos primeiros clássicos da democracia, a começar por Rousseau (para uma análise mais detida, vide meu Rousseau and Weber, Londres, 1980). Estamos em plena renascença, não só do liberalismo, mas também da idéia de contrato social. Em nossas sociedades poliárquicas, várias das principais decisões são deliberações coletivas baseadas em acordos de natureza contratual; e a chamada crise do Estado-previdência só tem feito aguçar a urgência de manter e aprimorar os contratos sociais tripartites (empresas, assalariados e o governo) que regiam, de modo expresso ou tácito, a paz social da "sociedade afluente" de antes da recessão.

O sumo sacerdote da perspectiva neocontratualista é John Rawls. Professor em Harvard, ele deu aos liberals americanos — liberais, como se sabe, de esquerda — sua bíblia ético-política: a alentada Teoria da Justiça, de 1971. No intuito de deduzir racionalmente os princípios fundamentais de uma ordem social justa, Rawls descreve uma situação de escolha totalmente hipotética. Supõe que os cidadãos, como futuros pactários do contrato social, disponham estritamente de um mínimo de informações sobre a realidade social e sobre si mesmos. Os pactários rawlsianos sabem que vivem num mundo dominado pela escassez dos bens e posições, no qual ocorrem, por isso mesmo, conflitos de interesses — mas um hipotético "véu de ignorância" lhes veda todo conhecimento sobre suas próprias inclinações, talentos ou posição na escala social. Cada um tem de escolher a ordem social que lhe convém sem saber se é rico ou pobre, capaz ou incapaz, branco ou preto, etc.

O objetivo de Rawls é deduzir dessa hipótese de escolha "no escuro" um contrato social ditado pela pura prudência e auto-interesse, isto é, sem refletir qualquer altruísmo da parte dos pactádos. Senão, alega ele, a eqüidade do contrato só seria realmente persuasiva para os cidadãos eticamente mais bem-dotados, porém não para todos os contratantes.

Dadas essas condições hipotéticas, qual tenderá a ser a escolha dos pactários? Sendo pessoas racionais, atentas ao próprio interesse, eles serão levados a adotar dois princípios de justiça ou eqüidade: primeiro, cada indivíduo deverá poder possuir tanta liberdade quanto for compatível com a liberdade alheia (e o nosso velho neminem laedere de volta); em segundo lugar, toda desigualdade deve ser instituída em beneficio dos menos privilegiados entre os cidadãos. Por quê? Porque só assim — na incerteza em que se acham sobre as conseqüências de suas escolhas — os pactários quererão sempre, por pura prudência, maximizar o risco de serem individualmente prejudicados; e, portanto, tratarão de estipular como justas apenas as situações de desigualdade em que que se minimizem, para cada qual, os prejuízos, garantindo-se que toda desigualdade redunde em vantagem para os menos bem aquinhoados. Noutras palavras, no escuro, os contratantes votariam por uma espécie de seguro social: buscando reduzir ao mínimo a possibilidade de serem prejudicados, os cidadãos, maximizando esse risco, desembocariam num contrato social de maior eqüidade.

O esquema de Rawls — o pacto social maximin, parâmetro deliberadamente abstrato de justiça — tem sido criticado de vários ângulos ideológicos. Para muitos socialistas, o esquema peca por distributivismo insuficiente: não passa de simples idealização do atual welfare stale. Mas os críticos liberais apontam outros defeitos. Acham que a hipótese originária de Rawls é uma estilização demasiado restrita e abstrata. Por exemplo, na hipótese de Rawls, a posição originária exclui implicitamente atitudes pessoais diante do risco (o risco de ganhar ou perder na roleta da vida social, ficando entre os desfavorecidos). Não obstante, tudo indica que, normalmente, vários contratantes optariam por arriscar. Prefeririam assinar um contrato social que comporte uma "aposta" em vez de constituir um "seguro". É que a escolha sob o "véu da ignorância" descrita por Rawls também é abstrato demais: tão abstrata, que nela os pactários pensam e agem igualzinho. Os contratos sociais da teoria clássica (por exemplo, os de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant) não pressupunham contratantes idênticos. Não admira que em escritos posteriores Rawls tenha posto menos ênfase no"véu da ignorância". Mas na Teoria da Justiça, ao insistir na pura hipoteticidade do contrato de base entre cidadãos insulados e desinformados, ele nos deu tudo, menos uma teoria próxima da sociedade moderna ou das paixões de seus filhos.

Felizmente, o que a teoria nega, a história nos oferece. A história dos liberalismos políticos nos proporciona alguns sólidos exemplos de "contratos sociais" concretos, motivados pela rica vegetação dos interesses, e não pela aérea geometria do cálculo de condições irreais. Algumas vezes, esses pactos sociais, ou alianças político-sociais, tomaram forma acentuadamente liberal-populista. Foi esse o caso no coloradismo socializante de Batlle, no Uruguai da Belle Époque; ou na Inglaterra eduardiana. Esta última tem um significado especial, porque então a experiência liberal-popular se deu como resposta à crise econômica. Nas últimas décadas do século XIX, a economia britânica enfrentava um declínio industrial, com desemprego crônico de mão-de-obra não-qualificada. Num contexto de crescente ansiedade nos meios de classe média, as reformas assistenciais encetadas entre 1906 e a Grande Guerra, em prelúdio ao welfare state, foram conduzidas por um partido liberal decidido a renovar suas credenciais populares face ao desafio do trabalhismo ascendente. O social-liberalismo, a princípio pura doutrinação acadêmica em Oxford e na London School of Economics, se converteu numa alavanca político-social de efeitos irreversíveis. E conforme se pode ver pelo estilo do grande líder emergido dessa fase e dessa linha — Lloyd George —, o liberalismo absolutamente não se intimidou diante do popular; soube, ao contrário, a um só tempo exprimi-lo e conquistá-lo, num surto criador de liderança.

IV

• Keynes, nisso um típico social-liberal, aceitava a intervenção econômica do Estado e preconizava o equilíbrio entre a liberdade, a eficiência e uma dose considerável de justiça social. A seus olhos, o capitalismo era simultaneamente o habitat da "variedade da vida" e a máquina econômica mais eficiente. O tema da "variedade da vida", cujo protagonista natural são personalidades "renascentistas" como o próprio Keynes, era um descendente direto do liberal-humanismo de Mill. Mas a valorização da capacidade expansiva do capitalismo (que situa Keynes bem longe da elegia de Schumpeter pelo "suicídio" do capital) rompia nitidamente com as divagações de Mill sobre a desejabilidade de um "estado estacionário" da economia.

Por mais que as receitas keynesianas, ou aquelas adotadas em seu santo nome, hajam caído em descrédito, sendo hoje consideradas inadequadas ao (ou até, segundo alguns, responsáveis pelo) atual ciclo recessivo-inflacionário, não posso deixar de simpatizar com esse seu otimismo histórico; nem de concordar com Bobbio, quando este aponta, como substrato dos neoliberalismos de direita, uma filosofia da história restauracionista. Os fanáticos do Estado-mirim não vacilam em cobrar o desmantelamento do welfare state, a adoção de exércitos particulares ou até de moedas privadas. Robert Nozick, o adversário de Rawls em Harvard, autor de um clássico da direita libertária, Anarquia, Estado e Utopia (1974), chegou a comparar o imposto de renda ao trabalho forçado!

Esses neoliberais querem de fato fazer o relógio da história voltar atrás. Sua visão da história pressupõe um modelo simplista, em que fases negativas se alternam com períodos positivos, reprises da capo de épocas"sábias" para corrigir os "desvios" dos períodos institucional e ideologicamente pecaminosos... Confesso preferir o velho historicismo liberal, em que a história não é uma báscula e sim uma evolução, feita de etapas e não de meras fases monotonamente alternadas.

A bem dizer, em Hayek, ao contrário do que sucede com os demais neovitorianos entre os liberais de hoje, a visão histórica é mais complexa. Em sua obra, conforme acentuado por Brittan no melhor ensaio crítico já escrito sobre Hayek (TimesLiterary Supplement, 9 de março de 1984), a fé no liberalismo econômico se conjuga com uma reverência digna de Burke pela eficácia e sabedoria de instituições tradicionais. A diferença (acrescentaria eu) é que a instituição sábia, porque imemorial, no conservador Burke era a monarquia parlamentar oligárquica, que ele contrastava com o republicanismo revolucionário francês; ao passo que, para Hayek, a instituição útil e sensata por excelencia é o mercado — o próprio mecanismo que, mais do que a Revolução Francesa, minou universalmente as hierarquias sociais que Burke pretendia preservar.

É que Burke pensa em termos de valores religiosos; Hayek, em termos evolucionistas. Para ele o mercado é precioso, não por constituir o melhor meio de adjudicação de recursos (pois isso o computador poderia fazer melhor), mas sim por sua capacidade de lidar com a incerteza e com a emergência da novidade: o conhecimento inédito, a nova técnica, a reação inesperada dos consumidores, etc. E, aqui, a palavra-chave não é tradição e sim progresso. Se, para o historicismo liberal, a história é evolução, não é possível pintar essa evolução fora da moldura do progresso tecnoeconômi-co. É neste aspecto, ao sublinharem os requisitos funcionais da economia, que os neo-liberais de direita estão certos. O dogma mais arcaico, em nossa paisagem ideológica, é sem dúvida a hostilidade apriorística à motivação econômica—estribilho, por sinal, do radicalismo pós-marxista, muito bem representado por um Cornelius Castoriadis. A necessidade da economia, que implica o respeito pela lógica do econômico, triunfou e continuará a triunfar de todas as suas utópicas negações — e de quanto estatismo tente ignorá-lo ou distorcê-la. Espero que este ponto tenha ficado bem claro: se a esta-dofobia é um ledo engano, o estatismo é mais que isso — é um enorme prejuízo.

Para o neoliberalismo de direita, a liberdade econômica, além de necessária, é suficiente. Por isso é que Hayek tem sido criticado, na Inglaterra e nos Estados Unidos, pelos neoconservadores. Para o mais eloqüente deles, Irving Kristol, não basta demonstrar, como o fazem Hayek ou Milton Friedman, o papel positivo do mercado. Isso não é bastante, afirma Kristol, para enfrentar o desafio da nova esquerda, porque a nova esquerda jura por valores românticos, expressivistas e comunitários, e não, como era o caso do marxismo tradicional, utilitários e produtivistas. Em suma: nem só de pão vive o homem. A mesma crítica é movida contra Hayek pelo temor filosófico da nova direita inglesa, Roger Scruton, que pontifica na Salisbury Review.

Porém os neoconservadores — como todos os que concebem a sociedade em termos de consenso substantivo e não processual, comunhão global de valores em vez de simples acordo sobre as regras do jogo — esquecem apenas um detalhe: ninguém consegue especificar, a contento, o reino dos valores além-pão. E se não se consegue fazê-lo, como fugir à incômoda impressão de que, na hora agá, esses valores "comuns" seriam ditados pela direita, de maneira nisso estranhamente semelhante ao modo pelo qual operam as elites ideocráticas do socialismo autoritário?

Não: a superação das manifestas insuficiências do liberalismo de direita não reside nesse espiritualismo postiço. O que é preciso é aprofundar a análise do que Aron chamava de "síntese liberal-democrática": o acréscimo de direitos sociais ao elenco de liberdades civis e direitos políticos que integram o valioso legado da tradição liberal. Nas sociedades industriais de estrutura de poder policêntrica, as demandas heterogêneas, e com freqüência conflitantes, da sociedade ao Estado constituem a regra, pari passu com a competição entre partidos, por sua vez permeada por essas mesmas demandas. Assim, tanto pelo lado do social quanto pela parte da arena política, as poliarquías industriais vivenciam cada vez mais a experiência de diversos contratos entre diversas forças, instituições e poderes. Mais e mais, conforme nota Bobbio, a lógica privatista do acordo invade a cena pública, e se substitui ou sobrepõe à lógica publicís-tica do domínio. Das coligações político-partidárias aos grandes pactos sócio-financeiros tipo Matignon ou Moncloa, a seiva dos contratos sociais passa a sustentar a legitimidade do imperium — da autoridade política efetiva.

De resto, não parece haver melhor meio de pôr cobro a um fenômeno altamente nocivo, mas inerente à sociedade democrática dotada de instituições estáveis. Refiro-me à tendência observada por Mancur Olson (Ascensão e Declínio das Nações, Yale, 1982): quanto mais longo o período em que um país industrial goza, ininterruptamente, das liberdades democráticas, maior será a proporção em que sua taxa de crescimento econômico sofrerá devido à ação de interesses grupais organizados. Brittan subscreve esse diagnóstico e chama a atenção para o paradoxo que isso engendra: a democracia passa a experimentar tensões que são produto da liberdade, isto é, da sua própria razão de ser — e note-se que o mesmo problema é estruturalmente possível e até provável num regime democrático de tipo socialista. Ora, como superar, ou pelo menos contornar, o particularismo desses grupos de interesse organizados, a não ser pela fórmula barganhada de contratos sociais de longo alcance?

A imagem clássica da democracia pressupunha uma concepção individualista da sociedade. Hoje, porém, os sujeitos politicamente relevantes na ordem democrática são coletivos: governo, congresso e partidos, sindicatos e associações representativas da sociedade civil, Igreja e forças armadas. Onde elas falham, ou se condenam mutuamente ao impasse completo, as instituições deixam de funcionar e o apodrecimento da política descamba na emergência de dominações pretorianas, precedidas ou não por caóticos abortos revolucionários. A hegemonia do grupo como ator político naturalmente angustia o democrata libertário; e é bom que um grande número de democratas tenha a alma libertária. Como ser entusiasta da expansão dos contratos sociais, quando se os sabe largamente enquadrados e condicionados pelo incontornável poder da tecnocracia (indispensável à gestão da economia moderna) e da burocracia (gerada, em boa medida, pela própria pressão da demanda social sobre o Estado)? No fundo, o prestígio do neocontraíualismo só faz da necessidade virtude, pois, em parte, ele apenas encobre a crescente ingovernabilidade desse complexo e contraditório animal: a república tecnológica.

Entretanto, a ausência ou impossibilidade do ótimo não impede o reconhecimento do melhor. Se toda sociedade industrial é necessariamente tecnocrática e burocrática, nem todas o são da mesma forma. Uma diferença continua decisiva: a que separa as demotecnocracias, ou demooburocracias, híbridos liberais apesar de tudo, das ideocracias iliberais e, bem entendido, nada democráticas. Como, então, nos admirarmos de que os liberalismos estejam vivos e remoçados? O importante é saber escolher entre eles. A meu ver, as grandes arquiteturas teóricas, tipo Hayek (à direita) ou Rawls (na centro-esquerda) são menos penetrantes e relevantes — especialmente para a construção da liberdade nos países em desenvolvimento — do que a análise dispersa e fragmentária, porém constantemente lúcida, de críticos como Aron, Bobbio ou Samuel Brittan. Liberais, todos eles, sem purismos ou unilateralismos doutrinários e sem veleidades regressivas.

Esses liberalismos políticos de inclinação social-democrata, ou proto-social-de-mocrata, como o batllismo uruguaio e o renouveau pós-gladstoniano do partido liberal britânico, constituem paradigmas históricos de social-liberalismo. E a pertinência do modelo social-liberal para a nossa atualidade política é evidente. Afinal, como observa o social-liberal Celso Lafer, numa bela e pioneira meditação sobre a análise bobbiana do neo-contratualismo (Liberalismo, Contratualismo e Pacto Social, 1984), o expansionismo do Estado, no Brasil, não derivou de uma demanda social e sim da lógica do autoritarismo; e, pela mesma razão, a mensagem liberal de maior ressonância entre nós não tem sido de crítica à social-democracia e sim ao colosso burocrático-autoritário. Para repetir, correndo o risco de cansar: nosso melhor liberalismo não é nem tem por que ser estadófobo; é apenas — e aqui, com crescente vigor — antiestatista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1987
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