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RESENHAS

João Quartim de Moraes

Chefe do Departamento de Filosofia Política e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP

Retrato Calado

Autor: Luiz Roberto Salinas Fortes

Editora: Marco Zero, São Paulo, 1988.

"Como un pulso que golpea las tinieblas"

(Gabriel Celaya)

Na já ampla literatura suscitada pelos anos infames do "sufoco", Retrato Calado de Luiz Roberto Salinas Fortes introduz nova dimensão: a sondagem introspectiva dos efeitos traumáticos da tortura nas camadas psíquicas profundas do torturado. Seu retrato é portanto um auto-retrato. Calado, porque os mergulhos na memória são silenciosos, como o é a palavra escrita que registra as imagens subterrâneas que a introspecção faz aflorar. Não há nesta reativação da presença do passado nenhuma autocomplacência. Salinas não "reescreve" sua própria história posando para o futuro como um mártir, nem, menos ainda, como um herói. A paixão que o move não é o próprio retrato, mas o retratar-se com lucidez. Insistindo na metáfora iconográfica: auto-retratou-se descendo aos infernos do DOPS e da OBAN, vale dizer, arrastado ao fundo dá abominação e do horror. A coragem mais difícil, para quem caiu nas mãos daquele bando de degenerados que, anos a fio, "salvou o Ocidente" e garantiu a "segurança nacional" com pancadas e choques elétricos, era a da lucidez.

Salinas não estava "organizado" quando foi preso. Em seu combate solitário contra os esbirros, só estava em jogo seu próprio destino. Em nenhum outro combate a desigualdade de forças é tão completa quanto no do torturado contra seus torturadores. Estes dispõem de todos os meios da violência; aquele, de nenhum. Um herói quase anônimo dá resistência clandestina, expulso em 1964 da Marinha, capturado pelas forças repressivas no início de 1969 após ter participado de algumas das ações mais audaciosas da VPR-1, e libertado pelo seqüestro do Embaixador da Suíça, costumava dizer, lembrando-se das atrocidades que sofrera quando preso: "De mãos livres não tenho medo de ninguém. Algemado, tenho medo de todo mundo". Mas a coragem, como se sabe, não consiste em não sentir medo e sim em superá-lo. Para tanto, à força física do torturador, o torturado só pode contrapor a força moral de sua coragem: no confronto destas forças de natureza diferente se desenrola o drama da tortura. Houve quem levasse a coragem até a altura do heroísmo. O marinheiro já mencionado, ou, como lembra Salinas, o "Mario Japa": "Apanhou pacas, de tudo quanto é jeito e não abriu a boca. Nada. Não disse absolutamente nada. Nem confirmou se o nome que constava dos documentos que com ele foram apreendidos era dele mesmo ou não". O heroísmo, a aceitação inteira do martírio, constitui uma tensão-limite da condição humana menos rara do que se supõe, mas suficientemente excepcional para que nenhuma organização clandestina possa se permitir basear sua segurança na certeza de que seus militantes presos não falarão.

Salinas, no entanto, embora moralmente solidário aos que se batiam de armas na mão contra a ditadura militar, não somente, como já notamos, não estava "organizado" ao ser preso, mas também perdera a confiança política na esquerda clandestina de então. Na verdade, sua adesão àquele política fora sempre condicional. Pensamento amargamente irônico que lhe ocorre quando era conduzido para a prisão pela segunda vez: "Em meio à confusão passa, acelerado, o vídeo-teipe cruel da indigente canseira do militante "revolucionário" (aspas do autor) onde predomina a hesitação, o dilaceramento incontornável entre os imperativos da fé e a falta de entusiasmo pela via violenta". Face às hesitações e dilaceramentos do prisioneiro, os algozes exibiam suas sórdidas mas sólidas certezas:

" - Sabe prá onde a gente tá indo?". " - Dops, cidadão, DOPS!!! E o brilho significativo dos olhos no qual se lê o infinito respeito, o desmesurado prestigio de que goza a sigla perante seu fiel servidor".

Faltava portanto a Salinas, ao entrar no DOPS, a heróica certeza do mártir, aquela sobre-humana crispação da vontade que resiste incólume às contorções da dor. Sua coragem permaneceu nos limites da condição humana: defendeu-se da tortura tanto quanto pôde fazê-lo sem renegar a fidelidade a si mesmo, a seus amigos e às suas convicções. Fraquejou uma vez, porque fraquejar é humano: levou os meganhas à casa de uma amiga, cuja fotografia haviam encontrado em seu apartamento "e que, durante a sessão relâmpago de raios doloridos, dos arrepios descarregados dos fios grudados nos dedos dos pés, durante a agonia vomitara o seu nome e a informação". Não procura desculpas nem circunstâncias atenuantes. Não mente. Ao contrário. Se não assumira compromisso com o martírio, se não se propunha levar a coragem mais além do razoável (e o razoável significava resistir! aos torturadores em tudo que fosse essencial, mas evitando o risco - ao qual outros sucumbiram - de começar não dizendo nada e acabar contando tudo), não deixou um momento sequer de lutar para defender da violência dos algozes o melhor de si mesmo: sua lucidez, sua arraigada paixão pela verdade, seu sentido de lealdade e de solidariedade para com seus companheiros de infortúnio.

Por tudo isso, a experiência da prisão e da tortura relatada em Retrato Calado constitui um documento singular, tanto, como já notamos, por sua densidade psicológica, quanto pela dramática precisão com que reconstitui o combate tão odiosamente desigual entre o torturador e o torturado.

Os torturadores são em geral discretos sobre suas atividades: não lhes escapa a repugnância que inspira o "trabalho sujo" que executam. Dentre os poucos que ousaram assumir publicamente seus sórdidos métodos de extorsão de informações, sobressai, pela insuperável desfaçatez com que enalteceu os métodos - predominantemente elétricos— de coleta rápida de confissões de prisioneiros políticos, o general Massu, comandante em chefe da repressão militar francesa contra os patriotas argelinos. Segundo ele, os choques elétricos, os afogamentos e outros procedimentos do mesmo gênero contrapunham-se, por sua estrita funcionalidade, às torturas de estilo medieval, que aleijavam e mutilavam "inutilmente" as vítimas, ao passo que seus métodos modernos permitiam, salvo no caso de "acidentes técnicos" estatisticamente inevitáveis, arrancar do prisioneiro, em prazo útil, nomes e endereços de suspeitos, que, por sua vez, colocados na máquina de fazer falar, forneceriam mais nomes e mais endereços, até o desmantelamento completo da rede clandestina a que pertenciam - ou eram suspeitos de pertencer - os torturados. Os argumentos de Massu pretendiam ser quase matematicamente rigorosos: contrapostos aos métodos tradicionais - mais cruéis e menos eficazes - os seus permitiriam, tanto na fase da extração quanto na do tratamento racional da informação, algo como um máximo de resultados para cada unidade de sofrimento imposto à vítima. No limite, Massu poderia até geometrizar a infâmia, colocando os efeitos da tortura em coordenadas cartesianas: a cada ponto de sofrimento no eixo das abscissas, corresponderia, no eixo das ordenadas, n+1 pontos de informações extorquidas. Abstração feita do aspecto ético e até estomacal (só os calhordas e os degenerados têm "estômago forte" em matéria de tortura) da questão, a pretensão de eficácia e de funcionalidade dos métodos elétrico-hidráulicos da tortura moderna não passa de uma atroz falácia. Na Argélia, os franceses massacraram cerca de um milhão de pessoas antes de evacuarem o país, impondo aos patriotas argelinos um máximo de sofrimentos sem com isso conseguirem alterar em nada o rumo da história, que marchava para a emancipação dos povos submetidos ao jugo colonial. A verdadeira "racionalidade" da tortura é a lógica do terrorismo de Estado. Ela não visa a extrair um máximo de informação com um mínimo de sofrimento, mas a transformar o torturado numa massa inerte, a quebrar-lhe a vontade de resistir. A lógica do torturador pressupõe que o torturado reaja como um rato no laboratório. Mas, como diria Brecht, porque um homem é um homem e não um rato, ele luta com todas as suas forças contra os que viram a manivela do choque elétrico, fazem estalar o rebenque e lhe encostam uma pistola na cabeça.

A lógica do torturado é, com efeito, frontalmente contraditória à do torturador. Porque um homem é um homem (e a tortura, no Brasil, como alhures, fabrica poucos ratos: o torturado se agarra com mais coragem do que se pensa à sua dignidade humana), é resistindo ao torturador que ele afirma sua condição humana. Quanto mais sofrimento suportar para uma dada quantidade de informação, mais estará se opondo à "funcionalidade" da tortura, que consistiria em lhe arrancar um máximo de informação com um mínimo de tortura.

Neste confronto, dramático no mais forte sentido do termo (já que o torturado, a cada instante, é obrigado a optar entre um sofrimento cujo limite é a morte e uma capitulação cujo limite é o desprezo por si próprio), a tortura aparece em sua sinistra crueza como máquina de triturar corpos e consciências, ambos, se necessário, os corpos, se não for possível triturar as consciências, e as consciências, se não for necessário triturar os corpos. A mentira da "funcionalidade" é tão odiosa que mesmo os regimes os mais criminosos evitam admitir abertamente o uso da tortura: menos sinceros que a Inquisição Católica, os terroristas de Estado de nossos dias colocam-na no rol de suas atividades inconfessáveis, ou, quando não podem tapar o sol com a peneira, admitem-na como um "excesso" repressivo, "inevitável no combate aos subversivos".

Na reconstituição da parte que lhe tocou viver do drama dos torturados, Salinas investe com lúcido rigor sua paixão pela verdade. Persegue, incansável, a máxima socrática do "conhece-te a ti mesmo", examinando-se, com implacável precisão, como continuou sendo ele mesmo debaixo das pancadas e dos choques elétricos. "Como agir? Que dizer? Nada falar, tal como o vietcongue, recusando qualquer espécie de colaboração? Não estaria, assim, arriscando provocar um endurecimento por parte deles que conduziria inevitavelmente a outras confissões mais comprometedoras...? A solução brota do desespero, talvez até a melhor. Menciono alguns nomes, todos de maneira incompleta e alguns falsos. Só falo dos que estão fora de perigo, no exterior, com exceção de dois... Durante minha fugaz vida militante fora editor, juntamente com outros dois jornalistas, do jornal "Política Operária", mas, naquela "belle époque" da nossa infância política, os três nomes apareciam tranqüilamente, com todas as letras, no expediente da publicação. Imagino que a relação de ambos forneceria uma sólida garantia de veracidade ao depoimento sem comprometer em demasia as pessoas, já que, além de muito distante no tempo; o fato mencionado não era dos mais graves. E, com efeito, embora tal "colaboração" me torture o espírito até hoje, não teve, na realidade, conseqüências mais dramáticas".

Ponto de partida e situação mais tensamente dramática do relato, a tortura não constitui, no entanto, sua única trama. Se quisermos discernir o tema central do livro, basta confiar em seu título. Que o leitor me perdoe o argumento autoritário, mas a autoridade, no caso, é amais legítima, a saber o próprio autor. Salinas, com efeito, fazia questão do título Retrato Calado, que, segundo ele, exprimia exatamente o projeto intelectual que o inspirara...

Já dissemos que este retrato é um auto-retrato, vale dizer, um relato autobiográfico, cujo centro dramático são as memórias do cárcere, mas que inclui também angústias mais antigas, registradas no diário de 1959-1960, quando descobria "a possibilidade infinita do seu destino" - para retomar a expressão de André Malraux no texto de L'Espoir que serve de epígrafe ao diário de Salinas.

Como na ancestral técnica narrativa d'As Mil e uma noites, em que dentro de um conto surge outro conto, a reativação das angústias do cárcere conduz o narrador a revisitar ansiedades depositadas em camadas mais profundas da memória. No diário de 1959; evoca a "horrível visão" noturna que reiteradamente atormentava seus infantis devaneios pré-oníricos e que se gravou em sua emotividade como uma das matrizes daquela pesada carga de ansiedade que, como uma sombra, acompanhá-lo-ia no percurso finito da "possibilidade infinita de seu destino".

Não podemos terminar sem evocar a dolorosa ironia que fez de Retrato Calado um livro póstumo. Salinas retratou-se não como quem oferece à posteridade seu testamento intelectual, mas com a lúcida vontade de reintegrar a experiência de traumas passados no fluxo de sua existência. Assumindo as "descidas no inferno" que lhe reservara o destino, reafirmou sua coragem de continuar vivendo com fidelidade a si próprio e às suas melhores convicções. Que a morte, horizonte fatal da condição humana, estivesse tão próxima, ninguém podia suspeitar. O destino transformou seu testemunho em testamento. Curvemo-nos ante esta fatalidade e aceitêmo-lo como tal. Sem esquecer de que, surpreendido por uma morte tão fulminante quanto inesperada (embora diretamente relacionada com as torturas sofridas no DOPS, que lhe haviam deixado como seqüela sérios distúrbios circulatórios). Salinas sequer teve a possibilidade de ver publicado seu testemunho, que, para ele, não era um testamento.

Para nós, seus amigos, a quem toca recolher o legado de sua vida, Retrato Calado não se esgota na experiência que descreve, nem na auto-imagem que ela desenha: exatamente porque as tensões não-resolvidas que constituem a trama ético-intelectual da narrativa remetem à sua vontade de prosseguir o percurso de seu destino: apontam para o futuro, muito mais do que para o passado.

No curto espaço de tempo que lhe foi dado viver ainda, o autor de Retrato Calado empenhou-se a fundo na atividade político-acadêmica, tendo sido um dos principais organizadores do colóquio sobre a Constituinte realizado em 1986 na USP. Editou, junto com seu amigo Milton Meira, o volume Constituinte em Debate onde estão reunidas as intervenções dos participantes daquele colóquio. Sofreu o ataque cardíaco que lhe foi fatal justamente quando se empenhava na divulgação deste livro - que terá sido sua última contribuição à causa da democracia e das Luzes, das quais nunca duvidou.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1988
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