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Dilemas da América Latina num mundo em transformação

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O BRASIL

ARTIGOS

Dilemas da América Latina num mundo em transformação

Celso Lafer

Professor titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da USP

INTRODUÇÃO* * Aula inaugural proferida por ocasião das atividades de instalação da Cátedra Guimarães Rosa na UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México, em 20/6/88.

Guimarães Rosa - o patrono desta cátedra na Universidade Nacional Autônoma do México, de cujos trabalhos de instalação estou tendo a honra de participar - em Grande-Sertão: Veredas observou: "Eu quase nada sei. Mas desconfio de muita coisa". Disse ele, igualmente, neste mesmo livro - um dos mais altos momentos criativos da língua portuguesa - que "... a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada".

Evoco o patrono desta cátedra, cuja criação, estou certo, assinalará uma etapa de aprofundamento na cooperação intelectual entre o México e o Brasil, pois é no clima latino-americano da urgência de um mutirão - palavra de origem tupi que designa a ajuda mútua que parceiros se prestam para a execução de uma tarefa - que quero hoje compartilhar as minhas desconfianças sobre as tarefas que os desafios de um mundo em transformação estão colocando para a América Latina. Retomo, assim, temas que foram aqui examinados por Hélio Jaguaribe na expectativa de que, remexidos e temperados pelo diálogo, possamos em conjunto discutir e esclarecer os caminhos de nossa inserção no mundo, uma vez que, como também dizia Guimarães Rosa - que foi igualmente um diplomata de grandes virtudes -, "toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada".

POLÍTICA EXTERNA: IDENTIDADE INTERNACIONAL E INSERÇÃO DOS PAÍSES NO MUNDO

Começo com uma observação conceituai apontando que encaro a política externa como o permanente esforço de um país de compatibilizar suas necessidades internas com suas possibilidades externas, e vou definir de maneira genérica a necessidade interna de um país como o empenho na ampliação da capacidade de uma sociedade nacional, de conformar o seu próprio destino.

Este empenho é uma das notas da modernidade que, se de um lado afirma a idéia da expansão universal da racionalidade e da cientificidade - uma herança da Ilustração -, por outro reivindica a liberdade de auto-expressão individual e coletiva - uma herança do Romantismo. É por essa razão que urna visão contemporânea da sociedade internacional comporta, concomitantemente, tanto a asserção da unidade fundamental do gênero humano na comunidade mundial, quanto o pluralismo de especificidades que na diversidade e na multiplicidade dos estados exprimem uma constante busca de identidades nacionais. É por esse motivo, também, que a reflexão filosófica, sobre a história, hoje em dia, abrange, numa dialética de complementaridade, o pensar a humanidade (o universal) e o cogitar sobre a especificidade (o nacional, o regional).

Na era planetária a capacidade de conformar o seu próprio destino - para retomar o meu ponto de partida - não pode ser alcançada no isolamento. Esta vinculada à inserção, no mundo, de um país ou de uma região. Esta inserção é fato e percepção desse fato. Assim, por exemplo, é a localização geográfica de um país que determina os seus vizinhos, a sua vinculação a um contexto regional e não a outro, a sua maior ou menor proximidade de focos de tensão internacional. Os fatos, no entanto, requerem uma avaliação que busca perceber os fatores de. permanência e de mudança neles contidos. Daí a importância da prudência - entendida à maneira de Castoriadis como a faculdade de orientar-se na História - na formulação de uma política externa. Com efeito, é graças a uma boa avaliação dos fatos que um país pode, na continuidade da sua trajetória, responder às transformações.

A capacidade de aprender e mudar - para usar a terminologia de Karl Deutsch - e que é vital para a sobrevivência de indivíduos e sociedades, não é difícil de ilustrar no campo da política externa.

Os governantes ingleses, no século XVI, desistiram de suas ambições territoriais regionais na Europa - que durante a Idade Média os levaram a tantos conflitos na França — e optaram criativamente pela busca de um poder marítimo e comercial, que redundou na construção de um grande império de vocação mundial Souberam, no entanto, no segundo após-guerra, abrir mão do império, pressentindo o processo de descolonização. Daí na época contemporânea, a busca, por parte dos ingleses, de uma nova identidade internacional para a Grã-Bretanha. Depois de algumas oscilações, que envolveram uma expectativa exagerada sobre o alcance do "Commonwealth", esta identidade traduziu-se basicamente numa reinserção européia no âmbito do Mercado Comum.

Portugal, que também desde a época dos descobrimentos fez uma opção ultramarina, e com o seu império colonial a manteve durante séculos, nas duas últimas décadas mudou internamente, ao se democratizar, associando à transformação interna uma nova forma de inserir-se no mundo, ao escolher a integração européia. Dessa maneira, redefiniu a sua identidade interna e externa, .avaliando o que de seu passado deveria ser alterado em função de novos contextos e situações.

Na Argentina do século XIX, a "Geração de 80" concretizou um projeto nacional também a partir de uma avaliação do papel da economia argentina na divisão internacional do trabalho, centrado na Grã-Bretanha. A Argentina, no entanto, teve e está tendo, no século XX, de repensar o seu papel no mundo, por força das mudanças na economia mundial, que a partir dos anos 30, tornaram dilemática a sua tradicional, e anteriormente bem-sucedida, inserção no mundo.

No Brasil do início do século XX, o Barão do Rio Branco - o grande chanceler da República - marcou: a política externa do país não apenas pelas soluções que encontrou no contexto contíguo dos vizinhos para os problemas de fronteiras mas também pela percepção das transformações históricas que ocorriam no mundo e do novo papel que nele passavam a desempenhar os Estados Unidos, disso extraindo importantes conseqüências para a formulação da ação diplomática brasileira.

Em síntese e para sumariar o meu raciocínio: o que se exige constantemente em matéria da política exterior - enquanto um esforço de compatibilizar necessidades internas e possibilidades externas - é um juízo de orientação que permita, avaliando, deliberar sobre as modalidades possíveis de inserção de um país no mundo. Este juízo requer a legitimidade dos fins - que é o grande tema da identidade - associado à eficácia; dos meios - que é o grande tema de operacionalidade, com a sua inevitável dimensão de pragmatismo e realismo. Com efeito, todo juízo desse tipo deve combinar estas duas vertentes, pois um juízo sobre a legitimidade e a identidade que não leve em conta possibilidades de operacionalização é ingênuo. Por outro lado, um juízo de operacionalidade, que não leve em conta os fins a que se destina, perde a sua legitimidade, corrói a identidade e compromete pela incoerência a maneira pela qual um país é visto e interage com os outros.

O SISTEMA INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO: PERSISTÊNCIA E MUDANÇA

Feitas essas considerações preliminares, de natureza teórico-conceitual, a pergunta que quero colocar, e que constitui o tema desta aula magna é: o que está acontecendo,no mundo e como é que a América Latina em geral está se inserindo neste acontecer?

No campo estratégico-militar, caracterizado pelos riscos de guerra e pelos anseios de paz que permeiam a vida. dos povos e das nações e que configuram o parâmetro último de,um sistema internacional no qual o poder está distribuído individual mas desigualmente entre os Estados, não há dúvida que as relações Leste/Oeste persistem como definidoras da ordem mundial. Constituem um aspecto essencial do que Hélio Jaguaribe denomina o sistema interimperial, assinalado pela rivalidade entre duas grandes potências - os EUA e a URSS - que criaram depois do segundo pós-guerra impérios estratégicos, consolidando-os por um contínuo e bem-sucedido fortalecimento técnico-militar.

A interação entre os dois impérios, neste campo, é comandada pelo tema da guerra e da paz, enquanto princípios reguladores da razão estratégica na era atômica, ou seja, a guerra chama a atenção para o que é preciso temer - o holocausto nuclear - e a paz para o equilíbrio que se pode alcançar nesta situação-limite. Da guerra fria à detente, da confrontação às novas e recentes formas de cooperação - que não excluem, evidentemente, a rivalidade - o que está em jogo neste campo, na ótica das duas grandes potências, é uma gestão da ordem mundial que evite o conflito nuclear, assegurando-se, dessa maneira, a sobrevivência da humanidade.

Esta visão do universal, no campo estratégico-militar, que vem se traduzindo na manutenção da paz, entendida como inexistência de confronto nuclear em escala mundial entre os EUA e a URSS, continua presente no sistema internacional, apesar dos desgastes - que são o dado da mudança - tanto dos EUA quanto da URSS.

Estes desgastes vêm ocorrendo no campo dos valores, em virtude da erosão dos EUA e da URSS enquanto modelos de concepção de vida em sociedade - uma situação para a qual também tem contribuído a redução da eficiência global das duas grandes potências. No caso dos EUA, isto se comprova pela diminuição de sua centralidade econômica no mercado mundial, e no da URSS, pela necessidade de reformas profundas que a administração Gorbachev vem tentando implementar. Destes desgastes provém a perda da legitimidade do princípio do controle do sistema interimperial sobre a sociedade internacional e a diminuição de sua capacidade hegemônica. Esta situação, gera o que em outra oportunidade denominei a disjunção entre ordem e poder, ou seja, dificuldades para as grandes potências de estabelecerem uma ordem mundial, vale dizer um padrão previsível de comportamento, resultante de suas recíprocas relações de conflito, cooperação e competição.

Esta fragmentação do poder, que coloca em questão o clássico papel da gestão da ordem mundial moderna, historicamente exercido pelas grandes potências desde a Paz de Vestfália, abre espaço na agenda internacional para temas que não são apenas os das relações "inter-se" entre os EUA e a URSS, ou seja, as relações Leste/Oeste. Este espaço, no entanto, quando se cogita das especificidades da auto-expressão de outros Estados, enquanto unidades autônomas no sistema internacional contemporâneo tem os seus limites colocados por dois pares de dicotomias mencionadas por Stanley Hoffmann. São elas: dureza x fragilidade; revolucionário x moderado; que nas suas recíprocas co-implicações, configuram a imagem do mundo que se tem a partir de uma perspectiva latino-americana, pois uma das virtudes das dicotomias é a de iluminar, através da oposição dentre os termos, uma realidade complexa, sem reduzi-la a esquemas simplificadores.

UMA VISÃO LATINO-AMERICANA DA DISJUNÇÃO ENTRE ORDEM E PODER NO SISTEMA INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO

Início a reflexão sobre a disjunção entre ordem e poder a partir das dicotomias acima mencionadas no campo estratégico-militar. Neste campo discute-se o que um país significa para outro, como aliado, protetor ou inimigo, à luz do ângulo de sobrevivência de um Estado e de uma sociedade. A partir deste ângulo, a interação das dicotomias aparece de maneira clara pois, para países médios e pequenos - como os da América Latina — a paz também significa, além da inexistência de confrontação nuclear (o universal), a imunidade à agressão e a preservação da integridade territorial (o nacional, o regional).

Estes requisitos de segurança dos Estados em geral não se ampliaram com a fragmentação do poder, seja por conta da persistência de mecanismos tradicionais - como os do "big stick" de grandes potências - seja por força da crescente incapacidade contemporânea dos Estados - maiores ou menores - de lidarem com fenômenos como o terrorismo e o tráfico de drogas, como se pode comprovar em várias partes do mundos e em nosso continente. É por essa razão que a imprevisibilidade aumenta naquilo que é periférico ao núcleo da razão estratégica do sistema inter-imperial.

Assim, por exemplo, na América Central, se a negociação do Tratado do Canal do Panamá representou algo de inovador no relacionamento diplomático dos EUA com o Panamá, a presente ação norte-americana naquele país representa um aspecto de dureza diplomática intervencionista associada à fragilidade dos Estados diante de fenômenos como o narcotráfico. Nesta mesma linha de raciocínio, se o Grupo de Contadora, o Grupo de Apoio e ó Plano Arias exprimem algo de revolucionário e ao mesmo tempo de moderado na busca de um encaminhamento latino-americano para problemas latinoamericanos de segurança, os resultados dessas iniciativas são frágeis diante da opaca dureza da posição norte-americana, que desborda do núcleo dos seus interesses estratégicos.

No campo econômico - no qual nesta exposição vou concentrar a minha atenção - avalia-se o que um país significa para outros na obtenção ou colocação de financiamentos, investimentos, insumos, produtos e serviços. Nele cabe observar, preliminarmente, antes de examinar as dicotomias dureza/fragilidade; revolucionário/moderado, que o processo de transferência internacional de recursos ocorre num mercado mundial crescentemente unificado. Esta unificação, pioneiramente apontada por Raymond Aron, deriva do ímpeto específico da diplomacia norte-americana, a partir do segundo pós-guerra, para a abertura do espaço interestatal a uma circulação transnacional bastante livre dos fatores de produção por meio de macromolduras jurídicas do tipo FMI e GATT. Este ímpeto, no seu desdobramento, foi facilitado pela universalização dos desenvolvimentos técnicos que reduziram o tempo e o custo dos transportes e das comunicações, e conseqüentemente a importância do que antes eram as barreiras naturais dos mercados nacionais.

É por essa razão que hoje em dia, dada a vinculação das economias nacionais ao sistema mundial e a transnacionalização dos sistemas financeiros dos países, reduziu-se consideravelmente a liberdade de manobra dos Estados e das sociedades na condução de políticas econômicas nacionais.

Daí, com a mundialização das economias nacionais, crescimento da importância no sistema internacional, do que Richard Rosecrance chama o mundo do comércio, que vem ensejando alterações na estratificação dos países, independentemente da persistência das relações Leste/Oeste no campo estratégico-diplomático. É interessante, neste sentido, lembrar que o Japão e a Alemanha, através de sua atuação no mundo do comércio, lograram alcançar pacificamente uma preeminência que perseguiram nos anos 30, por meios militares, com resultados catastróficos. É a bem-sucedida ação neste mundo que explica, igualmente, a relevância que recentemente adquiriram, no processo de transferência internacional de recursos, os Nic's asiáticos, como a Coréia do Sul, Cingapura e Taiwan. Da mesma maneira, foi a capacidade de atuar neste mundo que nos últimos vinte anos transformou o Brasil de um exportador de produtos básicos num exportador de produtos industrializados.

Esta multipolaridade do mercado, mundial, que trouxe a emergência de novos centros de poder econômico, como o Mercado Comum Europeu e o Japão, não significa que estes espaços abertos para a reelaboração das identidades internacionais dos países e de suas modalidades de inserção no mundo não estejam sujeitos às vicissitudes das dicotomias dureza x fragilidade, revolucionário x moderado.

Na perspectiva latino-americana, a dicotomía dureza/fragilidade pode ser exemplificada pelo tema da dívida externa, um item de primeira importância na agenda internacional dos países da região. Com efeito, o maciço ingresso de recursos financeiros na América Latina nos anos 70, provenientes dos eurodólares e dos petrodólares e da transnacionalização dos sistemas financeiros, a taxas de juros que regra geral estavam abaixo das taxas de expansão das exportações dos países tomadores destes recursos, converteu-se nos anos 80 numa exportação líquida de capitais. Esta mudança fundamental das circunstâncias, independentemente das especificidades econômicas dos países devedores e do uso que fizeram dos recursos, tem como causa genérica os descompassos entre a política monetária e.a política fiscal dos EUA. É por conta deste descompasso que os EUA unilateralmente elevaram as, taxas de juros, provocando, com o acréscimo em cascata dos .encargos da dívida, um penoso processo de ajustamento das economias dos países latino-americanos, que viram o seu desenvolvimento comprometido e os seus problemas sociais agravados.

Na raiz deste problema está a fragilidade tanto do dólar como moeda internacional quanto do crescimento da importância, nos anos 80, da economia simbólica, que vem se afastando cada vez mais, como observou Peter Drucker, da economia real das transações de bens e serviços, e tornando os investimentos de capital - e não o comércio - a força impulsionadora da economia mundial. A fragilidade desta situação, cujo equilíbrio precário vem sendo mantido por ajustes ad hoc das políticas macroeconômicas dos países desenvolvidos de mercado, não elimina a sua dureza para os países latino-americanos, que vêm absorvendo os seus efeitos, com enormes custos. Daí a paradoxal fragilidade de uma situação, causada pela diminuição da hegemonia norte-americana no mercado mundial, e ao mesmo tempo a sua dureza, que vem transferindo os ônus dos desequilíbrios para vários países, entre os quais os nossos.

A dicotomía revolucionário/moderado também é aplicável ao sistema internacional contemporâneo, quando se pensa no papel que nele desempenham os pequenos e médios Estados e também os atores transnacionais - de empresas a movimentos terroristas - que é novo quando historicamente contraposto às modalidades da ordem mundial anteriores à segunda Grande Guerra.

Assim, não há dúvida de que existe um ingrediente revolucionário e inovador na constituição e na ação diplomática do Terceiro Mundo.

De fato, este, apesar da heterogeneidade e da debilidade dos países que o compõem, e cujo traço comum é dado pelas diversas formas de subdesenvolvimento, foi capaz, com a criação do Grupo dos 77, de institucionalizar no plano internacional a agenda Norte/Sul e também de levar adiante, no texto da Convenção da 3ª Conferência sobre o Direito do Mar, a proposta de de uma gestão comum dos Fundos Oceânicos, em beneficio da humanidade.

Entretanto, estas inovações contrastam com a indiscutível moderação do ritmo da mudança, uma vez que o sistema Mk internacional contemporâneo tem se revelado capaz de assegurar continuidade e persistência, em meio às transformações. Em verdade, tem sido suficientemente flexível para absorver, sem cortes revolucionários, (a) a multiplicação dos Estados, derivada do processo de descolonização; (b) a proliferação de protagonistas não-estatais, provenientes da intensidade da ação transnacional de empresas, partidos, movimentos sociais; (c) a miríade de alianças e conflitos entre os atores internacionais e (d) as alterações mais ou menos estáveis da estratificação internacional - dos exportadores de petróleo nos anos 70 aos Nic's asiáticos dos anos 80.

A AMÉRICA LATINA E AS MUDANÇAS DO SISTEMA INTERNACIONAL: NECESSIDADES INTERNAS E DILEMAS EXTERNOS

Dadas estas características do sistema internacional, que por meio das dicotomias dureza/fragilidade, revolucionário/moderado iluminam as fronteiras do espaço aberto pela disjunção, entre ordem e poder, quais são, nos anos 80,5 na ótica latino-americana, as possibilidades de compatibilização de necessidades internas com alternativas externas? Em outras palavras, qual é o espaço para a conformação do destino da região, particularmente no campo econômico, tendo em vista que os limites impostos pelas relações Leste/Oeste no campo estratégico-militar aparentemente só deixam. margem para o reformismo das identidades internacionais dos países que o compõem?

A primeira ponderação a ser feita é que, dadas as transformações ocorridas no mundo do comércio, a região como um todo, da década de 50 para a década de 80, perdeu posição no campo econômico. A renda média per capita da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru, Uruguai e Venezuela é hoje um terço ou menos inferior à do Japão, e dos países europeus de renda-média, metade,da Europa mediterrânea, e inferior às dos Nic's asiáticos e da Turquia. Estas relações contrastam desfavoravelmente com as existentes há uma geração, indicando que a América Latina ficou atrás do desenvolvimento da Europa e do Leste asiático, como mostram os dados coletados em livro recente por Bela Balassa e associados, de cujas propostas pode-se discordar, mas não podem ignorar-se os fatos por eles apresentados.

Também no campo político verifica-se uma redução da importância da América Latina no plano diplomático mundial, quando se contrasta os anos 50 e 60 com os anos 80. Assim, por exemplo, se é certo que o multilateralismo global tem hoje menor importância, por força da sua crise - uma conseqüência da disjunção entre ordem e poder e do jogo das dicotomias - no seu contexto, a América Latina como um bloco regional perdeu, o significado que tinha no segundo após-guerra. Para isso contribuiu não apenas a existência de grandes focos de tensão internacional, em outras regiões - por exemplo o Oriente Médio - como também o surgimento dos novos países da África e da Ásia, com o processo de descolonização, e o próprio impacto deste processo na região.

Despontaram para a vida independente novos Estados, com outras línguas além do espanhol e do português e outros vínculos com a África e a Europa. Daí o cuidado que deve cercar a definição da identidade da região no plano multilateral. Um sintoma desse problema de identidade é à crise da OEA, que tem, é certo, outras causas, mas que tendo sido um grande organismo multilateral, no segundo após-guerra, com uma significativa importância na diplomacia multilateral global, vem perdendo centralidade, a simbolizar a redução da relevância econômica e política da América Latina para o mundo.

Na análise do porquê destas transformações, um aspecto importante a ser sublinhado é a dinâmica recente do progresso técnico-científico, que não depende diretamente do poder político dos Estados, mas é responsável por profundas inovações, que tem impactado a posição da América Latina no mundo. Com efeito, a inovação tecnológica está desgastando as clássicas vantagens comparativas históricas que deram, bem ou mal, à região, desde a época da expansão européia no século XVI, um papel econômico no mundo.

O progresso na agricultura (fertilizantes, defensivos etc), e a biotecnologia, por exemplo, diminuíram a importância estratégica da exportação e importação de produtos primários, permitindo a um número crescente de países - inclusive subdesenvolvidos - a auto-suficiência alimentar. Se a isto se agregarem as práticas protecionistas adotadas pelos países desenvolvidos na defesa de seus produtos agropecuários, não é difícil entender porque países como a Argentina e o Uruguai, fornecedores tradicionais de carne e trigo para o mercado mundial, se viram e estão se vendo afetados por esta transformação.

A diminuição da importância, para o mundo, dos produtos primários, alcança igualmente as matérias-primas, pois a inovação tecnológica - estimulada em parte pela alta dos preços do petróleo nos anos 70 - vem reduzindo seu peso econômico, seja no processo de manufatura - é o caso da energia, inclusive petróleo - seja na quantidade de matérias empregadas, pois os produtos são mais leves, o plástico vem substituindo metais, as fibras naturais vêm sendo deslocadas pelas artificiais etc. Disso também derivam conseqüências para países da região. Por exemplo, para a Venezuela e o México, enquanto exportadores de petróleo, para a Bolívia, enquanto exportadora de estanho, para o Chile, enquanto exportador de cobre, para o Brasil, enquanto exportador de ferro e bauxita.

A mudança de hábitos e preferências que, como a inovação tecnológica, não depende diretamente do poder político, vem igualmente impactando o consumo mundial de certos produtos primários da América Latina. Refiro-me à preocupação com saúde, que levou à redução do fumo; à preocupação com obesidade, que diminuiu o uso do açúcar; a novos hábitos alimentares que vêm amainando a vis atractiva do café como bebida. Refiro-me também aos efeitos da ampliação do consumo de tóxicos nos países desenvolvidos, que estimula a sua produção na América Latina, ensejando o narcotráfico, com todas as suas conseqüências, inclusive as da desestabilização do poder constituído em alguns dos Estados na região.

No setor secundário, a automação e a informática atenuaram a relevância do custo mais barato da mão-de-obra como fator de competitividade internacional. Daí as dificuldades de levar adiante o processo latino-americano - bem-sucedido nos países grandes da região até os anos 70 - de primeiro substituir as importações e depois de aprofundar a industrialização, expandir exportações, no contexto de uma produção que se transnacionaliza globalmente. A isto também cabe adicionar uma alteração da indústria manufatureira que num mercado mundial de complexidade e competitividade crescentes, vende produtos que incorporam um serviço de alto conteúdo tecnológico, como passo a exemplificar a partir da minha própria experiência pessoal no setor.

Hoje em dia não se vende um pistão simplesmente. Vende-se um projeto de pistão que seja apropriado para motores com novas especificações - de redução de peso, consumo de energia, controle de emissões etc. Isto significa que o produto final vendido, além da matéria-prima e mão-de-obra fabril e de investimentos em ativo fixo como equipamentos, incorpora um serviço tecnológico de alta densidade, que deles independe. Não se vende, também, uma caixa de papelão ondulado; vende-se um projeto para embalar um produto, sendo este projeto o serviço incorporado no produto final.

O progresso tecnológico e científico também alterou o setor terciário, pois nele têm uma predominância dinâmica novos tipos de informações e de conhecimento de ponta, que a região como um todo, pelo seu próprio subdesenvolvimento, tem dificuldades em gerar.

Estas facetas da inovação, que estão transformando significativamente a forma pela qual o campo econômico atua e dentro dele o mercado global - e que foram sumariadas num conhecido artigo de Peter Drucker e antes deste artigo apresentadas de maneira instigante por Aldo Ferrer, em livro que as encara na perspectiva latino-americana - vêm ocorrendo no contexto da já mencionada problemática da dívida externa, que nos anos 80 trouxe para a região a redução de renda e dos salários, a diminuição dos investimentos e a agudização dos problemas sociais, entre os quais o da pobreza absoluta.

Daí a gravidade da crise, e a razão pela qual, na ótica latino-americano, o mundo dos anos 80 apareça com uma forte carga de inospitabilidade. No jogo das dicotomias que atuam em virtude da cisão entre ordem e poder, percebe-se mais a fragilidade da região do que as suas possibilidades, ainda que estas existam. Sente-se a dureza do sistema internacional; experimenta-se a excessiva moderação das respostas diante da necessidade de um sopro inovador; presencia-se a formação de novos blocos econômicos, que podem, inclusive, apontar para um maior isolamento da América Latina.

Neste sentido, aliás, de formação de novos blocos, cabe sublinhar a crescente força de gravitação que a economia norte-americana vem exercendo em relação à mexicana, num processo que busca integrá-la num grande conjunto - o do hemisfério norte-americano, composto pelo Canadá e pelos EUA. É evidente que esta vis atractiva posta pelas leis do mercado e facilitada pela geografia, coloca para o México, enquanto país, significativos problemas de identidade, que adviriam de uma intensificação de sua integração econômica formal e informai com os EUA. Coloca, por outro lado, para o resto da América Latina, e particularmente para os países da América do Sul, os riscos de uma diminuição econômica e política de abrangência internacional da região.

Em síntese: o quadro latino-americano nesta década é realmente um quadro de crise de identidade e de estagnação operacional. Como apontou Hélio Jaguaribe, ocorreu uma efetiva deterioração da posição dos países latino-americanos no cenário internacional — uma deterioração que afetou á identidade, reduziu as margens da ação externa e a capacidade interna da região para modernizar-se e desenvolver-se.

A CRISE DA AMÉRICA LATINA: DO CONHECER PARA O PENSAR

Se este juízo é uma avaliação apropriada, quais são as conclusões que dele devemos extrair, para deliberações da política externa, para encerrar esta aula magna, retomando a pergunta colocada no início?

Sem dúvida, uma parte da resposta passa pela intensificação da concertação inter-latino-americana, em novos moldes, à maneira do acordo de Buenos Aires em 1986, que vem adensando as relações econômicas e políticas do Brasil e da Argentina e que incorpora em seu bojo o Uruguai. Entendimentos deste tipo, baseados em complementaridades e na idéia de equilíbrios dinâmicos, ajudam a minorar o isolamento internacional da região, superando restrições de mercados domésticos e de recursos econômicos e humanos. São inclusive na medida em que se generalizaram e ampliaram para sistemas mais abrangentes - como aqui sugeriu Hélio Jaguaribe - dando novo sopro de vida a vários dos sistemas multilaterais já existentes na região, uma réplica, no estágio em que se encontram os nossos países, a formação de grandes sistemas produtivos extra-zonais.

Nisso tudo, necessariamente se inclui o tema da participação do México no novo processo de concertação latino-americana. Com efeito, se o México tem, como observou igualmente Hélio Jaguaribe, limitações econômicas e políticas à sua ação, provenientes das relações de vizinhança com os EUA tais como estão hoje constituídas, tem também a preservar o valor de sua autonomia internacional e o da sua identidade em relação aos EUA. Por outro lado, os demais países da região, e muito particularmente os grandes parceiros sul-americanos do México, entre os quais está o Brasil, se não podem desconhecer as realidades que constrangem a ação operacional mexicana, não têm como deixar de considerar, enquanto item prioritário para a sua própria inserção no mundo, a manutenção da inteireza da América Latina como um contexto regional efetivamente integrado pelo México. Daí a existência de um terreno comum importante a ser explorado com objetividade.

Este encaminhamento, sucintamente esboçado, no entanto, por si só não basta, pois se mantém e busca aprofundar a identidade da região, não é operacionalmente suficiente, dado o peso das transformações mundiais. Em outras palavras, existe latente neste encaminhamento um hiato entre a legitimidade dos fins e a eficácia dos meios, como vou buscar sugerir teoricamente, valendo-me da dicotomía kantiana entre o pensar e o conhecer, tal como a aplica Jaspers na análise das relações internacionais, consoante um sugestivo estudo de Raymond Aron.

O conhecer edifica o sistema de conhecimento, que por meio da técnica transforma as sociedades e cria o meio no qual o homem contemporâneo vive. No campo das relações internacionais, o conhecer é um ingrediente básico, pois sem ele perde-se o senso de realidade e o realismo, que deve ser o ponto de partida de qualquer formulação de política externa. Entretanto, em matéria de política internacional, o realismo tende a ver no mundo a reiteração de certas constantes, sem se abrir para o que há de novo - e foi justamente o que há de novo em meio à continuidade que, em oposição a esta visão, procurei destacar na minha exposição. O senso de realidade do novo, por outro lado, na ótica latino-americana, nesta década, pelo que tem de inóspito, sublinha excessivamente o peso dos fatos e dos condicionamentos, e pode levar ao imobilismo.

Daí o papel do pensar, para o qual aponto, preliminarmente evocando o que diz Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: "Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima". O pensar indica o "para cima", pois abrange o saber "do para a frente e para trás" do conhecer, ao refletir sobre o global, buscando-lhe o significado. O que instiga o "para cima" do parar para pensar o significado das coisas e do mundo que nos cerca é uma situação-limite.

Acredito que estamos, na América Latina, numa situação-limite que desponta na imagem de um labirinto, pois como nos versos de Octavio Paz, estamos olhando para "puertas de entrada y salida y entrada de un corredor que va de ningunaparte a ningúnlado". Por isso precisamos encontrar a saída, do labirinto, parando para pensar, de maneira apropriada, o tema da nossa identidade como região e a de sua afirmação internacional, inserindo-nos no mundo de forma compatível, em cada uma de nossas sociedades, com o imperativo de ampliação da capacidade de conformar o nosso próprio destino.

Sei que isto não é fácil, pois como dizia Guimarães Rosa, e com ele concluo: "O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra".

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    Aula inaugural proferida por ocasião das atividades de instalação da Cátedra Guimarães Rosa na UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México, em 20/6/88.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1989
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