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A cooperação argentino-brasileira: significado e perspectivas

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O BRASIL

ARTIGOS

A cooperação argentino-brasileira: significado e perspectivas

Ricardo Antônio Silva Seitenfus

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

"A História não constitui-se em um museu estático e perene mas sim em um permanente questionamento do que foi para que possa servir de subsídio ao que deverá ser".

INTRODUÇÃO

A história das relações internacionais demonstram que existem somente três posturas possíveis no sistema internacional. A primeira é a da indiferença que predominou, na maioria dos casos em razão da ignorância, ao longo dos séculos. A época moderna faz surgir a segunda postura caracterizada pela vontade de domínio resultando o conflito. Muito recentemente - podemos situá-la no pós-segunda guerra mudial - e sem que a segunda postura fosse descartada, surge uma terceira via de relacionamento internacional que é a da cooperação. Esta transforma-se, na atualidade, como forma racional de desenvolvimento sócio-econômico. Essa opção congela como atitudes remotas de política externa posturas conflitivas ou de indiferença. O que observamos nas três últimas décadas é uma profunda reestruturação do sistema político e econômico internacional, com a formação dos grandes espaços. Reforçam-se as organizações supranacionais, sob os pressupostos básicos da contigüidade física e da identidade ideológica.

O pós-segunda guerra inicia-se com a organização dos países do leste europeu em torno da União Soviética, no chamado COMECON. A seguir verifica-se o processo de integração da Europa Ocidental, delineando-se o Mercado Comum Europeu. Também desenvolve-se o bloco cujo centro aglutinador é o Japão, envolvendo os países da Bacia do Pacífico. Mais recentemente, os Estados Unidos passam a buscar associações regionais com o Canadá e procurando ainda incorporar o México. Na América Latina as jovens e frágeis democracias latino-americanas colocaram na pauta das preocupações prioritárias dos países do continente os graves problemas sócio-econômicos decorrentes do desequilíbrio nas relações Norte-Sul. O desafio do desenvolvimento integrado, com maior autonomia, afirma-se como uma necessidade e promove a aproximação exatamente dos dois países protagonistas das desconfianças do passado. Brasil e Argentina iniciam, a partir de julho de 1986, uma nova etapa nas relações regionais, à qual pretende se associar o Uruguai. Essa busca de um novo caminho procura superar insucessos anteriores, como o da Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC) e dos resultados pouco convincentes da Associação Latino-americana de Integração (ALADI).

Até o presente a unidade geográfica junto às bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai tem contrastado com uma história de tensões e desconfianças entre os países vizinhos. A busca dos diferentes níveis de cooperação - comercial, financeiro, tecnológico, cultural - que consagra os acordos firmados entre Brasília e Buenos Aires a partir de julho de 1986, abre a perspectiva de uma efetiva integração na Bacia do Prata e significará, finalmente, a capacidade de sintonizar a realidade geográfica e a vontade dos povos ribeirinhos com a concreta ação de seus dirigentes.

Antes de analisarmos o alcance e os desafios suscitados pelos acordos de cooperação entre Brasília e Buenos Aires façamos rapidamente um balanço dos esforços multilaterais de entendimento no Novo Mundo para podermos melhor situar aqueles acordos no contexto das relações interamericanas.

UMA HISTÓRIA DE DESENCONTROS

O desenrolar do processo de independência política da América Latina no início do século passado leva as ex-colônias ibéricas a situações diametralmente opostas, que se encontram na base de todas as tentativas de cooperação experimentadas pela região. A divisão em duas dezenas de Estados enfraquece a América espanhola. A ex-colônia portuguesa, em contrapartida, conserva sua unidade territorial, desequilibrando, em razão de sua dimensão continental, as relações políticas regionais. O afastamento se acentua com a opção das ex-colônias espanholas pelo regime republicano e pela ratificação, no Brasil, do regime monárquico. Quando a estas condições históricas da independência latino-americana acrescentam-se considerações objetivas como, por exemplo, o espaço a ser gerido e a insuficiência de meios materiais e humanos para ocupá-lo, percebemos as enormes dificuldades encontradas pela América Latina para apresentar-se unida perante as grandes questões internacionais e traçar uma política comum de desenvolvimento.

As tentativas de organização continental realizadas desde a independência até nossos dias devem ser inseridas em seu contexto histórico específico. Podemos, neste sentido, visualizar três fases da integração americana. A primeira vai do Congresso do Panamá (1826) até 1889 (Primeira Conferência Internacional das Américas). A segunda fase irá até a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948, e a terceira, desta data até os nossos dias.

A Fase do Voluntarismo (1826-1889).

O perigo de uma reconquista por parte da Espanha de sua ex-colônia peruana e as idéias integracionistas defendidas por Simon Bolívar, a fim de resguardar a jovem independência da América Latina, fazem com que vários países do continente reúnam-se no Panamá em meados de 1826. O primeiro Congresso dos Estados Americanos conta com a participação da Colômbia (atualmente os territórios da Colômbia, Equador, Panamá e Venezuela), da América Central (Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador), dos Estados Unidos Mexicanos e do Peru, tendo como observadores a Grã-Bretanha e a Holanda. Países como a Argentina, Bolívia, Brasil e Estados Unidos da América não estavam presentes.

Nesta ocasião é assinado o Tratado de Panamá, prevendo o estabelecimento de uma "Confederação de Estados", baseada em princípios de unânime aceitação e de uma assembléia geral, com igualdade jurídica de representação para todos os seus membros. A manutenção da paz e a solução negociada dos conflitos constituem a pedra de toque do edifício panamenho.

Sem ratificações o Tratado de Panamá confronta-se com a realidade política do Novo Mundo e desvanece-se o sonho integracionista de Simon Bolívar. Paradoxalmente não foram as ex-metrópoles ibéricas os principais adversários do movimento de concertação mas os próprios latino-americanos. Conflitos continentais surgem seguidos por guerras civis, que provocam a desintegração de vários Estados do subcontinente. A Grande Colômbia é dividida em quatro Estados independentes, a América Central também se fragmentará enquanto que vários conflitos territoriais - Guerra do Paraguai, México-EUA - demonstram que as forças centrífugas são mais capazes e realistas que as forças centrípetas.

Não obstante, os Estados latino-americanos voltam a se reunir periodicamente a fim de discutir problemas comuns. Várias conferências são realizadas durante o século XIX. A primeira é o Congresso de Lima (1847-48) com a participação da Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Dois tratados são assinados. O primeiro estabelecendo a criação de uma "Confederação de Estados", nunca materializado, e o segundo, definindo regras para o comércio e a navegação.

Em 1856, reúne-se o Segundo Congresso em Santiago do Chile, com a participação do país anfitrião, do Equador e do Peru. Apesar da pouca representatividade do evento assina-se, pela primeira vez no Novo Mundo, um Tratado de Aliança Militar e de Assistência Recíproca. Este acordo retoma as idéias de solidariedade continental de Bolívar. Durante o mesmo ano Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Honduras, México, Peru, El Salvador, Venezuela e EUA, reunidos em Washington, concluem um acordo similar ao assinado em Santiago. Apesar da ausência de ratificação destes dois tratados, o que impediu a sua vigência, as reuniões de 1856 constituem um passo importante na defesa dos princípios integracionistas.

O Terceiro Congresso Pan-Americano, em Lima (1864-65), reunindo representantes da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Venezuela e Peru, debate o perigo da contínua desintegração territorial que ameaça a América Latina. Um Pacto de União através de uma aliança defensiva é novamente assinado mas, à semelhança de situações anteriores, a ausência de ratificação compromete a aplicação das resoluções.

Após este período, o movimento integracionista americano promoverá unicamente reuniões de caráter jurídico pois as rivalidades internas, por razões políticas, econômicas e territoriais, impossibilitam qualquer tentativa integracionista mais profunda.

Cabe ressaltar a ausência do Brasil de qualquer tentativa integracionista, neste período. Isolado cultural e politicamente, a monarquia brasileira suspeita que a agressividade e a turbulência das jovens repúblicas hispano-americanas venham colocar em perigo a sua estabilidade.

Os Desafios das Guerras Mundiais (1889-1948)

No final do século passado os EUA tomam a iniciativa de convocar uma reunião conjunta dos países da América a fim de discutir os métodos de prevenção de conflitos no continente. A partir deste momento, todo o processo de aproximação política coletiva nas Américas será condicionado pela participação dos EUA. Este Congresso reúne-se em Washington, de outubro de 1889 a abril de 1890. Dezessete Repúblicas americanas estão representadas. Nota-se somente a ausência da República Dominicana, bem como de Cuba e do Panamá ainda não independentes. Nesta oportunidade é criada a "União Internacional das Repúblicas Americanas", um centro de coleta e difusão de informações sobre oportunidades comerciais.

O Brasil participa pela primeira vez de uma reunião visando à concertação americana. Cabe enfatizar que foram durante os trabalhos desta conferência que o regime monárquico é abolido no Brasil e instaura-se a forma republicana de governo. Extirpa-se assim "a planta exótica" do Novo Mundo que é, a partir deste momento, totalmente republicano.

Várias outras conferências panamericanas seguir-se-ão. No México (1901-02), no Rio de Janeiro (1906), em Buenos Aires (1910), em Santiago do Chile (1923), em Havana (1928), em Montevidéu (1933), novamente em Buenos Aires (1936) e em Lima (1938).

Neste período, busca-se estabelecer as regras de igualdade jurídica entre os Estados membros. O grande desequilíbrio real, a extraordinária diferença política, militar e econômica dos membros do movimento fazem nascer junto aos pequenos e médios Estados latino-americanos o receio de uma influência nefasta dos Estados Unidos da América. Estes, durante várias décadas reagiram negativamente à formalização de regras restritivas de relacionamento mas acabaram por aceitar, quando da Conferência de Montevidéu de 1933, o reconhecimento da igualdade jurídica entre os Estados e do princípio de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados membros.

A crise internacional dos anos 1930, com os riscos de uma intervenção extracontinental nos assuntos americanos, leva à realização de duas reuniões. A primeira (1936), em Buenos Aires, visando à "consolidação da paz", é um fracasso. No entanto a segunda (1938), em Lima, resulta na assinatura de uma Declaração Conjunta, que consagra o espírito da Doutrina de Monroe, ou seja, os assuntos americanos e qualquer ingerência extracontinental nos assuntos internos de um dos Estados membros será considerada como ingerência nos assuntos internos de todos os Estados do continente. Nasce, neste momento, o princípio de segurança coletiva continental que permitirá aos Estados Unidos da América manter - com exceção da Argentina - o Novo Mundo unido em torno dos Aliados durante a segunda guerra mundial.

Quatro conferências extraordinárias serão convocadas durante as hostilidades objetivando uma tomada de posição conjunta em face dos acontecimentos militares. Estas reuniões serão realizadas no Panamá (1939), em Havana (1940), no Rio de Janeiro (1942) e no México (1945). Apesar da sistemática oposição da Argentina, os Estados Unidos da América assumem de vez a liderança do movimento pan-americano, confirmada na reunião de 1945, tratando dos problemas da Paz e da Guerra no continente. Inicia-se neste momento um cuidadoso estudo para tornar o movimento pan-americano permanente, com um Secretariado e instalações próprias e com uma Constituição definindo as regras de cooperação.

Sem esperar as decisões jurídico-políticas de criação da organização pan-americana, os Estados da região assinam no Rio de Janeiro, em 1947, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que representa de fato uma aliança militar defensiva contra eventuais ataques extracontinentais. Evidentemente, os Estados Unidos da América interpretam o novo Tratado como sendo a expressão formal da necessidade de proteção que os países latino-americanos reclamam perante os perigos do pós-segunda guerra.

O Panamericanismo Econômico (1948-1986)

Contrariamente aos períodos precedentes, caracterizados pelas exclusivas preocupações político-militares, na atual fase surgem varias tentativas de concertação econômica. Esta fase, além do mais, inicia-se com um fenômeno político importante que se constitui na fundação da Organização dos Estados Americanos (1948), uma entidade complexa, permanente e moderna, nos moldes das organizações internacionais, mas que rapidamente será manipulada pelos países membros mais poderosos, sobretudo pelos Estados Unidos da América.

Assim, a OEA será utilizada durante a Guerra Fria por Washington para a realização de intervenções nos assuntos internos dos Estados membros. Os casos da Guatemala (1954), de Cuba (1959) e da República Dominicana (1965) são bastante elucidativos deste comportamento. É necessário mencionar a ausência do Canadá na OEA, o que demonstra que esta instituição não cobre o universo americano, servindo antes de mais nada para definir as relações entre os Estados Unidos da América e os países latino-americanos.

Paralelamente à existência de uma organização de caráter político (OEA) e de uma aliança militar (TIAR), organizam-se iniciativas de cooperação econômica. Deixando de lado o programa conhecido pelo nome de "Aliança para o Progresso", por considerá-lo uma manifestação exclusiva de política externa dos Estados Unidos da América, mencionemos a existência de três tentativas de integração econômica na América Latina: o Mercado Comum Centro-Americano, o Pacto Andino e a ALALC, substituída pela ALADI e pelo SELA (Sistema Econômico Latino-americano).

Sem dúvida, é a experiência do Mercado Comum Centro-americano, realizado durante os anos 1960-70, que demonstra o maior vigor e as mais significativas realizações. Este Mercado Comum reúne os pequenos Estados da América Central que conjugam esforços com vistas a uma modernização econômica e particularmente um início de industrialização. Mercados consumidores restritos, matérias-primas escassas e inexistência de um parque fabril caracterizam as economias destes países. É possível não somente intensificar o comércio regional como também distribuir a própria produção através de complexos industriais complementares. Nesse sentido, a experiência centro-americana vai mais longe do que a do Mercado Comum Europeu. Contudo, perturbações políticas internas em vários Estados da região fazem com que progressivamente os aliados deste empreendimento se transformem em adversários irredutíveis. A experiência de integração econômica não consegue sobressair-se à realidade política e a situação atual é de completo abandono do projeto integracionista.

A segunda experiência interessante realizada na América-Latina é o Pacto Andino. Reunindo Estados localizados nos Andes (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru), o Pacto Andino é uma organização intermediária entre o Mercado Comum e a Zona de Livre Comércio. O intercâmbio tecnológico e o comércio recíproco são intensificados, definidas regulamentações de transporte e de armazenamento - a Bolívia, sem saída oceânica, consegue facilidades de acesso aos portos do Pacífico - enfim, uma série de realizações que são interrompidas, tal como aconteceu na América Central, por razões políticas. Neste caso é o golpe militar contra o regime de Allende no Chile e a tomada do poder pelos militares que interrompem o processo integracionista andino. :

Finalmente, a ALALC percorre um outro itinerário com características distintas. Reunindo praticamente a totalidade dos países latino-americanos, a ALALC não objetiva a formação de um mercado comum na América Latina mas unicamente a redução das tarifas alfandegárias a fim de aumentar o comércio regional. A metodologia empregada é a da negociação por lista de produtos com um calendário pré-estabelecido obrigando os Estados membros a concessões tarifárias recíprocas. Apesar de alguns resultados positivos, a experiência da ALALC frustra as expectativas pois não consegue modificar substancialmente os fluxos comerciais latino-americanos. Substituída pela ALADI a organização não altera sua metodologia de trabalho e como sua antecessora não redireciona o intercâmbio comercial.

A experiência de cooperação multilateral da América Latina no decorrer do século e meio de história independente apresenta algumas características limitadoras de uma autêntica e profunda "entente" regional. A primeira delas é a excessiva verbalização em torno de políticas que deveriam ser objetivas e concretas. Neste caso as frases de efeito e os discursos escondem uma incapacidade de fazer com que o verbo se transforme em ação. Em segundo lugar, presenciamos a difícil definição coletiva do relacionamento que a América Latina deverá estabelecer com os Estados Unidos da América. Estes, desde o final do século passado, lideram o movimento panamericano interpretando um papel que o jornal Le Temps define como sendo de um bichano que toca música em um baile enquanto os camundongos dançam. Por outro lado, a hipótese de uma exclusão completa de Washington do concerto latino-americano, tal como aparece em certas propostas após o conflito das Malvinas, parece olvidar o peso econômico e militar que os Estados Unidos da América exercem tradicionalmente ao sul do Rio Grande. Finalmente a América Latina que deu passos pioneiros no campo da diplomacia e do direito internacional - por exemplo o Pacto Gondra e o Grupo ABC - deve demonstrar a mesma ciência no campo das relações econômicas internacionais. Este desafio impostergável os dois maiores países da América do Sul tentam superá-lo desde 1986. Como veremos algo já foi concretizado mas a tarefa é árdua e exige condições que talvez, tanto Argentina quanto o Brasil, não estão aptos a oferecer.

OS ACORDOS ARGENTINO-BRASILEIROS

Em julho de 1986, quando o Presidente Sarney visita Buenos Aires, são assinados doze protocolos de cooperação. Após o último encontro presidencial de novembro de 1988, estes protocolos já chegam a vinte e três mais uma série de anexos. Pela primeira vez na América Latina dois países importantes conseguem estabelecer objetivos comuns e mecanismos operacionais tornando realidade as velhas aspirações de concertação regional. No entanto, muitas dúvidas e zonas de sombra permanecem em torno deste processo.

Características

A assinatura destes acordos torna-se possível em razão da evolução política interna que conhecem os dois países nestes últimos quatro anos. Com efeito, e esta é uma de suas principais características, os acordos respondem a uma vontade política dos dois governos. O regime civil instalado em recente data nos dois países, após um longo período de militarismo, ressente-se da necessidade de fortalecer-se no âmbito internacional. Ao mesmo tempo, a tentativa de superação das rivalidades históricas entre os dois países faz com que a iniciativa tenha um significado especial, uma vez que se trata de uma ação do poder civil e democrático, contrariando a visão militarista predominante até então.

Independentemente dos fatores políticos que motivam a conclusão dos Protocolos, devemos reconhecer que as decisões tomadas possuem um caráter de praticidade pouco comum nos processos integracionistas latino-americanos. A idéia central sobre a qual repousa o acordo é a de buscar conjuntamente um crescimento econômico dos dois países - a expressão "crescer juntos" é consagrada nos Protocolos.

Uma outra razão pouco enfatizada até o presente é a busca pelos dois países de uma modernização econômica. O processo de integração representa uma abertura maior das economias, com um aumento de competição nos dois mercados e por via de conseqüência uma rápida atualização tecnológica e uma maior eficiência. Isto provocaria a abolição de redutos privilegiados que se mantêm graças à concessão de subsídios públicos.

Os princípios norteadores do processo integracionista estão definidos na ata para a integração firmada em 30 de julho de 1986 em Buenos Aires, Eis o seu teor:

"O Programa será gradual, em fases anuais de definição, negociação, execução e avaliação; o Programa será flexível, de forma a se poder ajustar seu alcance, seu ritmo e seus objetivos;

O Programa incluirá, em cada fase, um conjunto reduzido de projetos integrados em todos os seus aspectos, prevendo-se inclusive a harmonização simétrica de políticas para assegurar o êxito dos projetos e a credibilidade do Programa;

O Programa será equilibrado, no sentido de que não deve induzir uma especialização das economias em setores específicos; de que deve estimular a integração intra-setorial; de que deve buscar um equilíbrio progressivo, quantitativo e qualitativo, do intercâmbio por grandes setores e por segmentos através da expansão do comércio;

O Programa propiciará a modernização tecnológica e maior eficiência na alocação de recursos nas duas economias, através de tratamentos preferenciais ante terceiros mercados, e a harmonização progressiva de políticas econômicas com o objetivo final de elevar o nível de renda e de vida das populações dos dois países;

A execução do Programa contará com a ativa participação do empresariado, assegurando-se, assim, sua eficaz instrumentalização no contexto dos estímulos criados pelos dois Governos".

Em cinco encontros presidenciais (de julho de 1986 a novembro de 1988) vinte e três Protocolos e mais de quarenta Atas e Anexos foram assinados. Os setores eleitos pelo processo de cooperação são os seguintes: bens de capital (1), venda de trigo argentino (2), complementação do abastecimento alimentar (3), expansão do comércio (4), criação de empresas binacionais (5), cooperação financeira (6), fundo de investimentos (7), energia (8), pesquisa em biotecnologia (9), Centro de Estudos econômicos (10), informação e assistência em caso de acidentes nucleares (11), cooperação aeronáutica (12), cooperação siderúrgica (13), transporte terrestre (14), transporte marítimo (15), comunicações (16), cooperação nuclear (17), cooperação cultural (18), administração pública (19), moeda comum (20), indústria automobilística (21), produtos alimentícios industrializados (22), regional fronteiriço (23).

O amplo leque de setores nacionais envolvidos nos acordos impede uma análise detalhada de cada um dos protocolos, mesmo porque um certo número de decisões conveniadas não receberam todavia um tratamento operacional permanecendo ainda no campo dos projetos. Entretanto alguns protocolos já implementados e operacionais merecem algumas observações. Em primeiro lugar, devemos salientar que praticamente a metade dos acordos - doze - são exclusivamente econômicos. Entre estes, os comerciais ocupam um lugar destacado. Produtos tradicionais da pauta de exportações argentinas para o Brasil no setor alimentício merecem destaque nos protocolos. O trigo, inclusive, é objeto de um protocolo específico onde o Brasil compromete-se a adquirir e a Argentina a vender quantidades importantes visando ao desvio do comércio brasileiro deste produto. Os protocolos 3 e 22 estabelecem igualmente, uma ampla pauta de produtos alimentícios - industrializados ou não - que poderão circular sem gravames alfandegários entre os dois países. No entanto, para os produtos mais sensíveis, tal como o vinho e derivados, lácteos, frutas de clima temperado, foram introduzidas quotas anuais a fim de não prejudicar a produção nacional.

O setor de bens de capital é considerado pelos economistas dos dois países o mais importante no campo comercial, pois ele permite uma complementaridade industrial das economias argentina e brasileira. Uma "lista comum" de bens de capital entrou em aplicação em janeiro de 1987 compreendendo mais de 150 itens e posições do "universo" de bens de capital. A capacidade ociosa da indústria brasileira deste setor ocasionará, provavelmente, uma grande oferta à Argentina. No entanto, está previsto que não poderá haver desequilíbrio comercial por longo período e para tanto todo superávit comercial deverá ser compensado pelo Banco Central do país superavitário ou pelo Fundo de Investimentos previsto no protocolo 7.

Ainda no setor econômico deve-se ressaltar a possibilidade de criação de empresas binacionais e a assimilação destas a empresas nacionais quando de concorrências públicas. Finalmente a criação de um Centro de Estudos Econômicos visando encorajar estudos acadêmicos sobre temas integracionistas. De fato, este Centro sem instalações físicas e sem pessoal permanente restringe-se à concessão de auxílio financeiro para pesquisas e estágios.

Um segundo grupo de acordos trata da cooperação em Ciência e Tecnologia, além de certos aspectos comerciais. Um centro de pesquisa em biotecnologia já instalado no Paraná e as perspectivas de cooperação nuclear com as visitas recíprocas dos Chefes de Estado aos laboratorios nucleares dos dois países fornece, além da inquestionável importancia política, urna possibilidade de conjugação de esforços nas tecnologias de ponta. Igualmente os protocolos prevendo a cooperação aeronáutica e siderúrgica possibilitam o intercambio tecnológico e o empreendimento conjunto em particular vis-à-vis terceiros países.

Um dos elementos cerceadores da aproximação argentino-brasileira provém da incompatibilidade ou da inexistência de regras sobre comunicações supranacionais. Os protocolos sobre transportes terrestre (14), marítimo (15) e o de comunicações (16) objetivam regulamentar esta importante questão. Paralelamente o protocolo 19 prevê, além de um intercâmbio de experiências em administração pública, a compatibilização das legislações internas.

Além de um acordo cultural objetivando divulgar as respectivas culturas nacionais foi firmado em novembro de 1988 em Buenos Aires o Protocolo Regional Fronteiriço (23) proposto pelos Estados do Sul do Brasil e do Norte-Nordeste argentino, prevendo a criação, inicialmente, de comitês de fronteira.

O processo de cooperação entre os dois países prevê a adesão de outros países latino-americanos em algum momento. Por sinal, o Uruguai já manifestou formalmente interesse em analisar detalhadamente cada protocolo para incorporar-se à concertação platina.

Realizações

Com menos de três anos torna-se difícil uma avaliação do caminho percorrido pela cooperação argentino-brasileira. No entanto, é possível ressaltar alguns pontos positivos que demonstram a seriedade das intenções dos dois governos.

A variedade dos projetos propostos não tem provocado a dispersão dos esforços. Claro está que certas idéias, como a criação de uma moeda escritural única, encontra dificuldades técnicas por ora insuperáveis. No entanto, os protocolos essenciais para o processo, tal como os de bens de capital, indústria alimentícia e comunicações são negociados cautelosamente mas com grande firmeza de princípios. Listas comuns de produtos sem gravames alfandegários foram estabelecidas, sobretudo no setor de bens de capital, provocando o surgimento de oportunidades comerciais inovadoras. O difícil protocolo sobre indústria alimentícia, que pode afetar setores da produção brasileira, é conduzido a bom termo com a introdução dos princípios de quota e de limitações geográficas e temporais.

Analisando a balança comercial entre os dois países torna-se problemático chegar a uma conclusão definitiva sobre a influência dos acordos no comércio bilateral. Certamente, com relação ao ano de 1986 onde o Brasil apresenta um déficit de US$ 55 milhões, o ano de 1987, com a vigência do acordo, apresenta um superávit de US$ 251 milhões que poderia ser creditado ao acordo. Entretanto uma análise com mais recuo do comércio bilateral - ver quadro I - mostra que tradicionalmente o Brasil tem uma posição superavitária com a Argentina. A dificuldade maior é da permanência deste superávit em patamares elevados como indicam os resultados da balança comercial de 1988.

A cooperação científica e tecnológica surge promissora. Além do Centro de Biotecnologia em funcionamento, o intercâmbio entre cientistas dos dois países nunca foi tão intenso. O projeto de construção aeronáutica oferece um novo campo de cooperação implicando no processo setores militares, o que eliminaria de vez eventuais prevenções existentes nos dois países.

A regulamentação do protocolo de transporte terrestre ora em curso trará homogeneidade à legislação dos dois países. Controles fitossanitários nacionais serão aceitos pelo parceiro permitindo o transporte direto entre exportador e importador sem o transbordo e controle fronteiriço. Depósitos alfandegados serão instalados em várias importantes cidades, agilizando o intercâmbio.

O protocolo regional fronteiriço abre novas perspectivas de cooperação não previstas inicialmente. As experiências integracionistas demonstram a impossibilidade de acesso a um patamar superior de intercâmbio sem a eliminação dos entraves físicos. Urge, portanto, facilitar os transportes com a construção de um maior número de travessias sobre o Rio Uruguai. Atualmente o único ponto de passagem é o de Uruguaiana-Passo de los Libres, datando dos anos 1950. A decisão tomada em novembro de 1988 sobre a construção de mais uma ponte resultará no desenclave do Norte-Nordeste argentino bem como do Sul do Paraguai integrando-os aos acessos atlânticos.

As políticas macroeconômicas dos dois países têm sido elaboradas com uma certa concertação, inevitável em uma situação de cooperação, pois notamos a semelhança dos planos de congelamento/descongelamento e de luta contra a inflação. As experiências argentinas servem de inspiração ao Brasil e os dois países tentam, com um sucesso relativo, combater o inimigo comum à integração que consiste no descontrole de preços.

A dívida externa carregada por Buenos Aires e Brasília constitui um fardo de que os dois sistemas econômicos não conseguem desembaraçar-se. No entanto, alguns passos em direção de uma concertação multilateral latino-americana foram dados com o Grupo de Cartagena e mesmo não havendo tomadas de posição conjuntas argentino-brasileira sobre esta questão é de todo provável que as autoridades financeiras dos dois países troquem idéias, pois as suas posições sobre a negociação são bastante próximas.

A nova Constituição brasileira reflete de uma forma original o novo posicionamento do país no concerto americano quando no parágrafo único do quarto artigo dos Princípios Fundamentais estabelece que "a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações".

Desafios

Constitui-se em lugar-comum afirmar que todo processo de integração exige uma férrea vontade política, pois os problemas técnicos a serem solucionados são numerosos e difíceis. Tentarei fazer um inventário destas questões dúbias e ainda não solucionadas que se apresentam ou apresentar-se-ão como obstáculos ao processo e indicarei, na medida do possível, caminhos que deverão levar ao aprofundamento da cooperação.

Um dos desafios mais importantes do processo de cooperação argentino-brasileiro é fazer com que ele passe das preocupações de governo e se transforme em um objetivo nacional permanente. Para tanto, várias iniciativas deveriam ser tomadas, como por exemplo, a introdução nos currículos escolares da cadeira de história e civilização latino-americana, a realização de programas educativos de televisão, a constituição de uma agência de notícias regional etc.

O processo de negociação deveria ser o mais aberto possível convocando-se a iniciativa privada e os trabalhadores através de seus sindicatos representativos para que formassem um "Conselho de Desenvolvimento do Cone Sul" com os representantes oficiais dos dois países. Deve-se salientar que até o momento as duas chancelarias encarregadas das negociações não foram premiadas com um acréscimo de funcionários, o que sobrecarrega os dois Ministérios. Em breve esta situação improvisada não poderá perdurar visto que as negociações serão progressivamente mais técnicas, implicando uma preparação detalhada. Neste sentido, seria conveniente que as partes formalizassem a criação de uma Comissão Binacional Permanente, com um secretariado e um local de trabalho fixo, encarregada exclusivamente de levar adiante o processo integracionista.

Do ponto de vista do direito internacional, os ducumentos assinados pelos dois países necessitam cumprir o indispensável trâmite legal que os transformará em tratado internacional. Somente a partir deste momento, com a devida aprovação do Legislativo, o Programa e os Protocolos implicarão na responsabilidade internacional dos signatários e terão força de lei interna. O cumprimento desta .formalidade jurídica faria com que os acordos, uma vez ratificados, pudessem sobreviver aos governos que os idealizaram. Além do mais, a discussão do tema pelo Legislativo oportunizaria uma discussão nacional sobre os rumos e os ritmos do processo.

As maiores dificuldades de todo processo integracionista originam-se junto àqueles setores mais atrasados da economia. Brasil e Argentina, com políticas protecionistas, têm preservado certas atividades com baixa produtividade e escassa capacidade de competição. Este é um dos resultados perversos da política de substituição das importações quando a soberania nacional era diretamente proporcional à capacidade de auto-suficiência. Sem mencionarmos a questão da reserva de mercado para a informática, outros setores de produção nacional seriam atingidos brutalmente caso fossem abertas as fronteiras. Os Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina elaboraram uma lista de trinta produtos considerados sensíveis do protocolo de alimentos industrializados num universo de noventa produtos. Conseqüências econômicas, sociais e fiscais adviriam caso estes produtos tivessem livre entrada no Brasil. Industriais argentinos têm reiteradas vezes levantado objeções similares. Para contornar esta questão é necessário que um calendário de liberalização do comércio seja estabelecido previamente, inclusive com a participação dos produtores, e que um Fundo de Reconversão - industrial é agrícola - seja aprovado pelos dois governos. Paralelamente a este Fundo, é indispensável que uma cooperação tecnológica seja oferecida pelo setor mais competente na busca de uma complementaridade produtiva, a fim de maximizar as vantagens comparativas.

Uma posição comum no sistema internacional deve ser outro importante objetivo do Programa de Integração. Claro está que os dois países possuem interesses nem sempre convergentes no mercado internacional, como é o caso da carne bovina. No entanto, para certos produtos, como os grãos, é possível posições unitárias que reforcem o poder de negociação. A cooperação técnica internacional oferecida juntamente pode constituir-se em outro campo interessante aos dois países.

A indefinição de um órgão supranacional latino-americano que possa ser interlocutor dos grandes grupos de países, como a Comunidade Econômica Européia, continua sendo um empecilho maior à cooperação intercontinental. O Programa argentino-brasileiro deveria ter a ambição de representar o embrião deste órgão.

A cooperação Universitária nas mais diversas áreas constitui-se em um campo pouco explorado pelos dois países. Algumas experiências com universidades regionais foram realizadas, mas o seu desenvolvimento choca-se com a crise financeira das instituições não permitindo a alocação de recursos com vistas a empreendimentos conjuntos.

Com o acordo de 1979 sobre a utilização dos recursos hídricos comuns abre-se a perspectiva de uma cooperação energética entre os dois países. O protocolo de nº 8 sugere que este caminho será seguido e prevê, inclusive, que "as autoridades competentes de ambos os países concluam, antes de 31 de dezembro de 1986, os estudos técnicos relativos ao fornecimento, pela Argentina, de gás natural ao Brasil, com o objetivo de permitir a adoção das decisões políticas correspondentes". No entanto, apesar do interesse das economias regionais de ambos os países, o projeto de construção de um gasoduto ligando San Jerônimo a Porto Alegre, permitindo a diversificação da matriz energética do Rio Grande do Sul e descartando um provável colapso energético previsto para o inicio da próxima década, não foi levado adiante. A lição do gasoduto transiberiano - extraordinário redutor do potencial de conflitos na Europa - é irresponsavelmente desconsiderada. Infelizmente neste caso a fraqueza política regional alia-se ao espírito monopolista da Petrobrás inviabilizando, até o momento, um projeto de fundamental importância.

Finalmente é necessário uma maior participação dos setores militares no processo. Depositários maiores dos sentimentos de desconfiança recíproca, é indispensável que projetos comuns nesta área sejam multiplicados para que raízes profundas e laços irreversíveis embasem o novo relacionamento.

CONCLUSÃO

Substituindo um multilateralismo vago e retórico, Argentina e Brasil preferem, a partir de julho de 1986, um bilateralismo pragmático e eficiente tentando construir uma América Latina capaz de enfrentar os desafios do século XXI. Os dois gigantes sul-americanos detêm mais de 50% do PIB da região e a experiência integracionista ora em curso poderá multiplicar forças e abrir perspectivas inovadoras para o desenvolvimento econômico e social da região. No entanto, é necessário que os ventos da democracia continuem a soprar no Cone Sul, pois esta é a condição sine qua non do sucesso integracionista.

Muitas questões continuam em aberto neste processo: não regulamentação de vários protocolos, disposições vagas e contraditórias, número restrito de atores nas negociações, indefinição de prioridades e falta de um calendário para atingi-las, propostas concretas para a integração fronteiriça, atitude cautelosa dos círculos militares, permanência de uma crise econômica com graves repercussões sociais. A solução de outras, como vimos anteriormente, foi encaminhada. É fundamental que os próximos governos a serem eleitos no Brasil e Argentina em 1989 continuem esta ação, aprofundando-a. Este é o caminho que a história e a razão apontam como único nas relações bilaterais argentino-brasileiras. Evidentemente esta ação não é excludente e os dois países devem prosseguir em sua política externa individual para os problemas singulares que encontram no sistema internacional. Mas para as dificuldades comuns, tal como a dívida externa, uma concertação, que poderá chegar à posição comum no tratamento desta questão, deve ser uma hipótese de trabalho e não somente uma idéia acadêmica.

Um passado caracterizado pelos desencontros e decepções nas relações bilateriais e na construção de um panamericanismo em sintonia com o tempo e seus desafios, faz aparecer grandes expectativas regionais com a experiência argentino-brasileira. Caso esta venha a fracassar, fantasmas do passado reaparecerão e até a difícil reconstrução democrática no Cone Sul será colocada em. questão. É obrigação de todos aqueles comprometidos com o desenvolvimento econômico, a justiça social e a democracia, fazer com que o sonho secular da cooperação possa transformar-se finalmente em realidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 1989
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