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O contexto global da democratização

SISTEMA GLOBAL E DEMOCRACIA

O contexto global da democratização* * Trabalho apresentado na conferência "Aprofundando e globalizando a democracia", realizada em Yokohama, Japão, 17-22 de março de 1990.

Yoshizaku Sakamoto** ** Tradução de Isa Mara Lando.

Pesquisador do PRIME, International Peace Research, Institute Meigaku, Japão

A DINÂMICA DA MODERNA POLÍTICA MUNDIAL

Nos tempos modernos a história mundial foi profundamente afetada pelos fatos que ocorreram na Europa. O próprio conceito de "mundo moderno" é eurocêntrico, refletirido o impacto que foi gerado na Europa. Assim, desde o século XVII a política mundial foi moldada segundo o sistema ocidental de Estado soberano. O que fundamentou a formação do sistema estatal foi a crescente mobilidade dos principais componentes da sociedade: armamentos, bens, capitais, pessoas e informações. O aumento da mobilidade não foi necessariamente motivado por considerações econômicas. Razões militares, religiosas, políticas e outras também estiveram presentes. Contudo, mesmo sem adotar um determinismo econômico, não devemos subestimar as implicações econômicas desta mobilidade, e as consequências destas implicações econômicas sobre as mudanças em outras dimensões da sociedade. Esta dinâmica originou novos modos de guerra, de comércio, investimento, serviços, transportes e comunicações, que superaram a capacidade das unidades tradicionais de tomada de decisão, tais como feudos e cidades. O moderno Estado soberano passou a existir.

Esta dinâmica da mobilidade crescente trouxe três tendências básicas que caracterizam o mundo moderno mas que, de uma maneira complexa, são essencialmente contraditórias entre si.

Em primeiro lugar, essa dinâmica deu origem ao modo capitalista de desenvolvimento desigual nas áreas da economia, ciência e tecnologia. O desenvolvimento era fadado a ser desigual porque os promotores e os beneficiários da mobilidade crescente estavam confinados a certas classes da sociedade estabelecidas em certas regiões de um país, e a característica mais marcante do capitalismo era a competição, que viria a criar a divisão vencedor-perdedor. Por exemplo, o principal agente do capitalismo incipiente foi a burguesia comercial das cidades, que deu as mãos à burocracia absolutista, em detrimento dos "poderes intermediários" (pouvoirs iníermediaires) e dos camponeses das áreas rurais.

Em segundo lugar, a mobilidade crescente era incompatível com a estrutura rígida de domínio baseada no governo hereditário ou na opressão coercitiva. Pelo contrário, era inevitável e até necessário que uma mobilidade crescente nas condições objetivas encontrasse correspondência numa legitimação subjetiva em termos de oportunidades iguais e liberdade de escolha. Não admira que a liberdade de ação, de expressão e de pensamento tornou-se a questão fundamental da sociedade moderna. Assim, a mobilidade crescente levou à demanda popular por um aprofundamento da igualização, onde a liberdade igual fosse desfrutada por um estrato mais baixo da sociedade que até então fora subprivilegiado. A mobilidade crescente iria criar uma situação em que um número cada vez maior de pessoas marginalizadas na camada inferior da sociedade começaria a exigir direitos iguais.

É óbvio que existe uma contradição básica entre a tendência ao desenvolvimento desigual e a tendência ao aprofundamento da igualização. Isto deu origem a uma tensão perpértua que gerou a dinâmica que tem caracterizado a história moderna. Teoricamente, esta expansão dialética pode continuar para sempre.

Há, porém, uma terceira tendência, que constituiu um obstáculo à expansão ilimitada. Trata-se da tendência para a redefinição de fronteiras - a necessidade recorrente de redefinir as fronteiras à medida que iam desaparecendo. As fronteiras constituem o limite externo do domínio, seja territoral ou não-territorial (científico, tecnológico, etc), colocado sob o controle da sociedade para garantir o fornecimento de recursos.

Segundo Carl Schmitt, uma das transformações mais decisivas que ocorreram no início da história moderna foi a mudança cosmológica do medo medieval ao vácuo (horror vacuí) à pesquisa e à exploração ativas do espaço aberto. As Grandes Navegações foram a projeção no globo terrestre da dinâmica da construção do Estado territorial na Europa, que traçou linhas delimitadoras entre os Estados. À medida que as fronteiras indefinidas iam praticamente desaparecendo da Europa no início do século XVII, a noção de um sistema de estados tomou a dianteira, como se constata pelas idéias de "equilíbrio de poder", "família das nações" e assim por diante.

No século XIX, juntamente com esses novos fatos políticos, a penetração econômica do espaço aberto assumiu a forma do estabelecimento de um "império liberal" hegemónico ultramarino e da construção de um mercado doméstico para o capitalismo industrial, mobilizando toda a população numa economia nacional.

Em paralelo com o desaparecimento do espaço aberto" interno, a construção de impérios formais tornou-se a ordem do dia, ou seja, a penetração política uniu-se à penetração econômica. Foi essa a época da partição e repartição em escala global das colônias, em especial na áfrica e na ásia, nas últimas décadas do século XIX, o que indicou o desaparecimento das fronteiras do globo. Também no continente norte-americano percebeu-se que as fronteiras tinham desaparecido. Além da terra, também os mares, como pensava Alfred Mahan, não mais poderiam ser um espaço aberto.

Esta foi a culminação do domínio imperial que o Ocidente exerceu sobre o resto do mundo. Mas foi também o fim da "expansão da Europa" nos espaços abertos, que já durava quatro séculos. A "expansão da Europa" deveria ser ou detida ou continuar sob o risco de destruição mútua. O arraigado impulso em direção à mobilidade maior e à penetração externa, que começara na época das Grandes Navegações e das Descobertas, só poderia ser liberado numa situação de soma-zero, em que o sistema capitalista ficava sujeito às leis desumanas do darwinismo social.

Foi nesta época que se considerou que o capitalismo estava "no estágio mais elevado". A indústria pesada e a indústria química começaram a manufaturar bens de capital para a produção em massa e bens duráveis para o consumo de massa. Grandes impérios pareciam estar no ápice da civilização industrial. Porém, a capacidade de produção em massa e de consumo em massa também podia ser utilizada para a destruição em massa. A idéia de progresso, que correspondia ao aumento linear da mobilidade, começou a ser questionada. A ciência, a tecnologia e a economia ganharam impulso - mas para quê? Surgiu uma sensação generalizada de ansiedade e desorientação. Foi o "fim do século" (fin de siècle).

Ao mesmo tempo, a era da produção em massa e do consumo de massa também foi o começo da era da democracia de massa. O alto índice de mobilidade que trouxe o desenvolvimento desigual em seu mais alto grau causou, simultaneamente, uma nova fase de aprofundamento da igualização, que assumiu a forma de uma exigência popular universal por direitos iguais. É em parte como resultado dessa pressão democrática vinda de baixo que a civilização burguesa começou a dar sinais de decadência. E pode-se argumentar que a história do mundo, desde o final do século passado até agora, é uma manifestação dessa contradição básica entre, de um lado, o desenvolvimento desigual e, de outro, o aprofundamento da igualização.

Além disso, havia o grave problema das fronteiras em desaparecimento. O mundo tornou-se pequeno demais para tolerar a expansão dos impérios europeus às custas das sociedades não-ocidentais. Quanto a isso, pode-se notar que se a origem do conflito fosse apenas o desenvolvimento desigual, este poderia continuar compatível com o desaparecimento das fronteiras, através da utilização e exploração dos recursos limitados, no interesse dos privilegiados. Mais ainda, se a mola-mestra da história fosse apenas a tendência a uma igualização mais profunda, esta poderia tornar-se compatível com as limitações impostas pelo desaparecimento das fronteiras, através da partilha equitativa dos recursos limitados.

Mas sendo a dinâmica do desenvolvimento desigual acompanhada pela luta concomitante pelo aprofundamento da igualização, o problema do crescimento e expansão em espiral teria necessariamente de surgir. Eis por que afirmamos acima que essas três tendências são contraditórias de uma maneira complexa. O meio mais comum adotado para mitigar este dilema foi o avanço da ciência e da tecnologia, com vistas a expandir novas fronteiras em termos não-territoriais.

Nesta perspectiva, pode-se notar que as principais origens do conflito e da problemática globais que nos confrontam hoje - o desenvolvimento desigual orientado para o crescimento, a demanda popular por um aprofundamento da democracia e as iminentes restrições ambientais — já estavam manifestas na virada do século. Neste respeito, a civilização capitalista dos últimos cem anos pode ser caracterizada como "o longo fim do século".

GUERRA E MUDANÇA POLÍTICA

As contradições básicas do sistema capitalista mundial continuaram a manifestar-se na história do século XX, em particular nas duas Guerras Mundiais.

A Primeira Guerra Mundial viu os impérios que se constituíram mais cedo - Grã-Bretanha, França e Estados Unidos - saírem vitoriosos, com seu sistema interno e seu império quase intactos. (O Japão também foi um império vitorioso; mas seu papel foi tão marginal que o país não afetou a guerra nem foi muito afetado por ela.)

As consequências da guerra nos impérios vencidos, que se constituíram mais tarde, assumiram três formas distintas. A Alemanha derrotada, despojada de suas colônias de ultramar, cessou de ser um império mundial mas começou a reconstruir um império na Europa com base no regime interno contra-revolucionário do nacional-socialismo. A Rússia reteve seu império através da sua reorganização, mas seu regime interno passou pela revolução socialista. Assim, no período entre guerras, vimos surgir um império contra-revolucionário e um império revolucionário no continente eurasiano. O império austrorhúngaro e o império otomano se desintegraram em resultado do impacto dos movimentos nacionalistas dentro dos seus respectivos domínios.

Os impérios vitoriosos da Segunda Guerra Mundial foram novamente a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos/ Embora seus sistemas internos permanecessem essencialmente intactos, ainda que acompanhados pela introdução da política do welfare state, até os impérios vitoriosos tiveram que passar por um processo de desintegração em resultado do crescente nacionalismo que surgiu na ásia, áfrica e América Latina, precisamente durante a mobilização dos recursos humanos e materiais das colônias - mobilização efetuada pelos impérios a fim de guerrear um contra o outro. Os Estados Unidos, o "império informal" do hemisfério ocidental, não poderiam ser uma exceção.

Os impérios retardatários e derrotados, representados pela Alemanha e o Japão, passaram não só pela desintegração como também por uma reforma interna drástica, executada pelos Aliados. O fim do imperialismo no ultramar e a democratização interna ocorreram simultaneamente.

Em contraste, a União Soviética, um império vencedor, embora mantendo seu regime interno autoritário, chegou a expandir sua esfera de influência imperial na Europa do Leste. Embora as considerações de segurança que fundamentam esta política sejam compreensíveis, a União Soviética, em comparação com outros impérios, vencedores ou vencidos, se sobressai como uma notável anomalia. Pode-se perguntar por que ela agiu desta maneira, e se não haveria alternativa. Entretanto, dada a presença deste império colossal, é natural que as nações do Leste Europeu começassem a entrar numa luta com duplo propósito - pela democratização e pela independência.

Subjacentes a estes conflitos estão as contradições que caracterizam a história do mundo moderno. Em primeiro lugar, o desenvolvimento desigual originou o conflito entre impérios precoces e tardios, entre impérios e povos colonizados, e entre classes, em particular nos países do núcleo capitalista. Em segundo lugar, a mobilidade crescente aumentou a exigência popular por direitos iguais e participação democrática, no nível doméstico e internacional, especialmente em face da desigualdade causada pelo modo capitalista de desenvolvimento. Em terceiro lugar, o fato de que o impacto externo, seja sob a forma de derrota ou vitória, esteve intimamente vinculado à transformação interna indica a extinção dos espaços abertos e das fronteiras, que serviam para manter os desdobramentos internos bastante isolados das pressões externas.

FLEXIBILIDADE DO CONCEITO DE SISTEMA DE ESTADOS

Apesar da crescente dificuldade de separar o plano doméstico do internacional, exemplificada pelo desaparecimento das fronteiras num mundo que vai diminuindo, a política mundial continuava sendo conceitualizada em termos de um sistema constituído de Estados soberanos. Na verdade, a abordagem realista da política internacional, que prevaleceu na Europa desde os dias de Maquiavel, foi revivida nos Estados Unidos no período pós-Segunda Guerra. Em vista da crescente irrealidade do realismo, devemos perguntar o que significa o conceito de Estado soberano, e por que ele é tão persistente.

Desde a formulação inicial de Jean Bodin, o conceito de soberania foi defendido e desafiado por muitos pensadores, -em variadas formas. Contudo, apesar da divergência dos pontos de vista sobre soberania e Estado soberano, há um quase-consenso de que a essência da soberania é "supremacia". Sendo assim, o que significa "supremacia"? Este conceito tem pelo menos três implicações.

Em primeiro lugar, a supremacia em termos de sistema de valores. Em outras palavras, a soberania se refere a um indivíduo ou um organismo cujo valor intrínseco é considerado superior ao valor de outros indivíduos ou organismos. Portanto, a personalidade ou órgão soberano tem o direito de prevalecer sobre o direito dos demais.

Segundo, a supremacia em termos de interesse. Significa que o interesse de um indivíduo ou de um organismo que é reconhecido como soberano deve ser considerado intrinsecamente prevalecente sobre os interesses dos outros.

Em terceiro, a supremacia para além do sistema de valor. Não há norma moral, ética ou religiosa superior à soberania. A soberania é uma categoria política sui generis, que fica além do bem e do mal, do certo e do errado. Assim, a personalidade ou órgão soberano tem a força (might) para prevalecer sobre a força dos outros.

Na verdade, a força inerente à soberania é algo superior à mera força. Na soberania, o direito, o interesse e a força se fundem. Este é o ponto sutil em que se concentrava a idéia de "raison d'Etaf". A soberania se baseia na força; se ela perde a força, perderá também o interesse e o direito. Assim, é mais do que força. Embora a distinção entre "razão de Estado" e niilismo político seja clara na teoria mas ambígua na prática; é precisamente por causa da convergência de direito, interesse e poder que a soberania do Estado consegue mobilizar tanto a população como a elite governante de um país.

Também foi assumido ou argumentado por muitos pensadores que o Estado soberano prevalece sobre grupos e organizações subnacionais, assim como sobre os indivíduos, porque se baseia no consentimento destes, de uma forma ou de outra. O consentimento garante ao Estado soberano o direito de prevalecer. Mas como mostra a história da formação dos modernos Estados soberanos, a emergência do Estado soberano, mesmo' na sua dimensão doméstica, sem falar na internacional, foi um processo acompanhado por uma longa série de guerras - guerras contra as "forças intermediárias". O Estado soberano repousa, em última análise, na coerção ou na força, que pode ou não ser considerada legítima ou benéfica pelos governados.

É óbvio que a coerção ou a força refletem relações desiguais e assimétricas; o consentimento é uma maneira de garantir um sentido de igualdade, participação e liberdade de escolha. Há uma contradição inequívoca entre os dois conceitos, o que é uma manifestação da contradição entre o desenvolvimento desigual e a crescente igualização - contradição que, como afirmamos acima, caracteriza a dinâmica do mundo moderno.

Neste contexto, podemos lembrar a conhecida definição weberiana de Estado: "O Estado é uma comunidade humana que reivindica (com êxito) o monopólio do uso legítimo da força física". Neste conceito do Estado há três pontos de interesse.

Primeiro, as características atribuídas por Weber ao Estado são exatamente aquelas que tornam um Estado soberano, ou seja, o monopólio do uso legítimo da violência. Embora este conceito de Estado deixe bem claro o quanto é crucial a violência para a formação do Estado moderno, pode-se notar que não é apenas a violência, mas também a legitimidade que Weber considerava componentes essenciais do Estado; e aqui está o que mencionamos acima como "o ponto sutil sobre o qual se concentrava a idéia de razão de Estado".

Segundo, se lermos Weber com atenção, notaremos que a legitimidade, do seu ponto de vista, não concerne necessariamente a uma "comunidade humana" nem às pessoas que são governadas, mas basicamente ao quadro administrativo. Disse ele:

"... normalmente, governar um número considerável de pessoas requer uma equipe, isto é, um grupo especial em que normalmente se pode confiar para executar a política geral, assim como os comandos específicos. Os membros do quadro administrativo podem ter vínculos de obediência ao seu superior (ou superiores) pelo costume, pelos laços de afeto, por um conjunto de interesses puramente materiais, ou por motivos ideais. ... Além disso (dos costumes e dos interesses materiais) há normalmente um elemento a mais, a crença na legitimidade".

Parece que a preocupação principal de Weber foi com a legitimidade reconhecida pelo quadro administrativo, que inclui a polícia, os militares e também a burocracia civil. O que isso implica é que, enquanto a polícia e os militares permanecerem leais à elite governante, a legitimidade do regime, chamado "Estado", pode considerar-se mantida, mesmo que um regime militarizado ou um Estado policial recorra à violência para reprimir as exigências populares por direitos iguais e pela participação democrática.

Em terceiro lugar, apesar do reconhecimento das relações desiguais que caracterizam o Estado, Weber usou o termo "uma comunidade humana" para representar o Estado. Além da identificação da elite governante com o Estado, há aqui uma identificação do Estado com a comunidade humana. É evidente que isto não é peculiar a Weber; é uma ideologia elaborada por muitos intelectuais nos tempos modernos. Na verdade o Estado, nas palavras de Benedict Anderson, é uma "comunidade imaginária" através da qual normalmente se garante a identificação das pessoas com o Estado.

Para fortalecer esta identificação política, geralmente se dá ênfase à equação do Estado com a "nação" chamando o Estado de "Estado-nação". O termo "Estado-nação" (nation-state) deve ser uma expressão estranha em inglês; é um conceito alheio à história das idéias do povo anglo-saxão. Presumivelmente, corresponde ao alemão Nationalstaat, que representa uma imagem orgânica do Estado, denotando um poder forte e integrado de identificação entre o povo e o Estado. Em suma, o conceito de "Estado-nação" sé faz necessário precisamente porque elementos de coerção, desigualdade e assimetria são inerentes ao Estado, mas devem ser legitimados pelo símbolo da comunidade, que cria a imagem de igualdade, identidade ou participação igual.

A adequação do conceito de "Estado-nação" pode ser contestada ainda no nível internacional. Diz-se que o Estado-nação emergiu na Europa moderna e adquiriu aplicabilidade geral na Europa no fim do século XIX. Porém a maioria dos "Estados-nações" da Europa, em particular os que eram considerados grandes potências atuando como membros-chave do sistema de Estados, não eram "Estados-nações" mas sim impérios coloniais desde o começo do sistema de Estados. É apenas na falsa consciência dos europeus que esses impérios foram percebidos como Estados-nações. Quando mais tarde Woodrow Wilson apresentou o princípio de autodeterminação nacional, havia aí uma premissa oculta de que este princípio deveria ser aplicado à periferia da Europa, pois os núcleos já haviam se estabelecido como Estados-nações que não requeriam revisão significativa.

Mais ainda, quando os principais "Estados-nações" da Europa perderam as colônias e, como conseqüência lógica, deveriam tornar-se "Estados-nações" no período pós-Segunda Guerra, eles não mais poderiam ser genuínos "Estados-nações" (mesmo ignorando por ora os problemas étnicos-que tinham) -quando começaram a organizar uma estrutura transestatal, tal como a Comunidade econômica Européia, em nome da sua sobrevivência. Assim, podemos nos perguntar se, ao contrário do que nos dizem os livros escolares de história no Ocidente, houve na realidade uma época de "Estados-nações" mesmo na história da Europa moderna.

O caráter mitológico do "Estado-nação" também se evidencia no Terceiro Mundo de hoje, apesar de, ou por causa do antigo compromisso com a luta pela libertação nacional vinculada à construção do Estado. Há um grande número de nações sem Estados é Estados sem nação. Uma nação, aqui definida como uma comunidade étnica politizada na qual as pessoas compartilham Valores culturais comuns, muitas vezes foi vitimizada pelo Estado, através do qual o grupo étnico dominante ou a elite dominante relega á periferia os grupos étnicos ou as pessoas relativamente sem poder. No Terceiro Mundo o Estado com frequência serve como veículo do desenvolvimento desigual, privando o povo dos direitos iguais à participação democrática.

Apesar do seu caráter mitológico e "imaginário", a idéia de Estado tem um poder de mobilização tremendo porque serve como foco central de força, interesse e direito. Na verdade, em nome do Estado a elite governante exerce um controle efetivo sobre a mobilidade dos componentes da sociedade, tais como o comércio, a moeda etc. Aqui se localiza o perigo: quando o locus da soberania se desloca de um monarca ou do "Estado" para o povo, cujos interesses são definidos dentro do contexto do Estado, o povo soberano pode tornar-se até mais estatista do que um monarca pode ser. Graças ao mito do Estado, que é necessário em virtude da desigualdade ali envolvida, as pessoas tendem a identificar-se com o Estado. Assim, vemos não apenas o "capitalismo de Estado" mas também o "socialismo de Estado" fundado no mito do "nacionalismo de Estado", ou seja, do "Estado-nação".

A DIALÉTICA DA DEMOCRATIZAÇÃO GLOBAL

Com o advento da era nuclear, em 1945, uma mudança fundamental ocorreu na realidade, senão na percepção. Na verdade, a mudança foi conseqüência não só do desenvolvimento das armas nucleares mas também da transformação, que já vinha ocorrendo desde a década de 1930, na área da economia e das comunicações no plano mundial. Uma grande transformação ocorreu em três níveis.

Primeiro, em resultado do desenvolvimento do sistema de armas nucleares, a tecnologia militar superou o contexto do sistema de Estados. Ao contrário do que ocorria na era pré-nuclear, quando a sobrevivência e a segurança do Estado podiam, em última análise, ser garantidas às expensas da sobrevivência e da segurança do adversário, a interdependência em termos de sobrevivência física tornou-se imperativa tanto para o Oriente como para o Ocidente. Isto não quer dizer que as potências, em particular as duas superpotências, começaram em 1945 a agir de acordo com as novas condições objetivas. Ao contrário, passaram-se décadas para que elas alterassem adequadamente sua política externa e armamentícia. Vem daqui a prolongada corrida nuclear. Mas o fato é que uma mudança revolucionária no poderio militar ocorreu em 1945.

Em segundo lugar, sob o sistema de Estados clássico, o desenvolvimento era assunto de preocupação nacional e a formação de uma economia nacional era a chave para se adquirir uma posição favorável na economia mundial, caracterizada pelo desenvolvimento desigual e competitivo. A Depressão da década de 1930 mostrou, de forma negativa, que a economia nacional, por si só, não mais era adequada para dar continuidade ao desenvolvimento. No período pós-Segunda Guerra, a reconstrução e crescimento da economia começaram a ser executados dentro de um contexto que ultrapassava o sistema de Estados clássico. No Ocidente, que foi colocado sob a hegemonia dos Estados Unidos, foi implementado o Plano Marshall de ajuda. O Plano Schuman e a subsequente formação da Comunidade econômica Européia foram um novo recurso para criar uma economia regional transnacional.

Em nenhum lugar a preocupação com o crescimento estável da economia do mundo capitalista foi tão proeminente . como na ajuda concedida pelos Estados Unidos até mesmo aos Estados antes inimigos. Isto foi feito não só por considerações óbvias quanto à guerra fria, mas também devido à dura lição da história do período entre guerras, que demonstrou que o colapso econômico de um Estado capitalista ex-inimigo afetaria também a estabilidade e o crescimento econômico dos Estados vitoriosos.

Do lado Leste, também foi construída uma rede econômica transnacional em oposição ao bloco ocidental. Essa estrutura transnacional, exemplificada pelo COMECON, tinha a intenção básica de acelerar a reabilitação econômica da União Soviética, mesmo às expensas dos seus aliados do Leste Europeu. Assim, mesmo a economia planejada do Estado, que deveria ser orientada essencialmente para a construção de uma economia nacional socialista, foi incorporada a um contexto transnacional.

Terceiro, foram formados novos blocos ideológicos acima das fronteiras nacionais. O conflito ideológico superposto ao conflito inter-Estados não é um fenômeno novo. Por exemplo, as relações internacionais durante a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas assumiram o mesmo caráter. A novidade do período pós-guerra é que havia um elemento comum entre as duas ideologias. O conflito ideológico internacional na época da Revolução Francesa foi formulado em termos de direitos naturais versus privilégios históricos. Porém as duas ideologias do período pós-guerra, embora incompatíveis em muitos outros aspectos, estavam oficialmente comprometidas com os valores democráticos. Um democrata liberal poderia argumentar que, enquanto a democracia ocidental garantia um grau máximo de liberdade individual, o sistema socialista contradizia os direitos humanos. Já um socialista argumentaria que, enquanto o socialismo garantia um nível decente de bem-estar para todos, a liberdade de morrer de fome sob o sistema capitalista se opõe ao princípio democrático da igualdade dos seres humanos.

Quaisquer que sejam as realidades do Leste e do Ocidente e qualquer que seja a intenção subjacente a essas afirmações, foi dessa maneira que as duas ideologias foram apresentadas ao mundo. O conflito entre as duas foi agudo precisamente porque cada uma alegava ser o agente legítimo da democracia. Sendo assim, quanto mais as duas ideologias competiam entre si, mais se disseminava a mensagem das respectivas ideologias pelo mundo, em especial no Terceiro Mundo.

Esta competição ideológica transnacional desempenhou um papel altamente significativo em termos de democratização global. O surgimento dos dois blocos militares transnacionais foi conseqüência do desenvolvimento da tecnologia militar transnacional, que deu origem a relações enormemente assimétricas e desiguais, primeiro entre os Estados Unidos e a União Soviética, depois entre as superpotências e as outras potências, em particular as não-nucleares. Este desenvolvimento desigual assentou as bases para a hegemonia militar das duas superpotências. A formação dos dois blocos econômicos também representou um desenvolvimento desigual na economia do mundo capitalista; nesta, enquanto o Bloco Leste foi posto em isolamento, estabeleceu-se a hegemonia econômica dos Estados Unidos.

Em contraste, o acesso aos símbolos e mensagens democráticas foi facilitado globalmente devido à competição ideológica Leste-Oeste, através da disseminação da idéia de direitos iguais; e sem dúvida, esta competição contribuiu para a aceleração da descolonização e do policentrismo intrablocos no nível internacional, e para os movimentos pela democratização e transformação social no nível interno.

Assim, a democratização numa escala global foi acelerada num ritmo muito mais rápido do que jamais ocorrera na história da humanidade. Duas forças penetraram em quase todas as sociedades do globo; por um lado, o desenvolvimento econômico e tecnológico desigual; por outro, o desenvolvimento político rumo ao aprofundamento da igualização. E tanto o desenvolvimento desigual global como a igualização global equivalem a um aumento sem precedentes nas demandas político-econômicas por recursos.

É precisamente neste momento que o limite ecológico do planeta e a imagem da extinção final das fronteiras do globo tornaram-se claras e inequívocas para a humanidade. Em conseqüência, estejamos ou não conscientes disso, começou uma corrida acelerada entre, por um lado, as forças que procuram usar esses recursos finitos em prol do desenvolvimento desigual e, por outro, as forças que procuram dedicar esses recursos a um aprofundamento da igualização democrática. Infelizmente, as forças a favor do desenvolvimento global desigual, como se exemplifica pelas empresas transnacionais, estão muito mais adiante das forças democráticas, tentando colocar os recursos da Terra sob seu controle. Não há dúvida que as forças a favor da democratização, que tendem a aprofundar a democracia localmente como resultado da penetração global das idéias democráticas, estão ficando para trás.

Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que, graças à disseminação global sem precedentes da mensagem da democracia, já foi assentada a base para concatenar estes movimentos democráticos que se aprofundam localmente através da construção de redes e instituições transnacionais de solidariedade global. Os fatos recentes ocorridos no Leste Europeu e suas repercussões globais demonstram que a conjuntura transnacional e o reforço mútuo dos movimentos locais ou nacionais pela democratização pode ocorrer num ritmo e numa escala que ultrapassam qualquer expectativa.

O discurso a respeito de "aprofundar e globalizar a democracia" e "construir uma sociedade civil global" pode parecer prematuro. Mas na realidade estamos diante deste problema: nossa conceitualização tende a ficar muito atrás da transformação global que já está ocorrendo.

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    Trabalho apresentado na conferência "Aprofundando e globalizando a democracia", realizada em Yokohama, Japão, 17-22 de março de 1990.
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    Tradução de Isa Mara Lando.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 1991
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