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Max Weber e o projeto da modernidade

DEBATE

Max Weber e o projeto da modernidade*

Um debate com Dieter Henrich, Claus Offe e Wolfgang Schluchter**

O mundo moderno como destino e como problema. Nesta formulação resume-se a posição de Max Weber diante das tarefas teóricas e práticas que se impôs ao longo da vida e cujo timbre singulariza a sua obra. A modernidade como destino e como problema: vale dizer, como campo de forças no qual se confrontam escolhas fundadas no repertório de valores que ela mesma propõe. Nesse jogo entre o inexorável e o possível desenha-se uma concepção do mundo moderno que abdica, com plena consciência das implicações disso, da idéia de progresso. Para discutir o significado das concepções weberianas da modernidade no momento em que ela própria está em questão reuniram-se em Hamburgo, em 1987, especialistas de diferentes orientações, para uma série de debates organizados de maneira no mínimo insólita para as condições a que estamos acostumados no Brasil: as intervenções foram transmitidas para um amplo público por uma das emissoras da rede radiofônica pública alemã. É dessa série o debate que Lua Nova publica neste número. Sob a coordenação de um dos mais importantes especialistas em Weber da atualidade, Wolfgang Schluchter, confrontam-se as posições mais à esquerda defendidas por Claus Offe, de quem Lua Nova publicou importante entrevista ("Razão e Política", Lua Nova nº 19), e as posições mais "ortodoxas", representadas pelo filósofo Dieter Henrich, autor de um livro sobre a metodologia weberiana mas que se notabilizou como especialista no pensamento idealista alemão, particularmente Hegel. A posição de Schluchter, favorável a uma reabilitação das teses macro-históricas e macro-sociológicas de Weber no confronto com uma abordagem micro-sociológica da ação, transparecem ao longo de todo o debate e contribuem para o seu caráter instigante.

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SCHLUCHTER: O tema que nos foi proposto contém um termo que decerto não pode ser atribuído ao próprio Max Weber. Ele não falava do projeto da modernidade. Um projeto pressupõe um esboço e um portador deste esboço, um "sujeito". Para Weber o desenvolvimento do Ocidente foi a conseqüência de uma concatenação de circunstâncias. Além disso, ele nunca usava o conceito de modernidade sem qualificá-lo. Falava do capitalismo moderno, do racionalismo moderno, também da liberdade moderna, mas nunca da modernidade, quando não evitava totalmente o conceito "moderno" para falar, por exemplo, de nosso desenvolvimento social e econômico europeu-americano. Sendo assim, deveríamos esclarecer, já no início, como podemos estabelecer uma relação razoável entre Weber e o termo "projeto da modernidade". Para isso e para nossa discussão, proponho um esquema simples, de três passos:

No primeiro passo, deveríamos discutir o que era, para Weber, a especificidade das condições modernas e quais as suas causas. A referência poderia ser aqui: desenvolvimento ocidental específico. Ele falava explicitamente de desenvolvimento específico, e isto coloca um problema de identificação e imputação. Neste sentido, trata-se de Weber como historiador das condições modernas. No segundo passo, deveríamos propor-nos a questão de como ele via a estrutura dessas condições modernas e as tendências de desenvolvimento. A referencia poderia ser aqui: o paradoxo da racionalização. Trata-se, então, de Weber como diagnosticador das condições modernas e, além disso, de saber se sua posição relativamente a essas condições era apologética ou crítica ou uma combinação específica das duas. Podemos aguçar esta pergunta: terá sua posição sido anti-modernista, anti-iluminista? E, por fim, o terceiro passo: Como se deve reagir a estas condições modernas? Que podemos, que devemos fazer? Trata-se, portanto, da isenção de juízos valorativos, da teoria de valores e da ética. A referência poderia ser aqui: individualismo heróico, capacidade de suportar paradoxos. Trata-se, portanto, de Weber como terapeuta das condições modernas ou, mais precisamente, da questão: era ele simplesmente um tecnólogo social ou compreende sua obra a tentativa de uma filosofia prática? Deveríamos tentar fazer juntos esses três passos.

Iniciarei cada passo com uma breve citação da obra de Weber, para que possa ele mesmo tomar a palavra, e começo com uma passagem que se refere ao desenvolvimento ocidental específico, isto é, à pergunta: o que é o específico do Ocidente e como veio a desenvolver-se? Para isto, escolho uma passagem da chamada "História da Economia", um texto que tem sua origem num seminário de Weber em Munique, no final de sua vida, e que foi reconstituído, após sua morte, principalmente a partir de anotações de estudantes. Não é, portanto, um texto original de Weber, como freqüentemente se esquece, mas contém, de forma concisa, argumentos que podem ser encontrados também em outras obras suas. Esta passagem diz:

"Para expor mais uma vez, de forma resumida, a peculiaridade do capitalismo ocidental e suas causas, os traços decisivos são os seguintes. Somente ele criou uma organização racional do trabalho, que não existe em nenhum outro lugar. O comércio existiu por toda parte e cm todos os tempos e podemos encontrá-lo remontando à idade de pedra; do mesmo modo, encontramos nas épocas e culturas mais diversas o financiamento de guerras, o suprimento ao Estado, o arrendamento de impostos e de cargos, etc, mas não a organização racional do trabalho. Além disso, encontramos em todos os lugares: primitivamente uma economia interna rigorosamente vinculada de tal modo que não se pode falar de liberdade da conduta econômica entre os membros da mesma tribo ou do mesmo clã, associada à liberdade absoluta do comércio para fora; diferenciação entre a ética interna e a externa são diferenças sobre as quais está uma conduta absolutamente descompromissada em assuntos financeiros. Nada pode ser mais rigorosamente comprometido do que a economia de clã na China ou a economia de casta na índia, mas também não há nada tão inescrupuloso como o indiano no comércio exterior. Em contraste, a extinção das barreiras entre a economia interior e a exterior, entre a moral interna e a externa, a penetração do princípio comercial na economia interior e a organização do trabalho sobre esta base são a segunda característica do capitalismo ocidental. Por fim, a decomposição da vinculação econômica primitiva ocorreu também, por outras partes, como na Babilônia, mas em nenhum lugar encontramos a organização do trabalho em forma de empreendimentos, tal como a conhece o Ocidente.

Se esse desenvolvimento ocorreu apenas no Ocidente, a razão disso deve ser procurada em determinados traços de seu desenvolvimento cultural geral, traços que lhe são peculiares. Somente o Ocidente conhece um Estado no sentido moderno, com constituição estatuída, funcionários especializados e direitos de cidadão; as tentativas neste sentido, na Antigüidade e no Oriente, não chegaram a desenvolver-se plenamente. Somente no Ocidente encontramos um direito racional, criado por juristas e racionalmente interpretado e aplicado. Somente no Ocidente temos o conceito de cidadão (civis romanus, citoyen, bourgeois), porque também somente nele existem cidades no sentido específico da palavra. Além disso, somente o Ocidente possui uma ciência no sentido atual da palavra: a teologia, a filosofia e a reflexão sobre os problemas últimos da vida eram conhecidas também dos chineses e dos indianos, talvez até numa profundidade nunca alcançada pelos europeus; mas a ciência racional e, com esta, também a técnica racional permaneceram desconhecidas àquelas culturas. Por fim, a cultura ocidental distingue-se de todas as outras também pela existência de homens com uma ética racional na conduta da vida. Magia e religião encontram-se por toda parte. Mas um fundamento religioso da conduta da vida, que por sua coerência interna tinha que conduzir a um racionalismo específico, é também algo peculiar do Ocidente."

Temos aqui, portanto, a caracterização da peculiaridade do Ocidente e algumas condições históricas prévias que são consideradas importantes para o desenvolvimento desta. Pode parecer estranho ao ouvinte que Weber não mencione nesta passagem nem o Iluminismo nem a Revolução Francesa. Talvez devamos começar por aqui. Como se explica que Weber, em sua lista de causas do desenvolvimento da modernidade ocidental, não mencione estes dois acontecimentos importantes, tanto sob o aspecto da história do pensamento quanto sob o político? Talvez o sr. Offe quisesse falar primeiro.

OFFE: Eu não acho que possamos aqui aproximar-nos das explicações de casos particulares e dos estudos históricos comparativos de Max Weber, ambos numerosos e ramificados, pela via de uma apresentação sumária. Ao contrário, deveríamos concentrar-nos no procedimento metodológico de Max Weber, que responde com toda clareza desejável à pergunta que o senhor acaba de fazer. Para mim, o ponto de vista central do método de Weber consiste na idéia de que os processos de modernização (ou os processos de racionalização, ou o processo de "desencantamento"ou o processo de diferenciação - todos estes termos podem quase sempre ser substituídos um pelo outro) sejam o decorrer de um processo histórico não intencional, não iniciado por motivos revolucionários, não provocado voluntária e conscientemente, que consistem portanto numa concatenação de circunstâncias, um acontecer evolucionário e desprovido de sujeito, relativo a um complexo cultural de fatos vitais muito específico e temporal c localmente muito improvável do ponto de vista histórico, que então têm conseqüências globais. Em segundo lugar, parece-me ser muito importante a idéia de que este processo, não obstante, esteja caracterizado por uma "dialética", que basicamente consiste no fato de que aquilo que na sua gênese apoiou-se em determinado ethos, em determinado modelo cultural, continua a desenvolver-se independentemente da presença dessas condições éticas desencadeadoras, e no decorrer do tempo passa a dirigir-se contra as condições de sua gênese. O resultado não corresponde a uma intenção, mas o processo é indiretamente possibilitado por certa atitude moral, e esta desaparece no decorrer do processo.

SCHLUCHTER: Talvez possamos reservar este último aspecto para nosso segundo passo, já que se trata nele do diagnóstico das tendências de desenvolvimento, perguntando primeiro ao sr. Henrich: Como o senhor avalia este fato de que, em Weber, evidentemente não se encontram no centro da análise os acontecimentos tão importantes em outros teóricos da modernidade - estou pensando, por exemplo, em Hegel -, como o Iluminismo e a Revolução Francesa?

HENRICH: Uma razão disso, que resulta da orientação global da obra de Weber, é a circunstancia de que Weber data num tempo muito mais remoto os processos decisivos para o desenvolvimento das formas modernas de vida e da sociedade. O Iluminismo e a Revolução têm eles próprios condições previas que, em parte, datam de tempos muito remotos e em parte pertencem à Idade Média tardia e à época da Reforma, E a estas condições prévias atribui Weber influência e "significação cultural" muito mais fortes do que ao Iluminismo c à Revolução mesmos. Já pertencem a elas a religião de Jeová e a ordem jurídica romana e, mais tarde, particularmente o desenvolvimento capitalista, que, por sua vez, em parte possibilitou e em parte estabilizou a sistemática jurídica e a organização do Estado moderno.

Devemos ter bem claro que, para Weber, era evidente uma coisa que ainda eslava além do horizonte da filosofia clássica da história c sobre a qual hoje não há tanta segurança entre aqueles que se pronunciam sobre a situação de nosso tempo. E que, para ele, a partir da primeira metade do século XIX multiplicava-se a extensão temporal do desenvolvimento da cultura humana. A conseqüência disto é que acontecimentos que outrora constituíam uma época inteira da história universal ou que até eram separados por tais épocas, aproximavam-se muito entre si. Já as religiões superiores e de salvação como tais aparecem então corno desenvolvimento tardio na história da humanidade, podendo por isso também ser consideradas, de modo diferente, fatores determinantes no desenvolvimento peculiar do Ocidente em direção à modernidade. Além disso, as épocas históricas, para Weber, não podem ser explicadas por si mesmas nem por condições singulares. Assim, condições de origem e datação muito diversas podem entrar na explicação da constelação, cuja conseqüência foram as modernas ordenações da vida e a dinâmica que lhes é própria.

Já esta nova perspectiva histórica tinha que fazer com que Weber considerasse também o Iluminismo sob um aspecto diferente. F. uma fase no extenso processo de racionalização que se iniciou muito antes e que alcançou primeiro a organização das empresas, o sistema jurídico, os modos de viver e, com isso, a "ética" e a organização da administração. Para Weber, a nova forma da ciência ocupa um lugar neste processo. No Iluminismo, o conjunto do processo dirige-se contra as interpretações do mundo das religiões tradicionais. Com isso, conforme Weber, ele abre a possibilidade de uma orientação do mundo sem metafísica e sem teodicéia. Mas, ao mesmo tempo, o Iluminismo trouxe consigo uma profecia histórica profana que, por sua parte, levou a uma idealização da esfera jurídica no direito natural. Devido às dificuldades internas ou até contradições da concepção do direito natural, as promessas inerentes a este desenvolvimento não podiam ser cumpridas, evaporando-se assim, para Weber, o "ânimo róseo" do Iluminismo. Mesmo assim trouxe ele consigo, como também a Revolução Francesa, conseqüências importantes que Weber, se levado a manifestar-se, poderia designar como progresso. Já a sua própria concepção de ciência pode ser compreendida como continuação do Iluminismo, ainda que tivesse que se despedir da sua ideologia histórica cheia de esperanças.

A passagem que o senhor citou encontra-se na "História da Economia" de Weber. Por isso, não pode elucidar de modo extenso a opinião de Weber sobre o papel histórico do Iluminismo na modernização. F isto ainda menos porque Weber de fato considera irrelevantes as conseqüências econômicas do Iluminismo e da Revolução Francesa. Ao contrário, estes já têm sua origem no desenvolvimento das formas econômicas modernas. E este desenvolvimento continua depois em grande parte independentemente deles. Quase se poderia dizer que, neste ponto, mesmo comparado a Marx, Weber e o melhor teórico da força da determinação econômica na história. Só que, para ele, a "história" não é um processo homogêneo em si e orientado por um fim, do mesmo modo que para ele uma forma econômica tem outras causas históricas além daquelas que se dão com o desenvolvimento da produção material de bens. Que o Iluminismo somente possa ter continuidade renunciando a suas esperanças róseas deve-se ao fato de que ele, no primeiro passo, decompõe as antigas interpretações do mundo, forçando assim o homem, já que este recorre a tais interpretações tanto em virtude de sua razão quanto por suas esperanças vitais, a distanciar-se da realidade efetiva de sua vida. Mas este distanciamento também lhe possibilita reconhecer mais claramente essa realidade efetiva e eventualmente fazer dela o fundamento da maneira em que ele, por um lado, impõe seus interesses e, por outro, dá um sentido à sua vida.

SCHLUCHTER: Eu já disse no começo que a expressão "projeto da modernidade" não tem necessariamente uma afinidade eletiva ao pensamento de Weber. Mesmo assim, após o seu comentário aparece a questão: qual era a posição de Weber em relação a esse processo fatal? Será que Weber quer dizer que o Iluminismo e a Revolução Francesa sejam conseqüências não intencionadas de um longo processo e que, uma vez que aconteceram, se deva aceitá-los e tomar uma posição em relação a eles? Qual é a sua opinião, sr. Offe?

OFFE: Este é um aspecto que com certeza será importante quando falarmos sobre o diagnóstico da atualidade e as questões da ética política. Minhas impressões da leitura de Weber e das múltiplas tentativas de interpretá-lo, cujo número cresceu muito ultimamente, talvez possam ser resumidas no sentido de haver algo como um fatalismo metódico na explicação histórica da gênese do racionalismo ocidental. Com isto Weber ocupa uma posição oposta àquilo que em Marx é dito na famosa passagem do "18 Brumário", isto é, que a história é "feita" pelos homens.

SCHLUCHTER: A expressão "fatalismo metódico" é muito interessante neste contexto, e eu entendi que o senhor quer assim aludir a que em Weber não esteja adequadamente determinada a relação entre as intenções e as conseqüências das ações. Mas eu acho justamente interessante na teoria de Weber - e o sr. Henrich referiu-se indiretamente a este ponto - que ele mesmo numa análise puramente histórica da economia, isto é, num exame que consciente e unilateralmente coloca o aspecto econômico no primeiro plano, atribui uma significação causai importante a um fator alheio, isto é, ao ethos racional da conduta da vida. Evidentemente, Weber achava - e atrás disso está a tese desenvolvida na "Ética Protestante" - que este ethos racional da conduta da vida não apenas era um dos fatores constitutivos desse desenvolvimento senão que também tinha sua origem numa ética religiosa, e que sem esta contribuição não teria acontecido aquela concatenação de circunstâncias à qual se deve a modernidade ocidental. A tese, portanto, não é precisamente esta: que se devem compreender as condições modernas a partir de uma combinação peculiar de intenções e conseqüências não intencionadas das ações, um enredo inabalável de conseqüências de ações; precisamente não se pode explicar esta combinação como o fazia Marx, mas ao contrário, cumpre distanciar-se do modelo simples segundo o qual, os homens fazem sim, sua história, mas sob circunstâncias que não escolheram.

HENRICH: Para esclarecer este ponto, deveríamos fazer algumas distinções. Desde que o conceito "história" significa algo diverso do que a narrativa, "resagestae", e muito mais desde que as explicações históricas abrangem grandes espaços de tempo, a opinião de que os impulsos históricos decisivos e em grande medida vigentes, decorrem unicamente de intenções e ações de indivíduos tornou-se uma posição singular raramente defendida. A filosofia da história distanciou-se por inteiro dela, e isto necessariamente, pois pretende ser uma teoria- do desenvolvimento global da forma de seus processos (singulares ou cíclicos). Nestes processos pode ocorrer, sem dúvida, que indivíduos causem condições favoráveis ou também catastróficas para uma região, um povo ou um curto espaço de tempo. Mas contra o processo global não teriam poder efetivo, tão pouco quanto poderiam fazê-lo acontecer em virtude de sua intenção. O máximo que poderiam fazer seria a destruição do desenvolvimento cultural como tal.

Também uma teoria histórica universal desse tipo pode partir da idéia de que o decurso da história se fundamenta em ações. Estas ações podem ter sujeitos individuais ou coletivos. Na teoria de Marx, estes sujeitos são as classes, em outras teorias são, por exemplo, os fundadores dos estados e das religiões. Mas as intenções destes agentes devem então ser compreendidas como um medium através do qual se realiza a lei histórica - ocorra isto de acordo com essas intenções ou em virtude delas mas em sentido contrário.

Existem importantes filosofias da história formuladas sem referencia a sujeitos atuantes na história. Mas também nelas há um sujeito da história, sujeito que noutra ocasião, para distingui-lo do sujeito agente, chamei de sujeito de referência da história. Este sujeito é aquela singularidade em que todos os "fenômenos" históricos ganham sua coerência específica e dentro do qual ou com referência ao qual se realizam os processos históricos propriamente ditos. Sujeitos de referência neste sentido podem ser a "cultura", a "sociedade" ou, por exemplo, aquilo que Hegel chamou de "espírito universal". Também pode ser concebida uma filosofia da história que supõe uma multiplicidade de semelhantes sujeitos e que, a partir da interação deles, compreende a "história" como um processo universal singular. Mas semelhantes formas de teorias não são características da filosofia da história, que, ao contrário, tende a explicar o processo universal a partir de um único sujeito e, dentro deste sujeito, como universalmente determinado. Neste sentido não há diferença entre Marx, que supõe um sujeito agente, e Hegel, que apenas conhece um sujeito de referência.

Max Weber distanciou-se das concepções da filosofia da história em todas estas formas. Verdade que ele conhece uma história da humanidade. Mas a considera um processo que não pode ser explicado a partir de uma lei única, de modo que nem a "humanidade" nem a "sociedade" são sujeitos de referencia da história. Com isto, sua explicação de processos históricos e também a explicação do desenvolvimento da humanidade assumem uma forma poligonal: muitos fatores e ordens da vida engrenam-se de maneira diversa. Mesmo assim, resultam de sua interação constelações relativamente estáveis, muitas vezes irreversíveis e, em todo caso, de grande alcance, isto é, resulta aquilo de que a seu modo partiu a filosofia da história, tomado como o fato fundamental notável. Sem dúvida, os fatores de cuja ação conjunta nascem épocas podem ser submetidos, de alguma forma, a uma teoria. Mas não há possibilidade alguma de esquematizá-los diretamente ou nas épocas a que dão origem numa espécie de dedução histórica-filosófica.

Com esta questão está relacionada a outra: em que sentido, para Weber, os homens tem um destino histórico. Eles estão vinculados às condições de sua época. Mas do saber da inevitabilidade dessas condições não podem ganhar algo como um envolvimento numa ordem universal e com isto talvez uma nobilitação de sua situação ou uma justificação de seu fazer ou conformar-se. Sem dúvida, quem planeja, particularmente na área política, não deve perder de vista aquele destino. Mas este não "conduz" a pessoa tal como, na teoria dos ciclos culturais de Spengler, também serviria para orientar as ações. Os processos verdadeiramente históricos tem uma inevitabilidade, tanto efetiva quanto contingente (isto aplica-se ainda à própria racionalidade moderna). E por isso não podem, por sua vez, ser objeto das intenções de agir daquele que venha a pôr em prática semelhante destino.

Com isto, abre-se uma margem para o sujeito agente individual: dentro dos limites dos fatos fundamentais inalteráveis pode influir sobre a forma das ordenações da vida e alcançar efeitos improváveis em favor de interesses ou coisas a cujo serviço se coloca. Mas a intenção de uma radical "transformação das condições" leva inevitavelmente a um política catastrófica.

Do político da catástrofe, que atua na base de ilusões, distingue Weber o profeta que pode conseguir dar origem a uma nova formação histórica, fazendo com que ocorra uma revolução efetiva e ao mesmo tempo histórica, não apenas parcial e política (ainda que aconteça sem prognóstico das condições que resultam dela). Mas as condições de vida modernas fizeram com que surgissem tipos de coerção material de tal peso, que nelas os profetas voltados para outro tema além da conduta da vida ou das interpretações da vida não apenas estão condenados ao fracasso como também a corromper-se, sendo, portanto, profetas falsos ou apenas pretensos.

Uma vez abandonada a teoria histórico-filosófica do desenvolvimento e não se podendo deduzir da situação histórica uma orientação para a ação histórica propriamente dita, segue-se ainda que a ação efetiva deve encontrar sua orientação não apenas nesta situação, mas também noutra coisa. Este raciocínio nos levaria à teoria de valores de Weber, à qual certamente voltaremos mais tarde.

SHLUCHTER: Este é um bom momento para passar para a segunda questão. Pois aquilo que o sr. Henrich acabou de dizer está ligado, eu acho, com outra idéia que se pode observar nas obras de Weber. Trata-se do distanciamento de determinada forma da teoria de evolução que ainda foi em grande parte defendida no século XIX. Ainda que seja assim, Weber conhece, ao meu parecer, situações históricas especiais em que tudo depende das decisões "certas" de sujeitos orientados por determinados valores. Quando nestas situações não se tomam as decisões "certas", deixa-se escapar a oportunidade, e isto para um tempo muito longo. Darei para isto um exemplo dos "Escritos Políticos" de Weber que, ao mesmo tempo, será o ponto de partida para o segundo passo de nossa discussão. Como sabemos, Weber ocupava-se nos anos 1905 e 1906 de maneira muito intensa com a primeira revolução russa. Aprendeu até russo, para poder acompanhar os acontecimentos do dia nos jornais russos. E apresentou então ao público científico seus resultados em vários relatórios. Estes são em grande parte descritivos, mas contêm também passagens em que Weber chega a falar sobre o destino da modernidade e sobre os poucos momentos em que este se abre para dar lugar às situações especiais de decisão. A revolução russa de 1905 é para ele um momento de abertura. É um momento de abertura para a liberdade moderna, que conhecemos desde a Revolução Francesa e desde as outras revoluções democráticas na transição entre os séculos XVIII e XIX. Esta liberdade é um valor que nasceu naquela época e sem o qual hoje não poderíamos mais viver. Mas esta liberdade precisa-se impor; precisa-se defendê-la e lutar por ela. Ela não chega simplesmente ao mundo graças a um desenvolvimento econômico ou qualquer outro desenvolvimento sem sujeito que segue suas leis próprias. Cito este texto:

"Ao contrário: por mais que a luta por estes valores "individualistas" da vida tenha que contar a cada passo com as condições "materiais" do ambiente, sua "realização" não poderia ser deixada a cargo do "desenvolvimento econômico". Seriam hoje péssimas as chances da "democracia" e do "individualismo" se puséssemos nossa confiança de eles se desenvolverem no efeito "conforme a leis" de interesses materiais. Pois estes interesses assinalam inequivocamente direção oposta: o "benevolent feudalism" americano, as chamadas "instituições beneficentes" alemãs, a constituição fabril russa; por toda parte, a carapaça da nova servidão já está pronta, somente está esperando o momento em que o retardamento do "progresso" técnico-econômico e a vitória da "renda" sobre o "lucro", em conexão com o esgotamento do solo ainda "livre" e dos mercados "livres", tornará as massas "dóceis" e dispostas a nela vir morar definitivamente. Ao mesmo tempo, o caráter cada vez mais complicado da economia, a "estatização" ou "municipalização" parcial, o tamanho territorial dos povos cria cada vez mais papelada, mais especialização, divisão do trabalho e treinamento profissional na administração..."

Com esta passagem podem ser ilustradas duas coisas: a situação especial em que muito, a não ser tudo, depende da intenção de sujeitos posta em prática, e os entrocamentos de vias que daí resultam, tanto em termos positivos quanto negativos. A idéia da liberdade moderna foi realizada numa situação histórica especial em que os homens ficaram, por assim dizer, de cabeça para baixo. Alias, é interessante que Weber, neste ponto, atribui atenção especial à Revolução Francesa e ao Iluminismo, além daquilo que já ouvimos a este respeito. Mas o decisivo é que, para Weber, foi uma constelação singular em que nasceu esta liberdade moderna, e é improvável que consigamos outra vez juntar todas as forças para defender-nos contra as tentações de uma nova carapaça da servidão. Quais eram estas forças? Eram, além das já mencionadas, entre outras, as forças da ciência, que, em conjunto com o desenvolvimento do capitalismo primitivo e da situação de mercados abertos, eram indispensáveis para esta liberdade moderna. Mas, quais são as conseqüências fatais? Que outro efeito trouxe a ciência? Trouxe o efeito da conformação racional da vida exterior, ao mesmo tempo que sem dúvida destruía inúmeros outros valores. Disto faz parte também a destruição da existência humana completa, da personalidade universalmente desenvolvida. No lugar aparecem o especialista, o homem profissional, a redução do indivíduo a determinadas funções. Mas se a situação é esta, pode ainda ser rompida? Onde ficam as aberturas nas quais pode surgir algo novo? A revolução russa poderia ter-se tornado uma delas, mas isto acabou não ocorrendo. Podemos aguardar outras, haverá outras no futuro? Isto nos leva à questão do diagnóstico das condições modernas e, mais além, à pergunta de como Weber disgnosticou o desenvolvimento deste processo uma vez iniciado, não quanto à sua determinação por certas leis mas sim quanto às suas tendências. A referência é, portanto: o paradoxo da racionalização. Ou podemos perguntar também: Era Weber um apologista desses desenvolvimentos - a passagem parece dizer o contrário - ou seu crítico, e quando sim, em que sentido?

OFFE: Eu gostaria de voltar a defender sumariamente a formula "fatalismo melódico", certamente ousada, a destacá-la como motivo dominante para Weber contra o "ativismo" que aparentemente se manifesta no texto citado e que transparece claramente, noutros pontos, nas manifestações e avaliações políticas de Weber. Eu vejo um passo decisivo neste trecho (como também em muitos outros pontos) no fato de que a própria posição é submetida a uma auto-relativização. Weber diz, em outras palavras: nós, homens modernos, não podemos mais viver sem este conceito de liberdade e, por isso, temos que reclamar este conceito de liberdade, este conceito liberal de liberdade, contra aqueles fatos objetivos da vida, a "carapaça da servidão", a "carapaça dura como aço" etc, como ele sempre a chama, que vieram a se formar. No nível da modernidade alcançada, temos que lutar, talvez desesperadamente, contra as conseqüências dela e aproveitar a hora certa, assumir a responsabilidade e agir politicamente. Esta é uma perspectiva ativista, mas não tem sua origem - como para Marx e na tradição de Hegel - num conceito de progresso ou de razão vinculado à humanidade, mas tem o caráter de uma revolta de matiz pessoal contra a corrente imensa e inestruturada da história. A posição de Weber é esta: acontece que somos homens modernos e não podemos pensar e viver sem reclamar este conceito de liberdade. Aprendemos a ser sensíveis àquilo que nos impõe a organização do trabalho em fábricas, a organização racional do trabalho, a ciência e a técnica, a burocracia, etc, sendo estes, para Weber, os exemplos principais daquelas tendências destruidoras da liberdade da sociedade moderna. Mas esse pathos de uma resistência individual contra aqueles fatos da vida que se tornaram obrigações é, sem dúvida, um ponto muito importante, que constitui também o elemento crítico na obra de Max Weber.

SCHLUCHTER: Sr. Henrich, qual é a impressão que o senhor tem desta ambivalência peculiar, deste apelo a intervir ativamente por um lado e, por outro, deste diagnóstico de um processo que parece avançar por si mesmo, seguindo suas leis próprias?

HENRICH: As análises de Weber permitem ver nascer dentro de uma constelação fundamental várias tendências de desenvolvimento e permitem também que se julgue, se são desejáveis segundo pontos de vista valorativos. Pois não há nenhuma determinação histórica universal, mas apenas a ação conjunta de fatores em direção a uma situação global e dentro dela. A isto corresponde também que se pode ponderar a probabilidade dessas tendências de desenvolvimento. E à valoração e ponderação da probabilidade podem seguir não apenas prognósticos mas também perspectivas de ação e, com isso, apelos à ação. Não têm em vista nenhum programa profético ou histórico-universal, mas podem ser de importância decisiva para o conteúdo humano da vida numa época.

Quando uma época dá grande probabilidade a certas tendências que nela põem em perigo a essência humana, o imperativo de agir tem que adotar a forma de um apelo a opor- se. E Weber acha que às condições de vida modernas inerem tendências de desenvolvimento que, quando se impõem, atuam no sentido de que possibilidades da vida humana que foram liberadas justamente nessas condições não são realizadas, mas sim acabam perdidas, sem que se altere com isto a constelação histórica fundamental. Segundo seu juízo, uma dessas tendências poderosas de desenvolvimento conduz em direção a uma nova servidão em nossas condições de vida. Não me lembro agora quantas associações históricas entram no discurso de Weber sobre a "nova" servidão...

SCHLUCHTER:...a época imperial romana, o "novo Império" no Egito, o domínio ptolomaico - em geral, o Estado de liturgias, economicamente mantido por prestações impostas a grupos selecionados da Antigüidade...

HENRICH:...certamente também o feudalismo patrimonial. Mas a nova servidão que Weber teme assemelha-se mais à egípcia do que à medieval, ainda que ambas desembocassem igualmente na exploração econômica. A servidão "antiga" ainda fazia parte ou pelo menos era suscetível de fazer parte da interpretação do destino por parte dos explorados; podia ser compreendida como destino querido por Deus ou como fase transitória num curso de vida que leva para além deste mundo. A nova servidão, porém, seria a conseqüência da formação continuada de um aparato racional e puramente impessoal ao qual o homem acaba preso sem saída, passivo e isolado, com seus interesses de sustento. Contra esta situação opõe-se Weber com um pathos de liberdade que, nesta forma, somente podia surgir dentro das condições de vida modernas, mas dotado de um conteúdo humano que não é relativo a essas específicas condições.

Percebemos facilmente que essa paixão de liberdade não se segue primariamente de uma definição política da liberdade. No tempo da Revolução Francesa, concebia-se a ligação entre a liberdade humana e a liberdade política da forma mais íntima possível. Mas em seguida ficou bem claro que a liberdade política não implica necessariamente também a liberdade humana.

Weber, ao reconhecer esta diferença, compreende-a ao mesmo tempo de modo diverso do de Marx, que somente na libertação econômica via completar-se a política e, com isto, também estabelecer-se a humana. A liberdade de Weber é a da autoderterminação individual, num modo de agir que ganha sua orientação não das condições efetivas mas de valores e interpretações da vida e que, no entanto, deve desenvolver-se junto com uma visão imparcial da realidade e em virtude do conhecimento pessoal das relações, tendências e chances objetivamente dadas. Numa sociedade, a liberdade política pode coexistir com a perda da liberdade humana neste sentido - numa situação em que o sistema político funciona apenas corno o aparato mais eficiente para equilibrar e estabilizar os outros aparatos que, por sua parte, realizam de maneira mais eficiente a satisfação das necessidades; isto é, burocracias e grandes empresas. A circunstância de que também as teorias neomarxistas pudessem referir-se a Weber deve-se ao fato de que Weber via, de modo semelhante a Marx, a possibilidade de que a liberdade política se tornasse uma mera função. Ao mesmo tempo, porém, Weber insistiu na conexão interna entre a liberdade política adequadamente organizada e a possiblidade da liberdade humana. Mas ele nunca reclamou a liberdade política somente porque sem ela a forma moderna da economia entrar ia necessariamente em crise. Ele viu a possibilidade de que também a liberdade política se integrasse num sistema de nova servidão. Mas a nova servidão, para ele, é algo absolutamente anti-humano.

SCHLUCHTER: Com isto, o conceito de progresso, cujo múltiplo significado Weber examina com maior precisão em vários lugares de sua obra, torna-se bastante ambivalente. For um lado, as condições em que pode surgir esta nova carapaça da servidão parecem ser de tal natureza que simplesmente não se pode voltar para trás delas. E isto não no simples sentido de que se não pode desfazer o que aconteceu historicamente, mas sim, no sentido de que aqui nasceu algo qualitativamente novo, de modo que a nova servidão seria de fato mais do que uma mera variação da servidão antiga. listas condições permanecem decisivas, mas são ao mesmo tempo condições que não podem ser interpretadas, de maneira alguma, no sentido do otimismo ligado ao progresso no Iluminismo e no século XIX. São elas, ao contrário, condições que implicam restrições perigosas, restrições que, por exemplo, põem em dúvida a possibilidade de conciliação da liberdade política e da liberdade humana - como o senhor acabou de expor, sr. Henrich - e isto como princípio.

HENRICH: Deve-se mencionar, ainda, que Weber realmente não espera que a liberdade humana propriamente dita possa tornar-se, por assim dizer, um bem de caráter abrangente. Pois ela deve ser realizada pelo indivíduo como tal, isto é, deve antes ser compreendida de tal maneira que ocupa um lugar em seu modo de agir ou o determine em suas ações, apresentando-se a ele como possibilidade. Para Weber, esta possibilidade como tal parece estar em perigo. E em face da significação humana que lhe é inerente, ela deve constantemente ser lembrada e conservada e garantida por certas instituições. O progresso que temos que iniciar significa, portanto, ao mesmo tempo o impedimento de um recaída, existente em germe na constelação moderna. Neste sentido, o impulso à ação de Weber não leva diretamente a um futuro histórico melhor. Podemos dizer que seu diagnóstico histórico lhe parece fundamentar um pessimismo histórico. É possível observar que isto anda paralelo com um pessimismo pessoal quanto à vida, que tem sua razão no seu próprio destino pessoal, pessimismo que como tendência fundamental domina também o ativismo de liberdade de Weber, mas por meio do qual ele se libertou -ao mesmo tempo do desespero e da resignação.

SCHLUCHTER: Ainda voltaremos a este problema no último passo de nossa discussão. Antes, eu tenho outra pergunta. Quando lemos esta passagem e podemos complementá-la por outras passagens da obra, por exemplo, pelo famoso final da "Ética Protestante" temos a impressão - o sr. Offe já indicou isto - de Weber ter visto uma tendência de desenvolvimento decisiva das condições modernas no fato de que, no decorrer do desenvolvimento da racionalização formal, por assim dizer gastam-se os pressupostos pelos quais ela surgiu pela primeira vez. E isto refere-se tanto aos pressupostos materiais - temos aquela afirmação, inteiramente antecipatória do ponto de vista atual, de que o capitalismo moderno encontrará seu fim nos limites da energia -, quanto também e sobretudo aos pressupostos espirituais. A perda da liberdade que, segundo Weber, está por vir é ao mesmo tempo uma perda de sentido. Vê-se isto na continuação da passagem citada: a ciência, que antes era uma condição importante para este processo poder iniciar-se, não está em condições de proceder esta outorga de sentido. A religião pode fazê-lo, como sabemos de outras passagens, mas no melhor caso dentro de limites muito estritos. Mas onde se encontram então as reservas materiais e sobretudo as espirituais para opor-se à atração desta férrea carapaça da servidão, contra esta petrificação, como também diz Weber? Existe apenas essa oposição pessoal, esse "mesmo assim" individualista, ou existem também reservas de tradição coletivas e modelos institucionais aos quais podemos recorrer?

OFFE: Não sei ao certo como se pode descrever essa atitude valorativa de Weber, pós-iluminista e cética em relação ao progresso. Eu penso que, em Weber, as últimas reservas com as quais se pode resistir contra aquilo que nos impõe a modernidade podem ser encontradas no nível de uma ética heróica de cunho pessimista referida a personalidade e a elites. Gostaria de citar algumas expressões usadas neste contexto, para ilustrar qual é o campo de associações com que Weber aqui trabalha. Na caracterização da "ética de responsalidade" trata-se de conceitos como "paixão" e "golpe de vista"; noutras passagens, trata-se de categorias como "maturidade", "força", "decência", "seleção",, "nobreza", "grandeza", "qualidade da existência humana", "personalidade". Estes são conceitos que deixam a impressão de um sussurrar expressivo, porque as normas éticas a que se referem não são analisadas e explicadas senão apenas evocadas em perífrases sempre novas, permanecendo em sua essência irracionais e opacas. Em outras palavras: quando lemos isto, não podemos compreender claramente por que motivo alguém, em virtude de sua "responsabilidade", "maturidade", "grandeza moral" e "nobreza" faria ou deixaria de fazer aquilo que ele ou ela fez ou deixou de fazer de fato. Claro que o conceito obscuro de "carisma" também faz parte desta lista. Por toda parte encontramos referências obstinado-decididas a convicções éticas cuja origem e essência objetiva, bem como os princípios em que se baseiam, ficam sem nome, sendo até quase caracterizados pela impossibilidade de nomeá-las. Parece-me que em Weber, no lugar das categorias de razão c de progresso, cuidadosamente desmontadas e afastadas por ele com um sarcasmo quase corrosivo, aparece como substituto um tanto fraco este catálogo obscuro de virtudes e características pessoais marcantes com as quais Weber, sem dúvida, associa algo concreto, mas que dificilmente podem ser generalizadas porque não podem ser relacionadas com princípios generalizáveis, com conhecimentos morais. Penso que se trata de um bastião ético, mas de um bastião fraco. Quem se ocupa com Weber chega em algum momento a esta pergunta, tanto absurda quanto fascinante: o que teria acontecido se Weber tivesse vivido 13 ou 14 anos mais? Se tivesse acompanhado o processo de destruição precisamente dessas categorias, vendo-se obrigado a comentá-lo - categorias que considerava inabaláveis, como decência, maturidade, grandeza, responsabilidade e tudo que está vinculado a elas? Em face das práticas das hordas nazistas, para as quais Karl Krauss encontrou o belo nome de "sub-gângsteres do Ocidente", não estaria ele obrigado a reconstruir todas as suas teorias? Não estaria forçado a sair da sombra de uma ética irracionalista da personalidade e de elites e a nomear os princípios fundamentais e compreensíveis que ainda se podem opor aos resultados fatais de processos de racionalização formal?

SCHLUCHTEK: Então o senhor diria que as reservas, tanto as culturais quanto as sociais, estão gastas; o que resta, são apenas as reservas pessoais?

OFFE: Sim.

SCHLUCHTEU: A atitude pessoal contra as tendências de desenvolvimento que, no fundo, não tem, fundamento?

OFFE: Sim, não tem fundamento, e, por isso, não se pode depositar muita confiança nela.

SCHLUCHTER: Não muita confiança porque tudo depende da atitude pessoal e nada de uma regulamentação institucional?

OFFE: Isso mesmo.

SCHLUCHTEK: Na realidade, deveríamos passar agora para outro tema, isto é, as propostas de Weber para a reforma política. Pois precisamente neste ponto ele apresenta-se como pessoa que tem um conceito muito alto da significação de regulamentação institucional, ainda que certamente não atribuísse às instituições aquele ethos que, por exemplo, Hegel ainda vincula a elas em sua filosofia do direito. Ele tem um conceito muito instrumentalista...

OFFE: É isso, "de técnica do Estado"...

SCHLUCHTER: ... das instituições, mas, não obstante, as regulamentações institucionais são de importância considerável, pelo menos para a assegurar a liberdade política...

OFFE... na medida em que "criam" determinado ethos de elites...

SCHLUCHTER: ... nas quais este ethos pessoal pode tornar-se efetivo.

OFFE: As instituições que Weber defende, por exemplo aquelas da democracia parlamentar, não tem, para ele, valor ético próprio, mas apenas uma função de monitoramento na seleção das elites.

SCHLUCIITER: Vamos passar neste ponto - já que estamos no meio dele - para o terceiro passo de nossa discussão. Mas antes de citar de novo, eu gostaria de dar ao sr. Henrich a oportunidade de tomar posição em relação àquilo que o sr. Offe acabou de expor.

HENRICH: Bem, chegamos afinal àquela questão tanto interessante quanto importante à qual se liga também uma objeção sempre feita a Weber. E o sr. Offe, a seu modo, a formulou com muito vigor. Sobre isto, eu tenho o seguinte a dizer: quando se parte da idéia de que é correto o diagnóstico da atualidade de Max Weber, quando se vê, portanto, que uma resistência - que de modo algum é conservantismo - tornou-se uma tarefa tanto essencial quanto difícil, então é de certo modo trivial a evocação das virtudes necessárias para uma resistência que não se fundamente em sonhos históricos ou utopias políticas. É verdade que estas, pelo menos de fato, são virtudes excepcionais. E a isto acrescenta-se a circunstância de que, segundo Weber, precisamente o Iluminismo leva a conhecimentos que frustram muitas esperanças essenciais dos homens. Também o "suportar" esse tipo de conhecimentos não pode ser compreendido como "simples" virtude que os homens podem adquirir espontaneamente. E daí resulta a impressão de que a "ética" de Weber, em conexão com seu diagnóstico da atualidade, tenha assumido traços de uma "ética de elite".

Percebendo isto, deve-se consultar imediatamente sua "doutrina de valores" para ver se esta, como tal, dispõe de uma justificação para uma ética de elites, em algum sentido específico. Encontramos que a "personalidade" constitui um conceito fundamental dela. Ocorre que este não está definido no sentido de que "personalidade" possa associar-se com a consciência de pertencer a uma elite. "Personalidade" jamais é definida pela pertinência a um grupo, nem por origem, formação, treino, e ainda muito menos por criação. Não é o gesto nem a atitude, mas unicamente a "entrega a uma causa" que define o que constitui a "personalidade". No fundo, não há nada contra o qual Weber se manifeste de forma mais veemente do que atitudes egoístas e pretensões de prestígio que não tenham seu fundamento em causas e em ações relacionadas com causas. A dedicação a conteúdos valorativos, isto é, precisamente o contrário de uma consciência de elite, constitui para Weber a personalidade. Estes conteúdos, em primeiro lugar, são normas. E "objetividade" tem uma relação íntima com a clareza do senso de realidade. Uma vida que meramente passa, se adapta e se amolda, tem muito em comum com uma vida que quer fugir de situações amorfas relativas a problemas, à vida e, com isso, à motivação, usando como catapulta direitos gerados e, portanto, pretensos ou apenas herdados, fugindo assim do confronto não apenas com a própria como também com qualquer realidade. Certamente a personalidade nasce do esforço íntimo; e em todo caso ela exige uma clara "orientação por valores" que, como tal, deve também capacitar a pessoa a "suportar algo". Mas os conteúdos pelos quais se orienta não precisam, de modo algum, ser normas que como tais têm por conseqüência uma exclusividade. Jaspers, ainda que tardiamente, reconheceu na obra e na vida de Weber precisamente um enorme esforço em prol da normalidade.

A distância de uma teoria de valores de elites fica mais clara quando se vê e lê os textos de Weber sobre a orientação na atualidade em conexão com sua sociologia da religião. Em primeiro lugar, Weber conhece um catálogo de virtudes simples que "se compreendem por si mesmas". Mas quando chega a falar sobre as possibilidades, para cada um, de agir no mundo moderno, indica dois aspectos: corresponder à vida cotidiana em condições de enfrentá-la e exercer fraternidade. Ocorre que estas são duas das virtudes que tem origem em interpretações religiosas do mundo, interpretações que outrora, como acosmismo [indiferença ao mundo] de amor e ética puritana da conduta da vida, eram de natureza radicalmente oposta. Já elas mesmas, como tais, são conseqüências de processos de racionalização. Mas hoje estão privadas do apoio de visões religiosas do mundo e doutrinas de salvação e, por isso, transformadas. Ambas chegaram a ser normas para o comportamento intramundano, num sentido agora modificado. Assim, estão também determinadas, em sua origem e forma, pelas condições de vida modernas. Também exigem clareza e "aprumo intrínseco", isto é, resistência à "servidão", à manipulação por aparatos e à dependência de interesses materiais que são satisfeitos por esses aparatos - assim como a concessões mundanas e à moda. Exigem, além disso, a capacidade de levar uma vida com conteúdo humano de modo independente de interpretações religiosas da vida. Neste sentido, realiza-se precisamente nelas a "personalidade".

No entanto, não são idênticas ao conceito das virtudes que as condições de vida modernas exigem. Pode-se chamá-las de virtudes de confirmação humana dentro das condições de vida modernas e distingui-las das virtudes da oposição ativa e da perseverança em conflitos de valores, também exigidas pela modernidade, de maneiras diferenciadas. Mas apesar desta diferença, ambas estão, em última instância, numa relação de concordância. À diferença das virtudes de confirmação, estas outras virtudes requerem realmente tamanho esforço que se aproximam de uma forma de comportamento heróica ou estóico-disciplinada. A modernidade gera conflitos - por exemplo, os conflitos de consciência do político ou também do enamorado submetido a vínculos institucionais - que não encontram solução mediante teodicéia alguma, nem mediante qualquer desculpa ou expiação. Sem dúvida, os predicados "simples", "cotidiano" e "heróico" diferem muito entre si. Mas, não obstante, constituem um grupo ao qual se opõem os predicados de outro grupo, que caracterizam um comportamento que exige apenas adaptação, sem apoiar-se numa causa.

Aquela "carapaça de aço" do modo de produção capitalista da qual Weber fala repetidas vezes, de forma tão impressionante, é vista por ele num aspecto duplo: por um lado, como uma condição global que modificou nossas condições de vida por um tempo imprevisível. Pois o sistema jurídico conforme à organização econômica, as burocracias e as formas de dominação vinculadas a estas não poderiam ser desfeitos pela introdução de uma economia solidária. Esta é a construção objetiva da carapaça. Mas esta carapaça determina também o modo de comportamento daqueles que nela têm que viver, e isto porque ela sugere e quase já impõe a ;;nova servidão" não apenas como dependência efetiva como também como forma de vida intrínseca, mesmo na esfera privada, tendo, mediante esta quase imposição, "mudado o semblante espiritual da humanidade até torná-lo quase irreconhecível..." O funcionário carente de espírito e o consumidor que prende o coração ao consumo de bens materiais, estes são modos de viver que se acomodam sem tensão à carapaça, e a estes junta-se ainda o fugitivo intelectual, a quem escapa, com a evasão, a relação dupla para com as coisas, o conhecimento dos valores e a visão da realidade. Assim fica claro que da pressão da carapaça resultam precisamente os modos de viver que estão diretamente opostos àqueles aos quais se destina o catálogo duplo de virtudes de Weber. A carapaça não apenas inibe o pensamento independente e a ação política não adaptada. Inibe também a fraternidade da vida simples e o cumprimento sensato dos deveres na incontornável vida cotidiana. Mas então pode-se dizer, no sentido de Weber, ainda que não seja com suas palavras: o político que recusa a adaptação atua com isto também no sentido de que a fraternidade e a solidariedade simples da vida continuem correspondendo às condições públicas e que nestas estejam sendo encorajadas.

Weber tem em alta conta esta fraternidade, e existem muitas provas que em sua vida, fazia esforços constantes de realizá-la, sobretudo como gratidão efusiva pelas menores coisas. Ao programa do "Brüder zur Sonne, zur Freiheit" ("irmãos, ao sol, à liberdade"), no entanto, ele não dá nenhuma chance quando tem como objetivo uma constituição econômica baseada na solidariedade. (Mas as reivindicações políticas e sociais do movimento dos trabalhadores tinham sua aprovação e simpatia.)

Continua todavia em pé a verdade de que o catálogo de virtudes de Weber, para o mundo moderno, é bidimensional. Originalmente andava de mãos dadas com a racionalização também uma sublimação do modo de viver eticamente orientado. Em seu tempo, Weber viu a sublimação relegada à área da vida privada, ao passo que as virtudes publicamente relevantes estão vinculadas a uma consciência de conflitos plenamente desenvolvida, assumindo com isso aqueles traços do heróico. Também na vida privada, e isto onde quer que se exija probidade intelectual, o comportamento pode estar determinado por e carregado de conflitos de valores. E tal consciência suprime a normalidade simples da vida, do mesmo modo que é pouco provável que jamais possa ser uma forma normal de comportamento. Mas esta bidimensionalidade difere bastante de um programa de criação de elites ou de uma ética de elites, na esteira de Nietzche. E agora deve ser fácil imaginar a reação de Weber à forma de comportamento propagada e praticada pelo nacional socialismo. Há pouco soubemos por Karl Löwith, que pertencia ao grupo de estudantes convidado por Weber para suas duas conferências em Munique, que, em 1940, ele julgava somente Max Weber capaz de resistir contra a imposição nazista e suas pérfidas práticas - que ele, pelo menos na universidade alemã, até poderia ter "mudado o destino lamentável".

SCHLUCHTER: O componente decisivo neste conceito de personalidade, que ainda teremos que aprofundar, parece ser a circunstância - o sr. Henrich acabou de chamar nossa atenção para ela - de que, para Weber, a personalidade nunca se manifesta numa atitude, mas apenas na entrega a uma causa.

A causa, porém, é algo supra individual. Refere-se a valores que, por sua vez, pretendem validade. Neste ponto surge todavia um novo problema, e para este devemos dirigir nossa atenção. Temos, por um lado, aquela posição dura, já formulada pelo jovem Weber e nunca abandonada, de que uma ciência empírica e teórica nada possa dizer sobre questões de valores: o chamado postulado da neutralidade valorativa, que, aliás, já marca uma posição valorativa. Com este postulado, Weber declara ao mesmo tempo sua adesão a um valor, o valor de uma ciência livre de juízos valorativos. Temos, por outro lado, o famoso enunciado da colisão de valores, do conflito de valores. Qual é a relação entre esta teoria da personalidade, cujo centro é a entrega a uma causa e que também leva em conta as condições institucionais prévias indispensáveis ao nascimento de certas condutas de vida, isto é, condutas de vida conseqüentes e consistentes, e estas duas posições, da neutralidade valorativa, por um lado, e da colisão de valores, por outro? Vou fazer outra citação, desta vez do ensaio "O Sentido da Neutralidade Valorativa das Ciências Sociológicas e Econômicas". Diz-se ali:

"Pois a tendência trivializadora da 'vida cotidana' neste sentido autentico da palavra consiste precisamente nisto: que o homem que está vegetando nela não tem consciência desta mescla, condicionada em parte psicológica, em parte pragmaticamente, de valores que entre si são inimigos mortais, e, sobretudo, nem quer ter consciência dela; que ele, ao contrário, foge da escolha entre "Deus" e o "diabo" e da decisão última sobre a questão de qual dos valores em colisão está dominado pelo primeiro e qual pelo segundo. O fruto da árvore do conhecimento, desagradável a todo conforto humano porem inevitável, não ê outra coisa a não ser isto: saber daqueles antagonismos e, portanto, não poder furtar-se a ver que cada ação importante e mais ainda a vida como um todo não é para transcorrer como um processo da natureza mas sim para ser conduzida conscientemente; significa uma série de decisões últimas, através das quais a alma, como em Platão, escolhe seu destino, isto é, o sentido de seu fazer e de seu ser."

Esta passagem, para começar, poderia ser interpretada no sentido do sr. Offe. Trata-se aqui evidentemente de um individualismo heróico, de um conceito de personalidade que enfrenta, por assim dizer, diretamente o cosmos das tradições culturais e instituições sociais. Por isso, pode dirigir-se também contra elas. Daí a primeira pergunta, ao sr. Henrich: isto é correto? Trata-se de uma prova que apóia a posição tomada antes pelo sr. Offe? E, além disso, outra pergunta: manifesta-se nisto um ceticismo radical, um pessimismo? Ou será que contém algo mais? Há em Weber algo como uma filosofia prática?

HENRICH: Bem, temos aí uma verdadeira profusão de perguntas, e estamos no começo de uma tarefa que exigiria muito mais tempo do que nos resta. "Trivialização da vida cotidiana", "cair" na vida cotidiana, isto é algo diferente do "estar em condições de enfrentar a vida cotidiana". E esta última coisa já ocorre quando numa vida não se impõe simplesmente o modo de viver conforme a "carapaça de aço". A servidão é o contrário de um modo de viver consciente. No entanto, quando essa conscientização penetra até a clara visão dos fundamentos últimos de todo comportamento, então também os conflitos de valores devem tornar-se determinantes. E quando um comportamento se torna publicamente relevante está sujeito ao imperativo de não fugir de tal conscientização. Se compreendemos a passagem que o senhor citou não pela impressão de seu fraseado mas sim a partir de seus passos de argumentação, então aquilo que parece ser uma orientação no sentido do heroísmo é a simples conseqüência do fato de que, por um lado, não há argumentos em favor de uma concepção harmoniosa das ordens do mundo e que, por outro lado, o mundo moderno não exige e estabiliza um comportamento sublimado e orientado por valores, mas antes o põe em perigo e inibe. Este mundo gera no lado subjetivo o antagonismo entre a servidão c o modo de viver consciente. E se isto bastasse, em conexão com aquela tese, para já falar de um programa de elites, este seria de fato tal programa. Mas desta maneira não podemos caracterizar adequadamente o modo de pensar de Weber. Este não exclui, em princípio, que todos os homens possam encontrar, à sua maneira, o caminho para um modo de viver consciente. Weber diria, e como sociólogo tem que dizê-lo, que isto é improvável. Também a maioria dos éticos não considerou a orientação prática por valores um comportamento médio provável. Além disso, resulta das condições de vida moderna, por motivos específicos, uma improbabilidade. Mas ternos que distinguir esta avaliação de um apelo à formação de elites, cuja prática...

OFFE: ... como fenômeno de massas...

HENRICH: Bem, como fenômeno de massas não pode ser imaginada já por motivos intrínsecos. Pode ser, no entanto, que de fato Weber tenha proposta sua ética como teoria de um modo de viver de minorias...

SCHLUCHTER: Corno clica de minorias, de falo, no sentido da difusão, mas não no sentido de que nem todos possam vivê-la à sua maneira?

HENRICH: Somente de fato, isto explica-se do contexto. Não diríamos também hoje que "os bons democratas" continuam sendo uma minoria? Eu mesmo gostaria, no entanto, que o pensamento de Weber tivesse penetrado mais a dimensão de sua ética que trata da fraternidade na vida cotidiana moderna! O que ele somente toca cm seus textos mais conhecidos, as duas conferências de Munique "Política como Vocação" e "Ciência como Vocação" requer reflexões ulteriores em direção à atitude intrínseca dessa vida cotidiana fraternal, e também quanto à sua relação com a constituição política.

OFFE: Sim, eu penso que o antagonismo que descobrimos naquela citação e no que disse o sr. Henrich é muito importante, e dá estrutura a toda a discussão e recepção de Weber. É o antagonismo entre o parcelamento, a acomodação oportunista, passiva, nas circunstâncias dadas da vida, que fazem da vida, por assim dizer, um processo da natureza. Pelo outro lado, temos o suportar autentico, consciente, daquelas contradições inconciliáveis ou rivalidades entre orientações por valores. Não há dúvida que o sentido desta segunda posição é o que Weber propõe, e no seu diagnóstico da atualidade e na sua avaliação do processo de modernização ele não poderia partir da idéia de que seria praticável por toda pessoa esta atitude ética por ele destacada. Proclamou-a e idealizou-a contra todas as probabilidades. Poder-se-ia continuar aqui com a pergunta interessante: como estavam as coisas com o próprio Weber? H isto levaria a questões biográficas e até psico-históricas, tais como foram discutidas por Mitzman e recentemente também por Hennis. Poder-se-ia perguntar, naturalmente, com vista ao nosso tema "Projeto da Modernidade": existem outras alternativas, hoje mais prometedoras, àquela obscura ética de personalidade, alternativas que ainda terão validade quando conceitos como progresso, socialismo, democracia, paz, etc, já perderam sua univocidade e plausibilidade normativa, como presume Weber? Quanto à segunda destas duas perguntas, eu talvez possa fazer uma sugestão sucinta que poderia nos colocar em condições de voltar a tratar a modernidade, em sã consciência, como 'projeto" e não apenas como "fatalidade". Esta sugestão refere-se à recondução ao nível de uma teoria política daquilo que Weber caracteriza, isto é, a atitude de uma decisão consciente entre os deuses e demônios em lula, e leva ã pergunta: quais seriam as condições institucionais em que seria provável uma generalização desta atitude? Quais são as formas de convivência e condições institucionais em que seria provável que tal atitude, disposta a assumir a responsabilidade, consciente das conseqüências e, mesmo assim, não fundamentalista no sentido de uma ética de convicção, mesmo que não "atinja as massas", pelo menos seria de esperar e possível em escala maior? Esta pergunta nos levaria a rever os escritos de Weber de 1917 e a trabalhar novamente na tarefa ali formulada, com a pretensão, radicalizada neste sentido, de uma Sociologia de democracia e da Constituição, dotada de conteúdo normativo, para nossas condições atuais. Tal procedimento acabaria na busca porventura não totalmente inútil de uma resposta à pergunta: quais seriam hoje as instituições adequadas para fomentar e, para usar a expressão de Weber, para "criar" nos homens aquela atitude, que acabei de caracterizar, de um ética política disposta a assumir a responsabilidade e consciente das conseqüências?

SCHLUCHTER: Mas não ocorrerá que a mensagem mais importante que está por trás desta expressão - e ao meu ver, ela está de fato vinculada a determinada concepção de iluminismo -seja esta: que a autoconsciência, a clara visão dos pressupostos últimos de minha posição e das prováveis conseqüências que trará para mim e para outros é uma tarefa que cabe a mim aceitar, como homem civilizado? E aqui temos também uma conexão com a questão, há pouco tocada, da neutralidade valorativa. Uma ciência da cultura, que mediante pesquisas comparativas de culturas abre nossos olhos para possibilidades da conduta da vida, possui um potencial iluminante no sentido de que me permite compreender os pressupostos últimos e as conseqüências de minha própria posição. Eu acredito que Weber descobriu com isto'um elenco muito importante de um projeto da modernidade, a saber, o da autodeterminação, mas numa definição diferente da de Kant. Esta exige uma clara visão das alternativas e, com isto, dos sacrifícios que preciso fazer ao subordinar-me a determinado deus, como ele diz. E a ciência, particularmente a ciência da cultura, que se mantém consciente de seus limites, que se delimita a si mesma, serve mediante o conhecimento de fatos e a autoconsciência a esta clara visão exigida, sendo por isso indispensável. No famoso discurso "A Ciência como Profissão", Weber declara, ao meu ver, sua adesão à ciência neste sentido. Não há dúvida que se pode fazer uso dela para solidificar a carapaça de aço da nova servidão, mas, se compreendida no sentido certo, é ao mesmo tempo um dos poucos recursos que nos restam do iluminismo e para um novo esclarecimento.

  • * Debate publicado em: Christian Gneuss e Jürgen Kocka (org.), Max Weber - Ein Symposion, Munique, DTV, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1990
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