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RESENHAS

Rudá Ricci

Sociólogo - Mestrando em Ciência Política na UNICAMP e Pesquisador do CEDEC

Os Deserdados da Terra

Autora: Margarida Maria Moura

Editora: Bertrand Brasil S.A., São Paulo, 1988.

Margarida Maria Moura é antropóloga e poetisa, duplo exercício de sensibilidade.

Este livro, originariamente apresentado como tese de doutoramento no departamento de Ciência Sociais da USP, é um exemplo claro desta constatação.

Segundo José de Souza Martins, este estudo trata dos "encontros e desencontros do judiciário e do costumeiro".

Os Deserdados da Terra tem como palco o Vale do Jequitinhonha (MG), entre o final da década de 70 e inicio de 80. Esta região vem, nas últimas duas décadas, presenciando a expulsão de agregados de suas fazendas e a invasão da posse camponesa por falsos fazendeiros. Os fazendeiros do Vale tentam expandir seu território ou impor relações assalariadas em detrimento de antigas relações sociais baseadas num código oral que atravessou gerações. Ao procurarem resguardar seus direitos na Justiça, os camponeses percebem que a disputa jurídica não consegue traduzir e comportar essas relações sociais reproduzidas ao longo de suas experiências como trabalhadores. Ao recorrerem à Justiça, os camponeses se dão conta que atravessam um penoso processo em que o direito costumeiro é substituído pelo contrato, pela lei.

Ao analisar este processo, a autora detalha como este momento, onde as contradições da sociedade e uma nova forma de agir e relacionar se revelam, apresenta para o camponês caminhos também contraditórios para solucionar seu problema.

Nos dois primeiros capítulos, a autora expõe o quadro de violência e a mudança na natureza da exploração da terra pelo fazendeiro local. Se antes o espaço da fazenda era preenchido através de favores e permissões, como uma estratégia de acomodação e expansão das fazendas, agora a propriedade, como mercadoria, não pode tolerar que nela morem lavradores que trabalhem para si: "estar na propriedade só se justifica em hora de trabalho". Ao ser expulso, o camponês vê-se objeto das violências materiais e simbólicas que rompem com seu referencial. Recorrer à Justiça poderá lhe causar um dano maior: para vencer a causa o camponês precisará transformar o código oral, ó favor, em contrato, justificando suas perdas. Mas, para o camponês, a entrada no território do contrato significa a perda de atos simbólicos de um modo de vida.

Nos capítulos seguintes a autora detalha esta situação. Nos relatos coletados, o lavrador demonstra ter consciência de que o fazendeiro praticava maldades no passado, mas sua ação tinha como parâmetro a reciprocidade. Ao se abolir a velha relação, os lavradores sentem-se traídos.

Um dos exemplos mais claros desta situação é o caso descrito dos agregados. Para o agregado, morar na fazenda é assumir um código oral, implicando para si o desempenho de tarefas para o fazendeiro. Para o agregado, sua casa e roça são pára ele seu pedaço, que confere uma paradoxal autonomia subordinada, calcada neste código, oral: cumprida sua tarefa, o agregado adquire direito pela gratidão expressa pelo fazendeiro.

Há uma mútua concepção para o que está ocorrendo: para o fazendeiro, a morada foi consentida; para o agregado, a morada foi conseguida. Ao ser expulso, o mundo antigo acaba, "mas não se inicia um novo mundo" .

Neste aspecto, o livro parece estar filiado às mesmas preocupações que Duglas Monteiro teve em seu estudo sobre o Contestado, onde o autor buscava entender como aquele grupo de camponeses exercia uma "autonomia relativa", resgatando dos conteúdos religiosos tradicionais formas para expressar uma resistência à expropriação da terra,

A Justiça pode ser, portanto, um caminho sem retomo já que, não consegue recuperar o código de relações que fundam os direitos deste agregado. Por este motivo, recorre-se constantemente ao acordo: "as ações judiciais abrem verdades opostas, mas fecham práticas sociais antigas dos subordinados".

A autora procura demonstrar que, na verdade, os resultados da Justiça apresentam uma contradição. Se é verdade que a buscado acordo amplia o jogo político das duas partes em questão, mantendo, ainda que precariamente, as velhas relações entré elas, as ações judiciais podem transformar permissões em direitos. Nas palavras da própria autora: "valer-se de uma sociedade concreta, permite observar como nela o jurídico ampara e desampara continuamente os subordinados, ratifica perdas sociais dos lavradores, mas para, em determinado ponto ou momento, negar e ser negado nessas suas características"

Ambos os caminhos, entretanto, encobrem a verdadeira questão em jogo: a posse da terra.

Em síntese: um livro que os maniqueístas não vão gostar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1988
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