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RESENHAS

Gabriel Cohn

Prof. Titular do Dep. Ciência Política - USP

DIALÉTICA E HERMENÊUTICA - PARA A CRÍTICA DA FERMENÊUTICA DE GADAMER - JÚRGEN HABERMAS - L&PM, Porto Alegre, 1987.

Complexa e fascinante tarefa está reservada para os leitores desse livro, que vem agregar aspectos importantes à bibliografia de Habermas em português: reconstruir um diálogo a partir de uma das suas vozes. Pois é de um longo diálogo que o livro trata, entre Habermas e o grande mestre alemão da arte da interpretação de textos, Hans Georg Gadamer, só que nele apenas Habermas tem a palavra. Falha editorial? Talvez, se o autor fosse outro. Mas, em Habermas, qualquer texto tem característica dialógica, ainda que nem sempre de modo tão direto e explícito quanto em algumas passagens desse livro. Habermas sempre retira da crítica das idéias de interlocutores cuidadosamente escolhidos o impulso para suas próprias formulações, num movimento em que o interlocutor não é reduzido à condição de adversário a ser aniquilado (pense-se no estilo polêmico de clássicos como Marx ou Weber, que, bem ao contrário de Habermas, faziam da controvérsia um exercício de impaciência) mas é convidado a repensar suas posições e a ouvir as ponderações e desenvolvimentos que suscitam. A crítica habermasiana nunca vai no sentido de destruir as diferenças, reduzindo-as a alguma proposta final unificadora. Não há, para ele, "última palavra"no debate levado a sério. Trata-se de trabalhar as diferenças ao longo de caminhos que se cruzam de múltiplas maneiras e que merecem ser percorridos se houver um consenso básico, o do empenho na busca da verdade.

Gadamer, na sua obra máxima, fala de "Verdade e método". Ambas as coisas dizem muito a Habermas, mas de modo muito diverso que o concebido por Gadamer. Neste, o empenho está justamente em aproximar a questão da interpretação do âmbito da verdade mediante sua retirada do âmbito do método, para sustentar que a verdade dos textos não é dos textos mas os transcedem; ela antecede qualquer método, é da ordem do ser e não dos procedimentos. Os textos separados de nós pela distância do tempo são-nos acessíveis porque temos em comum com eles um horizonte significativo, dado pela "história dos seus efeitos". Os textos chegam a nós pela via de uma tradição, que ministra as condições para a sua compreensão. Não se trata tanto de construir conceitos sobre eles mas de aproximar-se deles mediante os preconceitos que, no sentido exato de tradição, nós já carregamos e que demandam uma reflexão que explicite a sua inserção na ordem do ser. Os textos são intrinsecamente históricos, e sua historicidade é da ordem do ser, não do método. Para Habermas, pelo contrário, é o método que importa. A verdade não está inscrita de antemão na ordem do ser e as vias de acesso a ela têm que ser construídas, junto com a construção da sociedade que permita liberá-la; o que, aliás, já sugere que em Habermas a questão do método não se reduz à dos procedimentos analíticos, mas certamente passa por eles. O lugar dos significados que podem veicular a verdade é a linguagem, como em Gadamer. Mas a linguagem não é a figura histórica do ser, ela é também poder e dominação e estes são historicamente contingentes, conquanto de decisiva eficácia ao submeterem os próprios significados a distorções sistemáticas. Por isso o desconforto de Habermas diante de uma fundamentação da interpretação numa historicidade não questionada e sua cautela em face da equiparação por Gadamer entre autoridade e conhecimento pela subordinação de ambas e uma verdade que se transcende. Por isso também sua insistência em que toda interpretação é critica e demanda um método.

Para Gadamer a questão dos significados dos textos vincula-se à de uma tradição, da qual o usuário da língua, que como tal é também intérprete, é portador. O intérprete já vem equipado com conteúdos, com preconceitos que prefiguram os significados. Para Habermas o usuário-intérprete não vem equipado com conteúdos sempre particulares mas com competências linguísticas universais, com capacidade para formar significados novos tanto quanto para decifrar significados pretéritos. Por isso a questão da interpretação remete em Habermas a duas outras: à da constituição social das formas linguísticas e dos seus próprios usuários e à da reflexão crítica sobre as condições e possibilidades de decifração dos textos, sobretudo quando os significados veiculados socialmente são construídos em condições que os submetem a distorções sistemáticas.

O tema de Habemas não é o da tradição - esta é o objeto da crítica - mas o seu contrário, a emancipação; ou, mais precisamente, interessam-lhe as relações mais finas entre ambas, visando a segunda. Daí o modo como ele incorpora a imagem de Gadamer, de lançar pontes entre terrenos afastados. Se para Gadamer a ponte significa a união num território já dado, para Habermas importa mais a travessia que ela evoca, não tanto no interior do terreno já demarcado pelos significados presentes na fusão de horizontes significativos precisamente dados, mas como uma caminhada com horizonte aberto e claro: o da verdade a ser construída mediante os consensos racionalmente adquiridos sobre os fundamentos da própria trajetória percorrida.

Com temas como esses, não podemos esperar textos de fácil leitura. Nem de fácil tradução, como se vê pela decisão do tradutor, meritória mas cansativa na leitura, de reproduzir, entre parênteses, os termos que poderiam suscitar dúvidas, além de agregar ao seu trabalho uma meticulosa explicação introdutória. Mas a importância das questões tratadas e do conjunto do debate envolvido, e a própria densidade dos textos de Habermas justificam plenamente o esforço de todos, também do leitor. À destacar, finalmente, o texto publicado em apêndice, no qual o filósofo Emildo Stein discute de modo claro, sistemático, ambas as posições em debate.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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