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A transição política: necessidade e limites da negociação. Relatório final

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A transição política: necessidade e limites da negociação. Relatório final*

I - Democracia, Pactos Políticos e Pactos Sociais

Não é a primeira vez que se procura, no Brasil, estabelecer um regime democrático estável. E o fato mesmo de se ter tentado outras vezes mostra a dificuldade da institucionalização da democracia no nosso país.

A dificuldade não é só nossa. Regimes autoritários se implantaram em muitos países. Em diversos deles se conseguiu estabelecer ou restabelecer um sistema democrático; mas essa transição nunca ocorreu sem problemas. Grécia, Espanha, Portugal, Filipinas, Argentina, Uruguai são exemplos desses processos. Alguns deles ainda estão em curso, e não se sabe se chegarão a bom termo.

Uma reflexão sobre as características mais gerais dos processos de democratização e a análise das especialidades do caso brasileiro podem nos fazer ver, com mais clareza, os problemas que devemos enfrentar.

Essa reflexão é oportuna, e mesmo necessária, porque a transição democrática, no Brasil, parece estar paralisada. Na perspectiva do funcionamento das instituições, há sinais de impasses difíceis de superar, quando não de retrocessos preocupantes.

É dentro desse contexto de incerteza que surgem, em diferentes momentos, propostas de pactos ou amplos acordos nacionais que balizariam previamente os rumos da mudança.

O problema genérico poderia ser formulado da seguinte maneira: dada uma situação de conflito de interesses que parece inviabilizar uma solução cooperativa ou provocar uma crise econômica ou institucional, deve-se procurar algum mecanismo pelo qual se possam estabelecer normas que, embora restrinjam os interesses específicos dos participantes, são aceitas por todos como condição necessária para atingir objetivos de interesses comum.

Essa definição nos remete diretamente para o problema da democracia. Uma democracia consolidada é sempre um espaço de conflitos e de negociações e um esforço político permanente de aperfeiçoamento das condições institucionais, sócio-econômicas e culturais em que se desenvolvem os processos sociais.

Se concebermos a democracia como um conjunto de instituições que regulam os conflitos e processam as demandas da sociedade, estaremos definindo, na própria mecânica democrática, o lugar dos pactos possíveis. Seria, portanto, redundante discutir pactos em sentido especial, à parte da discussão geral sobre o próprio conceito de democracia.

Entretanto, em situações de crise, especialmente em processo de transição, pactos podem ser instrumentos necessários para superar impasses aparentemente insolúveis. Mas aqui cabe indagar de que tipo de pacto se está falando, pois eles podem ser de natureza diversa.

Pactos políticos dizem respeito a acordos de natureza normativa, isto é, estabelecem canais através dos quais os conflitos se expressam e o lugar onde as demandas da sociedade são processadas. A instauração da democracia exige pactos desse tipo. Numa situação histórica na qual as instituições democráticas ainda não estão estabelecidas, impõe-se pactos políticos de caráter fundacional, isto é, algum tipo de entendimento entre as partes interessadas no processo democrático, de tal forma que a democracia passe a ter vigência. Em transições prolongadas, como é o caso brasileiro, os pactos políticos podem ter que ser refeitos ou reafirmados no decorrer do processo para garantir a possibilidade de consolidação do novo regime.

No cenário político brasileiro, por outro lado, as propostas de entendimento costumam se referir a um pacto social. Distinguir pactos sociais de pactos políticos não é mera preferência por palavras, mas remete à própria natureza do tipo de negociação e do tipo de parceiros que se tem em mente. Pactos propriamente sociais têm uma natureza substantiva, e dizem respeito a acordo sobre questões econômicas: salários, preços, distribuição de rendas, índices de investimento e crescimento, nível de emprego e política tributária, etc. No Brasil, o termo tem assumido conotação ainda mais estreita, restringindo-se, na prática, a uma proposta de trégua sindical em torno de questões salariais. Em sentido econômico mais amplo, pactos sociais exigiram, para sua realização, organizações representativas dos setores diretamente interessados na política e Governo.

O papel do Governo, nesse tipo de pacto, é particularmente importante, especialmente no caso brasileiro, pois ele pode atuar como agente econômico, como árbitro, como mediador, como instância que garante o cumprimento do acordo ou como todas essas coisas simultaneamente. Dada sua posição de agente múltiplo, o Governo pode facilmente inviabilizar qualquer pacto dessa natureza por omissão, ou por atropelamento. No primeiro caso, sua ausência limita excessivamente o campo do acordo. No segundo caso, exercendo seus múltiplos papéis, é constantemente tentado a substituir uma negociação real (na qual entra como parceiro), por uma outra, na qual ele apenas procura obter apoio para uma política econômica pré-estabelecida.

Há ainda uma dificuldade adicional nesse tipo de pacto: ao mesmo tempo que ele exige atores políticos bem definidos, capazes de firmar acordos em nome dos setores que representam e garantir que as bases respeitarão os compromissos assumidos, eles , muitas vezes se tornam necessários ou mesmo indispensáveis em momentos nos quais esses atores não existem ou estão em fase de constituição. Na transição de um regime autoritário para uma democracia isso é especialmente verdadeiro. Com efeito, a experiência latino-americano indica que os regimes autoritários foram essencialmente desagregadores no plano político, destruindo ou enfraquecendo as instituições representativas e as identidades coletivas:partidos, sindicatos, associações civis de modo geral.

No Brasil, o longo processo de abertura política permitiu uma gradual reconstrução da sociedade civil, mas o processo ainda está em andamento. É por isso que, mais cedo ou mais tarde, quando o processo de transição avança, os problemas que se referem à reconstrução da ordem social e política tendem a coincidir, em sua urgência, com a reconstituição das identidades coletivas, através das quais se identificam os atores políticos.

As estratégias de negociação, durante a transição, respondem sempre a um diagnóstico de crise integral. Não se trata apenas da crise dos regimes militares - a crise da transição é, também, uma crise das identidades coletivas que, destruídas ou desorganizadas pela experiência autoritária, não lograram ainda se refazer. Isso quer dizer que o processo de construção de uma nova ordem política torna-se, necessariamente, um processo de constituição de novos sujeitos ou atores políticos.

É esse processo que devemos elucidar na análise. Para isso, é conveniente ter uma visão geral e comparativa das dificuldades dos processos de transição democrática.

II - Regimes Autoritários e Transições Democráticas

A análise do processo de transição nos diversos países que tentaram estabelecer uma nova ordem democrática aponta algumas semelhanças com o caso brasileiro, assim como ressalta a especificidade do processo que estamos vivendo. Parte dessas semelhanças e diferenças se deve ao tipo do regime autoritário anteriormente existente e à natureza de sua crise.

Temos, de um lado, regimes que foram ou são economicamente destrutivos e altamente repressivos como os da Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile e Grécia. Esses regimes costumam terminar por colapso, devido a uma explosão de conflitos internos ou por desastradas aventuras externas.

O colapso leva a um tipo de transição no qual os governantes autoritários não conseguem controlar a negociação, e são excluídos ou ocupam um papel muito pequeno no novo regime. Os dirigentes do antigo regime, inclusive as Forças Armadas, sofrem um processo de desprestígio generalizado, que permite um grau elevado de desmilitarização do novo governo. O Governo democrático se move dentro de limites de liberdade de inovação bastante amplos, estabelecidos pela negociação entre as forças democráticas emergentes. Mas, nessa situação, a hostilidade entre as Forças Armadas e o Governo estabelece uma constante ameaça de morte rápida do regime por um novo golpe autoritário. Essa ameaça pode se cristalizar rapidamente se o Governo democrático não conseguir enfrentar as enormes dificuldades decorrentes da dupla tarefa de reconstruir a economia e atender à explosão de demandas reprimidas da população tanto no plano sócio-econômico como no plano político. O segundo tipo é aquele no qual o regime autoritário alcançou algum grau de sucessso econômico e utilizou o aparato repressivo de maneira menos generalizada, ou menos brutal, ou mais limitada no tempo. Incluem-se nesse tipo o Brasil e o Equador. Em alguns aspectos, e no período mais recente, a Espanha poderia se aproximar desse tipo. A transição, nesses casos, não ocorreu por colapso, mas em grande parte por iniciativa de representantes do regime anterior, que mantiveram um controle relativamente amplo sobre o ritmo e a extensão das modificações introduzidas. Os antigos governantes e as Foiças Armadas, embora tenham tido seu espaço político diminuído, desempenharam um papel importante, exercendo certo poder de veto na condução da transição, fundado nas posições que continuaram a ocupar no aparelho de Estado e na administração pública.

Nesses casos há uma ameaça muito menor de morte rápida, por golpe, mas existe o perigo de uma morte lenta pelo prolongamento indefinido de uma transição que não logra consolidar a democracia. Pode ocorrer, então, uma progressiva diminuição da margem existente para o exercício do poder civil; uma restrição crescente do número de atores políticos com efetivo poder decisório; e a restrição à participação plena das grandes massas populares, que estavam excluídas do sistema de poder no antigo regime, e não conseguem uma representação satisfatória no novo.

Essa tipologia simplificada serve para mostrar que a natureza do regime autoritário anterior e a forma pela qual se dá a transição contribuem para delimitar os atores políticos que negociam a mudança do regime e a amplitude e o ritmo das negociações. A forma dessa transição, por outro lado, condiciona o tipo de problemas que o novo governo deve enfrentar para consolidar o regime. Não se pode, portanto, pensar a democratização como resultante de um pacto único e permanente. Também não se pode identificá-lo à mudança pura e simples do governo.

Na verdade, os processos de democratização implicam duas transições: a primeira se encerra com a instalação do novo governo democrático. A segunda começa a partir daí, e se define como processo de consolidação, que se completa com a vigência efetiva de um regime democrático. A primeira transição costuma ser dura, difícil e cheia de incertezas. Para os países latino-americanos que realizaram essa primeira transição (entre os quais o Brasil), já está claro que a segunda será ainda mais árdua. Os caminhos que levam de um governo a um regime democrático são longos, incertos, e as possibilidades de regressão autoritária são múltiplas.

III - Os Impasses da Transição no Brasil

A discussão sobre as dificuldades das transições democráticas permite encaminhar melhor a análise da situação nacional. O caso brasileiro se inclui, certamente, no segundo tipo de transição democrática, mas apresenta particularidades importantes.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento econômico que promoveu foi altamente concentrador de riquezas, exacerbando as imensas desigualdades sociais herdadas do passado, e criando uma elevadíssima demanda reprimida na população excluída. Por outro lado, o modelo econômico implantado beneficiou largamente amplos setores do empresariado e das classes médias. Alguns desses setores, em situações de deterioração do quadro econômico, poderiam ser tentados a limitar a evolução democrática do País, se os privilégios acumulados forem ameaçados por uma política distributiva de grande alcance. Por isso mesmo, a repulsa ao antigo regime não é tão extensa como no caso da Argentina e Uruguai. Isso favorece um elevado grau de continuísmo, uma vez que os representantes do regime anterior podem contar com o apoio eleitoral para participar dos novos governos.

Nessas condições de coexistência entre opositores e representantes do regime, com a preservação da capacidade de influência das Forças Armadas, o pacto político que deu início à transição esgotou-se sem estabelecer uma transformação da ordem sócio-econômica e sem consolidar novas instituições democráticas. A transição, nos seus primórdios, apoiou-se numa negociação, nunca tornada pública, que, embora eficaz para definir os passos iniciais pelos quais se sairia do regime militar, foi insuficiente para consolidar um novo regime democrático.

Essa negociação desdobrou-se em dois grandes aspectos: o primeiro estabeleceu as garantias políticas e institucionais dentro das quais os dirigentes do antigo regime aceitaram a entrega do poder à coalizão oposicionista. O segundo retomou a estratégia de liberalização por via autoritária, implicando a contenção da mobilização popular em torno da "Campanha das Diretas Já".

É importante analisar mais detalhadamente esse processo de transição para entender como se evitou uma ruptura mais profunda com o regime anterior, e uma transformação efetiva dos modos de organização do Estado. O primeiro ponto a ser considerado é que a transferência de poder se deu após a derrota da intensa campanha popular das "Diretas Já", quando a emenda Dante Oliveria não foi aprovada pelo Congresso.

A construção da Aliança Democrática, fruto dessa derrota, correspondeu a um realinhamento de forças: reuniu, ao lado dos setores da antiga oposição, que aceitaram a eleição via Colégio Eleitoral, representantes do antigo regime que, por diferentes motivos, mostraram-se dispostos a derrotar o candidato do partido oficial. Tratava-se, portanto, de uma ampla coalizão, que excluía tanto os setores mais radicais do antigo regime como os grupos de oposição que recusaram a solução da eleição indireta.

Naquele momento da transição, apenas as regras mais elementares haviam sido definidas. Mas o pacto democrático quase sempre depende de uma série sucessiva de negociações que, a cada passo, vão definindo o conjunto de regras que dará corpo à nova realidade democrática. Acertada a transferência do governo, restava por negociar as medidas que institucionalizariam o novo regime. A morte de Tancredo criou, entretanto, uma situação de tal forma indefinida, que apenas a formação de um amplo consenso em torno da sucessão foi capaz de garantir a continuidade da transição. Todas as questões referentes ao estabelecimento da nova ordem institucional que, por sua importância mesma, pudessem romper a frágil coalizão obtida, foram deixados de lado.

Logrou-se ainda aprovar, no Congresso, com a Emenda Constitucional nº 28 e outras decisões, uma série de medidas que iniciaram o que então se chamou "a remoção do entulho autoritário". Entre elas, cabe mencionar a liberdade plena de organização de todos os partidos políticos, o reconhecimento das centrais sindicais, eleições para as capitais e os municípios considerados de interesse da segurança nacional, etc.

Mas outras questões fundamentais, que diziam respeito à limitação dos poderes do Executivo, como o uso do Decreto-lei, a aprovação de leis por decurso de prazo, a mudança da Lei de Segurança Nacional, não foram tocadas. Estabeleceu-se, assim, com o regime anterior, uma continuidade muito maior do que se esperava e previa. Afastadas da Presidência, as lideranças do PMDB procuraram assegurar sua participação no Executivo através do controle de posições no Ministério. A distribuição dos cargos, iniciada por Tancredo como instrumento de consolidação da Aliança Democrática, que poderia ter sido um elemento secundário na transição, transformou-se numa questão política essencial e permanente. Foi nesse terreno que se travaram- as grandes lutas políticas entre os componentes da coalizão original, submergindo freqüentemente as questões substantivas numa acirrada disputa por cargos que acabou se constituindo num traço marcante da Nova República.

Por outro lado, as transformações institucionais estabelecidas pela Emenda Constitucional nº 28, permitindo a migração partidária e abrindo o calendário eleitoral, limitaram enormente a capacidade de atuação conjunta da Aliança Democrática. O maior desempenho eleitoral do PMDB provocou um desmesurado crescimento de seus quadros, transferindo para seu interior parte dos problemas decorrentes do difícil equilíbrio entre os dois partidos da coalizão.

A paralisia política que caracterizou o período inicial da Nova República começou a romper-se com o agravamento dos problemas econômicos. O crescimento da inflação e as pressões resultantes do pagamento da dívida externa criaram um quadro de desestabilização. Foi nesse momento que a Presidência levantou a questão do Pacto Social, tentando estabelecer uma base de apoio para formular uma política econômica de emergência. O próprio sucesso do Plano Cruzado, entretanto, sepultou essa iniciativa, que pareceu desnecessária ante o apoio popular ao Plano. Estabelecera-se, como por milagre, o conselho nacional.

Por outro lado, a abertura da campanha eleitoral para os governos estaduais e a convocação da Constituinte deixaram, mais uma vez, em segundo plano, a questão das reformas institucionais. A eleição da Constituinte poderia ter permitido recuperar essa questão, trazendo-a para o debate público. Mas sua coincidência com a eleição dos governos estaduais acabou subordinando uma campanha à outra, submergindo mais uma vez a questão da institucionalização da democracia.

Mesmo depois de instalada a Assembléia Constituinte, os traballhos se organizaram em função do tom da campanha que se desenrolara para os cargos majoritários. Em vez de partir da formulação do arcabouço institucional da nação, ela começou ao revés: abrindo-se às reivindicações populares substantivas, ela se transformou num imenso fórum de solicitações particularistas e corporativas, aglutinando as mais diversas demandas e produzindo uma ilusão perigosa, a de que a justiça social pode ser produzida diretamente pela elaboração de leis.

Analisando o conjunto desse processo, o que se nota, em comparação com o que ocorreu nos outros países, é o grau excessivo de continuismo que marcou a transição brasileira e a persistência de um indefinição institucional extremamente prolongada.

IV - Os Problemas da Indefinição Institucional

Um problema básico da prolongada indefinição institucional reside na margem de arbítrio que ela possibilita. Nesse período muitas das formas do regime autoritário ainda estão formalmente em vigor, mas não têm legitimidade, ao passo que a nova legalidade ainda não foi definida. Assim, as leis se aplicam ou não, conforme o caso, dependendo da força política dos interessados e das condições conjunturais: o problema das greves e da censura exemplifica esse tipo de situação. Como não existem regras claras para balizar o jogo político e as negociações no campo das reivindicações econômico-sociais, a ação governamental pode oscilar entre uma ampla tolerância em certas ocasiões e estrita repressão em outras, criando uma grande instabilidade institucional. Esse tipo de instabilidade e arbítrio dificulta o encaminhamento de soluções negociadas.

A questão se agrava quando a indefinição atinge o cerne mesmo do poder, isto é, as relações entre o Executivo e o Legislativo. A instabilidade se acentua na situação de transição, na qual o Executivo ainda dispõe formalmente de muitos dos poderes que se concentraram em suas mãos durante o regime autoritário, e o Legislativo foi incapaz de institucionalizar os mecanismos de controle da atuação do Governo. Além disso, há um constante perigo de paralisação da administração pública, pois o aparelho de Estado e suas instâncias são terrenos de permanente disputa entre as forças políticas, especialmente aquelas que compõem a conflitiva coalizão governista.

Na transição brasileira criou-se uma situação na qual as tentativas de controle democrático sobre o Executivo constantemente resvalam para um confronto simultâneo entre os parceiros da Aliança Democrática e entre Executivo e Legislativo. Há portanto, um duplo jogo, no qual o PMDB enfraquece a Presidência ao procurar controlá-la, ao mesmo tempo que a ação do Presidente resulta em maior debilidade da unidade (já frágil) do partido majoritário. O enfraquecimento recíproco que resulta desse jogo contribui para estabelcer uma crise de governabilidade.

O problema se agrava com as dificuldades econômicas. Essa questão merece uma análise um pouco mais detalhada, pois se relaciona com outra, igualmente importante: a dificuldade encontrada para satisfazer as expectativas de justiça social suscitadas pelo processo de democratização.

No Brasil as forças mudancistas que ocupam posições-chave no regime de transição não conseguem satisfazer as demandas de maior justiça social, em primeiro lugar, porque estão imersas na gravidade de uma situação de emergência, cuja administração coloca problemas para os quais estão preparadas.

Em segundo lugar, a explosão das demandas reprimidas dos setores despossuídos, juntamente com a ausência de instituições democráticas estáveis e a permanente tensão entre Executivo e Legislativo impedem o processamento das reinvidicações em termos da formulação de políticas econômicas e sociais estáveis e a longo prazo. Além disso, as lideranças políticas limitam-se a atuar como correias de transmissão das exigências contraditórias dos diferentes setores da sociedade: os que haviam obtido vantagens no regime anterior e lutavam por preservá-las; e os que haviam sido discriminados e exigiam uma compensação. A tentativa de obtenção de consenso através do atendimento simultâneo de demandas contraditórias agravou a situação inflacionária, esterilizando as medidas distributivas que haviam sido tomadas. Ao mesmo tempo, a pressão da dívida externa coloca limites ao crescimento econômico, agravando a crise.

A discussão sobre a inflação e sobre os instrumentos para combatê-la coloca-se num terreno ideológico altamente conflitivo. Daí a dificuldade de estabelecer uma aliança suficientemente ampla para dar sustentação a uma política antiinflacionária que, necessariamente, terá aspectos redistributivos, criando custos diferentes para os diferentes atores. O resultado, do ponto de vista do Governo, é uma dificuldade crescente de governar.

Num contexto de inflação ascendente, tende a aumentar a importância da intervenção do Executivo em detrimento dos demais atores políticos. Dada a incapacidade das instituições representativas, por sua fragilidade, de processar as demandas sociais em termos de políticas econômicas, as pressões dos diferentes setores ameaçados pela inflação concentram-se sobre o Executivo.

Nessa situação, é freqüente que o Executivo tente obter da sociedade um mandato que lhe permita libertar-se dos controles dos partidos e do Legislativo. Assim, enquanto a teoria do pacto social pressupõe um acordo prévio entre os setores políticos e sociais, para a formulação posterior da política adequada, a pressão da crise econômica leva o governo a agir numa direção contrária: adota primeiro as decisões, investido do consenso da demanda por intervenção, e busca apoio plebiscitário.

Na situação de indefinição institucional, característica da transição brasileira, o governo é tentado a reagir às pressões para que tome medidas de contenção da inflação, utilizando os mecanismos de poder que herdou do período autoritário, decretando medidas de choque que têm eficácia a curto prazo. Entretanto, dada a fragilidade da sua base parlamentar, pelas razões que expusemos anteriormente, não consegue sustentação política para aplicar uma política consistente de longo prazo.

Estabelece-se, assim, uma ação de contínua desestruturação da política econômica. O governo procura controlar a crise através de medidas de choque sem negociação prévia. Essas medidas enfrentam oposição parlamentar, que traduz demandas concretas dos setores que se sentem prejudicados. A política econômica do governo é encarada como autoritária, sem sustentação política. A ação político-partidária, presa às demandas setoriais, é incapaz de propor políticas alternativas.

A tendência ao fortalecimento do Executivo na situação de crise econômica pode ter conseqüências perigosas para a consolidação democrática. Ela fortalece a tradição personalista da nossa cultura política e constitui mais um elemento desestabilizador na delicada situação de transição democrática.

V - Continuísmo e Patrimonialismo

A análise feita até agora permite retomar um problema que tem estado subjacente a toda essa discussão: a fragilidade das instituições representativas na sociedade brasileira. Essa característica está relacionada à persistência de formas tradicionais de ação política, que podem ser chamadas de patrimonialista e que implicam a manutenção de um alto grau de personalismo político. Numa sociedade agrária e tradicional, o patrimonialismo possui certa eficácia na condução dos negócios públicos. O estabelecimento de alianças e apoios dá-se através de "acordos entre cavalheiros", os partidos são dirigidos por coalizões familiares, e as relações políticas são cimentadas em termos de trocas de favores. As relações dos chefes oligárquicos com o Estado consistem na apropriação de cargos e favores. O sistema se desdobra "para baixo"através do clientelismo que perpassa toda a administração e governa o atendimento das demandas sociais e econômicas.

O setor moderno e complexo do Brasil não pode funcionar adequadamente se prevalece esse estilo arcaico de política e administração, porque ele envolve um elemento de arbítrio e incerteza na gestão da coisa pública.

O patrimonialismo é contraditório com o estabelecimento do Estado de Direito, com a necessidade de separação entre recursos públicos e privados, com a racionalidade administrativa e com um sistema de. controles públicos sobre a ação governamental, que são condições básicas de uma democracia moderna.

As democracias têm convivido com graus relativamente elevados de clientelismo e mesmo de corrupção. Mas, numa sociedade moderna, quando formas tradicionais dominam todo o aparelho de Estado, e a máquina administrativa fica inteiramente subordinada ao clientelismo, a democracia se torna incapaz de operar com o mínimo de eficácia exigido para processar as demandas complexas e conflitivas. O Governo democrático passa a funcionar com um baixíssimo nível de eficiência, acentuando a crise de governabilidade que decorre de problemas político-estruturais.

A permanência desse estilo político tem muito a ver com o continuísmo e o gradualismo da transição brasileira. Sua preservação no Legislativo constitui uma herança do estilo oligárquico predominante no Brasil até 64, que se manteve em virtude do modo pelo qual as instâncias legislativas federais, estaduais e municipais funcionaram durante o regime autoritário. A situação brasileira nesse período se assemelha muito de perto àquela da Alemanha no período imperial: como estava privado de toda responsabilidade decisória, o parlamento alemão reproduzia, de forma ampliada, os direitos da classe política e, especialmente, a tentação demagógica e a relação dependente para com os favores da burocracia estatal. Como conseqüência, estabeleceu-se um afastamento ou isolamento entre o regime e a sociedade, cujas demandas ele se mostrava incapaz de articular e satisfazer. O resultado disso foi o desprestígio da classe política.

No Brasil, o regime autoritário, ao debilitar o Legislativo e a classe política, contribuiu para exacerbar aspectos do patrimonialismo, e restringiu drasticamente a modernização das práticas político-partidárias.

No que diz respeito ao Executivo, o predomínio do estilo patrimonialista provoca uma paradoxal combinação de onipotência e impotência. Onipotência, porque pode tomar decisões que não estão submetidas aos processos de controles institucionais e legais próprios de um sistema constitucional republicano. E impotência porque essas decisões, sem mediações políticas e administrativas adequadas, não conseguem transformar-se em orientações eficazes na regulamentação da vida econômica e social.

De um lado e de outro se processa esse distanciamento entre a política e a sociedade, estabelecendo-se uma ineficiência governamental, ou uma crise de governabilidade que corrói, com grave perigo para a democracia, a credibilidade do governo e da política.

Por isso mesmo, um problema crucial para completar a transição democrática no Brasil consiste no estabelecimento de instituições que estabeleçam mediações mais eficazes entre as instâncias do governo e a população, fortalecendo os mecanismos de representação democrática.

Essa questão nos remete novamente para a possibilidade de se estabelecer um novo pacto político capaz de consolidar um regime democrático estável.

VI - A Constituinte e o Pacto Político

É nesse contexto de paralisia da transição, de crise econômica e de crise de governabilidade, que se pode retomar a questão do pacto político.

A questão do pacto político se coloca também com urgência porque estamos em pleno processo constituinte. Mas o debate referente às questões institucionais está sendo constantemente atropelado pela crise econômica. A preocupação com o poder de compra do salário, a possibilidade de investimentos produtivos, o pagamento da dívida externa, são questões tão prementes que colocam em segundo plano o debate sobre a institucionalização do regime democrático.

Por isso mesmo, a necessidade de completar a transição, enfrentar a crise econômica e garantir a eficiência do regime democrático exige um acordo político que ultrapassa a questão do formato institucional a ser definido na Constituinte, um pacto político deveria contribuir para facilitar o desenvolvimento de sua obra constitucional.

É desse problema que se trata quando se fala da necessidade de um pacto democratizante. Não se deve confundir esse tipo de pacto com a tentativa de obter um amplo consenso nacional. No Brasil, a ânsia da obtenção de consenso tendeu sempre a resvalar para o velho sistema de troca de favores e divisão de espólios.

A dificuldade para a realização de um pacto desse tipo consiste na definição de quem devem ser seus protagonistas. Um pacto democratizante não será um acordo entre todas as tendências e posições, mas uma coalizão dos setores não apenas partidários, mas sociais e culturais empenhados na institucionalização de um regime democrático estável e moderno.

Um pacto político desse tipo não produz uma nítida divisão entre esquerda e direita, mas separa, de um lado e de outro, aqueles dispostos a aceitar uma transformação no sentido da democratização, do controle público das políticas governamentais, da racionalização e da modernização e, especialmente, do fortalecimento das instituições representativas que possam mediar com mais eficácia as relações entre Estado e sociedade.

No Brasil, um pacto democratizante implica completar o mais breve possível a transição, o que requer acordo sobre a definição do prazo para as eleições diretas para presidente da República. Esse é um pré-requisito da consolidação democrática e exige, por isso mesmo, uma solução urgente. Mas a consolidação do novo regime exige medidas muito mais abrangentes e complexas, que o processo eleitoral, por si só, não garante e não viabiliza.

O maior desafio para a democratização brasileira reside, portanto, em saber quem poderá realizar o único pacto possível nas atuais circunstâncias: um pacto político que realize a tarefa de encerrar, finalmente, o período de transição, inaugurando uma nova etapa na história da democracia no Brasil

VII - Síntese e Conclusão

1. A transição de um regime autoritário para a democracia envolve sempre algum tipo de pacto político entre as forças que conduzem o processo de ruptura com a antiga ordem e, freqüentemente, implica acordos tácitos ou expressos com setores do antigo regime.

2. O caso do Brasil apresenta peculiaridades que explicam em grande parte o rápido esgotamento do pacto que desencadeou a transição:

- a Aliança Democrática foi fruto do fracasso do movimento popular pelas Diretas, e implicou a absorção de quadros, de interesses e de práticas do antigo regime, em proporção inusitada em casos semelhantes;

- a grande mobilização popular da campanha "Diretas Já"redundou em aparente consenso nacional, que beneficiou a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral: no episódio da morte do presidente eleito, ajudou a criar a ilusão de que a democracia poderia resultar de um pacto de todos com todos, sem adversários e sem obstáculos, senão externos;

- o pacto que deu origem à Aliança Democrática permitiu a mudança de governo e proporcionou medidas importantes de liberalização,- mas não estabeleceu uma estratégia clara de construção da democracia nem definiu o quadro institucional necessário para a consolidação do novo regime;

- as disputas eleitorais desequilibraram a coalizão partidária de sustentação da Nova República, desencadeando prematuramente um processo sucessório e uma corrida aos postos de decisão, que paralisaram o processo de transição e tolhem a ação do governo.

3. A crise econômica veio agravar um quadro em que as forças congressuais enfraquecem a Presidência ao querer controlá-la ao mesmo tempo em que a ação do presidente resulta em maior debilidade do sistema partidário e em inoperância da coalizão governamental.

4. As propostas de pacto social, surgidas nesse contexto, são praticamente inviáveis porque:

- um pacto dessa natureza exigiria instituições partidárias e sindicais representativas e com alto poder de mobilização e disciplina que, no Brasil, ainda estão em constituição.

- as lideranças políticas freqüentemente se,limitam a atuar como correias de transmissão, restringindo-se a pressionar no sentido de atendimento total e indiscriminado às demandas setoriais, sem fixar prioridades políticas coerentes;

- a emergência da crise leva a concentrar as demandas de intervenção no Estado que, por sua vez, adota decisões de choque para depois buscar apoio de tipo plebiscitário e, diante do sucesso inicial de seus planos, abandona as propostas de negociação e de pacto;

- além disso, no Brasil, as propostas de pacto social têm-se restringido a tréguas sindicais em torno de questões salariais, o que as torna inaceitáveis.

5. A alternativa a um pacto social desse tipo não poderia reduzir-se a um mero remanejamento do apoio parlamentar do governo ou a reformas ministeriais. Tentativas, nessas direções têm redundado na reprodução de um clientelismo inadequado ao funcionamento de uma sociedade moderna e incompatível com a primazia do interesse público.

6. A questão do pacto político foi retomada hoje num contexto de paralisação da transição, de crise econômica e de crise de governabilidade. Diante desse quadro, impõe-se um pacto democratizante entre lideranças partidárias, empresariais, sindicais e sociais, comprometidas com a consolidação da democracia no Brasil, tendo por objetivo completar a transição, enfrentar crise econômica com um mínimo de acordo entre os interesses em jogo e garantir a eficácia do regime democrático.

7. Esse pacto, que não colide com a Constituinte, não se substitui à Constituição, mas, ao contrário, contribui para descongestionar o processo de elaboração da nova Carta e deveria envolver, no mínimo:

I - a fixação de um prazo para completar a transição com a promulgação da Constituinte e a convocação de eleições diretas para presidente da República;

II - o estabelecimento de mecanismos de negociação para a adoção de políticas econômicas de médio e longo prazo; nesse sentido, os necessários reajustes ao Plano Bresser e o anunciado plano de consistência macroeconômica seriam excelentes oportunidades para desencadear negociações dessa natureza;

III - a adoção de mecanismos, a serem aperfeiçoados pela Constituição, que limitem os poderes herdados do regime autoritário pela presidência que são, ainda hoje, praticamente ilimitados;

IV - a elaboração de uma pauta mínima de garantias institucionais, que obtenha a adesão dos setores democráticos - compreendendo, por exemplo, as relações entre os poderes, a organização partidária e o sistema representativo, as liberdades públicas e individuais - e que possa ser encaminhada aos constituintes, com a finalidade de descongestionar a agenda Constitucional.

  • * Simpósio realizado na Universidade de São Paulo sobre a transição política, em junho de 1987,

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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