Acessibilidade / Reportar erro

Vontade coletiva e pluralidade: uma convivência possível?

ARTIGOS

Vontade coletiva e pluralidade: uma convivência possível?

Álvaro De Vita

Editor assistente de Lua Nova, prepara tese em Ciência Política na USP

O PROBLEMA

Entre os pensadores políticos clássicos, Rousseau ocupa um lugar à parte pelo considerável esforço teórico que dispendeu na tentativa de conciliar categorias do pensamento político muitas vezes vistas como antitéticas: liberdade e igualdade, liberdade e soberania, ou então, razão e racionalidade política, de um lado, e soberania popular, de outro. Rosseau buscava, em síntese, uma forma de fundar o corpo político sobre a soberania popular sem que fosse preciso limitá-la recorrendo a algo externo a ela própria: seja apelando a direitos do homem cuja legitimidade se encontra em um estado de natureza pré-político e que, por isso mesmo, são subtraídos às deliberações coletivas (Locke); seja preconizando o exercício da soberania popular (e de toda forma de soberania) limitada pelo império da lei, o locus verdadeiro da racionalidade política (Montesquieu).

A ambição de Rousseau era inscrever a racionalidade política na soberania popular. Sua solução consistiu, como é sabido, na instituição, através do consenso unânime e de direito entre os indivíduos, da Vontade Geral. Argumentarei, a seguir, que no pensamento de Rousseau, no entanto, a constituição da vontade coletiva dos cidadãos, por supor a unanimidade como único princípio de legitimidade democrática possível, relaciona-se de forma problemática com a pluralidade de vontades individuais e de preferências dos indivíduos. Ou bem não se percebe claramente de que forma passar das vontades individuais à Vontade Geral; ou então, e o que é bem pior, a instauração desta última supõe a supressão da pluralidade de vontades e de preferências individuais.

É preciso desde já ressalvar, em defesa de Rousseau, que essa questão mantém-se em aberto no pensamento democrático contemporâneo. No pensamento democrático, bem entendido, por que o liberalismo, em suas versões mais conservadoras, sequer se coloca o problema - isto é, o problema da busca do bem comum e da racionalidade coletiva. O liberalismo refugia-se gostosamente na diversidade de valores e na pluralidade de interesses da sociedade civil, o reino da liberdade "negativa". O sistema político, entendido como "mercado político", deve se limitar a agregar e a processar, de forma neutra no que se refere à questão da boa vida e da sociedade desejável, preferências dos cidadãos já dadas e constituídas fora dele (na sociedade civil). O Estado, como diz Jon Elster1 1 ELSTER, Jon. Sour grapes. Studies in the subversion of rationality. Cambridge—Paris, Cambridge University Press — éditions de la Maison des Sciences de L'Homme, 1985. , é apenas o Estado dos cidadãos e não importa se suas preferências são egoístas, destrutivas ou de qualquer outra natureza. Ou melhor, talvez até fosse moralmente desejável que o altruísmo prevalecesse, mas o essencial é que não há nenhum outro arranjo justificável de processar as decisões coletivas que não o de exprimir, de forma neutra, as preferências dos cidadãos.

Haveria uma via intermediária entre a exaltação liberal da pluralidade de interesses, preferências e sistemas de valores da sociedade civil e a prescrição de consenso unânime como a única forma de legitimidade democrática possível?2 2 Comentando o empreendimento rawlsiano (A theory of justice, de John Rawls), Catherine Audard assim formula a questão: "O problema é (...) encontrar um tipo de via intermediária, uma base para a unidade e a cooperação sociais que não dependam de algum sistema particular de valores, mas. que seja, ao mesmo tempo, mais do que um simples modus vivendi". AUDARD, Catherine. "Pluralisme et consensus: une philosophie pour la démocrátie?" In: Critique (junho - julho de 1989), p. 410

Creio não ser exagero afirmar que essa talvez seja a questão mais desafiadora e fascinante com que se defronta o pensamento democrático contemporâneo. Trata-se, afinal, do problema de como pensar a busca de formas mais desejáveis de convivência social e política - isto é, do problema da emancipação - depois de a teologia marxista ter exaurido sua energia utópica e depois de não restarem senão escombros de suas tentativas de realização.

No pensamento de Tocqueville, como procurarei demonstrar mais adiante, há elementos para pensar o problema de uma forma que parece mais adequada ao mundo de hoje. Em Tocqueville, a idéia (liberal) de que "o indivíduo é o melhor juiz de seus próprios interesses" convive - de forma conflituosa, é verdade, mas sem que uma elimine a outra ou "se resolva" na outra - com a idéia de que a busca do bem comum constitui-se no objetivo primeiro da atividade política. Afirmar a legitimidade de uma esfera de liberdade "negativa" não exclui, como argumenta Albrecht Wellmer3 3 WELLMER, Albrecht. "Modèles de la liberte dans le monde moderne". In: Critique (junho - julho de 1989), pp. 506 - 539. , que a democracia possa ser pensada, com Tocqueville, como uma "forma de vida ética".

A DEMOCRACIA FUNDADA NO CONSENSO UNÂNIME

Os problemas e as idéias que nos apresenta a leitura das obras de Rousseau continuaram, goste-se disso ou não, no centro dos debates políticos atuais. Mesmo que seja, como é o caso pára a mainstream do pensamento político contemporâneo, de inspiração liberal ou liberal-democrática, de uma forma puramente negativa: os teóricos empíricos da democracia - de Schumpeter a Sartori, passando pelo primeiro Dahl4 4 Refiro-me principalmente a duas obras de Dahl: A preface to a democratic theory (Chicago, University of Chicago Press, 1956) e Who governs? (New Haven, Yale University Press, 1961). - dispendem um enorme esforço intelectual para demonstrar que os ideais participativos da concepção rousseauniana da democracia não se aplicam, e nada têm a dizer, aos sistemas democráticos "realmente existentes" e que o cidadão virtuoso de Rousseau não se encontra em parte alguma.

Por outro lado, temos os adeptos das teorias normativas da democracia, que se recusam a pensar o sistema democrático apenas como um método para a escolha de governantes entre elites competitivas e que buscam manter um princípio de moralidade política no cerne da teoria da democracia. Para estes últimos, o pensamento de Rousseau segue sendo uma referência indispensável. Com Rousseau, eles diriam que "fato não cria direito"; e que, portanto, características das "democracias reais" não servem para desqualificar as prescrições de teorias que, a exemplo da de Rousseau, não se preocupam somente com os sistemas políticos tais como existem e sim, fundamentalmente, com como poderiam ser. (O que implica, evidentemente, uma considerável sobrecarga teórica: é preciso, nesse caso, dar consistência e plausibilidade a alguma idéia de emancipação). Em suma, um argumento empírico não serve para refutar um argumento prescritivo5 5 Sobre, este ponto, ver DUNÇAN, Graeme e LUKES, Steven. "The new democracy". Political studies 11, nº 2 (1963) pp. 156-177. .

Acredito ser possível argumentar em relação a Rousseau, que:

1 - seu pensamento oferece elementos para a elaboração de uma teoria democrática alternativa àquela de inspiração liberal, hoje prevalecente na ciência política, que concebe a democracia apenas como um mecanismo, similar ao mercado no que se refere à alocação de bem e recursos econômicos, de processamento de preferências individuais (dadas de antemão) dos cidadãos. Não é um ponto pacífico situar Rousseau no campo democrático: há os que, como Sartori6 6 SARTORI, Giovani. The theory of democracy revisited. The. classical issues. Chatham, Chatham House Publishers, 1987. pp. 310-315. acreditam que Rousseau estivesse mais preocupado com a rule of law do que com a soberania popular; e há ainda os que vêem nele um teórico avant la lettre das formas de totalitarismo do século XX;

2 - do ponto de vista de uma concepção alternativa à idéia de democracia como método de seleção de elites, e adequada ao mundo contemporâneo, seria preciso reformular o pensamento de Rousseau - e mesmo se apartar dele - em alguns de seus pontos fundamentais.

Sustentar convincentemente essas duas proposições exigiria um esforço intelectual considerável. Procurarei, sem pretender, evidentemente, esgotar o assunto, alinhar alguns argumentos em favor delas.

AMOR PRÓPRIO E VONTADE GERAL

As duas principais obras políticas de Rousseau - o Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens e Do contrato social - estão estreitamente interligadas. Enquanto no Discurso, Rousseau busca uma fundamentação "empírica" - assumidamente conjetural - para as instituições sociais e políticas tais como existentes, no Contrato ele procura fundamentar o princípio de justiça política que deveria orientar a instauração (e o movimento) de um corpo político legítimo.

Há uma outra forma de considerar as duas obras conjuntamente. No Discurso, Rousseau nos fala de uma transformação fundamental na natureza humana, que ocorreu quase imperceptivamente no decorrer de um longo desenvolvimento social: aos poucos, as características originais (e positivas) da natureza humana, o amor de si (o instinto de autopreservação) e o sentimento de piedade pelo sofrimento de um outro indivíduo da mesma espécie, foram sendo sobrepujadas, pelo amor-próprio, um sentimento, anti-social por excelência, que leva à busca contínua do interesse próprio. Em Do contrato social, Rousseau parte do suposto de que uma segunda grande transformação na natureza humana teria que ocorrer se os homens quisessem fundar sua convivência coletiva sobre princípios racionais e éticos. Trata-se da passagem de uma natureza humana, em que o amor próprio sufoca o amor de si e a pitié, para uma outra, cuja característica mais notável seria a capacidade de os indivíduos reciprocamente assumirem os direitos e as obrigações que eles mesmos, coletivamente, se impuseram. Se o amor próprio comprometera os laços de solidariedade social, os liames da convivência coletiva teriam que ser restabelecidos por um esforço deliberado e coletivo dos homens - isto é, pela ação política dos membros da sociedade.

Apesar de Rousseau ser um pensador não-individualista, ele talvez tenha sido, entre os jusnaturalistas, o que mais levou a sério, e radicalizou, a premissa de indivíduos livres e iguais como o único ponto de partida legítimo para a criação da autoridade política. Rousseau recusa tanto o consentimento forçado de Hobbes7 7 Hobbes considera, como formas de obrigação voluntariamente contraída, tanto a instituição do Estado através de uma livre decisão dos indivíduos, como a autoridade paterna, que resultaria do "consentimento" do filho e até mesmo p domínio despótico, adquirido por conquista do vencedor sobre o vencido, desde que o vencido, em troca da preservação de sua vida, "consinta" em se submeter (ver cap. XX do Leviatã). como o consentimento tácito de Locke; no caso deste último, ele recusa especialmente o segundo contrato, ou o segundo passo do contrato lockeano (que, mais do que o pacto fundante do Estado, era o que interessava a Locke; e o único que ainda interessa à teoria liberal), aquele pelo qual os membros do corpo político consentem em delegar a soberania aos representantes - ao governo. Antes de saber de que forma se institui um governo, é preciso, para Rousseau, examinar o "ato pelo qual um povo é um povo".

E aqui penetramos no cerne do argumento político rousseauniano, a idéia que é a pedra angular de seu pensamento e que o distingue fundamentalmente (voltando à proposição 1 antes apresentada) do liberalismo. Trata-se da idéia de que se os indivíduos são livres e iguais entre si, então a única forma de associação política legítima será aquela voluntariamente constituída por eles e aquela em que eles próprios assumem seus direitos e suas obrigações políticas. Cada um dos membros do corpo político "unindo-se a todos, já obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes"8 8 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. In: - Obras. Porto Alegre, Globo, 1962. Livro Primeiro, capítulo VI. . Apesar de abrirem mão de sua liberdade e independência naturais, os indivíduos permanecem "tão livres quanto antes" porque só obedecerão às leis que eles próprios instituírem.

Nessa combinação paradoxal entre, obediência e liberdade - através da qual é possível, a uma só vez, "ser livre e estar sujeito às leis, desde que estas não passam de registros de nossas vontades"9 9 Idem, ibidem. Livro II, cap. VI. "reside a originalidade do pensamento de Rousseau. Na instituição do corpo político, no contrato social rousseauniano, já não é preciso recorrer ao poder coercitivo para assegurar a obediência às leis civis (como em Hobbes), nem se recorrer a um direito natural pré-político para fundamentar os direitos e as liberdades individuais (como em Locke); são os próprios indivíduos que, como súditos, obedecerão às leis que eles mesmos instituíram enquanto membros do soberano (enquanto cidadãos).

Diga-se de passagem que esse peculiar equacionamento de liberdade e obediência parece o único coerente com os pressupostos jusnaturalistas da liberdade e igualdade dos indivíduo como o único ponto de partida aceitável para constituir a autoridade política. Se se recusa a solução rousseauniana, ou bem se terá que supor a obediência pura e simples ao Estado e às suas leis; ou bem se postula que a obediência às leis do Estado depende, para não negar a premissa de indivíduos livres e iguais, da avaliação de cada um e do crivo da consciência individual. Neste último caso, o que se nega é a possibilidade mesma de estabelecer qualquer autoridade política legítima, isto é, a direção tomada é a do anarquismo filosófico10 10 ver PATEMAN, Carole. The problem of political obligation; a critique of liberal theory. Cambridge, Polity Press, 1985. .

A partir do pacto fundante de Rousseau, cada um dos indivíduos passa a ser membro de um corpo político que é o depositário único da soberania - isto é, de um poder que, no que se refere aos assuntos públicos, é incontrastável. Cada membro do soberano, por sua vez, deve passar a se guiar pela Vontade Geral. E aqui nos defrontamos com o conceito que é, ao mesmo tempo, o mais central e também, em meu entender, o mais problemático em Do contrato social, Rousseau não é muito claro na definição de Vontade Geral, e muito menos ainda ele o é para esclarecer seu processo de formação. Aliás, ele parece mais preocupado em dizer o que a Vontade Geral não é; somos esclarecidos, por exemplo, de que ela não é um agregado de vontades particulares, . o que não seria senão a vontade de todos.

É possível, entretanto, discernir dois elementos constitutivos da Vontade Geral rousseauniana. O primeiro elemento pode melhor ser considerado como um pressuposto para sua instauração. Rousseau acredita que a participação igual de todos na soberania - a igualdade política - pressupõe um determinado nível de igualdade substantiva. Não se trata de uma igualização total e sim de um grau de igualdade substantiva imprescindível para assegurar a participação política autônoma de todos os cidadãos. Também nesse ponto, o pensamento de Rousseau se distingue claramente do liberalismo clássico ou contemporâneo.

O outro elemento constitutivo da Vontade Geral é um princípio racional de moralidade política: ela se ocupa exclusivamente com os negócios e interesses públicos. A Vontade Geral é o que há de comum à infinidade de vontades particulares, o que está presente em cada uma delas mas transcende a todas, isto é, aquilo que nelas se orienta para a realização do bem. comum. Note-se que Rousseau não fundamenta sua concepção de democracia (ou de república, como ele prefere) apenas em um procedimento a ser adotado na tomada de decisões políticas; a noção de Vontade Geral - ver proposição 1 - tem um forte conteúdo normativo. Trata-se de um princípio de equidade (Livro II, cap. IV de Do Contrato Social) que deve orientar a conduta pública dos membros do soberano, no sentido de só serem aceitáveis as decisões políticas que imponham a cada um as mesmas condições impostas aos demais: "Todo autêntico ato de Vontade Geral obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos"11 11 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, livro Segundo, cap. IV. .

O consenso normativo em que Rousseau ancora o exercício da soberania popular - o acordo unânime entre os indivíduos no que se refere à adoção de um princípio de justiça política como fundamento da vida pública - supõe nada menos do que uma (segunda) transformação na natureza humana. Como é possível que homens que só se guiavam pelo amour propre, por seus interesses particulares, passem, sob o império da Vontade Geral, a só pensar em si pensando nos demais, e a só pensar nos demais pensando em si?12 12 Nota 123 de Lourival Gomes Machado a Do contrato social (edição comentada das obras de Rousseau publicada pela Globo em 1962). é o problema que Rousseau discute no capítulo dedicado ao legislador e que ele próprio formula da seguinte maneira: "A fim de que um povo nascente possa compreender as sãs máximas da política, a seguir as regras fundamentais da razão de Estado, seria necessário que o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social - que deve ser a obra da instituição - presidisse sua própria instituição, e que os homens fossem antes das leis o que deveriam tornar-se depois delas"13 13 ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Livro Segundo, cap. VII. .

Não me parece que Rousseau tenha visualizado uma solução para esse dilema. A figura do legislador inevitavelmente nos remete à idéia de um mágico início. Como observa Habermas14 14 HABERMAS, Jürgen. "Soberania popular como procedimento. Um conceito normativo do espaço público". Novos Estudos, 26, março de 1990. em um de seus textos recentes, o advento da soberania popular, na qual se inscreve uma racionalidade política de tipo normativa (a Vontade Geral), pensada como resultando de um ato compacto e único, coloca sobre os ombros dos cidadãos uma insuportável sobrecarga moral. Rousseau parece ter subestimado aquilo que a Montesquieu, filósofo pouco dado a criar ficções acerca do altruísmo humano, parecia evidente: "A virtude política é uma renúncia a si próprio, que é sempre algo muito penoso"15 15 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. livro Quarto, cap. V ("Da educação no governo, republicano"). Não há, no pensamento político de Rousseau, uma passagem plausível da pluralidade de vontades e de interesses dos indivíduos para a vontade coletiva dos cidadãos sob a égide de um princípio racional de moralidade política.

Pensar essa passagem exigiria dar mais força à idéia da participação política como uma pedagogia do cidadão, ou seja, abandonar a pretensão de um mágico início. Os cidadãos, participando da tomada de decisões públicas, aprendem não só a relevância da própria participação (única forma de superar a apatia política, inimiga mortal de qualquer forma de democracia rousseauniana: "Quando alguém disser dos negócios do Estado -Que me importa? - pode-se estar certo de que o Estado está perdido"16 16 ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social Livro Terceiro, cap. XV. ) mas aprendem também a se orientar pelo interesse público.

Rousseau, entretanto, não nos autoriaza a dar esse passo (o que nos remete à proposição 2 antes apresentada). A idéia de uma dimensão educativa da participação política fica prejudicada devido a toda sorte de objeções em Do contrato social, contra a livre discussão pública: a desconfiança em relação a partidos e facções, que poderiam, de outro ângulo, ser considerados seus suportes indispensáveis; o medo da "eloquência" (leia-se "demagogia"); a idéia de que a minoria deve ser "forçada a ser livre", submetendo-se docilmente à decisão majoritária e abandonando, como uma percepção equivocada da Vontade Geral, a defesa de seu ponto de vista acerca do bem público. Neste último ponto, há ainda uma manifesta contradição entre a regra da maioria, adotada como um mecanismo realista de tomada de decisão, e o requisito de unanimidade como única forma de legitimidade democrática possível. Afinal, por que a decisão majoritária seria, por si mesma, uma expressão da Vontade Geral?

A restrições que Rousseau impõe a discussão pública derivam, como argumenta Bernard Manin17 17 MANIN, Bernard. "Volonté générale ou délibeation?" Le Débat, nº 33, janeiro de 1985. pp. 72-93 , não de um embrião de totalitarismo presente em seu pensamento e sim de sua concepção limitada de deliberação. Em seu sentido mais forte, deliberação diz respeito ao momento que precede a decisão e durante o qual o indivíduo se interroga sobre as diferentes alternativas e sobre suas próprias preferências - isto é, trata-se do momento de formação da vontade. Rousseau, entretanto, se vale de um conceito fraco de deliberação: ela é reduzida à decisão. Não lhe interessa o processo de formação da vontade - individual ou coletiva. Manin observa que uma concepção fraca de deliberação decorre necessariamente da suposição de que os indivíduos já saibam o que eles querem - qual é sua vontade - no momento em que se reúnem para decidir em conjunto. Como suas vontades já estão determinadas, o recurso à argumentação persuasiva não só é supérfluo como pode ser nocivo: pode conduzir ao erro e à demagogia. Não encontra apoio em Rousseau, portanto, a idéia de que a Vontade Geral possa se revelar através da discussão pública, ou então se constituir em uma forma de racionalidade coletiva assegurada, como quer Habermas, pela adoção de determinados procedimentos de argumentação no. processo deliberativo. A Vontade Geral "emerge natural e espontaneamente, pois que subjaz em todas as consciências capacitadas a exprimir-se"18 18 Nota 110 de Lourival Gomes Machado a Do contrato social. . A comunicação entre os cidadãos rousseaunianos, no momento que precede à decisão, é desnecessária.

Devido à recusa de pensar o problema da formação da soberania popular que incorpore, como um de seus elementos constitutivos, um princípio de justiça política, fica sem resposta, em Rousseau, a questão de por que indivíduos dominados pelo amour propre cederiam algo de si - sua ilimitada liberdade natural, suas preferências egoísticas - em troca da obtenção de um maior controle sobre a vida coletiva. Recorrer, como solução, a um momento inaugural - a obra de um legislador sábio ou uma revolução - deixa a suspeita de que o consenso unânime entre os indivíduos seria obtido às custas da supressão das vontades e preferências individuais. Ou, colocando o problema de uma outra maneira, a instauração da soberania popular poderia implicar a negação da legitimidade de uma esfera da liberdade "negativa". Equacionar, de alguma forma que seja plausível no mundo contemporâneo, soberania popular e liberdade "negativa" (incluindo aí, naturalmente, o direito à propriedade) é um dos desafios que atormentam os que se situam no campo do pensamento democrático.

DEMOCRACIA: NEM UNANIMIDADE NEM (SÓ) PLURALIDADE

Tocqueville é com frequência apresentado como um escritor político preocupado sobretudo com a limitação da soberania popular. É dessa forma que, por exemplo, Habermas sintetiza seu pensamento: "Se o estabelecimento do Estado de direito dividido em poderes não põe limites à democracia do povo, as liberdade pré-políticas do indivíduo correm perigo. Com isso, naturalmente, a razão prática, que se corporifica na constituição, entra (...) em contradição coma vontade soberana das massas políticas. Retorna, assim, o problema que Rousseau pretendia solucionar mediante o conceito de autolegislação"19 19 HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p. 6. . Alinhar, sem mais, Tocqueville ao liberalismo, como faz Habermas, não leva em conta, entretanto, uma outra faceta igualmente importante de seu pensamento. Sem dúvida, a criação de anteparos à soberania era um dos temas de maior centralidade para o autor de A democracia na América. Mas Tocqueville, ao mesmo tempo, preocupava-se com uma questão que dificilmente poderia ser considerada própria do liberalismo - não, pelo menos, de suas versões mais conservadoras, hoje predominantes: a constituição pelo envolvimento ativo dos cidadãos nós negócios públicos, de vínculos comunitários entre indivíduos que, enquanto membros de uma sociedade civil pluralista e diversa nos interesses e preferências que nela se abrigam, têm uma existência atomizada.

Consideremos primeiro o problema da limitação da soberania, como condição sine qua non para a plena garantia de uma esfera de liberdade "negativa" para os individuos. Tocqueville se volta para o estudo da democracia americana com uma inquietação bastante definida: as consequências políticas da crescente igualdade de condições, uma tendência que ele via como irreversível na Europa de seu tempo. Quando Tocqueville fala em democracia e em democratização, é antes de mais nada a essa tendência que ele se refere - a um fenômeno social, portanto. Como ele próprio explicita ao longo de A democracia na América, não se trata de nenhuma forma de igualdade total e sim sobretudo da dissolução dos privilégios de nascimento associados a status social. Digamos que o critério de igualização envolvido é o de igualdade de oportunidades, entendido em um sentido liberal: a cada um de acordo com seu talento e vontade (em oposição à desigualdade aristocrática, que distribui direitos e vantagens, por um, lado, e deveres e encargos, por um outro, de acordo com o status social dos indivíduos).

Se a igualdade de condições, para Tocqueville, era fruto de um processo providencial - ele utiliza este adjetivo para qualificar a igualização como uma tendência que escapa à interferência humana -, a liberdade de modo algum o .seria. A conquista e a conservação da liberdade depende permanentemente de um esforço deliberado dos homens. Ela será sempre, diz Tocqueville em A democracia na América, um "produto da arte".

Qual era a preocupação de Tocqueville com o panorama político europeu (francês, em particular) da primeira metade do século XIX? A Revolução Francesa havia precipitado o advento da igualdade (no sentido antes mencionado) em povos que pouco haviam experimentado a liberdade. Havia o risco de se passar da soberania ilimitada de um só para uma soberania popular também ilimitada. A Revolução não destruirá somente o absolutismo monárquico; ela ao mesmo tempo varrera da sociedade os corpos e poderes intermediários que serviam de anteparo ao poder absoluto: "cada cidadão, tendo-se tornado semelhante a todos os demais, perde-se na multidão, e não se percebe mais senão a imagem vasta e magnífica do próprio povo. "20 20 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte - São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1977. p. 513.

O súbito advento dessa igualdade-como-uniformidade em povos que, devido à vigência anterior do Antigo Regime, não estavam afeitos à liberdade favorecia, para Tocqueville, o fortalecimento do Estado (e dos preconceitos sociais) em detrimento dos direitos individuais - isto é, em detrimento da esfera de liberdade "negativa". As divergências políticas na França pós-revolução não se davam tanto em torno de como exercer a soberania e sim em relação a quem deveriam ser seus portadores: "Os homens de nosso tempo", diz Tocqueville, "estão, pois, muito menos divididos do que imaginamos; estão constantemente a disputar, para saber em que mãos está a soberania; mas entendem-se facilmente sobre os deveres e os direitos da soberania. Todos concebem o governo sob a imagem de um poder único, simples, providencial e criador"21 21 Idem, ibidem, p. 514. .

A igualdade-como-uniformidade criava condições extremamente propícias para, no terreno da' política, a soberania popular se estender ilimitadamente; o poder político "único, providencial e criador" que cresceria à sombra da soberania do povo - e esse era o temor de Tocqueville - teria uma capacidade inédita, mesmo quando comparado com o Antigo Regime, de controlar a sociedade inteira, de intrometer-se na vida privada dos indivíduos e de agir até no detalhe - "é sempre no detalhe que é perigoso escravizar os homens" - sobre seus comportamentos e vontades.

É preciso ressaltar que Tocqueville não via a democracia - tanto o estado social democrático quanto a soberania do povo no mundo político - como algo que necessariamente conduzisse ao despotismo. O que ele percebia, como já foi mencionado, era uma tendência de a igualdade de condições resultar naturalmente em concentração de poder. Essa tendência, que opera imperceptivelmente, teria que ser enfrentada de forma ativa (e ativa aí significa sobretudo uma cidadania ativa) se se quisesse assegurar a liberdade: "Creio que, nos séculos democráticos que estão se abrindo, a independência individual e as liberdades locais serão sempre um produto da arte. A centralização será o governo natural."22 22 Idem, ibidem, p. 517. Não se trata, portanto, de recusar a democracia; a preocupação de Tocqueville é outra: que espécie de governo livre é possível estabelecer-se onde há a igualdade de condições?

É com essa pergunta em mente que Tocqueville fez o primeiro estudo de uma democracia "real", aliás a única de seu tempo. Os Estados Unidos ofereciam um exemplo não só de um Estado social democrático, mas, sobretudo, de um caso em que a igualdade de condições já havia se estendido para vida política: "O povo reina sobre o mundo político americano como deus sobre o universo"23 23 Idem, ibidem, p. 52. ; Ali Tocqueville poderia perceber os efeitos da igualdade de condições levada até o limite de suas implicações, isto é, até o direito igual de todos de participar da condução dos assuntos públicos. E poderia perceber que instituições e costumes políticos dos americanos permitiam que eles conciliassem o exercício da soberania popular com a liberdade e os direitos dos indivíduos.

O que tornava possível, para Tocqueville, essa conciliação nos Estados Unidos? A inscrição da razão prática na rule of law colocada acima da soberania do povo, como supõe Habermas? Esta é uma interpretação demasiado "institucional" do pensamento de Tocqueville. Para ele, soberania popular e uma esfera de liberdade "negativa" podem coexistir não apenas porque se adotam determinados procedimentos políticos e jurídicos, cuja importância, de qualquer modo, ele de forma alguma subestima. Mais do que suas leis e instituições políticas, o que permitia à democracia americana operar sem o risco de tirania da maioria, para Tocqueville, era a existência de um consenso normativo - as crenças e disposições morais e intelectuais compartilhadas por todos e que estão fora da conflitualidade política - presente no que ele chama de costumes. Para o autor de A democracia na América, são sobretudo costumes que mantêm vivos tanto a virtude política dos cidadãos, isto é, o desejo de participar dos negócios públicos, como o gosto pela liberdade e independência individuais.

Uma das crenças mais fortes que Tocqueville nota nos costumes americanos é a que pode ser expressa na seguinte fórmula, de teor obviamente liberal: "O indivíduo é o melhor juiz de seus próprios interesses." O indivíduo se vê como súdito somente no que se refere a seus deveres enquanto cidadão. "Em tudo o que só diz respeito a ele mesmo, continua sendo senhor: é livre e só a Deus deve contas das suas ações. Daí a máxima de que o indivíduo é o melhor e exclusivo juiz do seu interesse particular e de que a sociedade não tem o direito de dirigir as suas ações a não ser quando se sente lesada pelo seu ato ou quando tem necessidade de reclamar o seu concurso"24 24 Idem, ibidem, p. 57, .

Há aí a idéia, que Tocqueville diz ter percebido "infinitas vezes" nas leis a instituições americanas, de que buscando seus interesses próprios os indivíduos contribuem para o bem comum. O costume de negar ao governo o direito de se intrometer em determinadas dimensões. da vida pode ser fundamental para impedir a forma de despotismo (da maioria) que Tocqueville tanto temia. Mas é claro que a idéia de que perseguindo interesses próprios os indivíduos contribuem para o bem comum (e isso Tocqueville também percebeu muito bem nos Estados Unidos) já contém os germes do alheamento dos assuntos públicos - em especial quando se trata de questões mais afastadas dos interesses particulares imediatos. Como assegurar a realização do bem comum quando o custo de uma determinada ação, do ponto de vista da utilidade própria de cada indivíduo, é maior do que seus benefícios?

LIBERDADE CONTRA IGUALDADE?

Se Tocqueville se limitasse a endossar a surrada metáfora liberal da "mão invisível", que harmoniza, do ponto de vista da coletividade, a pluralidade de interesses e de vontades existentes na sociedade civil, dificilmente se poderia filiá-lo à tradição democrática de pensamento. Mas sua aceitação da legitimidade de uma esfera de liberdade "negativa" de modo algum significa a aceitação do enclausuramento utilitário na vida cotidiana, com algo que possa ser conciliável coma democracia. Isso nos conduz à outra faceta de seu pensamento, antes mencionada, e que fez dele o defensor de uma concepção normativa da democracia.

Apesar de Tocqueville não ser um pensador jusnaturalista, há uma questão típica do jusnaturalismo por trás de seu interesse em observar o funcionamento da democracia americana: o que pode constituir o fundamento da ordem social e política quando se exaure a legitimação tradicional (de natureza transcedente)? Ou, nas palavras de Tocqueville: "Nós, porém, abandonando o estado social de nossos antepassados e indiscriminadamente atirando fora suas instituições, as suas ideias e os seus costumes, que tomamos em seu lugar?"25 25 Idem, ibidem, p. 16. . Ou ainda: "Há países onde um poder, de certo modo exterior ao corpo social, age sobre ele e o força a marchar em certa direção. Outros há em que a força é dividida, estando ao mesmo tempo situada na sociedade e fora dela. Nada de semelhante se vê nos Estados Unidos; ali a sociedade age sozinha e sobre ela própria"26 26 Idem, ibidem p. 52. .

É possível a coesão social quando a secularização da esfera da política destruiu a referência a uma fonte externa de autoridade e quando "a sociedade age sozinha e sobre ela própria"? Tocqueville não se perde na contemplação nostálgica do passado. O que ele se pergunta é se, uma vez afastadas as crenças tradicionais e abolida a ordem social do Antigo Regime, a democracia pode responder às demandas de legitimação (esta terminologia não é, evidentemente, dele) e constituir os vínculos que coesionam a vida coletiva. Como observou recentemente Norbert Lechner27 27 LECHNER, Norbert. "Responde a democracy i busca de certeza?" Lua Nova n- 14, abril-junho de 1988. pp 23-37. , o processo de secularização - e isso Tocqueville viu claramente - concentra sobre a esfera da política, e em particular sobre a democracia, demandas muito fortes que antes eram dirigidas a outras dimensões da vida: em especial, a elaboração dos referenciais de certeza28 28 Lechner critica a idéia de que a democracia possa ser, identificada simplesmente à incerteza dos resultados, como argumenta Adam Przeworski em "Ama a incerteza e será democrático" (artigo publicado em Novos Estudos de julho de 1984). que assegurem que a diversidade de valores e de interesses própria de sociedades secularizadas não conduza à desarticulação social.

É por isso que Tocqueville jamais se contentaria com a pura e simples exaltação liberal da pluralidade de pontos de vista da sociedade civil, nem lhe pareceria suficiente, acredito, uma noção meramente "procedimental" de democracia, tal como adotada hoje por boa parte da ciência política. O processo de democratização - de igualização de condições - destruíra não só as diferenças de status mas também os laços de solidariedade social; para Tocqueville, à democracia caberia recriar, na esfera da política, os vínculos entre indivíduos que, na sociedade civil massificada, "perdem-se na multidão".

Observando os Estados Unidos das primeiras décadas do século XIX, Tocqueville percebeu que o costume político fundamental para a criação de vínculos comunitários entre indivíduos dispersos na sociedade igualitária o "espírito" das leis americanas - era o da participação ativa (e, em certas dimensões, direta) dos cidadãos nos negócios públicos. Seria um grave erro interpretar o pensamento de Tocqueville como opondo, sem mais, liberdade à igualdade. A igualdade que ele tinha em mente, que avançava de forma "providencial" nas sociedades secularizadas, era a uniformidade da multidão de indivíduos estranhos uns aos outros. Ou seja, trata-se somente do reconhecimento de uma evidência empírica. Sua concepção da liberdade, por sua vez, tem um forte componente normativo: ela prescreve, como antídoto aos males produzidos pela igualdade de condições, o envolvimento ativo (e a participação em associações políticas e civis) dos cidadãos, nos assuntos públicos. Liberdade assim entendida vai além da noção, liberal (e "negativa") de não ser obrigado a fazer nada a não ser em virtude da lei; ela apela para a idéia de que, agindo em conjunto, os indivíduos recriam voluntariamente os vínculos comuns que os unem:

"Os americanos combateram, por meio da liberdade, o individualismo que a igualdade fazia nascer, e o venceram. Os legisladores da América não acreditaram que, para curar uma enfermidade tão natural ao corpo social nos tempos democráticos, e tão funesta, bastava conceder à nação inteira uma representação de si mesma; pensaram que, ademais disso, seria conveniente dar uma vida política a cada porção do território, a fim de multiplicar ao infinito, para os cidadãos, as ocasiões de agir em conjunto e de fazê-los sentir todos os dias que dependem uns dos outros"29 29 TOCQUEVILLE, Alexis de, op. cit., 389. .

Tocqueville não se limitou a afirmar que a soberania popular podia se exercer completamente no mundo político dos Estados Unidos porque lá havia um tal espírito de liberdade. Ele converteu a liberdade, tal como a entendia e acreditou ser praticada pelos americanos de seu tempo, em substância ética de sua noção de democracia. Como argumenta Albrecht Wellmer30 30 WELLMER, Albrecht. "Modeles de la liberté dans le monde moderne", op. cit. , Tocqueville adota uma concepção de liberdade — que Wellmer classifica entre as noções "comunitárias" de liberdade — que é inseparável: 1) da idéia de indivíduos que agem em conjunto para tomar decisões que se referem a assuntos de interesse comum: 2) da idéia de discussão pública, permeada por uma racionalidade de tipo comunicativa entre os participantes, como forma de criticar e transformar opiniões, escolhas e preferências individuais; e 3) da idéia de um direito igual de todos de participar das deliberações coletivas.

Essa concepção "comunitária" de liberdade está inextrincavelmente ligada à noção tocquevilliana de democracia — tomada agora em um sentido político e não só na acepção de igualdade de condições. É comum opor Tocqueville a Rousseau, para exaltar o "realismo" político do primeiro em contraste com o "moralismo" do segundo. Enquanto um anuncia, logo na primeira frase de Do contrato social, que pensará as leis de sua república democrática tais "como podem ser", o outro se propõe a examinar que instituições e costumes permitem a uma democracia "real" funcionar; a contraposição entre eles oferece uma excelente oportunidade de mover tradição contra razão. Apesar desse propalado realismo de Tocqueville, o conceito de democracia implícito em A democracia na América, entretanto, assume hoje uma feição normativa: a pluralidade de valores e de interesses própria de sociedades secularizadas é um fato e é até desejável para prevenir a tirania da maioria; mas é preciso, se se quer evitar a desagregação social (e o despotismo que se seguiria conseqüentemente), que os indivíduos sejam movidos não só por interesse próprio mas também por algum interesse de ordem superior31 31 Catherine Audard distingue um consenso político do que seria um mero modus vivendi. O consenso político supõe uma base moral em que assentar a convivência coletiva. Nas sociedades democráticas, em que há um consenso desse tipo, os cidadãos percebem que seus interesses próprios dependem da convergência em torno de um interesse de ordem superior. "Em outros termos, mesmo para seres centrados sobre eles mesmos, o bem comum é objeto de um interesse". AUDARD, Catherine, op. cit., p. 416. .

É possível, em suma, interpretar o pensamento de Tocqueville como uma tentativa de conciliar uma esfera de liberdade negativa, que assegura os direitos individuais e em que imperam o relativismo e a busca do interesse próprio, com uma base moral em que assentar a convivência humana em uma sociedade democrática. Como diz Albrecht Wellmer, "não há nenhuma razão para pretender que os princípios universalistas do direito natural cujo conteúdo é a liberdade negativa não possam ser 'traduzidos' no quadro de uma concepção comunitária de liberdade política; o que Tocqueville mostra, efetivamente, é que a liberdade só pode ser concebida no mundo moderno como uma forma democrática de vida ética"32 32 WELLMER, Albrecht, op. cit. p. 521.

Tocqueville estava ciente do risco de a paixão pelo bem-estar material afastar os cidadãos da participação nos assuntos públicos - isto é, solapar a prática da liberdade "comunitária". Mas ele tinha esperança, não sabemos se com razão, de que as duas paixões - pelo bem-estar material e pela liberdade -pudessem se encontrar em algum ponto:

"Um americano ocupa-se dos seus interesses particulares como se estivesse sozinho no mundo, e, no momento seguinte, entrega-se à coisa pública como se os houvesse esquecido. Ora parece animado pela cupidez mais egoística, ora pelo patriotismo mais vivo. O coração humano não poderia dividir-se de tal maneira. Os habitantes dos Estados Unidos demonstram, alternadamente, uma paixão tão forte e tão semelhante pelo seu bem-estar e sua liberdade, que é de crer que essas paixões se unem e se confundem em algum recanto da alma. Os americanos, na verdade, vêem na sua liberdade o melhor instrumento e a melhor garantia de seu bem-estar. Amam essas duas coisas, uma pela outra. Por isso, de modo nenhum pensam que misturar-se ao que é público não é assunto seu; pelo contrário, acreditam que o seu principal negócio é garantir-se por si mesmos um governo que lhes permita adquirir os bens que desejam e que não lhes proíba de gozar em paz aqueles que adquiriram."33 33 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, op. cit., pp. 413-4.

A forma como propus fosse entendida a contribuição de Tocqueville à teoria política aproxima-se bastante, acredito, de formulações mais recentes de Robert Dahl. (Note-se que Dahl se afasta considerável mente dos pontos de vista por ele sustentados em suas primeiras obras - seu pensamento hoje parece estar mais próximo de ideais democráticos emancipatórios cuja realização ele próprio afirmara estar além do que se poderia esperar das democracias "realmente existentes".)

Como ressalta Dahl34 34 DAHL, Robert. A preface to economic democracy. University of California Press, 1985. , há duas maneiras de conceber as relações entre democracia e direitos e liberdades fundamentais. Uma delas é considerar estes últimos como dotados de uma legitimidade inteiramente diversa daquela da democracia - eles são percebidos como anteriores e mesmo como superiores às deliberações coletivas. A "teoria dos direitos prévios", que sem dúvida tem no pensamento de Locke uma de suas inspirações mais importantes, retira do alcance da soberania popular os direitos "inalienáveis", entre os quais o direito de propriedade. Versões contemporâneas, e mais conservadoras, do liberalismo vão ainda além e preconizam que mecanismos de tipo "mão invisível" devem ser sempre preferidos a deliberações coletivas o menor número possível de problemas deve ser submetido à vontade coletiva dos cidadãos.

Há uma forma, entretanto, de não opor direitos e liberdades à soberania popular - única, aliás, como argumenta Dahl, consistente com os ideais democráticos. Trata-se de conceber o direito ao autogoverno como inalienável e os direitos políticos primários - direito de voto, liberdade de expressão e de informação, direito de buscar o controle do governo, direito a eleições livres e honestas, liberdade de associação - como necessários ao exercício daquele. "(...) se as pessoas estão habilitadas Centitled) a se autogovernarem, então os cidadãos também estão investidos Centitled) de todos os direitos que são necessários para eles se autogovernarem"35 35 Idem, ibidem, p. 25. Ainda que seja sempre empiricamente possível que uma parte do demos, mediante decisão majoritária, prive a outra de seus direitos fundamentais — a tirania da maioria — isso não será nunca teórica e moralmente permissível. Privar alguns de seus direitos políticos primários equivaleria a privá-los do direito supremo, o de autogoverno — isto é, significaria a destruição da democracia.

A prioridade moral atribuída por Dahl ao direito de autogoverno tem evidentes afinidades com a concepção comunitária de liberdade que, como argumentei, inspirando-me em Tocqueville, pode ser entendida como a base moral em que assentar a convivência humana em uma democracia. Direito de autogoverno e concepção comunitária de liberdade apelam, um e outro, a um dos mais caros ideais democráticos: a possibilidade que têm indivíduos livres e iguais de juntos exercerem sua autonomia individual para determinar as condições de sua própria existência, desde que não neguem a liberdade e a igualdade de outros36 36 Sobre o "princípio da autonomia", ver, nesta mesma edição, o artigo de David Held, "A democracia, o Estado-Nação e o sistema global." .

  • 1 ELSTER, Jon. Sour grapes. Studies in the subversion of rationality. CambridgeParis, Cambridge University Press éditions de la Maison des Sciences de L'Homme, 1985.
  • 2 Comentando o empreendimento rawlsiano (A theory of justice, de John Rawls),
  • Catherine Audard assim formula a questão: "O problema é (...) encontrar um tipo de via intermediária, uma base para a unidade e a cooperação sociais que não dependam de algum sistema particular de valores, mas. que seja, ao mesmo tempo, mais do que um simples modus vivendi". AUDARD, Catherine. "Pluralisme et consensus: une philosophie pour la démocrátie?" In: Critique (junho - julho de 1989), p. 410
  • 3 WELLMER, Albrecht. "Modèles de la liberte dans le monde moderne". In: Critique (junho - julho de 1989), pp. 506 - 539.
  • 4 Refiro-me principalmente a duas obras de Dahl: A preface to a democratic theory (Chicago, University of Chicago Press, 1956) e Who governs? (New Haven,
  • Yale University Press, 1961).
  • 6 SARTORI, Giovani. The theory of democracy revisited. The. classical issues. Chatham, Chatham House Publishers, 1987. pp. 310-315.
  • 8 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. In: - Obras. Porto Alegre, Globo, 1962. Livro Primeiro, capítulo VI.
  • 10 ver PATEMAN, Carole. The problem of political obligation; a critique of liberal theory. Cambridge, Polity Press, 1985.
  • 11 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, livro Segundo, cap. IV.
  • 13 ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Livro Segundo, cap. VII.
  • 14 HABERMAS, Jürgen. "Soberania popular como procedimento. Um conceito normativo do espaço público". Novos Estudos, 26, março de 1990.
  • 15 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. livro Quarto, cap. V ("Da educação no governo, republicano").
  • 16 ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social Livro Terceiro, cap. XV.
  • 17 MANIN, Bernard. "Volonté générale ou délibeation?" Le Débat, nş 33, janeiro de 1985. pp. 72-93
  • 20 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte - São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1977. p. 513.
  • 27 LECHNER, Norbert. "Responde a democracy i busca de certeza?" Lua Nova n- 14, abril-junho de 1988. pp 23-37.
  • 28 Lechner critica a idéia de que a democracia possa ser, identificada simplesmente à incerteza dos resultados, como argumenta Adam Przeworski em "Ama a incerteza e será democrático" (artigo publicado em Novos Estudos de julho de 1984).
  • 34 DAHL, Robert. A preface to economic democracy. University of California Press, 1985.
  • 1
    ELSTER, Jon.
    Sour grapes. Studies in the subversion of rationality. Cambridge—Paris, Cambridge University Press — éditions de la Maison
    des Sciences de L'Homme, 1985.
  • 2
    Comentando o empreendimento rawlsiano
    (A theory of justice, de John Rawls), Catherine Audard assim formula a questão: "O problema é (...) encontrar um tipo de via intermediária, uma base para a unidade e a cooperação sociais que não dependam de algum sistema particular de valores, mas. que seja, ao mesmo tempo, mais do que um simples
    modus vivendi". AUDARD, Catherine. "Pluralisme et consensus: une philosophie pour la démocrátie?" In:
    Critique (junho - julho de 1989), p. 410
  • 3
    WELLMER, Albrecht. "Modèles de la liberte dans le monde moderne". In:
    Critique (junho - julho de 1989), pp. 506 - 539.
  • 4
    Refiro-me principalmente a duas obras de Dahl:
    A preface to a democratic theory (Chicago, University of Chicago Press, 1956) e
    Who governs? (New Haven, Yale University Press, 1961).
  • 5
    Sobre, este ponto, ver DUNÇAN, Graeme e LUKES, Steven. "The new
    democracy". Political studies 11, nº 2 (1963) pp. 156-177.
  • 6
    SARTORI, Giovani.
    The theory of democracy revisited. The. classical issues. Chatham, Chatham House Publishers, 1987. pp. 310-315.
  • 7
    Hobbes considera, como formas de obrigação voluntariamente contraída, tanto a instituição do Estado através de uma livre decisão dos indivíduos, como a autoridade paterna, que resultaria do "consentimento" do filho e até mesmo p domínio despótico, adquirido por conquista do vencedor sobre o vencido, desde que o vencido, em troca da preservação de sua vida, "consinta" em se submeter (ver cap. XX do Leviatã).
  • 8
    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. In: -
    Obras. Porto Alegre, Globo, 1962. Livro Primeiro, capítulo VI.
  • 9
    Idem, ibidem. Livro II, cap. VI.
  • 10
    ver PATEMAN, Carole.
    The problem of political obligation; a critique of liberal theory. Cambridge, Polity Press, 1985.
  • 11
    ROUSSEAU, Jean-Jacques.
    Do contrato social, livro Segundo, cap. IV.
  • 12
    Nota 123 de Lourival Gomes Machado a Do
    contrato social (edição comentada das obras de Rousseau publicada pela Globo em 1962).
  • 13
    ROUSSEAU, J.-J.
    Do contrato social. Livro Segundo, cap. VII.
  • 14
    HABERMAS, Jürgen. "Soberania popular como procedimento. Um conceito normativo do espaço público".
    Novos Estudos, 26, março de 1990.
  • 15
    MONTESQUIEU.
    Do espírito das leis. livro Quarto, cap. V ("Da educação no governo, republicano").
  • 16
    ROUSSEAU, J.-J. Do
    contrato social Livro Terceiro, cap. XV.
  • 17
    MANIN, Bernard. "Volonté générale ou délibeation?"
    Le Débat, nº 33, janeiro de 1985. pp. 72-93
  • 18
    Nota 110 de Lourival Gomes Machado a Do contrato social.
  • 19
    HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p. 6.
  • 20
    TOCQUEVILLE, Alexis de.
    A democracia na América. Belo Horizonte - São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1977. p. 513.
  • 21
    Idem, ibidem, p. 514.
  • 22
    Idem, ibidem, p. 517.
  • 23
    Idem, ibidem, p. 52.
  • 24
    Idem, ibidem, p. 57,
  • 25
    Idem, ibidem, p. 16.
  • 26
    Idem, ibidem p. 52.
  • 27
    LECHNER, Norbert. "Responde a democracy i busca de certeza?"
    Lua Nova n- 14, abril-junho de 1988. pp 23-37.
  • 28
    Lechner critica a idéia de que a democracia possa ser, identificada simplesmente à incerteza dos resultados, como argumenta Adam Przeworski em "Ama a incerteza e será democrático" (artigo publicado em
    Novos Estudos de julho de 1984).
  • 29
    TOCQUEVILLE, Alexis de, op. cit., 389.
  • 30
    WELLMER, Albrecht. "Modeles de la liberté dans le monde moderne", op. cit.
  • 31
    Catherine Audard distingue um consenso político do que seria um mero
    modus vivendi. O consenso político supõe uma base moral em que assentar a convivência coletiva. Nas sociedades democráticas, em que há um consenso desse tipo, os cidadãos percebem que seus interesses próprios dependem da convergência em torno de um interesse de ordem superior. "Em outros termos, mesmo para seres centrados sobre eles mesmos, o bem comum é objeto de um interesse". AUDARD, Catherine, op. cit., p. 416.
  • 32
    WELLMER, Albrecht, op. cit. p. 521.
  • 33
    TOCQUEVILLE, Alexis de.
    A democracia na América, op. cit., pp. 413-4.
  • 34
    DAHL, Robert.
    A preface to economic democracy. University of California Press, 1985.
  • 35
    Idem, ibidem, p. 25.
  • 36
    Sobre o "princípio da autonomia", ver, nesta mesma edição, o artigo de David Held, "A democracia, o Estado-Nação e o sistema global."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 1991
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br