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TRANSIÇÕES POLÍTICAS NA AMÉRICA LATINA

RESENHAS

Edison Nunes

Sociólogo, Professor da PUC/SP e Pesquisador do CEDEC

AS LUTAS SOCIAIS E A CIDADE: SÃO PAULO, PASSADO E PRESENTE

LÚCIO KOWARICK (ORG.),

PAZ E TERRA, 1988.

Em seu conjunto, a coletânea apresenta-se como um verdadeiro "quebra-cabeça". Os artigos que a compõem, diversos quanto ao objeto analisado, bem como à perspectiva adotada, apontam para uma "imagem" global e sugerem encaixes possíveis com as outras "peças". Como nos demais "puzzles", a solução está na tampa da caixa, neste caso no título; "O passado e o presente"; "as lutas sociais e a cidade" de São Paulo. Quatro substantivos justapostos dois a dois por intermédio do conectivo "e"; cada par impondo uma tensão específica entre o fazer e o feito, entre o produzir da cidade fecundada pelas lutas sociais e a cidade produzida, por sua vez, resultado de lutas anteriores. Entre o passado e o presente da cidade destaca-se, como padrão, o acentuado contraste entre a opulência e a pobreza.

A perspectiva diacrônica adotada na organização da coletânea exige a explicação de momentos fundacionais dos mecanismos de reprodução das desigualdades na cidade e da própria eclosão das lutas sociais em seu interior. Em primeiro lugar está a transição da cidade enquanto "entreposto comercial de uma sociedade escravocrata", para a cidade - "território sob o domínio do capital". Há, segundo Rolnik, uma transformação de enredos, palcos e personagens: a cidade cresce, assentando os trabalhadores assalariados em cortiços e vilas com o consequente incremento da importância social da relação de inquilinato. Este tema, aliás, é tratado em mais detalhes por Kowarick e Ant. Nos espaços populares aparecem práticas diferentes da "ordem urbana defendida pelas classes dominantes", e também, um limite para a "especificidade e autonomia de tais práticas": "o poder urbano" - "conjunto de mecanismos econômicos, ideológicos e políticos que funciona no cotidiano da cidade para reprimir ou transformar tudo o que se diferencia da ordem social". Um "governo urbano" passa a intervir diretamente na vida dos moradores de São Paulo. Com a instituição do trabalho livre, a formação e relação entre as classes sociais passa pela necessária mediação do Estado e pela história específica dos grupos que as compõem, colocando agudamente a luta social como momento de afirmação e disputas de identidades. Este tema perpassa o conjunto dos artigos que, de maneira análoga, recusam-se a derivaras práticas dos atores de supostas estruturas (a-históricas e, simultaneamente, da "cultura" tomada como um dado absoluto. O que os artigos mostram são homens e mulheres reais, dotados de história, que agem sob determinadas condições dadas (por sua vez, frutos de ações pretéritas).

Um segundo momento importante é a periferização das classes populares ocorrida no pós-guerra. Bonduki mostra como a "casa própria" na periferia substitui a de aluguel como forma prevalente de alojamento das classes populares. Nesse processo, a mediação de um Estado interventor é fundamental em dois aspectos básicos: pela compressão salarial destinada à acumulação do capital numa era de substituição de importações, o que inviabiliza a reprodução da habitação de aluguel; e, por outro lado, retira subitamente os inquilinos da proteção das leis, forçando-os a aceitar a nova solução que grupos de incorporadores passam a oferecer: o lote periférico desprovido de infra-estrutura urbana. Há aqui um claro divisor de águas: a instituição da periferia abre uma modalidade de luta social, os movimentos reivindicativos urbanos, ao mesmo tempo em que dá uma nova dimensão à espacialização do contraste entre a opulência e a pobreza na cidade. Esta situação de segregação espacial, que se reproduz de maneira ampliada no presente, coloca a questão da periferia simultaneamente como espaço de constituição de identidades e representações e como questão crucial na legitimação do "poder e governos urbanos".

O texto de Durham, ainda que estude cidades médias do Estado, apresenta uma importante reflexão sobre as identidades e representações dos habitantes da "periferia" que apontam para uma relativa homogeneidade do universo cultural desses moradores capaz de dissolver a heterogeneidade de inserções na produção hipótese é a de que condições de vida semelhantes originem semelhantes características culturais, que implicam em projetos de vida possíveis, na dimensão privada, dadas as "oportunidades" oferecidas pela sociedade. As caracteríticas culturais apresentam, na periferia ao menos, três valores fundamentais que colocam exigências; para a vida privada - a melhoria de vida; para a societária - o progresso; e para a política - a justiça social.

A análise das greves de São Bernardo em 1978, apresentada por Abramo, mostra como estas "características culturais", reelaboradas na situação específica dos metalúrgicos, são decisivas para a explicação do movimento. A humilhação sofrida pelos trabalhadores e a elaboração de um sentimento de dignidade violentada, caracterizando uma situação de injustiça - não se sentem devidamente recompensados pelo esforço despendido - é fator fundamental que os impulsiona à ação.

A importância do ciclo, grevista como um momento de fusão da luta operária com os movimentos reivindicativos urbanos aparece tematizada nos artigos de Telles e Caccia Bava. Ambos apontam, com perspectivas diferentes, a formação de uma nova identidade surgida da experiência popular dos anos 70. Para o segundo, trata-se de "desvendar o fato" de que a pluralidade de movimentos e reivindicações são manifestações de uma nova prática classista, de um mesmo autor. Para Teles, contudo, vive-se nos 80, um processo de "desconstrução" dos espaços e linguagem que tornaram reconhecíveis os "sujeitos" populares dos anos 70, Se o passado e o presente das lutas sociais na cidade de São Paulo podem ser lidos como a reprodução de situações instituídas em determinados momentos, devem ser vistos também como uma "sucessão de esquecimentos e desacontecimentos". Aqui a autora nos dá outra chave do "puzzle", que faculta entender como envelhecem e morrem formas de lutas sociais nesse cenário urbano anarquistas, ligas de inquilinos, sociedades amigos de bairro, as práticas dos anos 70. Tomadas em suas particularidades, cada uma dessas "peças", tende a se apresentar como a figura completa, com seu começo, racionalidade e fim. Por trás dessa sucessão de rupturas, resta a modelagem da cidade, fundada em cada uma dessas lutas, e que encontra condições de sua reprodução somente onde se encarna em instituições ou na vida social. Em outras palavras, no Estado e na tradição que o institui como "o único sujeito capaz de realizar um projeto futuro". Vae Victis!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1989
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