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O executante

TRANSIÇÕES POLÍTICAS NA AMÉRICA LATINA

CONTO

O executante

Rubem Mauro Machado

Para Laury Maciel

A voz caridosa, sussurrante, de um sensualismo grotesco, disse a chegada. Felipe dobrou o jornal, enfiou-o na lixeira de arame, foi ao terraço.

O Boeing desceu macio, taxiou. Chegou arfante ao tubo sanfonado, como se guloso de oxigênio – um grande gavião cansado. Mastigando barulhentamente o drops de hortelã, Felipe tomou o elevador.

Aguardou no saguão. Saberia reconhecê-lo. Boa parte do seu trabalho no Ministério era receber medalhões estrangeiros, financistas, diretores de banco – instintivamente ajeitou o nó da gravata. Só não sonhara com uma missão tão especial, receber um sujeito, afinal de contas, de tão longe do mundo em que circulava. Ou não seria, quem sabe, tão diferente?

Pensando bem, talvez não. Depois que consultara três vezes o relógio, com uma ponta de ansiedade, eu me meto em cada fria, os passageiros começaram a surgir do outro lado da porta de vidro, aturdidos mas contentes pelo fim do doido galope de oito horas.

Um telegrama vindo "de cima" tinha alertado a alfândega, não incomodem Mr. Goldman. Quantos dias teria de conviver com ele? Estralou as juntas dos dedos magros e fortes. Gostaria que o tivessem deixado fora disso. Não pôde recusar. Nunca se recusara a nada.

Reconheceu-o, passos miúdos e apressados, assim que surgiu, um dos primeiros. Surpreendeu-se. Imaginara latagão de dois metros e lhe aparecia um homenzinho de no máximo 1,70, magro, quase frágil, embora largo de ombros, com a deselegância da classe média americana, casaco e calça sobrando, antiquados, "só falta o casaco ter ombreiras", e de repente Felipe sentiu-se mais seguro dentro de seu terno bem talhado.

Na mão esquerda Goldman trazia a maleta de executivo, presa por uma corrente ao pulso, na mão direita uma mala pequena. Transpôs a porta automática, Felipe adiantou-se:

– Robert Goldman?

O homenzinho examinou-o de esguelha, grunhiu algo que soou como uma "ya".

– I am Felipe.

Goldman depositou a mala no chão, Felipe apertou a mão ossuda e pequena, salpicada de sardas no dorso. Goldman era muito branco, olhos verdes, opacos. A gola aberta da camisa deixava entrever o peito enferrujado por algumas sardas. O cabelo era uma palha de milho descorada, entre o ruivo e o castanho claro. O bigode fino, de um tom ainda mais claro, conferia a falsa impressão de ter sido pintado.

– Sua bagagem é só essa? – Felipe perguntou em inglês, ociosamente, sabendo que era só aquela mesma, como uma espécie de cortesia, esse cara podia ser um balconista de livraria em Nova York ou o dono de um motel de estrada em Arkansas, parece inofensivo, e Goldman respondeu em espanhol fluente que aquela era toda a bagagem e perguntou se ia se quedar em um hotel. Puxa, os caras são realmente preparados, pensou Felipe. E acrescentou, é evidente, a Companhia não ia mandar um qualquer, eles bem avaliam do que se trata.

Desceram pelo elevador para a garagem, onde os esperava o motorista. A corrente que prendia a maleta ao pulso de Goldman chamava a atenção das pessoas e Felipe pensou, que besteira, a maleta podia ter vindo pelo malote diplomático. Disse isso a Goldman enquanto caminhavam através do estacionamento e Goldman encolheu os ombros: não havia necessidade, nenhum perigo.

– O trabalho vai ser aqui no Rio?

– Em São Paulo. Voaremos para lá talvez amanhã, Precisamos aguardar a confirmação. Estamos acompanhando os passos do nosso homem. O esquema de apoio já está todo armado.

Falavam espanhol, a opção tinha sido de Goldman. Felipe usava-o portunhol, com aquela crônica incapacidade dos brasileiros de falar:espanhol sem misturar. No problema, o americano logo percebeu, entendia o português, respondendo em espanhol, e Felipe acabou acomodando-se na própria língua. Duro era quando tinha de receber japonês ou alemão falando inglês com sotaque pesado, frequentemente incompreensível. Felipe era fluente em inglês e francês e se defendia no italiano.

Ao vê-los, Teodoro saltou do carro, abriu a porta traseira. O negão parecia um armário de dois metros, nos tempos de atleta tinha sido campeão brasileiro e sul-americano de arremesso de peso e lançamento do martelo.

O trajeto foi em silêncio. Molejo suave, ar condicionado instauravam uma sensação de conforto. O sol da manhã fazia do mar uma chapa de prata mas em momento algum Goldman virou a cabeça para olhar pela janela.

– É a primeira vez que vem ao Brasil? – perguntou Felipe. Mal acabara de falar percebeu a mancada incrível A pergunta poderia parecer uma indiscrição; e se sentiu humilhado de fazer papel de imbecil. Goldman, que olhava fixo para a frente, desviou de leve os olhos para ele, nem se dignou a responder. Felipe fora traído pelo hábito, costumava fazer aquela pergunta aos visitantes a quem via pela primeira vez. Atravessaram a ponte da Ilha. Felipe ficou o resto do trajeto a olhar os ombros quadrados de Teodoro.

O criado descerrou as cortinas pesadas, de veludo antigo, da suíte, e, como se abrisse um palco, o espetáculo formigante de carros e pessoas seminuas, contra o pano de fundo do mar azul, onde veleiros enfileiravam-se numa regata, apresentou-se com toda a sua glória de cores e luz.

Felipe, com uma ponta de boba vaidade carioca e nacionalista, gostava de ler nos visitantes estrangeiros o impacto da cena – ainda que eles pudessem não passar de escroques ou assassinos. Os olhos pequenos e verdes de Goldman, ao depararem com a doce curva de Copacabana, não emitiram qualquer sinal de prazer ou surpresa, sequer curiosidade, como se ele ao longo da vida não tivesse feito outra coisa do que ver abertas todas as manhãs as cortinas daquela paisagem, dois cacos de vidro opaco de garrafa. E Felipe pensou, mais isso não é um homem, é máquina.

O ar condicionado bania o calor. O jarro da saleta de entrada ostentava flores frescas, na tentativa de colorir a impessoalidade dos hotéis. O criado dentro de seu dólmã cinzento movia-se com uma eficiência e um automatismo irritantes. Girou um botão, o recinto foi banhado pela antissética música FM em surdina que parece ser o estereótipo de todos os hotéis e aeroportos do mundo e Felipe percebeu naquele gesto a repetição de milhões de gestos semelhantes por parte de todos os criados de hotéis do mundo. E se advertiu, cuidado, estás de mau-humor e isso te enfraquece. Considerava a si mesmo, com orgulho, um homem com capacidade imensa de se controlar.

Obsequioso, sorridente, Barros entrou. Ao dar com Goldman, sombra de decepção cobriu seu rosto. Tratou rapidamente de se corrigir. Claro, os hóspedes que Felipe escoltava eram senhores altos, de cabelos grisalhos e ar distinto, muito elegantes; e de repente lhe aparecia aquele homenzinho de terno amarfanhado, sem nenhum traquejo! As suítes não tinham sido feitas para essa gentinha – inferior a até ele mesmo, Barros, acostumado a receber atrizes de cinema e princesas italianas – que num golpe de sorte qualquer tinha ascendido ao direito de receber da vida o que de bom a vida tem a oferecer. Uma puta injustiça, Barros a sus ordenes doctor, habla espanol?

Barros, ar de general passando tropas em revista, olhou em torno, abriu a geladeira (repleta), tornou a fechá-la, fez um gesto dispensando o criado que, quase em posição de sentido, aguardava, numa ansiedade de recruta que quer a todo custo agradar seu sargento. O rapaz encaminhou-se para a porta, Felipe pôs-lhe uma nota na mão.

Barros levou-os ao banheiro. Com uma determinada pressão, abriu um naco da parede de azulejos, sob o qual estava o cofre. No quarto havia outro, sob a tela que representava um veleiro, quase ostensivo; aquele era o realmente secreto. Era, não havia dúvida, uma suíte bem preparada.

Nenhum empregado do hotel, incluindo os outros subgerentes, Barros garantiu, conhecia o cofre do banheiro. Entregou a chave a Goldman, mostrou-lhe o cartão com a combinação. Goldman olhou-o displicente, "pronto, a tenho guardado", querendo dizer que a havia decorado. Fora treinado para essas coisas.

Com uma chaveta esquisita abriu a algema do pulso esquerdo, guardou a maleta no cofre, fechou-o, recompôs a parede. Depois esfregou atento o pulso, onde ficara um vinco na carne. Felipe havia se oferecido para guardar a maleta no cofre do banco, o americano recusara. Por outro lado tinha razão, podiam ter de viajar a aualquer momento, com o banco fechado ficariam sem a maleta e sem ela não adiantava viajar. Mas, desconfiava Felipe, o motivo verdadeiro é que o americano devia ter ordens de jamais se separar dela. Barros deve imaginar que contém pedras, ouro, urânio ou qualquer coisa assim, talvez documentos. Barros era discreto.

De volta ao quarto, Barros estendeu ao hóspede duas fichas – "profissão, comerciante, não?" pediu-lhe o passaporte, para que ó pessoal da portaria preenchesse as fichas. Dentro de uma hora o passaporte lhe seria devolvido, garantiu. Goldman olhou para Felipe, entregou o passaporte verde com certa má-vontade (mais tarde Felipe examinou-o; constava o nome Robert Goldman, profissão comerciante, residente em Nova York, Columbus Avenue, um número qualquer, "deve corresponder a alguma mercearia ou supermercado, aposto", apartamento 302).

Barros mostrou onde se graduava o ar condicionado, a luz, o botão do rádio. Goldman o atalhou:

– E as mulheres?

Não era nada sutil. Barros olhou ligeiro para Felipe, este lhe disse:

– Traga o álbum.

Goldman pegou uma maçã da fruteira que enfeitava a mesa, deu duas dentadas, colocou-a de volta. Barros voltou com o álbum. Goldman folheou-o com a fria isenção do dono de uma loja de ferragens examinando um catálogo de parafusos: Em cada página uma mulher, em geral sentada, de modo que o vestido curto mostrasse as coxas, esforçava-se por parecer ingênua e sensual.

– Esta, às três da tarde – disse Goldman, apontando com o dedo e depois fazendo o três, como se Barros fosse capaz de se enganar de mulher ou horário – e esta outra às nove da noite.

– Kátia e Manon. O doutor tem bom gosto – disse Barros, com um sorriso subserviente que estreitou os olhos pequenos na cara porcina. Goldman fuzilou-o com um olhar gelado, o outro engoliu rapidamente o sorriso.

– Ligue para elas, combine. Depois a gente acerta.

– Deixe comigo, doutor Felipe – Barros reverencioso.

Quando ficaram a sós, Felipe disse a Goldman:

– Esteja no meu escritório às 5 da tarde.

– Avenida Almirante Barroso – Goldman, derrapando nos erres, leu no cartão. Devolveu-o – Onde fica?

– No centro. Pegue um táxi. A propósito, você precisa de cruzeiros – meteu a mão no bolso do casaco, tirou dois maços de notas, presas com atilho de banco – Seria bom anotar o número do telefone.

– Telefone? Já sei – Goldman não parecia se envaidecer de sua memória fotográfica. Era apenas parte de seu trabalho, mais nada.

Despediram-se. À saída, Felipe perguntou:

– Qual era a placa do carro que nos trouxe do aeroporto?

O americano demorou um pouco a entender a que ele se referia.

– RM8421.

– Correto – disse Felipe, sem nenhuma emoção especial – Sua roupa deve ser número dois, não? É, número dois – confirmou, falando mais consigo mesmo.

Que saco tudo isso, pensou Felipe, entrando no carro. Para onde doutor? Quis saber Teodoro.

– Para casa. Hoje vou almoçar em casa.

Marina saíra há pouco da piscina, passara no chuveiro. Acariciou os cabelos úmidos.

– O que houve Luis? Você parece tenso.

– É. Chateações do trabalho.

– Quer que eu te prepare um uísque pra relaxar?

– Quero, amor.

Contemplou com prazer de proprietário os glúteos firmes da mulher; era um vencedor, consolou-se.

Goldman desligou a música. Tomou um chuveiro. Cerrou as cortinas, abriu a geladeira, deitou-se, de sunga, lata de cerveja na mão. Da cama ligou a tv pelo controle remoto. Trocou com impaciência os vários canais, acabou retornando ao inicial, deteve-se no desenho animado. Os olhos fecharam-se. Dormiu duas horas. Acordou com fome. Pediu pelo telefone filé com fritas. Cerveja tinha à vontade na geladeira.

Comeu, ligou para que viessem buscar a bandeja, não suportava cheiro de gordura fria. Com o garçon veio o rapaz da portaria devolver o passaporte.

Goldman abriu a mala, tirou o revólver, envolto num. impermeável, para que o óleo da arma não passasse para as roupas. Soltou o tambor, extraiu os cartuchos. Escolheu o vaso de flores para fazer pontaria. Durante as duas horas seguintes praticou, sentado, ajoelhado, em pé, com o braço estendido, com o braço encolhido. Cuidava que o braço, a mão, não tremessem, controle absoluto da reparação, observando sua postura no espelho com o canto do olho. Gatilho comprimido até o limite máximo da posição de descanso, era vital sobretudo não tremer a mão no momento em que o cão avançasse, para percurtir o ouvido da arma com um clic seco. A empunhadeira da pistola Colt, concordava, era muito mais confortável; mas uma pistola sempre corre o risco, ainda que remoto, de engasgar, coisa quase impossível de acontecer com um revólver, só mesmo por defeito da munição.

Em dado momento, recarregou o revólver, para se habituar com a arma no seu peso máximo. Sentia o braço fatigado, trocava de empunhadura. Embora não fosse canhoto, talvez um dia precisasse atirar com a mão esquerda.

O problema com a arma carregada era não poder agora puxar o gatilho. Lamentou não estar num estante de tiro. Alguns colegas de Goldman tinham um talento inato para aquilo; treinavam muito menos a estavam sempre bem. Ele não, precisava, para manter seus índices, treinar diariamente duas, três horas no mínimo. Era como um castigo mas não lhe faltava perseverança; só não se exercitava se estivesse dentro de um avião. Aquilo virava quase uma obsessão, chegava ao ponto de ficar sentado no vaso segurando a arma. Nada vem de graça.

O telefone tocou: a moça ia subir. Goldman guardou o revólver na gaveta da cômoda, lavou o rosto, observou-se no espelho do banheiro. Não fosse pelo ar condicionado, estaria suado do exercício. Abriu a porta.

Kátia entrou tentando parecer segura, provocante na minissaia que cobria um palmo das coxas morenas. Achou deselegante ser recebida pelo gringo só de sunga. Que diabo, seus clientes eram de alto nível, homens distintos, o que é que estava acontecendo com Barros, o que é que estava acontecendo com esse hotel? O gringo devia ter dinheiro pra caralho, para estar hospedado naquela suite. Dinheiro não quer dizer educação, bem que sua mãe sempre falava.

Comentou o calor lá fora e outras trivialidades. O americano mal respondeu com alguns monossílabos e ela perguntou, não me oferece um uísque?

Goldman preparou um uísque com gelo. Kátia sentou na borda da cama, bebericando, ele diante dela, na poltrona, observando-a com seu olhar frio. Sujeito estranho, ela pensou, e sentiu um pouco de medo. Ele de repente ergueu-se, exibindo uma meia-ereção, cresceu para ela. Tirou-lhe o copo da mão, baixou-lhe as alças do vestido. Os seios pontudos de Kátia irromperam livres. Ele os agarrou, apertou-os com força.

– Ai, você é mau. Assim você me machuca – queixou-se, sentindo alguma excitação com aquela violência. Ele deixou a sunga cair. Quer ser chupado, pensou, e começou a executar seu labor.

Quando percebeu que ele ia gozar fez menção de sair mas ele segurou sua cabeça firme pelos cabelos. Depois ela correu para o banheiro, passando a mão na bolsa. Cuspiu o que não engolira da gosma, abriu a bolsa, tirou a pasta e a escova de dentes. Estava escovando os dentes quando ele materializou-se na porta.

– Anda, anda – apressou-a. E acrescentou ríspido, apontando como dedo – Go away, go away.

– Um momento, um momento – ela respondeu, chocada com a violência dele. Seu instinto dizia-lhe que não devia discutir, que aquele era um homem perigoso. Quinze minutos depois de haver adentrado o apartamento estava fora.

Pouco antes da cinco Goldman pegou um táxi. A secretária de Felipe mandou-o esperar, o doutor estava ao telefone. O próprio Felipe abriu a porta: "entre". O outro entrou, ele trancou a porta.

O americano sentou, Felipe abriu o cofre. Sacou um envelope amarelo. O aparelho de ar condicionado ronronava como um gato.

– Este é o nosso homem.

Goldman pegou as ampliações. Olhou-as, isento. Em duas fotos o homem robusto, claro, cara de bebê bem alimentado, aparecia só. Nas outras quatro, rodeado de outros homens; em duas delas, homens armados de escopeta.

– Ele é um policial. Eu sei – disse Goldman.

– Não apenas um policial, o maior policial brasileiro – disse Felipe, mas o outro levantou a mão, como dizendo, eu não quero saber.

– Identificado?

Goldman balançou afirmativamente a cabeça.

– Você o reconheceria numa multidão? – I never forget a face – respondeu Goldman, o ar entediado de um aluno a quem – quem descobriu o Brasil? – o professor fez a mais óbvia das perguntas.

– Good – disse Felipe, recolhendo as fotos no envelope. E olhando o outro no olho: – Você sabe que, em hipótese alguma, admitiremos erro, não é?

– Eu sou um profissional – retrucou o americano irritado, sem encarar Felipe.

Mas com o Barbudo vocês falharam e várias vezes, teve Felipe vontade de dizer. Voltou-se na cadeira giratória outra vez para o cofre, extraiu dele uma maleta de executivo.

– Depois que estiver tudo acabado, isto é seu abriu a tampa. A maleta regourgitava de cédulas verdes. Pela primeira vez Felipe percebeu alguma espécie de emoção, um fugitivo brilho de cupidez, no olhar de Goldman.

– Vamos viajar amanhã, a qualquer momento – disse Felipe, tornando a repor a maleta no cofre. – Você terá todo o apoio.

Os dois homens ergueram-se. Felipe pegou um embrulho de papel pardo de cima da escrivaninha.

– Suas roupas são demasiadamente americanas Providenciei isto para você – disse entregando o pacote. – Vista-as amanhã, quando chegarmos a São Paulo.

De volta ao hotel, Goldman encaminhou-se para o banheiro. Abriu a parede de ladrilhos, examinou o fio de cabelo que arrancara do braço e, à guisa de selo, pregara com cola plástica incolor entre tampa e o corpo do cofre: estava aparentemente intacto. Abriu o cofre, certificou-se, a maleta não fora mexida.

Postando-se diante do espelho do closet, encarou-se com seu olhar frio, puxou o gatilho. Praticou durante mais duas horas, na posição em pé, braço estendido e encolhido. Quando a mão cansada começava a tremer, trocava de braço. Gostaria de queimar de verdade aquela figura que lhe apontava uma arma do outro lado do vidro.

Aboletou-se sobre a cama, copo de cerveja na mão, ligou a tv. Era hora do noticiário, tentou entender o que diziam. A rapidez dos locutores dificultava a compreensão. Levantou o fone, pediu o jantar no quarto: filé com fritas.

Comeu olhando a tv, trocando ociosamente os canais pelo controle remoto.

Às 9 horas chegou Manon. Ele apenas abaixou o volume, quando ela entrou, continuou estirado na poltrona, olhando a pequena tela. Manon era loira, estatura média, bonita, fornida. Como Kátia, vestia uma minissaia tentadora.

– Caminhe, para acá e para allá.

Manon obedeceu.

– Tire a roupa.

Só de calcinhas, desfilou de salto alto diante dos olhos de vidro do gringo.

Goldman, sem aviso, ergueu-se, empurrou Manon com certa brusquidão para a cama, arrancou-lhe a calcinha. Abriu-lhe as pernas, penetrou-a com o dedo. A extrema frieza do homem paradoxalmente a excitou. Quando sentiu a vagina molhada, Goldman entrou nela com o pênis. Manon começou a mexer em movimentos circulares, emitindo gemidos destinados a excitar o cliente, mas ele gritou "quieta" e ela imobilizou-se a calou.

O gringo gozou com um estremecimento e por um momento ficou imóvel, a mulher oprimida por seu peso, enquanto o esperma escorria pelas coxas. Ele só ergueu o tronco e olhou-a. Manon não sabia o que ele queria. O tapa veio forte; de surpresa. Ela encolheu-se assustada, esfregando o rosto. Saltando da cama, ele lhe ordenou, quase gritando:

– Vai embora. Vai embora.

Ela vestiu-se apressada. Pegou a bolsa, na hora de sair, virou-se para ele.

– Animal. Você é um animal!

– Vai embora – tornou a gritar Goldman e Manon saiu apressada, batendo a porta. Goldman passou o trinco.

Lavou o pau na pia, abriu um pequeno estojo de couro. Irrigou a uretra com pomada, besuntou com ela o membro. Escovou os dentes, gargarejou, pingou colírio nos olhos. Jogou-se na cama. Dormiu instantaneamente.

Felipe apanhou Goldman no hotel pouco antes do meio-dia, o americano já impaciente em sua jaula de luxo, nem os exercícios de pontaria dissipavam a irritação. Esta era interna, não transparecia na sua maneira fria. Afinal, sua profissão se fazia de longas esperas.

No saguão, Barros desmanchou-se em rapapés. Felipe o encontrara por acaso ao chegar e ele viera lhe dizer que Kátia e Manon tinham se queixado do gringo – "farejo gentinha de longe não me engano" pensara vitorioso – e Felipe mandou que ele dobrasse os honorários das moças; mas esquecessem que o gringo existe. "Saco de missão", pensou, mas estava era um pouco nervoso.

– Nosso homem foi para o litoral – sussurrou a Goldman, enquanto o carro corria pelo Aterro do Flamengo. O gringo não disse nada. Trazia a maleta presa ao pulso esquerdo. A mala com a roupas ficaria sob a guarda de Felipe mas o pacote pardo estava com ele.

Não, não sabia quando voltava, Felipe disse a Teodoro, no Aeroporto Santos Dumont. Aguardasse instruções. O crioulão fez que sim com a cabeça. Pela primeira vez via o patrão viajar a negócios em traje esporte.

Um funcionário os acompanhou até o Cessna, na pista, onde o piloto aguardava. O pequeno avião ganhou altura fácil, ultrapassou o Pão de Açúcar. Felipe observou Copacabana e Ipanema douradas de sol, a areia semeada de pontos negros móveis.

Durante o vôo, ao longo da costa, conservou-se num mutismo mal-humorado, chupando drops de hortelã (tinha deixado de fumar) ou alisando e puxando os fios do bigode bem aparado, num cacoete muito seu. Sob o molho azedo da verificação de quanto já metera as mãos na.lama, brilhava o orgulho de executivo, capaz de montar toda a operação; afinal, não era o seu ramo. Mas nesse tipo, de coisa sempre surge um fator complicador, podia se enrascar seriamente. Em última análise, procediam a uma queima de arquivo – e ele próprio, Felipe, começava a saber muito mais do que gostaria. Não fosse um dia alguém olhar para ele e dizer, lá com seus botões, esse cara sabe um bocado. O pensamento o vinha incomodando desde o dia da conversa como Secretário. Preferia que o abacaxi não tivesse vindo parar nas suas mãos. Porra, era economista, não policial.

– Estou precisando conversar com você – lhe dissera há apenas dois meses o Secretário, sem que tivesse a mínima idéia do que podia ser. – Por que você e Marina não vão passar esse sábado com a gente lá no sítio? Minha filha vai também com o marido, não vai ter só gente velha e chata – acrescentara com o sorriso aliciante de bons dentes.

O sábado estava bonito, de muito sol, e o sítio, para os lados de Bertioga, era muito bem cuidado. Enquanto as mulheres e as crianças mergulhavam na piscina e o genro – "esse é gaúcho dos bons" – ajudado pelo caseiro, preparava o churrasco, o Secretário, garrafa de Dimple sob o braço, dois copos e o balde de gelo na mão, o chamara para a mesa do canto oposto da piscina, "temos uns assuntos a conversar", e dona Léa observava com um sorriso resignado "esses dois não desligam do trabalho nem no fim de semana".

E ali, sob um guarda-sol, entre gritos de crianças, bebendo uísque, fazendo no início alguns rodeios – "tenho toda a confiança em você, sei que posso abrir o jogo" – o Secretário falou-lhe do Homem.

Era um grande quadro, grandes serviços prestados (embora um tanto sádico, demais até para o seu gosto, "esse negócio de arrancar dentes com alicate não faz o meu gênero" e o Secretário sacudiu a cabeça sorrindo, como quem conta uma peraltice repugnante do neto) não se podia negar. O problema era que abrira a guarda demais. Envolvera-se profundamente no tráfico de tóxicos, na guerra de quadrilhas, tornara-se um viciado. O Homem deixara-se fotografar antes da execução sumária de um marginal. Os processos contra ele estavam andando, as provas se acumulavam, tivera de ser afastado do posto de comando que exercia, só não ficara preso graças a uma jogada jurídica, hábil mas desgastante; A esquerda, com a sede que tinha dele, não ia consentir na sua impunidade. E ele sabia muito; embora remota, havia a possibilidade de que, vendo-se em desgraça, pudesse voltar-se contra o regime, a dizer coisas que podem comprometer pessoas do alto escalão. A polícia para quem é um herói, nunca o aceitará julgado e condenado, preso. O Governo não pode dar-lhe cobertura a não ser com o custo de um imenso desgaste: por seus excessos. O Homem tornara-se um alvo demasiado visível, no Brasil e no exterior. Em suma, nos novos tempos que vivemos, de abertura política, o Homem não tinha mais função, tornara-se um anacronismo, uma dor de cabeça que o Governo não sabia como curar, fonte de escândalo e agitação que só tendiam a crescer. Eis o dilema: não se podia desampará-lo, não se podia lhe dar cobertura. Os liberais, até mesmo os conservadores, reconheciam, na intimidade, que ele tinha ido longe demais.

Nesse momento a garotinha chegara choramingando, "a Adriana puxou o meu cabelo", o Secretário a consolaram por um minuto voltara a ser apenas o vovô bonachão, de cabelos, de pêlos do peito e do ventre grisalhos, um grande urso suave, afável. Despachou a neta, "vai lá com a vovó, pede para ela te dar um doce", sacudiu a cabeça, "não é uma graça?"

Nessas circunstâncias, prosseguiu, se o Homem sofresse um acidente – não um atentado, um tiro, essas coisas, mas um simples, prosaico acidente – seria ótimo para todos. Os americanos eram da mesma opinião.

A voz do Secretário a essa altura adquirira um tom duro, metálico, de comando, de imposição e ele encarou firme Felipe que, um pouco perturbado, faces esquentadas pela bebida, olhou o fundo do copo.

– E o que é que eu tenho com isso, Secretário?

– Tem que nós resolvemos precipitar esse acidente – disse o outro num tom quase rude, os olhos opacos de velho brilhando de excitação ou de álcool. – E eu conto com você.

– Mas logo eu, Secretário?

– Luís, o Ministro te conhece e aprovou a indicação. Você não vai fazer nada rocambolesco, apenas administrar a operação. Cuidar vamos dizer assim, da parte logística, criar o apoio. Vem um americano. Mas isso, note bem, não é uma iniciativa do Governo e sim de um grupo muito pequeno de pessoas. Quanto menos gente envolvida; sequer sabendo, melhor. Todos concordamos em que ninguém da polícia ou dos serviços de segurança deve entrar nisso: Você não precisa ficar preocupado, para todos os efeitos não conhece ninguém, atuará na sua área. Será um mero acidente. Acidentes acontecem todo dia, com todo mundo. Só que não podemos errar.

O Cessna descreveu uma curva, preparando a aterrissagem. Os grandes petroleiros eram pústulas escuras na pele azul do mar, amontoados diante do terminal. Besteira, pensou Felipe, não havia o que temer por si. Seu próprio envolvimento era sua garantia. E os "homens" sabem que jamais agrediria o sistema. Conhecer segredos é uma contingência da função. Qualquer funcionário graduado está a par das negociatas do seu Ministério e só será uma ameaça na medida em que não aceitar participar delas.

Goldman dormia, um filete de saliva escorria do canto da boca. Parece um homenzinho tão inofensivo! Pensou Felipe com certa alegria perversa. Quantos já terá matado?

No hangar do aeroclube, Goldman vestiu a calça e a camisa de malha azul compradas na Rua da Alfândega, enfiou a maleta numa sacola de supermercado, para não despertar atenção. Felipe vestia jeans e uma camisa Lacoste de malha. Embora não sentissem fome, foram almoçar num restaurante da cidadezinha. Pediram filé com fritas, água mineral: Goldman não bebia álcool, já se considerava em ação.

– Talvez você tenha de pegá-lo à noite e lá é escuro.

– Não faz diferença. Quanto.mais escuro melhor.

Caminharam até o cais. O mar ali é calmo, o Estrela do Mar mal balançava. Zeca estava a postos, sentado no tombadilho. Na cabine; fones nos ouvidos, Lucas estava em contato com a ilha.

– Está tudo certo – disse a Felipe. – O iate do cara continua ancorado lá, ao lado de um menor. Nós vamos encostar ao lado do menor.

– O Homem está mesmo só com a família?

– Com a família e uns amigos. Barra limpa.

– Oquei, boa sorte – e para Goldman: – Good luck.

– Obrigado – o gringo respondeu em português.

Felipe pulou fora. Zeca ligou o motor, soltou as amarras. A lancha riscou a baía, por entre os petroleiros, em direção à ilha.

Lá, Goldman saltou, examinou o caminho a ser feito até onde um carro estaria à sua espera. Em caso de necessidade, dois homens de metralhadora lhe dariam cobertura, assim que deixasse a área do cais.

O Estrela do Mar tinha ancorado ao lado de uma lancha, que por sua vez batia o costado contra o iate do Homem. E que iate, exclamara Zeca, revestido de fibra de vidro, o cara devia ter roubado pra caralho pra ter um iate desses – mas Lucas não fizera qualquer comentário.

Goldman passou o resto da tarde recostado nas almofadas da cabine única do Estrela do Mar, olhando um ponto fixo do teto, numa espécie de fria tensão, com algo de estimulante nela, a um tempo sofrimento e deleite – o solista antes do concerto. Ele se certificara de que no cais as lâmpadas eram poucas e fracas. E o melhor, no poste de madeira mais próximo havia uma chave, que Zeca ficara de desligar. Foi a única vez em que Goldman, na sua extrema solidão de matador, se dirigiu aos dois homens.

Do iate chegavam risadas, conversa barulhenta. Ali o Homem, na companhia da família e de amigos, baixava a guarda, sentia-se seguro. No mundo exterior, talvez só umas quatro ou cinco pessoas, todas de confiança, sabiam onde ele podia estar. Na ilha, no mar, um dos mais temidos e odiados homens do país relaxava.

Aguardavam que a noite chegasse, o sol custou a enfiar-se numa fenda do mar. Tinham medo de que o iate saísse para uma pescaria noturna, mas isso seria totalmente contra o hábito. O certo era ficarem conversando e bebendo até tarde no tombadilho – e aí é que Goldman o pegaria.

Quando os contornos do mundo derreteram na escuridão, Goldman girou o corpo, pousou os pés no chão, puxou de sob o estrado-beliche a maleta. Ajoelhou-se no chão, depositou-a onde estivera deitado, abriu-a com a chaveta especial. Montou rapidamente a arma de pressão; lembrava uma espingardinha de brinquedo. Acoplou sobre ela a luneta de infravermelho. Em seguida abriu o pequeno estojo forrado de cetim, com uma pinça apanhou um projétil: uma agulha, parecendo um grão de arroz, apenas mais fino.

Carregou a arma, engatilhou-a, empurrou o pino de segurança. Colocou o pequeno rifle e a maleta na sacola de supermercado, pegou o caniço, saiu para o tombadilho. Poucas estrelas, nuvens toldavam a lua. Na lancha ao lado não havia ninguém. O " Estrela do Mar também estava às escuras; só o iate se enfeitava com um colar de luzes.

Reconheceu o homem bochechudo, com um quepe na cabeça; julgava-se decerto um lobo do mar, um capitão, um herói. Embora não o odiasse, Goldman sentiu prazer em ter de matá-lo. Seus sentidos, como os de todo caçador, estavam em alerta máximo, numa só pulsação, dolorosa e cheia de prazer. Zeca fizera a sua parte; a luz do poste apagada. Goldman trazia no bolso da calça o estojo de projéteis e nenhum documento. Na barriga, sob a camiseta, sentiu o volume frio do revólver.

Pegou o rifle, abaixou-se na altura da borda do barco, enquadrou o alvo. O Homem tinha na mão uma lata de cerveja. Destravou a arma – e nesse momento uma mulher de cabelos pintados de loiro ergueu-se e abraçou-se ao Homem. Shit, o caçador exclamou; e tornou a travar o pino.

Momentos depois todo o grupo, dez ou doze pessoas, deixou o iate e se afastou a pé pelo cais, fazendo algazarra. Um marinheiro permaneceu no tombadilho.

– Devem ter ido jantar num restaurante que tem aqui perto – sussurrou Lucas aproximando-se. – Vou verificar.

Goldman voltou a empunhar o caniço. Lucas deu um tempo, seguiu pelo cais na direção em que o grupo sumira. Ao passar pelo iate, cumprimentou o marinheiro.

Depois do que a Goldman pareceu um tempo enorme, coisa de uma hora, Lucas voltou.

– Jantaram e encheram a cara. Estão vindo para cá – de fato, risadas ecoavam na calma noturna do cais.

Goldman, numa decisão rápida, empunhou a arma, saltou, abrigou-se numa mancha de sombra, junto a uma pilastra de amarração. Estava a uns 20 metros do iate. Esperou.

O grupo – três ou quatro mulheres, o resto homens – começou a galgar o tombadilho, com a ajuda do marinheiro. Goldman destravou â arma, apoiou-a sobre a pilastra, enquadrou a caça. Pela luneta via-a como em pleno meio-dia. O Homem armou o pulo, galgou a borda. Goldman colocou a junção das duas linhas pontilhadas no peito dele, puxou o gatilho. Um pequeno silvo, o Homem levou a mão ao peito com um ar de susto. Perdeu o equilíbrio, caiu na água.

– Ele caiu, ele caiu – alguém gritou assustado.

– Bebeu demais – uma voz disse.

– Calma, ele sabe nadar – disse um terceiro.

Precipitaram-se todos para a borda, na junção do barco com o cais, o Goldman aproveitou para se afastar, agachado como um gato. O Homem levaria três minutos para morrer; e deintro de dez minutos não haveria vestígio do veneno em seu organismo, os sintomas seriam de ataque cardíaco. Na autópsia, um médico atento talvez estranhasse uma pequena mancha de sangue no peito, como a de uma espinha espremida.

– Ele não voltou – alguém gritou, no meio de outros gritos.

O marinheiro jogou-se na água, voltou à tona com o homem pesado. Jogaram-lhe uma corda.

Goldman em segundos desmontou a espingarda, jogou as peças dentro da sacola que deixara junto à pilastra de amarra do Estrela do Mar, pegou-a e ao caniço, saiu caminhando calmamente em direção aonde, dentro da noite, o carro estava à sua espera.

Lucas acercou-se do iate:

– O que houve, o que aconteceu?

Ajudou o marinheiro a içar o afogado. Ele tinha o rosto congestionado, espumava pela boca.

– Bebeu muita água, tem de fazê-lo vomitar – disse um homem moreno, atarracado, de bigode.

– Meu Deus, ele está morrendo – a loira oxigenada começou a gritar.

– Calma. Vamos levá-lo para o hospital. Antes é preciso que vomite.

Minutos depois Lucas retornou ao Estrela do Mar, foi ao rádio, fez o contato com Felipe: "Alô, dr. Prado: o mar amanhã vai estar bom. Pode vir pescar. Câmbio". Do outro lado, veio: "Entendido. Câmbio".

Felipe engoliu o uísque do fundo do copo, com a mão trêmula discou para o Secretário no Rio: "A pescaria hoje foi boa". Do outro lado, a voz tranquila de quem confiava no resultado respondeu: "Ótimo. Infelizmente estou sem tempo nenhum para pescar".

Encostados na borda do Estrela do Mar, Lucas e Zeca fumam. O Homem foi levado, já morto. O cais está vazio. Daqui a pouco virá a polícia, eles acreditam. Fará algumas perguntas, poucas: infelizmente eles não têm como ajudar. Zeca religou a luz do poste, mesmo assim o cais é escuro e silencioso, como qualquer cais do mundo à noite. Há um absurdo sentimento de paz e solidão.

– O cara era importante, não? – pergunta Zeca.

– Era. Amanhã o focinho e o nome dele vão aparecer em todos os jornais.

– Eu só não entendi o que aconteceu; afinal, ele morreu de quê?

– Olha, vou te dar um conselho. Se você pretende morrer na cama, com os netos em volta te olhando, não procure entender nada. Houve um acidente aqui e um sujeito qualquer morreu afogado. Só isso. Você nunca viu aquele gringo argentino na vida. Amanhã vamos pra Santos e você nem sequer esteve aqui. Entendeu bem?

– Entendi, claro, chefe. Eu só estava comentando aqui entre nós.

– Eu não sei de nada. Não tem nada que comentar comigo. Eu sofro de amnésia. Você sabe o que é amnésia? Pois é, eu sofro de amnésia. Com essa doença, vou ter vida longa.

– Eu também, chefe.

– Ótimo. E pare de me chamar de chefe. Quem tem chefe é índio e você não é índio.

– Tudo bem Lucas, não precisa ficar nervoso.

Os dois se calaram. Uma brisa boa soprava agora. O cais, o Brasil, o mundo estavam em perfeita paz. Uma estrela, no prolongamento do mastro, testemunhava isso lá de cima. Zeca pensou que, amanhã, a caminho de Santos, podiam dar uma parada no canal e jogar um anzol. Será que Lucas toparia? Com um pouco de sorte, podiam fisgar um bom peixe.

RUBEM MAURO MACHADO é escritor. Seus principais livros são: "Jantar Envenenado" (Ed. Ática), "O Inimigo na Noite" (Ed. Mercado Aberto), "A Idade da Paixão" (Ed. José Olympio. Seus contos já foram traduzidos para o espanhol, francês e alemão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1989
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