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Welfare e "keynesianismo militarista" na era Reagan

WELFARE E EXPERIÊNCIAS NEOLIBERAIS

Welfare e "keynesianismo militarista" na era Reagan*

Vicente Navarro**

Professor da Universidade Johns Hopkins e foi um dos fundadores da International Association for the Study of the Welfare State

O welfare state está sendo atacado em toda parte. Fenômeno surgido após a Segunda Guerra Mundial, foi considerado por seus proponentes como uma vitória que historicamente não poderia ser revertida. Parece que houve um consenso dentro do espectro político de que o welfare state chegou para ficar. Esta opinião, porém, estava errada. Desde o final da década de 1970 e continuando por toda a década de 1980, surgiram novas forças poderosas dentro do espectro político de muitos países capitalistas ocidentais, forças que passaram a questionar, e continuam questionando, a própria natureza do welfare state.

Neste artigo, apresentarei em primeiro lugar alguns dos principais argumentos propostos por essas novas forças anti-welfare state, discutindo os pressupostos que há por trás desses argumentos. (Quando falo em forças anti-welfare state, estou me referindo aos grupos políticos, sociais e econômicos que estão defendendo a redução dos gastos governamentais na área social e o enfraquecimento da intervenção governamental para proteger os trabalhadores, os consumidores e o meio ambiente. Neste artigo, irei me concentrar basicamente na discussão dos gastos com o welfare state, e não nas intervenções governamentais na área ocupacional, do pleno emprego e do meio ambiente, embora estas sejam componentes importantes do welfare state.) Analisarei também os dados empíricos que apóiam ou questionam esses pressupostos. Na segunda parte, formularei uma explicação diferente para uma situação que já foi definida como "a crise do welfare state", com propostas específicas, que diferem da política de austeridade seguida pelas forças anti-welfare state e a ela se opõem.

POR QUE SE SUPÕE QUE O WELFARE STATE É UM PROBLEMA

Muitas vezes se argumenta que a expansão do welfare state tem sido, através de seus efeitos de redistribuição, a causa principal da estagnação das economias ocidentais, que se supõe ter começado com as recessões dos meados da década de 1970, e também da recessão profunda - quase depressão - do início dos anos 1980. Assume-se que essa redistribuição de recursos ocorreu: (1) do setor privado para o setor público da economia; (2) do capital para o trabalho e dos setores de renda mais alta para os de renda mais baixa; e (3) dos setores produtivos da população (jovens) para os improdutivos (velhos).

REDISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS DO SETOR PRIVADO PARA O PÚBLICO

Seja qual for o critério empregado para medir o tamanho de um setor (gastos, empregos ou benefícios), não há dúvida que o setor público dos Estados Unidos e de outras sociedades ocidentais aumentou substancialmente nos últimos quarenta anos. A Tabela 1 mostra o crescimento, de 1940 a 1982, dos gastos públicos como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) em alguns países europeus. Desses gastos públicos, os que cresceram mais depressa foram os gastos sociais, incluindo a educação, os serviços sociais e de saúde, e a previdência social (veja a Tabela 2). Em 1981, todos os países capitalistas adiantados (incluindo os Estados Unidos e o Japão) alocaram mais de metade do total dos gastos públicos para finalidades de welfare state.

Em termos de emprego, nos Estados Unidos, por exemplo, o emprego público como porcentagem de todos os empregos aumentou de 17% em 1952 para 18,3% em 1983- Este crescimento foi maior ainda em outros países capitalistas desenvolvidos (veja a Tabela 3). Verificamos aqui, mais uma vez, que a maior parte desse aumento dos empregos públicos ocorreu na educação e nos serviços sociais e de saúde. Nem é preciso dizer que os gastos públicos nos setores sociais não vão apenas para os salários dos empregos públicos, mas também para os salários do setor privado contratado pelo setor público (um setor especialmente grande nos EUA) e para transferência sociais, tais como as pensões e aposentadorias. Na verdade, no final da década de 1970, a renda provinda do governo (seja através de empregos ou de transferências) representava 41% do total das rendas nos EUA. Esta porcentagem era ainda mais alta em outros países capitalistas desenvolvidos (veja a Tabela 4). Como demonstraram Göran Therbon e Joop Roebroek, no final da década de 1970 a renda provinda do governo nos países da OCDE era substancialmente mais alta que o total dos lucros e da renda das empresas. É esta transferência de fundos do setor privado para o público que é considerada a raiz do problema da estagnação em nossas economias ocidentais.

Um pressuposto contido neste argumento é o de que o problema da estagnação econômica se baseia na limitada disponibilidade de recursos (capital) para investimentos produtivos, em virtude da alocação pública de capital escasso para o consumo improdutivo. A conclusão operacional que se deriva daqui é que há uma necessidade de reverter essa transferência de fundos, fazendo voltar os recursos do setor público para o privado. Esta conclusão é o fundamento dos cortes mais drásticos nos gastos sociais, que se iniciaram durante o governo Carter e se expandiram ao extremo durante o governo Reagan. A taxa anual de crescimento dos gastos sociais declinou de 7,9% (de 1964 a 1978) para 3,9% em 1979 e 1980, e menos de 1,5% durante a década de 1980. De maneiras menos drásticas, muitos outros países também assistiram a um declínio da taxa de crescimento de seus gastos sociais. A Tabela 5 mostra as taxas de crescimento dos gastos com a previdência social, em diversos países da OCDE.

Aqui desejo esclarecer que enquanto o argumento anti-welfare state se relaciona com o volume dos gastos públicos globais, a maior parte dos cortes governamentais ocorreu nos gastos sociais. E nos EUA estes cortes foram especialmente acentuados nos gastos dependentes de "testes de recursos financeiros", que servem aos estratos de baixa renda da classe trabalhadora (veja a Tabela 6).

É dupla a prova necessária para sustentar o argumento de que o baixo desempenho da economia se radica na escassez do capital privado: (1) houve, e continua a haver, uma escassez de capital privado no período de crise, e (2) há em qualquer país uma relação inversa entre o tamanho do setor público (que absorve o capital privado) e o bom desempenho econômico. Em outras palavras, deveríamos esperar que quanto maior o setor público, mais baixo será o desempenho da economia, seja este medido em termos de crescimento, inflação ou desemprego. Mais ainda: a fim de justificar os cortes nos gastos sociais, teríamos de esperar também que houvesse uma relação inversa entre a dimensão dos gastos sociais num país e o desempenho da economia. Isto é, quanto maiores os gastos sociais, mais baixo o desempenho econômico. Vamos agora examinar os fatos referentes a cada um desses três pressupostos.

Um apanhado das pesquisas acadêmicas sobre a escassez de capital mostra que não houve escassez de capital privado antes e/ou durante os períodos de estagnação. Entre 1975 e 1980, as empresas nos EUA conseguiram tomar emprestado 100 bilhões de dólares para propostas de compras de ações, parte dos chamados "empreendimentos de papel", isto é, fusões e outros empreendimentos não-produtivos. Estes empréstimos de dinheiro de bancos privados estavam ocorrendo ao mesmo tempo que o establishment político e o empresarial queixavam-se da falta de liquidez, alegando que esta fora absorvida pelo welfare state. E não é só isso: ainda durante este período os bancos particulares nos EUA emprestaram (há quem diga que emprestaram à força) 700 bilhões de dólares para países latino-americanos, contribuindo substancialmente para o problema da dívida externa da América Latina. Na verdade, a melhor prova de que não havia problema de liquidez é que os bancos norte-americanos (e europeus) estavam competindo no mundo inteiro, numa busca desesperada de clientes a quem emprestar dinheiro. Não houve escassez de liquidez nos anos 1970 nem 1980.

Quanto ao segundo pressuposto, refiro-me à Tabela 7, que mostra que não há relação entre, de um lado, o tamanho do setor público (enquanto porcentagem do PIB) ou a taxa anual de aumento dos gastos públicos e, de outro lado, a taxa de crescimento econômico ou o desemprego.

O Japão, um dos países capitalistas desenvolvidos com nível de desemprego mas baixo, é também um dos países onde o setor público cresceu mais depressa, de 22% do PIB em 1973 para 34% em 1982.

Quanto ao terceiro pressuposto, refiro-me à Tabela 8, que mostra que não há relação entre, de um lado, o crescimento econômico ou o desemprego e, de outra parte, o volume dos gastos sociais ou o nível de tributação, incluindo as contribuições para a previdência social. A ausência de correlação neste último caso é particularmente importante em vista do argumento, tantas vezes apresentado, que afirma que os descontos em folha de pagamento destinados à previdência social desestimulam o emprego. Os EUA de fato tiveram um desempenho econômico qualificado como fraco no fim da década de 1960 e durante toda a década de 1970. Os EUA tiveram um desemprego mais alto e um crescimento econômico mais baixo do que a Itália, a França, a Alemanha Ocidental. Entretanto, nos EUA o total dos impostos descontados na folha de pagamento e dos bônus para benefícios adicionais eram muito menores (26% do total dos salários) do que na Itália (51,4%), na França (43,7%) e na Alemanha Ocidental (40,8%).

É necessário agora esclarecer um outro ponto, e aqui eu me dirijo não às forças anti-welfare state, mas a algumas forças pró-welfare state, as de orientação fabiana. A falta de correlação entre, de um lado, o crescimento econômico e, de outro, o volume dos gastos sociais ou a taxa de crescimento desses gastos, questiona a premissa amplamente assumida de que o crescimento econômico é a pré-condição para a expansão do welfare state. Este pressuposto aparece na observação bem conhecida de Tony Crosland, de que "uma rápida taxa de crescimento é uma pré-condição para o estabelecimento do welfare state." Este pressuposto se concentra no crescimento econômico como principal condição que garante os efeitos redistributivos do welfare state. Contudo, a Tabela 8 mostra que em alguns países com grandes gastos sociais o crescimento econômico é rápido, ao passo que em outros ele é lento. Não há correlação entre o crescimento econômico e o welfare state. Na verdade, e como demonstrarei mais adiante, a melhor maneira de prognosticar um grande welfare state não é a taxa de crescimento da economia, mas sim a boa vontade e o compromisso do governo para com o welfare state.

Em suma, as informações empíricas que apresentei até agora põem em dúvida o pressuposto anti-welfare state de que os males econômicos dos países capitalistas ocidentais se enraizam na escassez do capital privado, já que este foi absorvido pelos gastos públicos e sociais, cada vez maiores. Aliás, essa explicação volta a aparecer na proposta atual de que há uma necessidade urgente de reduzir o déficit federal norte-americano a fim de estimular o crescimento e o nível de emprego. Esta proposta ignora o fato de que tanto a Suécia como o Japão têm um déficit do governo central muito maior (15% e 7% do PIB, respectivamente) do que os EUA (5% do PIB). Ambos os países têm uma taxa mais alta de crescimento econômico e nível de desemprego mais baixo que os EUA. E falando em déficit, permitam-me referir outro mito que a experiência recente desmascarou: o argumento que diz que um grande déficit governamental caminha junto com a inflação. Estes três países - EUA, Suécia e Japão — têm grandes déficits e desfrutam de taxas de inflação das mais baixas do mundo ocidental. É a resposta que temos a dar para as teorias econômicas ortodoxas!

A REDISTRIBUIÇÃO DO CAPITAL PARA AO TRABALHO

Outro conjunto de argumentos afirma que os altos impostos pagos pelos que trabalham (necessários para sustentar o welfare state) e os benefícios fáceis para os que não trabalham funcionam como desincentivos para o trabalho, e acabam fazendo com que a economia inteira se enfraqueça. Acrescenta-se a este argumento um outro, que afirma que o alto nível de tributação sobre o capital e sobre os indivíduos que se supõe que tenham uma propensão (ou capacidade) mais elevada a economizar — os grupos de renda alta - é responsável pela limitada poupança e pelos limitados investimentos produtivos em nossas sociedades. Assim, é preciso reduzir os impostos empresariais e o imposto de renda em geral, e em particular os impostos que incidem sobre as faixas de renda mais alta.

Há pelo menos três pressupostos nestes argumentos. Um, que já mostramos ser desprovido de validade científica, é que a crise econômica se deve à falta ou à escassez de capital privado. Os outros dois pressupostos são: (1) quanto mais baixos os impostos sobre as empresas, mais alto será o nível de poupança e de investimentos produtivos, e (2) quanto mais baixos os impostos sobre os indivíduos de renda alta, mais alto será o nível conjunto de poupança e investimento.

Vamos examinar os fatos. A economia dos EUA nos anos 1970 teve um desempenho fraco, apesar de uma taxação muito baixa sobre o capital empresarial; muito mais baixa que no Japão e na Alemanha Ocidental, qualificados como países de bom desempenho econômico, que tiveram a mais alta, e a segunda mais alta dependência dos impostos sobre o capital. Estes dois países têm uma formação de capital maior que os EUA. E não é só isso: uma das primeiras intervenções governamentais da administração Reagan foi cortar pela metade os impostos sobre as em presas, através da oferta de créditos de investimento provenientes de impostos e dos "sistemas de recuperação acelerada de custos" (ACRS, accelerated cost recovery systems'). Assim, deveríamos ter observado um aumento na poupança e nos investimentos empresariais. Porém não foi o que aconteceu. Os investimentos comerciais declinaram de 1980 a 1983 em 9%. E McIntyre já demonstrou que as empresas que receberam maiores benefícios tributários durante o governo Reagan foram as que investiram menos. Elas utilizaram esses cortes nos impostos para aumentar seus lucros, mas não seus investimentos.

Vamos examinar agora o terceiro pressuposto. O governo Reagan cortou o imposto de renda em geral, e em particular os impostos sobre as faixas de renda mais altas. No período 1983-85, os cidadãos norte-americanos e os residentes nos EUA ganhando mais de 80 mil dólares por ano receberam um corte nos impostos da ordem de US$ 24.200, corte sem precedentes para as faixas de renda mais altas. Assim, deveríamos esperar um crescimento da poupança pessoal. Mais uma vez, não foi isso o que aconteceu. O índice de poupança pessoal na verdade caiu de 6% da renda disponível, no governo Carter, para 5,5% em 1983 e 1984.

Em suma, as informações aqui apresentadas mostram que não há dados que comprovem o pressuposto de que os cortes nos impostos das empresas ou no imposto de renda aumentaram os investimentos produtivos ou o total do esforço de trabalho. Como Robert Lekachman concluiu recentemente numa entrevista em Challenge, "Cortar os impostos sobre o investimento não resultou numa nova era de florescimento da formação de capital. Os novos incentivos para a poupança não produziram uma taxa de poupança mais alta. Na verdade, nossa taxa de poupança está tão baixa que já se aproxima de um recorde histórico!"

A REDISTRIBUIÇÃO DOS JOVENS EM RELAÇÃO VELHOS

Outro argumento é o da "transição demográfica". Segundo ele, as populações ocidentais estão passando por um crescimento substancial do setor da população comumente chamado de improdutivo, isto é, os cidadãos mais velhos, de mais de 65 anos de idade. Este setor consome grandes porcentagens dos gastos sociais do governo, pagos com impostos sobre os setores chamados produtivos (de 18 a 65 anos de idade). Nos EUA as pessoas mais velhas, embora representem apenas 11,5% da população, consomem 28% do orçamento nacional e nada menos que 51% do total dos gastos sociais do governo. Mais ainda, o argumento anterior também ressalta que desde 1970, os benefícios da previdência social aumentaram 46% em termos reais, ao passo que os salários do resto da população, corrigidos pela inflação, declinaram em 7%. Assim, assume-se que está ocorrendo um conflito intergeracional, com a população que trabalha (os setores produtivos) cada vez relutando mais em pagar impostos de previdência social para a outra geração.

Aqui há quatro contra-argumentos relevantes. Primeiro, se em vez de observar as características demográficas da população, observarmos as características de emprego, isto é, o tamanho da força de trabalho total dos EUA e a proporção de dependentes (consumidores) por trabalhador (contribuinte), verificaremos (veja a Tabela 9) que nos EUA a porcentagem da população ativa na força de trabalho também aumentou, em grande parte como resultado do grande aumento da participação feminina. Em conseqüência, o número de dependentes por trabalhador não está variando, ou, na verdade, está até diminuindo, como já foi previsto, numa projeção até o ano 2050. Além disso, o Social Security-Trust Fund está atualmente com um superávit, e está contribuindo para a redução do déficit federal norte-americano.

Demonstrar que não há validade no argumento intergeracional não é o mesmo que dizer que tudo corre bem no front da previdência social. O desemprego crescente pode criar um problema no Social Security Trust Fund por causa do aumento nos gastos sociais para cobrir os benefícios de desemprego, e também porque há menos pessoas pagando impostos. Este problema, porém, provém do desemprego, e não da transição demográfica; e é preciso que seja apresentado dessa maneira.

Segundo, mesmo no terreno da transição demográfica, os argumentos que falam do conflito entre gerações podem ser questionados. Na verdade, essa mesma transição demográfica que é responsável por uma porcentagem maior de pessoas mais velhas também é responsável por uma porcentagem mais baixa da população mais jovem (de menos de 18 anos de idade), grupo que consome mais fundos públicos do que os velhos (em áreas como educação, transporte, recreação e outras). Assim, a OCDE avaliou que devido à economia obtida no setor da educação em virtude da transição demográfica (menor porcentagem da faixa de menos de 18 anos nos países da OCDE), os gastos sociais podem ter um aumento anual extra de 0,7% até 1990, suficiente para cobrir as necessidades extras de saúde e outros serviços sociais para a faixa dos mais velhos (acima de 65 anos).

Terceiro, não há apoio popular para reduzir a previdência social nem os gastos sociais. Já demonstrei em outros trabalhos que não há vontade política popular para reduzir os gastos sociais em geral, ou o seguro social em particular. Bem ao contrário, há uma poderosa vontade popular no sentido de aumentar estes gastos, mesmo que isso signifique ter de pagar mais impostos. As pessoas não simpatizam com a idéia de pagar impostos em geral para reduzir o déficit federal; mas, em grande maioria, apóiam um aumento de impostos se tiverem certeza de que esse dinheiro irá para a seguridade social ou para gastos sociais. Este sentimento popular prevalece em todos os principais países capitalistas desenvolvidos.

Pode-se perguntar por que, já que há uma tal vontade popular em prol do aumento nos gastos sociais, tantas populações ocidentais elegeram governos comprometidos com uma política estatal anti-welfare. Como também já demonstrei em outros trabalhos, é errôneo equacionar o comportamento eleitoral com a opinião popular, por várias razões: (a) a maioria desses governos (Reagan, Thatcher, Kohl e outros) foram eleitos por uma minoria, e não por uma maioria do eleitorado, (b) Mesmo entre os que votaram em governos conservadores, encontramos uma grande pluralidade, e até mesmo grupos majoritários que são contra a política social implementada por esses governos. Por exemplo, dos 31% do eleitorado americano que votaram em Reagan em 1984, 65% eram contra a política social desse governo, (c) no ato de votar, o eleitorado opta por uma totalidade, sem ter a chance (exceto em plebiscitos) de votar seletivamente em determinados programas políticos. Nos EUA a prova é que a minoria que elegeu o presidente Reagan votou nele por causa da inflação baixa, que esses eleitores identificaram com a sua política econômica; a maioria desses votantes, porém, discorda da sua política social (e também de sua política externa). Como admitiu o Senador Laxalt, presidente do Partido Republicano dos EUA: "O paradoxo é que as pessoas gostam do Presidente, mas não gostam da maioria das suas posições políticas".

Finalmente, a esmagadora maioria das populações ocidentais apoia o seguro social e outros gastos porque têm a probabilidade de se beneficiarem deles. Mesmo nos EUA, onde o welfare state é consideravelmente subdesenvolvido, 47% de todos os domicílios não-agrícolas receberam em 1984 benefícios de um ou mais programas governamentais. Não só isso: a maioria dos que não receberam benefícios governamentais também apoiava esses programas; queriam que eles estivessem disponíveis caso necessitassem deles. Nos EUA, 89% da população são contra cortes no seguro social, e a tributação destinada ao seguro social (uma das mais regressivas) é a menos impopular de todos os impostos.

Em suma, as informações empíricas disponíveis mostram que não há provas conclusivas nos argumentos que colocam a transição demográfica como fator contra o welfare state.

FIM DO KEYNESIANISMO? O NEOLIBERALISMO ASSUMIDO DO GOVERNO REAGAN

Demonstrei a natureza ideológica, e não científica, dos principais argumentos neoliberais contra o welfare state. Tentarei agora responder a algumas das principais interpretações da política de Reagan que apareceram em muitos establishments políticos da Europa. É fato que a experiência Reagan é mencionada, de modo geral, em termos elogiosos, como uma experiência muito bem-sucedida que as forças conservadoras, neoliberais (e mesmo, por vezes, progressistas) querem emular. Até líderes socialistas como Mitterrand e Craxi referiram-se à economia de Reagan, ou "Reaganomics", como uma experiência de sucesso da qual vale a pena tirar lições.

Contudo, na realidade esta política chamada de neoliberal é uma política keynesiana ortodoxa. Em verdade, a enorme recessão de 1981-83 (a maior desde a grande Depressão) foi em grande parte corrigida por medidas keynesianas ortodoxas, isto é, estímulo da economia por meio de (1) aumento dos gastos públicos e (2) criação de um grande déficit federal. De fato, apesar da retórica anti-governamental da administração Reagan, o tamanho do setor público aumentou (e não diminuiu) substancialmente durante os anos Reagan. Descontando a inflação, o governo federal gastou 30% mais em 1985 do que em 1980. E esse crescimento não foi devido ao aumento dos empregos públicos federais (que na verdade diminuíram durante os anos Reagan) ou às transferências sociais muito maiores, mas sim, ao aumento dos subsídios e da compra de bens e serviços. Esse aumento foi possibilitado pela transferência sem precedentes de fundos federais do setor social para o militar, e por um enorme aumento no déficit federal. Desde 1980 o orçamento da defesa dobrou; em 1990 ele terá triplicado a partir do início da década. Este crescimento dos gastos militares foi possibilitado, em grande parte, por reduções nos gastos sociais. Entre 1982 e 1985, os gastos militares aumentaram em 90 bilhões de dólares, ao passo que os gastos sociais sofreram um corte de 75 bilhões de dólares. Hoje os gastos militares representam 55% do orçamento federal (excluindo o Social Security Trust Fund) e há previsões de que ele atingirá cerca de 60% em 1992. O aumento dos gastos militares concentrou-se em despesas materiais: aquisição de armas, pesquisa e desenvolvimento, construções militares. De 1980 a 1985 a aquisição de armamentos aumentou em 100%, a pesquisa em 80% e a construção militar em mais de 90%. Os gastos com o pessoal aumentaram em apenas 13%.

Este crescimento dos gastos militares corresponde a uma política explícita de reindustrializar a América. Como afirmou o Secretário da Defesa Casapar Weinberger, um efeito benéfico do crescimento dos gastos militares (mais de um trilhão de dólares em cinco anos) é a reindustrialização da América. Esta reindustrialização ocorre sob a administração do Departamento de Defesa dos EUA, definido por Sherman e Wood como a maior economia planejada do mundo excetuando a União Soviética. Como indicou recentemente L. Thurow, "o Departamento de Defesa Norte-americano muitas vezes desempenhou o papel do MITI japonês na economia americana." Nesta época o orçamento para pesquisa do Departamento de Defesa representa nada menos que um terço de todo o dinheiro gasto em pesquisa no país. A intervenção do governo, porém, não pára aqui. O governo americano empresta ou avaliza um trilhão de dólares, o que faz dele o maior banco de investimentos do mundo. À luz de todos esses fatos, é difícil justificar uma definição do governo americano como não-intervencionista, ou a política de Reagan como neo-liberal. O governo norte-americano tem sido um dos mais intervencionistas do mundo capitalista ocidental, e sua política tem sido keynesiana. As principais diferenças entre a política keynesiana de Reagan e a dos seus predecessores são: (1) Reagan vem estimulando a demanda através de gastos militares, e não sociais: seu keynesianismo é do tipo militarista; e (2) Reagan avançou mais que outros presidentes, não só estimulando o consumo mas também intervindo no mundo da produção. É paradoxal, para dizer o mínimo, que este keynesianismo militarista esteja sendo apresentado na Europa como um neo-liberalismo.

Mas será de fato o governo Reagan uma história de sucesso? Será que essa postura keynesiana militarista teve sucesso? Não é bem isso que se pode dizer. Ao contrário do que muita gente acredita na Europa, a taxa anual de crescimento de empregos durante seu governo (1,56%) foi mais baixa do que em todos os governos Democratas desde a Segunda Guerra Mundial (Truman, 2,74%; Kennedy-Johnson, 2,73%; e Carter, 3,3%); foi mais baixo até do que a dos governos Republicanos anteriores (Nixon-Ford, 1,97%). Apesar de toda a retórica sobre o grande número de empregos criados, a média anual em 1981-85 foi menos da metade dos empregos criados em 1976-80, e não alcança a média obtida nos dez anos de 1966 a 1975.

Analogamente, o índice médio anual de crescimento real do PIB não foi mais alto em 1981-85 do que em 1976-78. Apesar de todos os incentivos tributários para a formação de capital empresarial, o crescimento médio anual em gastos com instalações e equipamentos foi, na verdade, substancialmente mais baixo em 1981-85 do que nos dez anos anteriores. A única área onde Reagan se saiu ligeiramente melhor do que seus predecessores foi no controle da inflação, que foi mais baixa do que nos anos 1970, mas não mais que nos anos 1960. Entretanto, esta redução da inflação foi obtida com o enorme custo da segunda pior depressão do país, com o crescimento econômico mais baixo e o desemprego mais alto nos EUA desde a década de 1930. A piora da qualidade de vida dos cidadãos americanos que ocorreu na década de 1980, com o surgimento da fome e da falta de moradia como fenômenos de massa, é testemunha dos altos custos sociais dessas táticas. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, diminuiu a taxa de declínio da mortalidade infantil, e a cada ano o número de crianças que morrem por causa da pobreza é maior do que o número total de mortos na guerra do Vietnan. O crescimento acelerado e sem precedentes (em tempos de paz) dos gastos militares, justificado pela necessidade de aumentar a segurança do nosso povo contra forças inimigas, está criando uma grande insegurança dentro do país, com amplos bolsões de pobreza, stress e insegurança. As doenças ocupacionais que mais cresceram durante a era Reagan foram as relacionadas ao stress. A cada dois segundos uma arma é comprada na América, e a cada dez minutos ocorre uma morte causada por arma de fogo. É provável que a baixa taxa de inflação poderia ter sido conseguida com menos sofrimento, através de outras formas de keynesianismo que não o militarista.

Em vista dessa experiência, é difícil compartilhar o entusiasmo pela política de Reagan que parece existir na Europa. Os custos econômicos e sociais do que erradamente se define como neo-liberalismo chegam a impressionar.

A ALTERNATIVA PROGRESSISTA

Creio ter demonstrado que as duas alternativas que testemunhamos hoje (pelo menos nos EUA) não são a estratégia neo-liberal versus a keynesiana (como se costuma dizer), mas sim a do keynesianismo social versus o keynesianismo militarista. Entretanto, apresentar o debate nestes termos não é justo, já que a política de Reagan foi mais longe que o keynesianismo clássico. Ela interveio não só no mundo do consumo, mas também no da produção, diretamente e sem mediação. Esta atitude teve um impacto enorme sobre a reestruturação do consumo e da produção. E isso foi feito através de um processo governamental de redistribuição e intervenção. Já mostrei provas de que esta filosofia de ação foi responsável por um desempenho econômico e social bastante fraco.

Uma alternativa progressista deveria reverter este processo; adotar uma política diferente de redistribuição no mundo do consumo e uma política intervencionista diferente no campo da produção. Estas duas posições deveriam estar em estreita ligação. Na verdade, uma política progressista não deveria acabar com a prática atual pela qual o governo dirige a economia dos EUA, por meio de suas políticas de compras, empréstimos, subsídios e tributações. Muito pelo contrário. Uma política progressista deveria dar continuidade e expandir mais ainda esse intervencionismo do governo; porém deveria mudar seu foco substancialmente, passando da produção militar para outras formas de produção úteis e necessárias para fortalecer a economia. A prioridade deveria ser dada a políticas reflacionárias

O governo também deveria estimular os setores da economia privada que melhor servem aos objetivos sociais, incluindo a criação do pleno emprego. Mais uma vez, aqui os municípios deveriam orientar o governo regional e central quanto aos setores que precisam ser estimulados.

Outro elemento importante é a expansão do consumo social em programas universais, destinados a fortalecer a sensação de segurança e bem-estar de toda a população. Há muitas provas de que se a força de trabalho não se sentir segura (sem medo de ficar desempregada, e recebendo benefícios sociais e de saúde para os trabalhadores e seus dependentes), provavelmente não ocorrerá a tão necessária reestruturação do mundo da produção. Leon Lindberg demonstrou que em países como a Áustria e a Alemanha Ocidental, onde há programas sociais "generosos" e as pessoas têm "garantia" dos seus empregos, os trabalhadores respondem muito melhor às contenções salariais, à mobilidade de trabalho e às inovações tecnológicas do que nos países sem uma política de pleno emprego e com escassos benefícios sociais. No mundo ocidental o país que tem a política trabalhista mais flexível e conta com mais inovações tecnológicas (por exemplo, o maior número de robôs industriais por habitantes) é a Suécia - o país da Europa Ocidental com uma política de pleno emprego mais ativa, com os mais amplos programas de treinamento profissional e com a mais completa e mais ampla cobertura de benefícios sociais. Como indicou um artigo recente em The Economist:

A Suécia é um paradoxo econômico. Tem o maior setor público de qualquer economia industrial, os impostos mais altos, o welfare state mais generoso, as menores diferenças salariais, e sindicatos poderosos. Segundo as idéias econômicas predominantes, ela deveria estar sofrendo de uma crise aguda de "eurosclerose", com rígidos mercados de trabalho e uma indústria artrítica. Em vez disso, a Suécia tem muitas companhias grandes e vigorosas, e uma das taxas de desemprego mais baixas da Europa.

A enorme sensação de insegurança que grassa entre os trabalhadores norte-americanos, as grandes diferenças salariais que existem entre as indústrias e dentro das indústrias, os limitados benefícios de saúde e a fraqueza dos sindicatos explicam a grande resistência da força de trabalho americana perante às mudanças - posição plenamente compreensível em momentos de grande crise como agora. Assim, uma alternativa progressista terá de expandir o welfare state, fortalecendo os elementos de segurança e de assistência à população trabalhadora. Uma das situações que os trabalhadores norte-americanos mais temem em relação ao desemprego (ou a mudanças de emprego) é a perda do seguro-saúde para si e para seus dependentes. Assim se compreende a necessidade de expandir os planos de saúde, com a motivação extra de que os serviços de saúde são setores que utilizam intensamente a mão-de-obra e geram muitos empregos. Há estudos mostrando que para cada emprego criado pelos gastos militares, poderiam ser criados quatro empregos nos serviços de saúde, com as mesmas despesas.

Para facilitar o treinamento e re-treinamento do pessoal, há também uma grande necessidade de aumentar os programas de educação e treinamento profissional, que devem ser universais, e não baseados em critérios de classe. Há provas de que o atual sistema de educação nos EUA, no qual os alunos são separados por classe e por desempenho, aumenta as possibilidades de alguns poucos, mas diminui os padrões para a maioria. Um grande problema que os EUA estão tendo de enfrentar hoje é o aumento de um núcleo de pessoas "inempregáveis". Neste ponto tenho consciência de estar usando argumentos producionistas - semelhantes aos argumentos de capital humano - para ressaltar a necessidade de expandir os gastos com o welfare state. Mas é importante destacar que as posições pró-welfare progressistas clássicas - que afirmam que a saúde, a educação e a segurança são, de fato, direitos humanos - podem ser sensatas não só por motivos morais, mas também econômicos.

Uma alternativa progressista à política de austeridade passa por um processo de expansão do welfare state, incluindo (1) o aumento dos investimentos em infra-estrutura; (2) o compromisso com uma política de pleno emprego, e (3) o estímulo ao consumo social, em particular nas áreas da educação e dos serviços sociais e de saúde. Nesses três elementos-chave da estratégia alternativa, os municípios devem desempenhar um papel-chave. Eles precisam apresentar os projetos de infra-estrutura que são necessários e as áreas de emprego que merecem prioridade. Eles devem ser as agências administrativas dos serviços educacionais, sociais e de saúde. A esse respeito, é necessário estimular a participação dos cidadãos na administração real desses programas, no nível onde o governo está mais próximo do povo, isto é, nas municipalidades. Essa administração local não elimina a necessidade de uma política e de um planejamento em nível central e regional nessas áreas; mas a administração real pode e deve ser implementada no nível local.

Assim, a conclusão deste artigo é que o governo local é a agência administrativa-chave para a resolução da crise, de uma perspectiva progressista. A isto acresce-se o fato de que os governos locais, tanto na Europa como nos EUA, cada vez mais estão sendo controlados por forças pró-welfare state.

Um argumento anti-welfare state que vem sendo apresentado é a experiência alienante do cidadão contra o Estado, alienação ainda mais fortalecida pelo aparelho administrativo do welfare state, que é distante, centralizado e centralizador. Esta experiência é subjacente à receptividade de certos setores da população aos argumentos de "privatização e mercantilização" das forças anti-welfare state, transformando o cidadão em consumidor. Entretanto, em nenhum lugar o fracasso dessa mercantilização dos serviços é mais evidente do que nos serviços de saúde dos EUA. Nenhum outro país gasta uma porcentagem tão alta do PIB em serviços de saúde como os EUA (10,8% do PIB em 1986), mas apesar disso, o setor de saúde, em sua maior parte privado, está em profunda desorganização. Dezenove por cento da população ainda não têm nenhum tipo de cobertura de saúde, 23% das despesas ainda vão para gastos financeiros diretos, e 75% da população estão profundamente insatisfeitos com o sistema de assistência médica. Em comparação com esta situação, a simplicidade e a ampla abrangência do Serviço de Saúde Nacional Britânico (a jóia da coroa do welfare state britânico) é de fazer inveja.

O fracasso da estratégia de mercantilização dos serviços sociais e de saúde leva à outra alternativa, isto é, à democratização do welfare state, trazendo a administração o mais perto possível da população (isto é, das autoridades locais), e explorando outras vias para sua democratização, tais como o desenvolvimento de formas diretas de governo (incluindo a diretoria das escolas e dos hospitais) eleitas diretamente pelas comunidades a quem elas servem.

  • * Publicado anteriormente por The Political Quarterly, abril-junho de 1988.
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    direcionadas para investimentos públicos em infra-estrutura, e ao incentivo do consumo público, e não do consumo individual. Estas posições são particularmente importantes para evitar a cilada de Mitterrand: aumentar o consumo individual (ao mesmo tempo que se mantém o valor da moeda), o que resultou no aumento das importações e num maior déficit da balança comercial. O investimento público em projetos de infra-estrutura (tais como sistemas de água e esgotos, estradas, transporte público, moradia etc.) tem a vantagem, entre outras, de controlar melhor os elementos importados da produção (em geral poucos), do que uma reflação gerada pelo consumo individual. O governo central deveria coletar uma série de projetos de infra-estrutura apresentados pelas municipalidades, projetos que os governos central e estadual poderiam e deveriam financiar, dependendo da necessidade de estimular ou de arrefecer a economia. As necessidades infra-estruturais dos EUA são enormes. Isto pode ser difícil de se compreender na Europa, mas nos EUA há prefeituras que pedem à população que ferva a água antes de beber porque não há fundos para o controle de água e esgotos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Set 1991
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