Acessibilidade / Reportar erro

A experiência dos assentamentos: contribuição ao debate político da reforma agrária

QUESTÃO AGRÁRIA, HOJE

A experiência dos assentamentos: contribuição ao debate político da reforma agrária

Maria Conceição D'incao

Professora de Sociologia da Unicamp e pesquisadora do CEDEC

Este texto elabora alguns resultados da pesquisa em curso - "A reforma agrária no cotidiano dos trabalhadores: um estudo de caso"1 1 Projeto de Pesquisa realizado em colaboração com Gérard Roy, através de convênio de cooperação internacional CNPq/CEDEC/ORSTOM (França) - tendo como objetivo a reflexão sobre as contribuições das recentes experiências de assentamento de trabalhadores rurais sem terra - em especial, das experiências do governo Montoro - para o debate do projeto político de reforma agrária no país.

A natureza do processo de investigação empreendido -estudo de caso - limita, evidentemente, as possibilidades de generalização dos resultados obtidos. Os dados de observação analisados referem-se sempre ao caso estudado. Por outro lado, o aprofundamento da observação permitida em estudos dessa mesma natureza multiplica as possibilidades de abstração e de reflexão sobre os sistemas - político, social, econômico, etc - aos quais a experiência analisada se vincula. Sem entrar na complexa questão das mediações possíveis entre a singularidade da realidade observada - o Assentamento de Porto Feliz, situado a 110 km da cidade de São Paulo - e a generalidade do debate político instituído - o debate da questão e da reforma agrária no país - procura-se, nos limites deste texto, interrogar a situação de assentamento analisada a partir de questões que vêm sendo formuladas pelos próprios agentes dos projetos políticos que a viabilizaram.

O ponto de inflexão dessas questões era, por ocasião da implantação do referido programa de assentamentos, o da viabilidade econômica desses novos pequenos produtores rurais num sistema econômico dominado pela grande exploração empresarial. Por motivos político-religiosos — a Igreja Católica, político-administrativos - o Estado, ou ligados à continuidade da própria organização dos trabalhadores mobilizados na luta pelo acesso à terra - o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), todas as instituições que estiveram diretamente ligadas à emergência do Assentamento de Porto Feliz preocupavam-se com o desenvolvimento, entre os trabalhadores assentados, de um modelo de organização da produção que lhes assegurasse condições de competitividade com a grande empresa agrícola dominante.

Os modelos agrícolas levados pela assessoria técnica aos trabalhadores assentados eram construídos no âmbito da burocracia estatal. Expressão da grande heterogeneidade das forças políticas que compunham o governo de Estado, esses modelos não continham, de um lado, uma estratégia clara de participação dos principais sujeitos desse processo - os trabalhadores, que lutaram e conseguiram o acesso à terra - na organização de sua própria produção agrícola. De outro lado, não ousavam colocar em questão os parâmetros da política agrícola vigente, criando programas de subsídios adequados à especificidade desses novos produtores rurais. Assim, desejosos de evitar os riscos de reproduzir os espaços de "miséria rural" criados pelas experiências de assentamentos realizadas pelo governo militar, e tendo de enfrentar, dentro do próprio governo, as forças políticas contra-reformistas, os responsáveis pelas diretrizes da política orientadora das referidas experiências adotaram um discurso produtivista e induziram grande parte desses assentamentos para o que chamavam de produção associada, que, pouco a pouco passou por influência da Igreja e da militância política de esquerda - um capítulo à parte - a ser chamada de "produção coletiva". A lógica desse modelo produzido pelos quadros estatais é evidente: organizados de forma associativa, os trabalhadores assentados teriam condições de incorporar a tecnologia agrícola e a linha de subsídios estatais existentes e, conseqüentemente, de produzir em condições mínimas de competitividade com a grande empresa agrícola dominante.

Com a derrota do projeto de reforma agrária no governo de transição e o refluxo da política de assentamento do governo estadual - a partir da posse do governo Quércia -, a ênfase das questões levadas aos assentamentos se desloca da viabilidade econômica para a viabilidade política dos mesmos. Com o recuo dos programas especiais de financiamento e sem a perspectiva de uma política nacional de reforma agrária ou de uma política especial de apoio à pequena produção agrícola, os técnicos estatais e militantes políticos direta ou indiretamente comprometidos com os assentamentos começam a se indagar sobre a capacidade de resistência dos mesmos ou, mais especificamente, sobre as possibilidades de esses trabalhadores se organizarem para a reivindicação de subsídios agrícolas ou de melhoria de suas condições de vida - saúde, educação, habitação, etc. A preocupação com a produção agrícola propriamente dita continua a ter lugar na reflexão e na prática desses técnicos ou militantes, mas já não se coloca mais nos termos iniciais da construção imediata das condições de competitividade com a grande empresa agrícola. Tende muito mais a ser pensada como pré-condição da resistência necessária à continuidade dessas experiências pontuais de "reforma agrária". Para este enfoque contribuíram também as experiências frustradas de implantação do mencionado modelo.

Em linhas bastante gerais, já em 1986 - os primeiros assentamentos dessa política ocorreram em 1984 - o clima de tensão nos assentamentos era grande, as associações criadas para a "produção coletiva" começavam a se dividir em pequenos grupos e os técnicos estatais - quase sempre militantes políticos de esquerda - esforçavam-se por encontrar formas de produção conciliatórias entre o modelo cooperativo implantado pelo Estado e o modelo "parcelar" ou "familial" do qual os trabalhadores eram, supostamente, portadores. Simultaneamente aumentavam, na Secretaria da Agricultura, os adeptos do chamado modelo familial - originariamente perdedor - e defensores de uma agricultura mais voltada à subsistência dos trabalhadores assentados. O que também parecia arriscado porque, embora aparentemente mais adequado ao projeto dos trabalhadores, esse modelo não oferecia à assessoria estatal qualquer orientação no sentido da superação da tradicional pobreza dominante nos meios camponeses brasileiros.

É nesse contexto de hesitação por parte da intervenção estatal - e de refluxo do movimento político pela reforma agrária - que se constrói a problemática orientadora do presente texto. Procura-se, a partir da análise das relações vivenciadas entre trabalhadores assentados e os referidos atores externos presentes na experiência, avaliar as possibilidades oferecidas pela situação de assentamento à recriação da identidade política do grupo de trabalhadores. Isto é, para a sua recriação em novos sujeitos da luta pela reforma agrária que, ao que tudo indica, deve continuar.

O ASSENTAMENTO DE PORTO FELIZ: A RECRIAÇÃO DO VELHO SONHO

Em agosto de 1985 teve-se a oportunidade de visitar um assentamento de trabalhadores "sem terra" - Sumaré I - no início de seu segundo ano agrícola. Era final de setembro, mas as chuvas ainda não haviam chegado e tudo estava seco. Apenas umas roseiras incrivelmente floridas na frente das casas de tábuas velhas permitiam entrever a presença de alguma seiva, naquela terra batida e quase branca. Visitou-se, a convite de um casal, uma das casas. No quintal, o casal falou das abóboras, batatas-doces e milho produzidos no ano anterior. No chiqueiro, ao fundo, estava o porco que devia engordar. Só alguns pés de mandioca e feijão-guando permitiam acreditar nos planos para depois das chuvas. O passeio das galinhas de um quintal para outro explicava a inexistência de qualquer arbusto ou hortaliça. No interior da casa foi servido bolo de mandioca e café. A mulher falou de sua saúde precária e das suas dificuldades com o trabalho. Mostrou uma hérnia que se pronunciava sob o vestido de algodão ralo.

Falou de sua intenção de trazer uma filha da cidade para "ajudar mais". Numa outra casa, um outro casal contou a história da longa luta que os levara até lá. E do líder do movimento, imobilizado na cama desde a chegada na terra, em conseqüência de um derrame. O técnico estatal que assessorava a experiência falou das divergências políticas ou partidárias entre os agentes externos ali presentes - padres, assistentes sociais, militantes. Do risco de divisões internas no grupo de trabalhadores, em decorrência dessas divergências. Alguns trabalhadores discorreram sobre os problemas da pequena dimensão da área disponível e dos planos para sua ampliação. Aguardariam o prazo estabelecido pelo governo de Estado para a incorporação de mais uma faixa de terra e, no caso de não haver resposta ou da resposta ser negativa, ocupariam também essa faixa. Onde fariam um pasto para os animais que viriam a ter... No final da tarde, quase anoitecendo, observava-se o colorido pálido da paisagem. O horizonte limitado pela poeira da terra seca, recém-preparada para o plantio; os terraços inacabados, aguardando a ajuda estatal que só se completaria na próxima entressafra... Teria valido a pena tanta luta?... E enquanto se refletia sobre esse conjunto desorganizado de impressões, um trabalhador se aproximou e, olhando na mesma direção, perguntou: "Parece um sonho, não?"

A construção desse sonho que aparentemente se tornara realidade explica o processo de formação do grupo de trabalhadores de Porto Feliz. Processo resultante de uma identidade coletiva forjada no bojo do movimento pela conquista da terra, para a qual contribuem, de um lado, a semelhança das experiências vividas pelos trabalhadores e, de outro, as possibilidades oferecidas pela conjuntura política do início do período de transição.

A explicação dos fatores que levaram esses trabalhadores à decisão de ingressar no movimento de luta pela conquista da terra pode ser encontrada na inter-relação de suas trajetórias individuais com a história social recente. A reconstrução da história de vida dos 39 chefes de família que integram a Associação dos Trabalhadores do Assentamento de Porto Feliz -cerca de 40 famílias, ainda não estudadas em profundidade, optaram por não pertencer à associação e produzir individualmente - permite entrever os contornos dessa inter-relação.

Diferentemente do que se supunha, os trabalhadores do Assentamento de Porto Feliz são mais urbanos do que rurais. Operários não-qualifiçados da construção civil - serventes de pedreiro ou da industria - faxineiros, vigias, etc. - formaram a maior parte do grupo. Alguns poucos eram operários mais qualificados - pedreiros, motoristas - e apenas quatro trabalhavam junto a empresa agrícola: um parceiro, um arrendatário e dois diaristas residentes na cidade. Com exceção de um, entretanto, todos são de origem rural. Netos ou filhos de pequenos produtores rurais — posseiros, parceiros, arrendatários ou, em alguns poucos casos, pequenos proprietários. Pequenos produtores insuficientes, de áreas de economia estagnada do país, Nordeste em especial, que entraram em processo de desenvolvimento e de transformação das relações sociais de produção. A memória da infância desses trabalhadores é frequentemente marcada pela referência a mudanças da família em busca de uma terra ou um trabalho melhores, e a da adolescência pela necessidade de sair de casa para "fazer a vida" ou "cair no mundo".

Nestas circunstâncias, a socialização originária desses sujeitos já se deu dentro do intenso processo de migração campo-cidade - ou de proletarização do homem do campo, que caracterizou o desenvolvimento do país nos últimos 40 anos. Nesse processo, o conhecimento das regras do que se pode chamar sociedade camponesa — formada pela pequena produção rural familiar, minimamente autônoma - sofre as consequências das perdas vividas pelas famílias em processo de expropriação da terra. A carência e a insuficiência da produção agrícola são referências ligadas à lembrança de infância de grande parte dos trabalhadores estudados. Da mesma maneira, a instabilidade e o desejo de "caçar outra vida". Deste ponto de vista, pode-se concluir que a origem rural dos trabalhadores do Assentamento de Porto Feliz apenas lhes assegurou um saber camponês residual.

Entretanto, a observação desses trabalhadores em situação de assentamento revelou a existência de diferenças significativas entre eles no conhecimento do cultivo da terra. Essas diferenças parecem se explicar pelas suas trajetórias individuais no processo mais geral de proletarização e de incorporação progressiva das regras da vida urbana. Assim, alguns deixaram seus locais de origem para trabalhar como parceiros ou arrendatários nas regiões de frente de expansão do capitalismo agrário dos anos 50 e 60. Estes tiveram uma experiência como pequenos agricultores na região Sudeste do país - estado de São Paulo e Paraná. Vieram para a cidade quando o avanço técnico da agricultura substituiu o arrendamento e a parceria pelo trabalho assalariado. Outros, mais jovens, andaram pelas atuais frentes de expansão - Mato Grosso, Rondônia, etc. - onde acumularam, muito mais do que experiência camponesa, a experiência da luta pela conquista e pela manutenção da posse da terra. Outros, finalmente, fizeram a trajetória mais direta de seus locais de origem para as regiões industrializadas do estado de São Paulo, multiplicando experiências de trabalho urbano não qualificado. Nos tempos de desemprego, assalariaram-se como diaristas junto à grande empresa agrícola -cortaram cana, colheram laranjas, algodão, etc.

Cabe deixar claro que, embora essas trajetórias de vida expliquem a existência de diferenças significativas no tocante à competência dos trabalhadores para o trabalho agrícola - há, conforme seus próprios depoimentos, "os que são da roça" e "os que não são da roça" -, elas não jogam papel importante no momento da formação do grupo e da decisão de lutar pelo acesso à terra. Porque essas diferenças de trajetórias individuais -e outras que poderiam ser enunciadas - representam, sobretudo, diferentes mediações do já referido processo de proletarização do homem do campo. Processo que o expulsou do campo, não oferecendo condições para sua incorporação plena no trabalho urbano. Transformando essa população migrante de duas ou três gerações no que os sociólogos e economistas vêm chamando de "população excedentária", "exército industrial de reserva", "excluídos do processo produtivo dominante" ou, mais recentemente e a propósito das negociações que definiram o pacto político do governo de transição, de "excluídos do processo político". Ora, nessas condições estruturais, recriam-se, no próprio campo, relações de super-exploração da força de trabalho humana - o trabalho assalariado temporário, o arrendamento e a parceria a serviço da grande empresa agrícola, etc. E o que acaba sendo o elemento comum das trajetórias desses trabalhadores e a experiência de trabalho não qualificado e superexplorado pelo processo produtivo dominante.

A ênfase nessa questão é importante porque ela aponta para as condições nas quais essa população vivenciou o referido processo e foi incorporada à vida urbana. Condições de trabalho instável, de baixos salários e de precária qualidade de vida. Pois bem, a forma pela qual os trabalhadores do Assentamento de Porto Feliz subjetivaram essas condições parece ter sido o fator homogeneizador das avaliações que os levaram a optar por integrarem-se à luta pela terra.

Essas avaliações são marcadas, numa primeira leitura, pela consciência do estado de carência em que viviam. Mas, o grupo é também bastante diferenciado do ponto de vista de suas condições de existência: há os que possuíam casa própria, os que pagavam aluguel e os que estavam sendo pressionados para deixar as casas onde eram inquilinos. Há, ainda, os que tinham trabalho estável, os que trabalhavam como diaristas e os que estavam procurando trabalho. E há aqueles que mantinham a família com um único salário e aqueles cujas mulheres e filhos crescidos trabalhavam e colaboravam para o orçamento doméstico. Nestas circunstâncias, o que parece significativo é a forma pela qual os trabalhadores representam suas carências. Isto é, como referência para a afirmação de uma vida melhor: "a vida aqui não e fácil, mas é melhor do que na cidade", "aqui a gente não paga aluguel, não paga água", "aqui a gente faz ao menos para comer". E há referências explícitas também sobre a impossibilidade de "melhorar de vida" nas condições em que viviam: "eu vi que ali eu não tinha chance de melhorar... eu ia ficar sempre na mesma".

Essa referência ao desejo de "mudar de vida", por sua vez, aparece ligada, de um lado, à necessidade do cuidado com a família e, de outro, à forma segundo a qual vivenciaram as experiências do trabalho não-qualificado ou do "trabalhador sem profissão". No tocante à família, é visível a preocupação dos trabalhadores com a saúde e a educação dos filhos: "as crianças aqui não ficam doentes, têm saúde", "eu vi que ali não tinha condição de dar uma profissão pra eles", "aqui eles podem aprender a trabalhar na lavoura"...

A rejeição às condições do trabalho vivenciado na cidade - ou em suas trajetórias pelo campo - é também bastante evidente entre esses trabalhadores. Seus depoimentos são plenos de referências a problemas de saúde adquiridos no trabalho e às dificuldades com o transporte, o salário, o registro em carteira, o horário de trabalho e o relacionamento com o patrão. Na avaliação desses problemas expressa-se o desejo de um trabalho autônomo: "na lavoura a gente não tem patrão", "a gente trabalha quando quer", "a gente é dono da vida da gente".

Tudo indica que, portadores de um projeto de auto-reprodução familiar e de uma história de vida marcada pela errância à procura de um trabalho mais estável, menos desgastante e mais bem remunerado, o movimento desses trabalhadores é orientado pela esperança de uma vida mais segura e mais livre. É esse sonho que explica a aparente facilidade com a qual eles mudam de um lugar para outro. Numa incessante demonstração de que é possível, sempre, recomeçar.

Houve um tempo, nas suas trajetórias, em que o trabalho ; na cidade aparecia como a objetivação desse sonho de uma vida melhor. A vida "na roça", dos tempos mais remotos, era já uma "vida de privação". Como, ademais, acaba sendo na cidade... Essas considerações são importantes para que se entenda em que circunstâncias o desejo de uma vida melhor se objetiva no projeto de volta à terra. A decisão de voltar para a terra não se liga - com exceção dos casos de alguns trabalhadores mais idosos levados para a cidade pelos filhos - a qualquer nostalgia de um tempo bom vivido "na roça", mas ao desejo de buscar esse tempo bom, sempre projetado para o futuro.

De outro lado, a recriação do velho sonho através da decisão de incorporar-se à luta pelo acesso à terra explica-se também pelo papel importante das possibilidades oferecidas pelo período da transição. No caso, pela já referida política de reestruturação fundiária do governo Montoro e pela ação do MST, auxiliado pela Igreja Católica e pelo Partido dos Trabalhadores. Todos os trabalhadores entrevistados foram informados da existência de um grupo que se formava, a exemplo de dois outros que já tinham conseguido a terra - os grupos Sumaré I e Sumaré II. Esses grupos eram beneficiários da mencionada política e integravam o MST. Os convites para formar um novo grupo chegavam através dos "companheiros da comunidade" e as reuniões preparatórias eram realizadas, quase sempre, nas igrejas. Dessas reuniões participavam trabalhadores da cidade de Campinas e imediações - em especial Sumaré e Hortolândia - e de Limeira. Em todas essas cidades a mediação com os trabalhadores se fazia pelas CEBs - Comunidades Eclesiais de Base. As táticas a serem utilizadas pelo grupo para forçar a negociação com o Estado eram o acampamento à margem de rodovias e a ocupação - principais formas de luta utilizadas pelo MST - de terras públicas, isto é, de terras passíveis de se transformarem em assentamentos, de acordo com a política do governo do Estado.

Terminada a fase preparatória — cerca de seis meses de reuniões semanais "na comunidade" - o grupo iniciou sua ação propriamente dita, ocupando as terras do Instituto de Zootecnia em Nova Odessa - cidade próxima a Campinas. Cerca de 140 famílias entraram nessas terras, à noite, e ali começaram a construir seus barracos. Fundamentado na utilidade publica dessas terras, o governo de Estado recorreu à Justiça e os trabalhadores receberam uma intimação para desocupar a área num prazo bastante curto. Pressionando, num acontecimento público, o secretário da Agricultura, obtiveram uma pequena prorrogação do prazo definido pela Justiça e a promessa de negociações em torno da localização de uma outra área na qual o assentamento desse grupo de famílias fosse possível. Seguros da importância de continuarem pressionando o poder público, os trabalhadores se deslocaram, no prazo estabelecido, para o cruzamento de duas rodovias importantes na região. Construíram seus barracos à margem da rodovia Anhangüera — na altura da cidade de Campinas, a 100 km de São Paulo — e ali permaneceram por quatro meses. Durante esse período tentavam, através de representantes eleitos, fazer avançar as negociações com o Estado. Como estas não chegassem a um desfecho favorável, decidiram aumentar seu poder de pressão, fazendo uma "passeata" - uma "caminhada" — até o Palácio do Governo, em São Paulo.

A estas alturas o movimento já começava a apresentar indícios de desgaste, com a saída de alguns trabalhadores e a participação intermitente de outros que se sentiam desanimados ou necessitados de continuar trabalhando na cidade. O acampamento era mantido com o fornecimento de alimentos feito pelas CEBs ou pelos setores da Igreja ligados diretamente ao movimento. Mas alguns trabalhadores haviam deixado parte da família na cidade - crianças em idade escolar, mulheres grávidas, pais doentes, etc. - e continuavam procurando manter algum tipo de trabalho. Outros, mais inseguros quanto aos resultados do movimento, não haviam abandonado seus antigos empregos. Enquanto uma parte grande dos trabalhadores abandonou os empregos e trouxe a família para o acampamento. Segundo informam, tinham se "jogado na luta pra valer". A palavra de ordem era "lutar para ganhar".

Nestas circunstâncias de participação desigual das famílias que integravam o acampamento e diante da ameaça de desintegração evidente, o grupo sentia necessidade de reassegurar o compromisso das diferentes famílias com o projeto coletivo. O meio encontrado foi o de estabelecer um critério que definisse, com maior rigor, o direito das diferentes famílias à terra que viesse a ser conquistada. A participação na referida "passeata" foi esse critério. Quem se submetesse a esses 100 km de caminhada até o Palácio do Governo teria sua terra assegurada. A marcha durou três dias, envolvendo homens, mulheres, crianças e velhos. Recebidos pelo governador, os trabalhadores tiveram a promessa de uma área de terra no prazo de, no máximo, trinta dias. E voltaram em ônibus oficiais para o acampamento. Exatamente no trigésimo dia deste prazo - 19/03/86 - receberam a visita de representantes oficiais do governo do Estado, orientando-os para as terras ociosas de uma companhia estatal, no município de Porto Feliz, a 110 km de São Paulo e às margens da rodovia Castelo Branco, uma das mais importantes do Estado. Os trabalhadores acreditavam poder começar ali uma nova vida e uma nova história.

O ASSENTAMENTO DE PORTO FELIZ: A REPRODUÇÃO DA VELHA DESCONFIANÇA

Ao tempo em que os trabalhadores analisados eram assentados em Porto Feliz, fazia-se um trabalho de assessoria a uma pesquisa que visava avaliar as possibilidades de emergência, num assentamento, de um sistema de produção que fosse o resultado da interação entre Estado e trabalhadores. Tratava-se de um assentamento — Horto Silvânia — que havia resultado de negociações entre o Estado e os trabalhadores organizados através do Sindicato de Trabalhadores Rurais do Município de Araraquara, no bojo de um dos programas que compunha a política de democratização do governo Montoro. A liderança desse sindicato - um dos mais combativos do Estado — fazia supor, em princípio, que as possibilidades dos trabalhadores terem algum poder de decisão sobre o sistema agrícola a ser desenvolvido eram maiores do que em outros assentamentos. Mas a assessoria estatal impunha, também neste assentamento, o modelo de agricultura cooperada gestado pela burocracia estatal. O presidente do sindicato aderia a esse modelo em nome das velhas dificuldades da esquerda em lidar com a propriedade privada da terra.

A mencionada pesquisa previa o acompanhamento da produção no assentamento, através da aplicação quinzenal de um questionário. Na parte introdutória deste questionário havia algumas questões semi-estruturadas que visavam colher informações sobre os projetos que. os trabalhadores tinham para a terra conquistada. Sabendo que, por contrato feito com o Estado, os trabalhadores só teriam o direito ao uso da terra assegurado a partir do terceiro ano de comprovada produtividade, uma das questões indagava sobre o plano do trabalhador-informante para quando a terra fosse sua. Um dos trabalhadores, homem de confiança do sindicato, respondeu a essa questão de maneira um tanto insólita: "segredo".

Um ano depois - março de 1987 - teve-se a oportunidade de fazer uma visita a esse assentamento. O clima geral era caótico. Depois de dois anos de safra frustrada, sem condições de pagar o financiamento feito no banco para a produção associada e não tendo desenvolvido minimamente regras de utilização e pagamento do equipamento comprado coletivamente, a associação se dissolvia em pequenos grupos menores, os trabalhadores brigavam entre si e cerca de metade tinha abandonado ou estava abandonando o assentamento. O trabalhador, cujo projeto agrícola era "segredo", estava desmanchando sua casa para partir. Falou longamente de suas frustrações com a experiência. Todas elas relativas à "falta de união" e de "consciência" dos companheiros. Não ousava ainda fazer qualquer comentário crítico à ação do sindicato ou do técnico estatal. Dos quais era representante naquele esforço de transformar a experiência num "modelo de produção coletiva" - a expressão era do técnico. A mulher desse trabalhador também falou bastante. Do marido que vivia tenso, emagrecera mais de dez quilos e não dormia mais à noite, devido a essas brigas que tinham "tomado conta do assentamento"... Depois de ouvi-los longamente, decidiu-se indagar sobre o projeto que era segredo: "Agora que o senhor está indo embora, o senhor não poderia contar pra gente que segredo era aquele?" Ao que ele respondeu, sorrindo com tristeza: "é que eu tenho uma casinha em Ribeirão Preto e eu pretendia vender essa casinha para fazer aqui uma criação de porcos".

Era esse o desafio principal que os trabalhadores do Assentamento de Porto Feliz tinham que enfrentar a partir do momento em que se instalaram na terra conquistada: o desafio de conseguir transformar essa terra no espaço de realização de seus projetos individuais ou, de um outro ângulo, de conseguirem interagir com a assessoria e os subsídios estatais de modo a assegurarem uma forma de organização de vida e da produção que correspondesse ao sonho de uma vida melhor que os tinha levado até ali.

Num primeiro momento, o fato de essa experiência ter-se iniciado em 1986, quando as experiências modelares de produção coletiva já tinham se frustrado, jogou a favor dos trabalhadores assentados em Porto Feliz. Os técnicos estatais designados para assessorá-los já eram bastante críticos em relação ao caráter autoritário do referido modelo e atentos para a necessidade de dialogar com os trabalhadores. Assim, na primeira questão a ser enfrentada - a do sistema de divisão da terra a ser adotado - foram realizadas longas discussões com os trabalhadores. O projeto original dos técnicos estatais era o da divisão em lotes para o cultivo, associada à criação de uma agro-vila, situada no centro da área, onde os trabalhadores receberiam uma pequena parcela de terra — o quintal — para a construção de suas casas e os cultivos de subsistência. O grupo se dividiu com relação a essa proposta. Os argumentos em defesa da proposta giravam em torno da maior facilidade de acesso das famílias à infra-estrutura de serviços de uso coletivo - escola, posto de saúde, barracões para as máquinas agrícolas, etc, planejada no centro da agrovila. Mas, pelo menos mais uma preocupação estava presente na defesa que os técnicos faziam do projeto: a necessidade de manter os trabalhadores minimamente organiza dos para a obtenção dos financiamentos bancários, para a compra de máquinas e para os cultivos. As linhas de financiamento existentes para esses casos eram dirigidas para pequenos produtores associados.

Após quase seis meses de discussões - enquanto isso os trabalhadores cultivavam áreas menores, coletivamente - o grupo se dividiu. Aproximadamente a metade preferiu morar em seu próprio lote - 9,4 ha - e produzir individualmente ou com seus próprios recursos. A outra metade organizou-se numa associação e aceitou o projeto inicial de divisão da terra em lotes e quintais, apenas com uma ampliação destes, que passaram a 1,2 ha. A principal razão desta opção parece estar ligada às possibilidades de financiamento para a compra de máquinas e implementos agrícolas em geral - quatro grandes tratores foram adquiridos com financiamento do BNDS, praticamente a fundo perdido -sem correção monetária. No depoimento dos trabalhadores associados, essa argumentação aparece indiretamente, referindo-se aos que decidiram "morar no lote", porque tinham mais recursos para cultivar a terra. O discurso construído pelo grupo dos associados para justificar essa opção, entretanto, é um discurso moral sobre a importância da união e da organização.

Esse discurso moral é indicador da presença da Igreja e do MST nesse processo. Através das lideranças do grupo essas instituições fizeram passar aos trabalhadores a idéia de que no sistema de agrovila estariam mais unidos e, através da associação, produzindo em cooperação - ou comunitariamente — assegurariam sua própria organização e seu compromisso com os objetivos originais do movimento. O caráter moral dessa ideologia comunitária ou coletivista aparece já em princípio na avaliação dos trabalhadores associados sobre os que optaram por "morar no lote". Para aqueles, estes últimos são "individualistas" e, conseqüentemente, não merecedores de qualquer confiança.

Esse maniqueísmo - associado/bom e individual/mau -marca profundamente as relações entre os próprios trabalhadores associados. Quando vão discutir — nas próprias assembléias da associação — os problemas enfrentados no assentamento, os trabalhadores referem-se sempre à falta de união, de formação, de espírito comunitário, etc.. Conversando com os pesquisadores, no início da pesquisa, começavam sempre nestes termos e explicavam que a superação disso demanda tempo, porque as famílias são muito diferentes, não têm a mesma origem, a mesma educação e só pouco a pouco aprenderão a ser mais unidas, etc. Só depois de algum tempo de presença no assentamento os pesquisadores conseguiram vencer essa barreira da moral instituída e chegar às dificuldades objetivas enfrentadas pelo grupo.

Alguns dos problemas objetivos com os quais os trabalhadores se defrontam presentemente precisam ser aqui destacados. Já foi mencionado que a assessoria técnica estatal iniciou seu trabalho no assentamento mais disponível para a busca de soluções agrícolas juntamente com os trabalhadores. A incorporação, entretanto, dos "pacotes tecnológicos", impostos pelas linhas de financiamento existentes, determinou em grande medida o tipo de agricultura ali desenvolvida. Iniciando seu quarto ano agrícola, os trabalhadores reproduzem a experiência do arroz, feijão e milho, que já se mostrou pouco rentável nos anos anteriores. Porque a terra é pouca e a tecnologia insuficiente. No último ano agrícola tiveram um ganho médio mensal no valor aproximado de um salário mínimo. O que só lhes permitiu sobreviver porque a isso acrescentaram-se as vantagens de não pagarem aluguel e de uma produção mínima para consumo -galinhas, abóbora, mandioca, batata-doce, arroz, feijão, milho e, em alguns casos, porcos.

A insistência nesses cultivos chamados tradicionais está ligada, originalmente, à própria política estatal - produzir alimentos básicos com tecnologia empresarial. Mas ela se explica também pela inexperiência dos trabalhadores com relação ao cultivo da terra, às regras do mercado e ao uso do sistema financeiro. Ora, os técnicos estatais vêm insistindo em buscar soluções agrícolas mais adequadas à dimensão e à localização -proximidade de grandes centros consumidores - da terra disponível, mas isso avança lentamente pela inexistência de linhas de financiamento e de modelos de produção agrícola adequados a esta realidade. Sem a referência de um modelo agrícola consistente, os trabalhadores acabam sendo deixados, de um lado, à determinação da infra-estrutura tecnológica a que foram induzidos e, de outro lado, a eles mesmos.

Um outro problema com o qual se defrontam é o dó uso e administração do equipamento técnico de propriedade coletiva: 5 tratores, 1 caminhão, 1 máquina de beneficiar arroz, 1 triturador e uma série de implementos. O uso das máquinas vem passando, pouco a pouco/para a administração dos quatro grupos nos quais os 39 trabalhadores se dividiram para as decisões ligadas a problemas da produção. Mas a manutenção das mesmas, até o momento, esteve a cargo da associação. O que já cria, em princípio, dificuldades. Porque não se sentindo responsáveis pela manutenção das máquinas - o que é de todos não é de ninguém os grupos não administram o cuidado que elas requerem. De outro lado, não confiando na diretoria da associação; os trabalhadores não lhe delegam poder de decisão sobre essa função definida como sendo de sua competência. Cada vez que se torna necessário reparar qualquer máquina é feita uma assembléia e rateado, entre as 39 famílias, o dinheiro necessário/Nestas circunstâncias as máquinas se encontram semi-abandonadas e se desgastam precocemente: Os trabalhadores se acusam mutuamente pela falta de cuidado com o que "é de todos" e as reuniões para estabelecer regras que permitam resolver este problema acabam não sendo produtivas. No presente momento, estão sendo feitas reuniões para decidir a passagem da responsabilidade pela administração das máquinas para os grupos.

Finalmente, um último problema a ser destacado é o do funcionamento da própria associação. Ela, na verdade, só tem funcionado como responsável pelo equipamento de uso coletivo. Argumentando, recentemente, contra a divisão das máquinas entre os grupos, os membros da diretoria insistiram que esta divisão acabaria com a associação. É possível que isso não aconteça. Livrando-se desse papel de guardiã do projeto coletivo do Estado - presente de forma residual através das máquinas - é provável que a associação possa ser recriada a partir das necessidades comuns ao grupo. De um novo projeto coletivo capaz de reintegrá-los. De fato, a associação só existe, no momento como um vago desejo do grupo de manter-se unido. Desejo que aparece subjetivado como possibilidade na memória do tempo do movimento e do acampamento. E que se objetiva, frequentemente, na preocupação com a obtenção do direito definitivo ao uso da terra, ainda não autorizado pelo Estado. No entanto, experiências de mobilização coletiva paralelas à associação vêm se realizando no assentamento. É o caso, por exemplo, de um grupo de mulheres que empreendeu as negociações com a prefeitura municipal a propósito, inicialmente, do serviço de saúde local e, a seguir, do transporte para a cidade. Esse grupo começa a se ampliar e a se organizar para uma intervenção no sentido de melhoria dos serviços oferecidos pela escola. Ao mesmo tempo, outras iniciativas coletivas — compra de mudas de banana, tentativas de comercialização, construção da rede de águas, etc. parecem indicar a existência, entre os trabalhadores, de um saber de organização e participação política e social aprendido uno tempo de acampamento", Isso sustenta a hipótese enunciada sobre as possibilidades de revitalização da associação.

Na pesquisa em curso procurou-se a explicação das dificuldades de superação desses problemas através da observação das relações que os trabalhadores estabelecem entre eles mesmos e com os demais agentes sociais ali presentes. Já de início foi possível observar uma grande incapacidade para qualquer tipo de negociação ou acordo. A dinâmica geral de inúmeras assembléias observadas pode dar uma idéia de como isso, na prática, acontece: a decisão de convocar uma assembléia é sempre tomada pelo diretor e vice-diretor. A divulgação é feita "de boca em boca" e. desacompanhada de qualquer informação precisa sobre a pauta .da reunião. O horário estabelecido é sempre aproximado. Os trabalhadores começam a chegar pouco a pouco e levam cerca de uma hora na espera do momento de começar. Chegam, na maioria dos casos, desconfiados e discretamente. Como se não quisessem ser vistos ou como se não estivessem seguros da importância de estarem lá. Vão se agachando pelos cantos e assistem, à distância, a conversa das "lideranças" - os dois diretores, dois militantes do MST e alguns poucos amigos. A reunião começa, invariavelmente, com a conversa sobre os ausentes — cerca da metade do grupo - e assume uma conotação moral que os responsabiliza, sempre indiretamente, pelos rumos dos acontecimentos. Essa conversa se prolonga por aproximadamente trinta minutos. Só então o presidente expõe a pauta e sugere uma linha de solução dos problemas. Começa uma longa discussão que, num primeiro momento, sugere decisões diferentes mas que, logo a seguir, assume o tom de um discurso negativista, segundo o qual não adianta decidir nada porque outras decisões já foram tomadas e continuou "tudo do mesmo jeito". Várias situações de não cumprimento do decidido pela assembléia são citadas como exemplo. Apenas os nomes dos responsáveis são ocultados. Um "líder" fala da importância de tomarem medidas punitivas. E um deles faz um longo discurso falando de sua dedicação e de seu cansaço, ameaçando não mais se empenhar pelo bom andamento do grupo. Lembrando tudo que já fez por todos e sugerindo que o "individualismo" e a "falta de união" são os responsáveis pelos descaminhos do assentamento. Recoloca então a proposta apresentada no início da reunião, aguarda um tempo em quê os demais presentes começam a demonstrar cansaço e a se retirar e sugere que alguém coloque a questão em votação. Quase sempre todos concordam com a proposta. A reunião acaba.

Essa descrição um tanto caricatural das assembléias permite destacar pelo menos dois dos elementos característicos das relações desses trabalhadores em situação de assentamento: a dificuldade da comunicação que lhes permita avançar no sentido da solução dos problemas que lhes são comuns e a importância do já referido discurso moral na reprodução dessa incapacidade de comunicação.

A análise das histórias de vida e da história social do grupo revela as raízes da primeira dificuldade. Esses trabalhadores trazem neles mesmos essas raízes. Nunca lhes foi dada, em suas trajetórias de vida, a oportunidade de negociar ou de decidir, através de uma negociação, seu próprio destino. Essa condição estrutural de dominados impede-os mesmo de saber que possuem uma história pessoal. Alguns chegam a começar a contar suas histórias dizendo que não as têm. Só à medida que se sentem ouvidos, e começam a compreender melhor a lógica do pesquisador, se entusiasmam e articulam melhor as passagens entre os diferentes momentos dessas histórias. Outros tomam os pesquisadores como "juizes" de sua presença no assentamento e começam produzindo uma história de "heróis da luta pela terra". Só devagar vão encontrando o tom de sua trajetória.

A experiência do movimento foi a primeira que viveram fora dessa condição estrutural de dominados. São longos os relatos das formas como se organizavam e dos mecanismos de tomada de decisão que utilizavam. Seria de esperar que essas práticas vivenciadas com tal intensidade lhes assegurassem um mínimo de condições para o debate ou discussão de suas idéias no assentamento. Entretanto isso parece não ocorrer devido à reprodução, na situação de assentamento, das velhas relações de dominação nas quais sempre viveram. A forma através da qual essa reprodução se realiza explica a desagregação do grupo de trabalhadores assentados.

Já foi registrado que, não obstante a postura critica dos técnicos estatais, o modelo de produção associada proposto pelo Estado se impôs aos assentados de Porto Feliz através do maquinário agrícola adquirido pela associação e das regras adotadas para os financiamentos bancários - só no corrente ano os financiamentos têm sido feitos individualmente. Nestes termos, mesmo possuindo seus lotes individuais desde 1988, os assentados tiveram que se submeter a um mínimo de decisões comuns no desenvolvimento de seus cultivos: o que plantar, como planejar o aproveitamento da terra, como preparar o solo, como colher, etc.

Essa contingência, mesmo contrariando, muitas vezes, os projetos individuais dos trabalhadores - os que são "da roça" expressam-se criticamente sobre as decisões encaminhadas pela associação - não seria, em si mesma, um obstáculo à negociação coletiva do destino a ser dado a esses "pacotes" administrativos. Sobretudo porque a ação dos técnicos estava aberta para a necessidade de aproximar o modelo construído fora da realidade dos trabalhadores - a partir do que se esperava que eles fossem e não do que eles são - a suas expectativas e exigências particulares, tendo em vista o desenvolvimento de novas possibilidades agrícolas.

Mas, à determinação do modelo estatal somaram-se algumas verbas recebidas pela associação — para a utilização coletiva - e a condição regulamentar do acesso ao direito definitivo de uso da terra, após três anos de comprovada produtividade. E este conjunto de condições acaba sendo o ponto de partida para o desenvolvimento de relações de poder avessas aos próprios interesses coletivos. Isto é, pela criação de relações de dominação desagregadoras do grupo. Aí jogam papel importante não apenas os técnicos, mas especialmente os militantes da Igreja e do próprio MST.

Preocupados com a exigência da produtividade agrícola, os técnicos estatais encaminham as operações impostas pelos referidos "pacotes" e aparentemente aprovadas pelos trabalhadores associados. Para tanto, apóiam-se no que entendem serem as lideranças do grupo. Ocorre, entretanto, que essas lideranças são produzidas por mecanismos estranhos à dinâmica interna do grupo, isto é, são produzidas no bojo da militância política do MST e da Igreja. Por razões ligadas às suas próprias histórias de vida, são pessoas que se vinculam-a estas instituições ou por necessidade pessoal de reconhecimento, ou por identificação com suas respectivas ideologias. No primeiro caso, incorporam o discurso ideológico da instituição para exercer seu próprio poder e desenvolvem práticas oportunistas geradoras de problemas de variada natureza. No caso da identificação ideológica, alienam-se ao mesmo discurso e distanciam-se de seu próprio dia-a-dia e dos demais trabalhadores, passando a atuar, na associação, de forma desarticulada da realidade do assentamento. Essas práticas oportunistas ou "idealistas" acentuam, evidentemente, o quadro de dominação criado pela imposição do modelo estatal.

No Assentamento de Porto Feliz esses dois tipos de "líderes" se alternam ou colaboram na diretoria da associação. E são responsáveis, sempre, pelo encaminhamento das soluções a serem dadas aos problemas coletivos. Conseguem manter esse papel, de um lado, porque se aliam na defesa da organização coletiva defendida pelas três instituições mais diretamente ligadas ao assentamento: o Estado, a Igreja e o MST. De outro lado, entretanto, promovem, acredita-se que inconscientemente, uma trama de relações voltada para a manutenção do poder pessoal de alguns e desagregadora da união em nome da qual atuam.

Além das diferenças inicialmente apontadas — os "da roça" e os "da cidade", por exemplo -, o grupo de trabalhadores estudado é também bastante diferenciado do ponto de vista da capacidade para o trabalho e para o enfrentamento dos novos sistemas de valores com os quais, enquanto novos produtores rurais, devem se relacionar: o sistema bancário, o mercado, o sistema político-administrativo, etc. Essas diferenças manifestam-se, é evidente, na produtividade das várias famílias, a ponto de se subjetivarem na auto-classificação dos trabalhadores em "fortes" e "fracos". Pois bem, com os "fracos", os "líderes" que jogam ali 'seu poder pessoal estabelecem relações paternalistas: cuidam de suas contas bancárias, preparam suas terras e chegam mesmo a fazer suas colheitas... Além de' toda sorte de favores pessoais. Assim asseguram a dependência e fidelidade desses trabalhadores, que nunca se expressam nas reuniões, mas votam propostas encaminhadas pelas lideranças. Tudo isso é encoberto pelo discurso moral da solidariedade e do bem comum.

Os "fortes", além dos próprios "líderes", são presos numa trama diferente. Têm famílias bem estruturadas, boa capacidade de trabalho e de trânsito pelos bancos e pelo mercado. Têm idéias próprias e, conseqüentemente, ameaçam o poder dos "líderes" instituídos através das ideologias das referidas instituições. Como, na maioria das vezes são "da roça" e contestam, com suas práticas, as supostas decisões coletivas, são discriminados como individualistas e apontados como responsáveis pela desunião. Minoritários e desprovidos de um discurso comum que lhes permita enfrentar o discurso instituído, não conseguem fazer vencer, nas reuniões, suas propostas. Acabam por se calar, sabendo que respeitarão as decisões tomadas desde que não comprometam o desenvolvimento de seus projetos individuais.

Essa complexa teia de relações se reproduz em diferentes situações do dia-a-dia do assentamento. E seria extenso demais descrevê-las aqui. Cabe, entretanto, lembrar que o parâmetro organizador dessa trama passa a ser o da desconfiança. Porque esse "jogo" dá margem a toda sorte de oportunismos pessoais e de resistência sorrateira, como no tempo em que eram trabalhadores em processo de exclusão das relações de produção dominantes no campo, ou trabalhadores assalariados não-qualificados na cidade. Até onde se pode observar, é esta resistência que vai minar, definitivamente, as bases do jogo estabelecido, pela imposição, na prática, de novas formas de cultivo e de novas relações de poder. Mas isso é uma outra história que apenas começa a acontecer no assentamento analisado.

REFLEXÕES FINAIS

Enquanto primeira elaboração de resultados de pesquisa em andamento, este texto oferece diferentes possibilidades de reflexões conclusivas. No tocante, entretanto, ao tema específico -contribuição da experiência de assentamentos ao debate da reforma agrária - para o qual foi escrito, algumas conclusões parecem se evidenciar com maior precisão.

Concebidos como antecipação do processo mais geral de democratização do campo brasileiro - a reforma agrária -, os assentamentos da política de reestruturação fundiária do governo Montoro significaram, de um lado, uma conquista do movimento nacional de luta pela terra. De outro lado, enquanto produto do encontro de forças políticas bastante heterogêneas - as da frente partidária que se opunha ao regime militar - eles surgem com a marca da ambiguidade que caracterizou o projeto político de reforma agrária negociado no bojo do próprio regime militar - a reforma agrária do Estatuto da Terra. Em outras palavras, eles surgem como expressão da possibilidade do acesso de trabalhadores à posse da terra, mas com a condição de não serem alteradas as regras através das quais a grande exploração empresarial vem dominando a agricultura do país.

Nessas circunstâncias, a viabilidade econômica dessas experiências pontuais de "reforma agrária" torná-se bastante difícil; Sem a retaguarda de uma política global de apoio à pequena produção agrícola, a alternativa possível para esses novos produtores rurais consiste ou na reprodução da miséria dominante nos meios camponeses tradicionais ou na produção associada, capaz de incorporar a tecnologia agrícola dominante e as linhas de crédito oferecidas pelas instituições financeiras estatais.

Frente a esse impasse, o modelo agrícola levado pela assessoria estatal aos assentamentos foi o da produção associada apoiado, por razões outras, pela representação da Igreja Católica e pela militância política comprometidas com a luta pela terra. Este modelo, gestado pela burocracia estatal e imposto pelas linhas de crédito, entra em confronto com os projetos de autonomia dos quais os trabalhadores são portadores. A dependência a que estes são submetidos - o direito definitivo ao uso da terra só será obtido após três anos de comprovada produtividade agrícola — impede o desenvolvimento de um diálogo - uma relação dialética - entre o projeto estatal e os projetos individuais dos trabalhadores. Conseqüentemente, a construção, na situação de assentamento, de novas formas de organização da produção agrícola fica dificultada. O saber camponês residual dos trabalhadores - a origem recente dos mesmos é urbana - não se mostra eficiente para o enfrentamento dos desafios de produção nos assentamentos. E o saber técnico oferecido pela assessoria estatal não consegue ganhar eficiência, porque construído fora da realidade específica dos trabalhadores e porque Imposto aos mesmos de forma autoritária.

No plano mais geral da organização da vida no assentamento e no plano específico da organização política, a situação é semelhante: submetidos à velhas relações de dependência, os trabalhadores tendem a recriar as velhas práticas sorrateiras de resistência e velhos comportamentos de oportunismo de toda espécie. A desconfiança se estabelece nas relações interpessoais e a identidade coletiva do grupo, possível por ocasião da luta pelo acesso à terra, tarda a se recriar na situação de assentamento.

Essas dificuldades se acentuam com a derrota do projeto político de reforma agrária nos espaços institucionais do governo de transição, em decorrência da qual a própria política de reestruturação fundiária do estado de São Paulo entra em refluxo. O caso analisado em profundidade - Assentamento em Porto Feliz - permite avaliar a maior complexidade dos desafios trazidos por essa derrota dos trabalhadores assentados.

Num primeiro momento, o recuo da referida política estatal parece jogar um papel favorável aos trabalhadores. Porque vem acompanhado da fragilização do modelo agrícola da assessoria estatal e da consequente elevação do poder de negociação, por parte dos trabalhadores, de seus projetos individuais. Mas, as linhas de crédito continuam a impor a organização da produção associada e a ameaça da perda do direito de uso da terra após três anos de não comprovada produtividade continua a inibir o diálogo entre trabalhadores e assessoria estatal. De seu lado, esta enfrenta a dificuldade de pensar soluções agrícolas que sejam capazes de combinar os projetos individuais dos trabalhadores e o uso dos financiamentos e equipamentos coletivos herdados da situação anterior. Sem o apoio, agora, de qualquer política estatal claramente orientada para essas unidades reformadas. Tudo isso transforma o processo de produção, nos assentamentos, numa busca permanente é numa sucessão de cultivos experimentais nem sempre bem sucedidos. O que agrava os desencontros entre trabalhadores e técnicos estatais, cujas competências acabam sendo colocadas em questão. De qualquer maneira, tudo indica que esses encontros e desencontros são já indicadores de uma dinâmica positiva nessas relações. Uma dinâmica capaz de propiciar, numa conjuntura política favorável, uma relação de trocas entre assessoria estatal e trabalhadores.

É nessa questão da conjuntura política favorável ou desfavorável, entretanto, que residem os maiores problemas enfrentados pelos assentamentos como resultado da derrota do projeto de reforma agrária no governo de transição. Em primeiro lugar, já porque se frustraram, com ela, as expectativas de políticas mais gerais de apoio a unidades reformadas e à pequena produção agrícola de um modo geral. Nestes termos, parece evidente que o sucesso, ou a própria sobrevivência desses assentamentos depende, diretamente, da capacidade dos trabalhadores assentados para negociar com o Estado a manutenção da terra e o atendimento de suas necessidades de pequenos produtores agrícolas.

Ora, sabe-se que a questão da organização política de pequenos grupos passa, em grande medida, pela existência de utopias comuns ou de referenciais políticos de generalidade. A organização desses mesmos trabalhadores por ocasião da luta pela terra foi possível, por exemplo, porque o projeto político do MST e a política de reestruturação fundiária do governo Montoro - além da perspectiva de uma reforma agrária a nível nacional -permitiram-lhes transformar suas expectativas individuais num projeto comum ou coletivo. E é esse referencial de generalidade que parece faltar aos assentamentos na presente conjuntura política.

Conforme já foi mencionado, a trajetória política do projeto de reforma agrária pelos espaços institucionais do governo de transição abalou fortemente as convicções políticas, mesmo das forças mais progressistas, no tocante à questão da reforma agrária. As consequências desse abalo aparecem através da participação dos representantes da Igreja Católica e dos militantes políticos no Assentamento de Porto Feliz. À falta de um projeto político claro a ser levado aos trabalhadores, esses agentes - externos ou internos - reduzem sua intervenção a um discurso moralista a propósito da organização política que só faz aumentar o clima de desconfiança e de desencontro no seio do assentamento.

Finalizando, parece evidente que a recente fragilização da vontade política em relação à reforma agrária está ligada à inexistência, dentre os partidos políticos progressistas, de projetos políticos claros para o processo de democratização do campo brasileiro. É possível que, passado o período das negociações da transição democrática e tendo que se reelaborar em oposição às forças políticas conservadoras recém-vitoriosas no pleito presidencial, esses partidos políticos avancem no enfrentamento da questão social no campo. Nesta hipótese os trabalhadores assentados terão oportunidade de se recriarem em sujeitos políticos do processo de democratização em curso. Fora dela essas experiências tenderão, pela falta de um referencial político de generalidade, a desaparecer ou a permanecer como simples espaços de resistência da luta social pelo direito à cidadania.

  • 1
    Projeto de Pesquisa realizado em colaboração com Gérard Roy, através de convênio de cooperação internacional CNPq/CEDEC/ORSTOM (França)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 1991
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br