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Auto-realização no trabalho e na política: a concepção Marxista da boa vida

ÉTICA, POLÍTICA E GESTÃO ECONÔMICA

Auto-realização no trabalho e na política: a concepção Marxista da boa vida* * Jon Elster, "self-realization in work and politics: the Marxist conception of the good life", Social Philosophy and Policy vol. 3, 1986, nº 1. Republicado em John Elster and Karl Moene (ed) Alternatives to Capitalism. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990, capítulo 8. ) ** Tradução de Regis Castro Andrade.

Jon Elster** * Jon Elster, "self-realization in work and politics: the Marxist conception of the good life", Social Philosophy and Policy vol. 3, 1986, nº 1. Republicado em John Elster and Karl Moene (ed) Alternatives to Capitalism. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990, capítulo 8. ) ** Tradução de Regis Castro Andrade.

Membro do Departamento de História da Universidade de Oslo e professor de Ciência Política na Universidade de Chicago

Nos argumentos em favor do capitalismo, as seguintes proposições são às vezes apresentadas ou pressupostas: (a) a melhor vida para o indivíduo é uma vida de consumo, tomado o consumo num sentido amplo que inclui os prazeres estéticos e entretenimento, assim como o consumo de bens no sentido comum; (b) o consumo deve ser valorizado porque traz a felicidade ou o bem-estar, que é o bem maior; (c) posto que não há suficientes oportunidades de consumo para que todos alcancem a saciedade, alguns princípios de justiça distributiva têm de ser definidos para decidir quem obtém o que; (d) o total a ser distribuído tem, antes, de ser produzido. O que é produzido depende, entre outras coisas, da motivação e da informação dos produtores. A teoria da justiça tem de levar em conta o fato de que diferentes princípios de distribuição têm diferentes, efeitos sobre a motivação e a informação; (e) a teoria econômica nos diz que as consequências em termos de motivação e informação da propriedade privada dos meios de produção são superiores àquelas de várias formas de propriedade coletiva.

Na controvérsia tradicional sobre os méritos relativos do capitalismo e outros sistemas econômicos, o foco tem recaído na proposição (e). Neste capítulo, considero as proposições (a) e (b). Antes que possamos sequer começar a discussão de como valores podem ser alocados, devemos considerar o que eles são -o que deve ser valorizado. Argumentarei que no coração do marxismo há uma concepção específica da boa vida como auto-realização ativa, ao invés de uma concepção da boa vida como consumo passivo1 1 A interpretação mais desenvolvida de Marx em favor dessa proposição está no meu Making Sense of Marx, Cambridge University Press, 1985. . É uma concepção que, com várias qualificações e modificações, irei também sustentar, argumentando que a auto-realização é superior ao consumo, quer nos fundamentemos no bem-estar quer em outras considerações que não o bem-estar (both on welfarist and nonwelfarist grounds)2 2 Sobre a noção de welfarism, ver Amartya Sen, "Welfarism and Utilitarianism", Journal of Philosophy, 76, 1979, pp. 463-88. .

Quero notar, antes de continuar, que está longe de ser óbvio que a teoria política deva preocupar-se com a determinação de uma concepção apropriada da boa vida. John Rawls sustenta, por exemplo, que o objetivo da filosofia política é determinar a justa distribuição de "bens primários", isto é, dos bens que todos desejariam para realizar sua própria concepção da boa vida3 3 Rawls, John, A Theory of Justice, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1971, pp. 90-3. Devo acrescentar que muitas proposições do livro de Rawls vão além da simples consideração dos bens primários. Sua discussão do que ele chama de Princípio Aristotélico (p. 424 e ss.), em particular, tem muitas afinidades com a presente análise da auto-realização. Não obstante, o argumento referente à organização das instituições sociais básicas não vai além dos bens primários. . Estaríamos diante de um injustificável paternalismo se o Estado interviesse para promover uma concepção particular do bem, influenciando a disponibilidade das várias opções ou tentando estimular o desejo por algumas opções em detrimento de outras.

Tenho muita simpatia por esse argumento liberal. A idéia de que alguém que não as pessoas envolvidas saiba o que é melhor para elas tem uma longa e desagradável história, cujas lições não podem ser esquecidas. Não obstante, o liberalismo é obviamente incompleto, pois que negligencia a endogeneidade das preferências4 4 Ver o meu Sour Grapes, Cambridge University Press, 1983, cap. 3, a respeito da importância da formação das preferências endógenas na filosofia política. . O liberalismo advoga a livre escolha do estilo de vida, mas esquece que a escolha é em grande medida previamente limitada pelo meio social no qual as pessoas crescem e vivem. Essas preferências, endogenamente condicionadas, podem bem levar a escolhas cujo resultado último seja a ruína ou miséria evitáveis5 5 Um exemplo extremo de como uma pessoa pode "aperfeiçoar-se até a morte" está em Carl Christian von Weizsacker, "Notes on Endogenous Change of Tostes", Journal of Economic Theory 3, 1971, p. 336. . Embora essa escolha previamente limitada pelo meio social seja de longe preferível a uma concepção imposta da boa vida, ela lança dúvidas a respeito da presumida soberania das preferências individuais. Permanece, contudo, a questão política de saber como, mesmo admitindo-se que as pessoas não queiram o que é melhor para elas, e excetuando-se maneiras ditatoriais ou paternalistas de fazê-lo, poderiam ocorrer mudanças para melhor. A solução tem de ser uma forma de autopaternalismo: se as pessoas não querem ter as preferências que têm, podem tomar medidas - individual ou coletivamente - para mudar essas preferências6 6 Sobre a noção de autopaternalismo individual e coletivo, ver o meu Ulysses and the Sirens, ed. revista, Cambridge University Press, 1984, cap. 2. .

Conseqüentemente, argumentarei, neste artigo, em duas direções. Substantivamente, sustentarei uma certa concepção da boa vida. Metodologicamente, sustentarei que tais questões substantivas não estão fora do campo da teoria política. A estrutura do argumento é a seguinte: a seção 1 exemplifica e define a noção de auto-realização, sustenta a superioridade da auto-realização sobre o consumo e tenta explicar por que as pessoas podem, não obstante, resistir às suas atrações. As seções subsequentes discutem os dois principais veículos de auto-realização presentes nas tradições marxista e neomarxista. A seção 2 considera o conceito de trabalho (work) e sustenta que, a despeito da aparente desutilidade do trabalho, ele pode ser um canal para a auto-realização. A seção 3 discute a idéia neomarxista de que a política pode oferecer uma via para a auto-realização, por meio da participação em discussões políticas e nos processos decisórios. A seção 4 considera ambos os veículos à luz da visão marxista de que o valor da auto-realização deveria ser implementado juntamente com o de comunidade, isto é, auto-realização para outros ou com outros. Finalmente, a seção 5 examina em maior detalhe os meios através dos quais o desejo ou oportunidade de auto-realização pode ser promovido ou bloqueado por vários arranjos institucionais. Concluo com algumas observações sobre como, a partir daqui, pode-se chegar lá.

1. O CONCEITO DE AUTO-REALIZAÇÃO

ALGUNS EXEMPLOS E UMA CLASSIFICAÇÃO PRELIMINAR

Eis aqui uma lista de algumas atividades que podem servir para a auto-realização: jogar tênis, tocar piano, jogar xadrez, fazer uma mesa, preparar uma refeição, desenvolver software de computador, construir as Watts Tower7 7 As Watts Towers em Los Angeles foram construídas por um imigrante italiano, Sam Rodia, que trabalhou sozinho durante trinta e três anos, utilizando materiais diversos encontrados nas ruas da cidade. Informações sobre o assunto encontram-se no Los Angeles Times de 12 de agosto de 1984. Elas são maravilhosas na concepção e na execução, diferentemente da arte conceitual, por exemplo, que tem o valor caprichoso da novidade atordoante e que rapidamente torna-se tediosa. Para uma discussão das condições da auto-realização na arte, ver o meu Sour Grapes, cap. 2, seção 7. , fazer malabarismo, representar um boneco humano8 8 Este exemplo, como o anterior, foi observado na praia Venice, em Los Angeles. Foram incluídos para recordar-nos de que a auto-realização nem sempre se dá em atividades que, em sentido substantivo, são socialmente úteis. , escrever um livro, contribuir para a discussão numa assembléia política, negociar com um empregador, provar um teorema matemático, trabalhar com um torno, travar uma batalha, bordar, organizar uma campanha política e construir um barco.

Atividades que por várias razões não se prestam bem à auto-realização podem ser divididas grosso modo em relações interpessoais espontâneas, consumo e trabalho ou atividade desinteressantes. A primeira classe de atividades vai desde conversar com amigos até fazer amor; essas atividades não se prestam à auto-realização porque não se definem por qualquer finalidade ou objetivo ulterior. Atividades de consumo incluem comer uma refeição, ler um livro ou pagar os serviços de uma prostituta; elas não se prestam à auto-realização por razões apontadas em detalhe mais abaixo. O trabalho ou atividade desinteressantes inclui varrer as ruas, trabalhar numa linha de montagem (com as qualificações discutidas na seção 3) ou votar numa eleição; essas atividades não se prestam à auto-realização porque elas logo se tornam triviais ou aborrecidas.

Essas classes de atividades podem também ser comparadas dos ângulos dos seus objetivos e da sua satisfação. No consumo, o objetivo da atividade é alcançar a satisfação. Na auto-realização, o objetivo é conseguir algo, e a satisfação segue-se ao sucesso; ela não é o objetivo imediato da atividade. Relações interpessoais espontâneas podem ser profundamente satisfatórias, mas não têm objetivos outros que não elas próprias. O trabalho desinteressante tem um objetivo bem definido, mas é inerentemente insatisfatório. Poder-se-ia acrescentar que o objetivo do trabalho desinteressante é normalmente produzir algo que é satisfatório, isto é, um valor de uso. Uma última classe de atividades, portanto, compreenderia as atividades inerentemente insatisfatórias e que não produzem algo que tenha valor, ou produzem pouco de algo que tenha valor. Uma punição que tomasse a forma de cavar buracos e tapá-los de novo seria um exemplo. Algumas formas de "trabalho comunitário" para os desempregados também se aproximariam dessa categoria, porquanto nesses casos os desempregados são chamados a fazer um trabalho que a sociedade normalmente não valorizou o bastante para pagar por ele.

Como esses exemplos indicam, uma espécie particular de atividade pode não caber numa só categoria. Educar crianças ou ter relações sexuais, por exemplo, podem tornar-se atividades maçantes em certas circunstâncias, consumo em outras, auto-realização em outras e, em certos casos, podem constituir-se em interações espontâneas. As características centrais que tornam essa atividade um veículo potencial para a auto-realização são as seguintes: elas têm um objetivo externo a elas e podem ser desempenhadas mais ou menos bem - isto é, o objetivo pode ser alcançado em maior ou menor grau - segundo critérios independentemente dados. Para que uma atividade venha a ser um veículo real de auto-realização, seu objetivo deve ser de complexidade adequada - nem tão simples, que cause tédio, nem tão difícil, que cause frustração. A atividade tem de propor um desafio que pode ser enfrentado.

Embora a auto-realização possa ser profundamente satisfatória, não pode ser o objetivo imediato da atividade. A auto-realização pertence à classe geral dos estados que são essencialmente subprodutos9 9 Para uma discussão geral dessa noção, ver o meu Sour Grapes, cap. 2. , isto é, estados que somente podem advir como efeitos colaterais de ações empreendidas em vista de algum objetivo, tais como "fazer bem feito" ou "vencer a oposição". Na seção 3, discuto como a busca de auto-realização por meio da participação política pode ser autofrustrante se o sistema político não foi orientado no sentido de decisões substantivas. O mesmo perigo pode surgir na auto-realização por meio do trabalho criativo, se o artista torna-se por demais preocupado com o próprio processo de criação.

O principal argumento deste capítulo constrói-se em torno da comparação entre consumo e auto-realização em termos de seus respectivos benefícios e desvantagens. Esse enfoque pode ser criticado, com justiça, por ser por demais estreito, pois que a escolha entre as duas formas de atividade deveria também ser considerada do ângulo do seu impacto nas relações interpessoais espontâneas, que são uma parte importante da boa vida na concepção da maioria das pessoas. De um lado, por exemplo, a tendência da auto-realização a ocupar todo o tempo disponível, em virtude das economias de escala que a caracterizam, constitui uma ameaça tanto ao consumo como à amizade. De outro lado, pode-se argumentar que as amizades baseadas na auto-realização conjunta são mais recompensadoras que as amizades baseados no consumo comum. Eu sou incapaz de avaliar o efeito líquido dessas tendências opostas.

RUMO A UMA DEFINIÇÃO

Na tradição marxista, a auto-realização é a efetivação e externalização plenas e livres dos poderes e capacidades do indivíduo. Discutirei os quatro componentes dessa definição na ordem em que os mencionei. Os motivos dessa definição serão plenamente esclarecidos somente na seção seguinte, onde as razões para valorizar a auto-realização serão expostas.

A plenitude da auto-realização. A idéia de que o indivíduo pode realizar plenamente todos os poderes e capacidades que tem é um dos elementos mais utópicos no pensamento de Marx; certamente não irei defendê-lo aqui10 10 Passagens conhecidas em que Marx insiste na plenitude da auto-realização estão na The German Ideology, in Marx, K. e Engels, F., Collected Works, Lawrence e Wishart, Londres, 1976, 5, pp. 47, 394. . Uma pessoa é condenada a escolher entre ser alguém que faz todo tipo de trabalho e ser um mestre em (no melhor dos casos) um ofício. Argumentarei que a segunda opção deve ser escolhida em razão das economias de escala que caracterizam a auto-realização. Como definir exatamente um ofício ou habilidade, porém, é uma questão importante. Sustento mais adiante que a auto-realização através do trabalho numa sociedade em constante transformação pode requerer o desenvolvimento de habilidades gerais que podem aplicar-se a tarefas muito diferentes.

A liberdade de auto-realização. Mesmo que um indivíduo não possa desenvolver todas as suas habilidades, ele deveria ser livre para desenvolver uma qualquer dentre elas. A noção de que a auto-realização tem de ser livre mas não pode ser plena se expressa num modelo de "fechamento de alternativas" da natureza humana11 11 Sobre esse enfoque da produção, ver Leif Johansen, "Substitution versus Fixed Production Coefficients in Theory of Production", Econometrica, 27, 1959, pp. 157-76. . Ex ante o indivíduo é livre para escolher qual dos seus muitos poderes e capacidades irá desenvolver, mas ex post os caminhos que não escolheu fecham-se para ele. A razão por que a escolha de um veículo de auto-realização tem de ser livremente feita pelo indivíduo é a de que de outro modo não seria auto-realização. O indivíduo é ao mesmo tempo o projetista e a matéria-prima do processo. Segue-se que a auto-realização pressupõe a disposição de si próprio, no sentido fraco de que ele tem o direito de escolher qual de suas capacidades irá desenvolver. Se eu quero escrever poesia, mas também posso tornar-me um médico ou um engenheiro, nada justificaria que a sociedade me forçasse - através de um imposto sobre a capacidade, por exemplo - a escolher uma das duas últimas opções. Seria justificável, no entanto, que se criassem incentivos para canalizar meu desejo de auto-realização para ocupações socialmente desejáveis, desde que eu não fosse punido por escolher outra coisa. Incentivos negativos e positivos devem referir-se a atividades efetivamente realizadas, não a atividades potenciais.

Note-se, contudo, que a auto-realização não implica, para uma pessoa, a posse de si nos sentidos fortes (a) do direito de escolher quando exercitar suas capacidades adquiridas ou (b) do direito de dispor de todo o rendimento auferido desse exercício. A auto-realização de um médico não é afetada pelo fato de ele ser forçado a tratar dos pacientes no local de um acidente ou de pagar imposto de renda. Podemos admitir, ou não, que alguns dos seus outros direitos seriam violados, mas isso não está em questão neste artigo.

A liberdade formal ou negativa de escolher qualquer linha de auto-realização não deve ser confundida com a liberdade positiva, ou oportunidade, de levá-la a efeito. Se desejo realizar-me fazendo filmes épicos em tecnicolor, posso não consegui-lo por falta de recursos materiais, mesmo que ninguém me impeça ativamente de fazê-lo. Uma sociedade não pode garantir que todos os indivíduos terão o que necessitam para implementar seu projeto de auto-realização; se o fizesse poderia tornar impossível adequar a demanda à oferta de recursos. Mas ela pode tentar criar uma grande variedade de oportunidades de auto-realização e bons mecanismos para ajustar os desejos às oportunidades. Ao fazê-lo, porém, será forçada pela necessidade a favorecer (a) formas de auto-realização que não requerem quantidades excessivas de recursos materiais e (b) formas que levam à criação de recursos materiais.

Auto-atualização (self-actualtsation). Decomponho a noção de auto-realização em auto-atualização e auto-externalização. A auto-atualização, por sua vez, pode ser analisada como um processo em duas fases, embora na realidade as duas fases ocorram pari passu. As capacidades e poderes do indivíduo estão dois passos distantes da atualização: primeiro, tem de ser desenvolvidos e depois exercidos. Ser capaz de (aprender a) falar francês é uma condição para saber como falar francês e isso, por sua vez, é uma condição para falar francês12 12 Uma análise conceitual das capacidades e sua atualização encontra-se em Anthony Kenny, Action, Emotion and Will, Routledge e Kegan Paul, Londres, 1963, cap. 8. O conceito de Kenny é um conceito aristotélico de auto-atualização, distinto tanto da noção freudiana de liberação de pensamentos e desejos reprimidos quanto da noção nietzscheana de identificação com seus próprios feitos. Uma proveitosa discussão dessa questão encontra-se em Alexander Nehamas, "How One Becomes What One Is", Philosophical Review, 92, 1983, pp. 385-417. . É claro que o efetivo(actual) exercício dessa capacidade é a raison d'être do seu desenvolvimento, e é o que dá à auto-realização o seu valor.

Auto-externalização. O indivíduo tem muitos poderes e capacidades que podem ser exercitados de maneiras não observáveis por outros. Uma pessoa pode desenvolver sua capacidade de apreciar poesia ou vinho, mas a utilização dessa capacidade não pertence ao domínio público. É mais consumo do que auto-realização. Mas a pessoa pode externalizar aquela capacidade interpretando poesias para outros ou empregando-se como provador de vinho; nesses casos, a atividade torna-se veículo potencial para a auto-realização. Apreciar vinho não é uma atividade que pode ser melhor ou pior executada, embora uma pessoa possa gostar mais ou menos de vinho. O provador profissional de vinho, no entanto, pode ser avaliado por critérios externos.

POR QUE VALORIZAR A AUTO-REALIZAÇÃO?

Argumentarei em seguida que tanto a auto-atualização como a auto-externalização são aspectos da auto-realização que fornecem razões para desejá-la. Ambos os argumentos baseiam-se na concepção de bem-estar. o primeiro diretamente, e o segundo mais indiretamente. Além disso, sustentarei que mesmo em condições sob as quais o desejo de auto-realização não leva ao aumento da satisfação, pode ser algo desejável do ângulo da autonomia.

A necessidade da suspensão da tranquilidade. Leibniz escreveu que "l'inquiétude est essentielle à la felicite des créatures"13 13 Nouveaux Essais sur l'Entendement Humain, in C.W. Leibniz, Die Philosophischen Schriften, ed. por C.J. Gerhardt, 7 volumes, Hildescheim, Olms, 1966, 6, p. 175. . Essa premissa também tem papel central no argumento de Marx em favor da auto-realização:

"Parece muito distante de (Adam) Smith a idéia de que o indivíduo "no seu estado normal de saúde, força, atividade, habilidade e facilidade" também necessita uma porção normal de trabalho e de suspensão da tranquilidade. Certamente, o trabalho é externamente medido, através do objetivo a ser alcançado e dos obstáculos a serem vencidos para alcançá-lo.

Mas Smith não percebe que a superação dos obstáculos é em si mesma uma atividade liberadora. (O trabalho) torna-se atrativo; torna-se a auto-realização do indivíduo, o que não quer dizer que se torne divertido, ou mero entretenimento, como o concebe Fourier ingenuamente. O trabalho realmente livre, como por exemplo, compor, é precisamente, e ao mesmo tempo, o mais sério e o que exige o maior empenho"14 14 Marx, Grundrisse, Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p. 611. .

A intuição central dessa passagem pode ser exposta em termos da teoria do "processo oponente", de Solomon e Corbit.15 15 Solomon, Richard L. e Corbit, J. D., "An Opponent-Process Theory of Motivation", Psychological Review, 81, 1974, pp. 119-145. Ver também o meu "Sadder but Wiser ? Rationality and the Emotions", Social Science Information, 24, 1983, pp. 375-406. Para uma aplicação ao problema em pauta, ver Frank J. Landy, "An Opponent-Process Theory of Job Satisfaction", Journal of Applied Psychology, 63, 1978, pp. 533-47. Uma simples descrição por diagramas dessa teoria é apresentada na figura 1, que nos permite comparar os fluxos de utilidade decorrentes de episódios de (pelo menos alguns tipos de) consumo e auto-realização. Definamos primeiro um episódio AC - de uma espécie ou de outra - como o tempo que vai do início da atividade ao tempo em que a utilidade retorna ao nível anterior à atividade. Todo episódio de consumo, então, apresenta o seguinte padrão: no início é agradável, mas inclui penosos sintomas de privação quando a atividade cessa. O "processo principal" AB tem sinal oposto ao do "processo oponente" BC. Na auto-realização, pelo contrário, o processo principal é penoso - "Aller Anfang ist schwer"1* 1* NT: "Todo início é difícil". - e a recompensa vem ao final do episódio. Se considerarmos repetidos episódios, da mesma espécie qualitativa, a teoria postula que o processo oponente passa a dominar o processo principal. Os prazeres do consumo tendem a desgastar-se com o tempo, ao passo que os sintomas da abstinência tornam-se cada vez mais severos. A atividade de consumo permanece atrativa não porque dê prazer, mas porque permite evitar os sintomas da abstinência16 16 Pode-se objetar que esse é um modelo de consumo por vício, ou consumo compulsivo, e não de consumo de modo geral. No consumo não-compulsivo, pode-se presumir a ocorrência de um processo oponente de intensidade crescente, embora a idéia de uma intensidade decrescente do processo principal permaneça plausível. Como esse último é o aspecto decisivo para o meu argumento, a objeção não o afeta. Em todo caso, pode haver um elemento de vício, ou compulsão (no sentido de um processo oponente de intensidade crescente) em todas as formas de consumo, embora seja menos dramático do que no uso de drogas, cigarro ou álcool. A objeção pode então ser reformulada como uma questão sobre se o efeito líquido de um dado episódio torna-se cada vez mais negativo à medida que o número de episódios aumenta. .


Inversamente, os atrativos da auto-realização aumentam com o tempo à medida que o custo inicial declina e a recompensa pelo sucesso torna-se mais profunda17 17 Essa proposição admite duas exceções. Em primeiro lugar, algumas capacidades não são susceptíveis de desenvolvimento indefinido; em segundo lugar, algumas pessoas podem não ser capazes de desenvolver indefinidamente suas capacidades. O jogo da velha, diferentemente do xadrez, logo torna-se aborrecido; uma pessoa com reflexos motores pouco desenvolvidos pode dar-se conta, dolorosamente, de que não foi feita para fazer malabarismo. As economias de escala operam somente no caso de adequação entre capacidades e tarefas, que evita os extremos do tédio e da frustração. . Há economias de escala na auto-realização, ao passo que o consumo tem a propriedade inversa.

Se aceitarmos esse modelo simples, seguem-se várias observações. Primeiro, para extrair máximos benefícios do consumo, deve-se buscar variedades e diversidade para gozar dos grandes benefícios iniciais de muitas atividades diferentes. A auto-realização, por sua vez, requer concentração numa linha de atividades para explorar as economias de escala. Visto que a variedade logo torna-se cara, as pessoas com recursos limitados (isto é, a maioria das pessoas) têm mais vantagem em escolher a auto-realização. Segundo, a auto-realização segue o padrão "um passo para trás, dois passos para a frente", tanto em se tratando de um episódio como de vários. O estágio inicial AB de qualquer episódio é sempre penoso, embora torne-se menos penoso com o tempo. Além disso, nas primeiras vezes o efeito líquido do episódio AC no seu conjunto pode ser negativo, verificando-se episódios de efeito líquido positivo apenas nos estágios ulteriores. Muitas pessoas acham que escrever seu primeiro artigo para publicação é um processo muito penoso, apresentando um elemento de prazer pequeno e incerto. Em estágios posteriores da carreira, o efeito líquido do processo de escrever um artigo pode ser positivo, verificando-se contudo que, mesmo então, no início o processo é penoso.

O Eu e os outros. Afirmei acima que há um contraste entre os padrões temporais de utilidade correspondentes à auto-realização e alguns tipos de consumo. Outras formas de consumo - a saber, aquelas que representam auto-atualização sem auto-externalização - apresentam o padrão dos dois últimos diagramas da figura 1. Aprender a ler poesia, por exemplo, é um processo penoso; a recompensa vem depois. Ademais, em toda ocasião dada há custos iniciais que podem desestimular a pessoa a ler um livro de poesias, levando-a ler um romance de crime. Algumas formas de consumo envolvem recompensas defasadas no tempo. A similitude entre tais atividades de consumo e a auto-realização será óbvia para muitos pais. A razão pela qual é difícil obter das crianças que tomem aulas de piano, por exemplo, é a mesma pela qual é difícil persuadi-los a ler as primeiras cinquenta páginas de um livro que, estamos certos, depois prenderá sua atenção. A causa, nos dois casos, é a miopia, isto é, a resistência à postergação da recompensa.

Para explicar por que a auto-realização é superior a tais formas de consumo que se auto-atualizam, invocarei um argumento hegeliano18 18 Hegel, G.W.F. , Phenomenology of Spirit, Oxford University Press, New York, 1977, pp. 118,193,395-7. . O mais alto valor dos seres humanos é a auto-estima. Em grande medida, a auto-estima de uma pessoa decorre da estima em que é tida por outros. A estima requer algo que pode ser estimado, alguma forma de extemalização do Eu interior da pessoa. Não adianta ter uma "bela alma" se a alma permanece inefável e muda; o Eu tem de vir a participar do domínio público. Esse argumento é estreitamente ligado à necessidade de critérios externos de avaliação. Outras pessoas desempenham o papel indispensável de avaliar, criticar e elogiar o desempenho de uma pessoa; elas proporcionam o "controle da realidade" sem o qual a auto-atualização seria algo como uma "língua privada", um pântano de subjetividade (voltarei a essa questão mais adiante).

O trabalho desinteressante também pode ser uma forma de auto-externalização que desperta estima e, portanto, auto-estima. O fato de uma pessoa fazer ou produzir algo pelo qual alguém está disposto a pagar mostra que ela está sendo útil, e não um peso para outros, mesmo se o próprio trabalho dispendido for inerentemente desinteressante. Este argumento relaciona-se apenas indiretamente ao bem-estar como seu fundamento. Seria simplista dizer que a auto-estima é uma fonte de bem-estar, felicidade ou utilidade. Mais fundamentalmente, é uma condição para a capacidade de derivar bem-estar de alguma coisa. A auto-estima é necessária para que se tenha motivos para seguir vivendo. Quando dizemos que uma pessoa deprimida está sem auto-estima, dizemos que isso é a causa do sofrimento, não seu objeto.

Auto-realização e autonomia. Na primeira parte da seção 5 argumento que a falta de desejo de auto-realização pode ser devida a "preferências adaptativas", isto é, a ajustamentos do desejo ao que é possível. A escassez de oportunidades de auto-realização numa sociedade pode fazer com que o desejo de auto-realização seja, por essa razão, pouco valorizado. Aumentando as oportunidades, o desejo pode aparecer. Mas temos de considerar a hipótese de que maiores oportunidades de auto-realização poderiam gerar um excesso de desejo com respeito às possibilidades de satisfação19 19 Para uma exposição mais detalhada de um argumento semelhante, ver o meu Sour Grapes, pp. 124 e 133-40. . Se isso acontecer, o aumento das oportunidades pode tornar a situação das pessoas pior, no geral, em termos de bem-estar, embora possamos dizer, com. base em outro critério que não o do bem-estar, que a mudança foi para melhor. Por razões de autonomia, é melhor desejar as coisas porque são desejáveis do que desejá-las porque estão disponíveis. Muitas pessoas pessoas concordariam com isso se usassem como exemplo a liberdade, e não a auto-atualização, mas o argumento aplica-se tanto a essa última como àquela. Para maior clareza, consideremos o exemplo usado por Ronald Dworkin na sua rejeição das concepções de igualdade baseadas no bem-estar20 20 Dworkin, Ronald, "What is Equalily? Part I: Equality of Welfare", Philosophy and Public Affairs, 10, 1981, p. 222. . Em seu exemplo, ele imagina um artista ou cientista de talento que, a despeito do seu sucesso, é desesperadamente infeliz devido à consciência aguda que tem das suas deficiências. Na verdade, é precisamente devido aos seus dons que ele, mais que os outros, percebe o quanto está longe do ideal. Maior o círculo de luz, maior o círculo de obscuridade que o cerca. Seria simplista dizer que essa pessoa deveria mudar de ocupação, em que pudesse ambicionar menos e não se considerar uma fraude. As conquistas desse tipo de pessoas são inseparáveis da sua total dedicação ao que estão fazendo. Embora a obscuridade os torne deprimidos, eles não podem viver sem luz. Sua vida vale a pena ser vivida, embora não do ponto de vista do bem-estar.

A RESISTÊNCIA À AUTO-REALIZAÇÃO

Há outras razões além das preferências adaptativas, pelas quais as pessoas podem não desejar a auto-realização. Mesmo quando há oportunidades disponíveis, as pessoas podem não aproveitá-las por miopia, aversão ao risco ou porque preferem a carona (free riding).

Miopia. O fato de que a auto-realização envolve compensação defasada, num episódio ou entre episódios, deve pesar consideravelmente na explicação do porquê não é escolhida mesmo quando sua superioridade é claramente reconhecida. Como sustentei em outro trabalho21 21 "Weakness of Will and the Free Rider Problem", Economics and Philosophy, 1985, pp. 231-65. , não se trata apenas da taxa de desconto no tempo. Pode ser, mais centralmente, uma questão de fraqueza da vontade. As pessoas podem desejar uma vida de auto-realização e tornar os primeiros passos, relativamente pouco custosos nessa direção, não sendo capazes, contudo, de dedicar-se ao penoso e necessário processo de aprendizado.

Aversão ao risco. Enfatizei que a auto-realização requer uma compatibilidade entre capacidade e tarefas para evitar o tédio e a frustração. Não se trata, contudo, de escolher uma tarefa que se ajusta otimamente às capacidades dadas e conhecidas. Infelizmente, a situação é tal que, nela, um dos Provérbios do Inferno de William Blake é amplamente aplicável: "você nunca sabe quanto é o bastante a menos que saiba quanto é mais que suficiente". A única maneira pela qual o indivíduo descobre os limites de sua capacidade é, frequentemente, chocar-se contra eles.

Para colocar o problema decisório teoricamente, suponhamos que o indivíduo confronte-se com a seguinte situação:

Os números indicam o grau de satisfação que o indivíduo retira das diferentes combinações de grau de capacidade e complexidade da tarefa. Eles presumem que adequar capacidade e tarefa é sempre preferível a não adequá-las, que a adequação em nível alto é melhor que a adequação em nível baixo e que a frustração pela escolha de uma tarefa demasiado difícil é pior que o tédio decorrente da escolha de uma tarefa demasiado fácil. Suponhamos em primeiro lugar que a escolha envolva um risco de probabilidade igual e que a capacidade da pessoa será alta ou baixa. Um indivíduo neutro com respeito ao risco escolheria a tarefa complexa, mas um indivíduo avesso ao risco poderia bem escolher a tarefa fácil. Suponhamos em seguida que a situação está completamente dominada pela incerteza, de tal forma que não se pode atribuir probabilidades aos vários níveis de capacidade. Nesse caso, muitas pessoas utilizariam a estratégia "maximin" de escolher a tarefa que garante a satisfação mínima mais alta, que corresponde, outra vez, à tarefa fácil. Nos dois casos, chegamos à conclusão de que individualmente as pessoas poderiam ser impedidas de escolher o curso de ação que, na média, traria maior benefício. Em teoria, constituir reservas contra o risco poderia resolver o problema, mas é difícil imaginar como um sistema viável de seguro poderia ser estabelecido.

Free riding (Carona). Convém sublinhar que se a aversão ao risco leva a evitar os veículos mais exigentes de auto-realização, as pessoas, ao fazê-lo, não agem irracionalmente. Não se pode fazer objeções à necessidade de segurança. Mesmo assim, antes de concluir que a aversão ao risco é um obstáculo insuperável à auto-realização, temos de considerar um outro aspecto do problema. A auto-realização não é recompensadora apenas para o indivíduo nela empenhado. Também é benéfica para os que consomem o produto da atividade. Se ele escolher realizar-se através de atividades científicas ou tecnológicas, por exemplo, pode produzir medicamentos que salvam mais vidas e inovações que tornam acessíveis a todos e a baixo custo produtos antes reservados à elite. Mesmo aqueles cujos esforços de auto-realização são frustrados em virtude da superestimação das suas capacidades beneficiam-se das atividades dos que corretamente consideraram-se detentores de alta capacidade.

Isso mostra que a auto-realização é também um problema de ação coletiva. Provavelmente seria melhor para todos,e não apenas na média, se todos agissem como se fossem neutros com respeito ao risco, mesmo sendo avesso ao risco. Ora, para cada indivíduo é sempre tentador pegar uma "carona": agir como se fosse avesso ao risco e beneficiar-se dos riscos assumidos por outros. Para superar o problema da "carona", provavelmente, a auto-realização teria de tornar-se uma norma social, embora várias outras soluções sejam possíveis22 22 Para uma resenha das vias de superação da "carona", ver o artigo citado na nota anterior e também o meu "Rationality, Morality and Collective Action", Ethics, 96, 1985, pp. 136-55. .

Acrescento ainda duas observações sobre essa questão. Primeiro, não é claro que mesmo um comportamento neutro com relação ao risco traria-resultados socialmente desejáveis se as probabilidades subjetivas forem corretamente estimadas. O gosto pelo risco ou a superestimação das próprias capacidades pela pessoa podem ser necessários. A passagem abaixo, tomada de um livro escrito por dois sociólogos do conhecimento merece reflexão:

"As pessoas às vezes precisam de probabilidades subjetivas muito otimistas ou muito pessimistas para incitá-las à ação efetiva ou evitar que ajam perigosamente. Nessas condições, pode não ser uma boa coisa para uma noiva ou noivo acreditar na informação de que a probabilidade de que se divorciem é de 0,40. Um jogador de baseball com uma média de rebatidas de 0,200 pode não ser ajudado, quando entra em campo para rebater, pela crença em que a probabilidade de um hit é apenas 0,2. Os benefícios sociais das probabilidades subjetivas individualmente errôneas podem ser grandes mesmo quando o indivíduo paga um preço alto pelo erro. Provavelmente teríamos poucos romancistas, atores ou cientistas se todos os aspirantes potenciais a essas carreiras agissem com base numa probabilidade normativamente justificada de sucesso. Também poderíamos ter poucos novos produtos, novos procedimentos médicos, novos movimentos políticos ou novas teorias científicas"23 23 Nisbett, Richard E. e Ross, Lee, Human Inference: Strategies and Shortcomings of Social Judgement, Prentice Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1980, p. 271. .

Segundo, podemos utilizar esta oportunidade para refletir sobre a distinção entre a auto-realização do homem e do Homem24 24 Sobre essa distinção consultar G. A. Cohen, "Karl Marx's Dialectic of Labour",. Philosophy and Public Affairs, 3, 1974, pp. 235-61. . A proposição de que o comunismo não deve justificar-se pelas perspectivas de grandes conquistas para a Humanidade, mas pêlo que oferece a cada indivíduo, faz parte do individualismo ético de Marx (discutido mais amplamente na seção 4.). É próprio das sociedades de classe permitir a auto-realização do Homem às custas da maioria dos indivíduos, possibilitando a poucos conquistas científicas e culturais às custas do trabalho desinteressante de muitos; o comunismo na concepção de Marx, pelo contrário, permitirá a auto-realização plena e livre de cada indivíduo. Podemos reter tanto o individualismo ético de Marx como a ênfase na auto-realização sem aceitar sua concepção utópica. A versão revista do ideal é a auto-realização livre e parcial de alguns, como resultante da tentativa de auto-realização de todos, justificada pelo fato de que os benefícios do sucesso também são partilhados pelos que fracassam na tentativa.

2. O TRABALHO COMO VEÍCULO PARA A AUTO-REALIZAÇÃO

A principal tradição do pensamento econômico encara o trabalho como uma atividade em grande parte desagradável, que se justifica apenas pelo que produz25 25 Para uma resenha completa ver Pagano, Ugo, Work and Welfare in Economic Theory, Blackwell Publisher, Oxford, 1984. . Como vimos na passagem dos Grundrisse citada acima, Marx pensava de outro modo. Embora não concordasse com Fourier, para quem o trabalho poderia ser realizado como "mera diversão", discordava da visão do trabalho como "maldição" de Adam Smith. O trabalho, segundo Marx, é gratificante e penoso; além disso, não pode ser gratificante sem ser penoso.

Psicólogos industriais contemporâneos também consideraram, de um ângulo muito diferente, os benefícios intrínsecos do trabalho. Eles discutiram, quase exclusivamente, os benefícios e dificuldades comparativos de vários tipos de trabalho, sem se perguntar se e quando o trabalho é preferível à ociosidade, mesmo se a remuneração mantém-se constante. Esse enfoque é compreensível seja quando se trata de testar empiricamente certas hipóteses ou quando se trata de subsidiar reformas industriais, pois a opção de manter a remuneração integral sem trabalhar não é factível. Na perspectiva deste trabalho, porém, essa opção pode ser utilizada em vários experimentos intelectuais destinados a. estudar a distinção entre motivação e bem-estar - entre o que as pessoas preferem fazer e o que é melhor para elas. Argumento em primeiro lugar que, por várias razões - uma das quais é a auto-realização - as pessoas podem estar em melhor situação trabalhando, mesmo se preferem não fazê-lo. Em seguida, considero o grau em que o argumento em favor da auto-realização aplica-se ao trabalho industrial nas sociedades modernas.

A "DESUTILIDADE DO TRABALHO"

A própria definição de trabalho constitui um problema. Utilizarei o termo num sentido amplo e algo frouxo, para referir-me a toda atividade organizada e regular cujo objetivo é produzir valores de uso ou bens intermediários para a produção de valores de uso. Às vezes, a definição de trabalho inclui o elemento desconforto ou custo (mesmo que apenas um custo de oportunidades) para o trabalhador. Por razões que apresentarei depois, não acompanho esse modo de ver. Também não penso que a remuneração seja um elemento essencial da definição.

Por que as pessoas trabalham? Serge Kolm apresentou a seguinte lista de razões:

Devido à coação direta, como no trabalho forçado.

Em troca de um salário.

Em razão de um desejo de ajudar e servir a outros.

Em decorrência de um sentido de dever ou de

reciprocidade.

Por interesse no próprio trabalho.

Para manter as relações sociais no local de trabalho.

Para mostrar a outros que se faz uma contribuição à

sociedade ou que se tem certas habilidades.

Devido ao status social associado ao trabalho.

Para fugir ao tédio.

Para divertir-se.

Por hábito.26 26 Kolm, S. C, La Bonne Economie, Presses Universitaires de France, Paris, 1984, pp. 119-20.

A noção de desutilidade do trabalho pode ser considerada à luz de algumas dessas razões para trabalhar. Independentemente da remuneração, uma pessoa habitualmente está pior quando não trabalha nunca do que quando tem um trabalho regular. Mesmo assim, diante da opção de trabalhar ou não, mantida a mesma remuneração, a pessoa pode preferir não trabalhar. Mesmo se recolocarmos a questão em termos marginalistas, isso pode continuar verdadeiro. Para todo n, pode ser verdadeiro que, diante da opção de trabalhar n horas por semana ou n - 1 horas, uma pessoa sempre escolheria a segunda opção, mesmo se ficasse em pior situação nunca trabalhando do que trabalhando toda a semana. Essa situação ocorre porque a pessoa despreza as externalidades positivas do trabalho, ou, o que dá no mesmo, as externalidades negativas do desemprego. Tais externalidades não são efeitos sobre outras pessoas, mas sobre a própria pessoa, mais tarde. A situação configura um Dilema do Prisioneiro intrapessoal e intertemporal27 27 Para uma discussão desse ponto, ver Elster, "Weakness of Will", op. cit. .

Para entender a natureza exata da externalidade, consideremos o local de trabalho como uma fonte de amizade e auto-estima. Para qualquer n, uma redução do número de horas de trabalho de n para n - 1 terá pequeno impacto imediato sobre esses benefícios. Uma pessoa não perderá seus amigos nem sua estima por trabalhar um pouco menos, e ganhará mais algum tempo de lazer. Ela poderá preferir a redução. O dano cumulativo de longo prazo, contudo, pode ser mais substancial, e superar o ganho de curto prazo em lazer. Ao enfraquecer sua inserção na teia de relações sociais e reduzir o sentido do seu próprio mérito, cada hora fora do trabalho cria externalidades negativas para períodos futuros.

Um argumento semelhante aplica-se aos benefícios decorrentes do trabalho como auto-realização. Como procurei esclarecer no final da seção 1, a miopia pode ser uma causa importante de resistência à auto-realização. Segue-se que a "utilidade marginal do trabalho" teria valores muito diferentes se medida no começo de uma dada tarefa ou no final do processo28 28 Em alguns casos, o resultado também seria diferente se a medida fosse feita muito perto do final. Byron escreveu: "Nothing so difficult as a beginning/In poesy, unless perhaps the end". . Mesmo se considerássemos a utilidade marginal da tarefa no seu todo, o valor variaria segundo se tratasse de execuções iniciais ou finais. Concluo que o enfoque marginalista da utilidade do trabalho não se presta à análise dessa questão pois os trabalhos não se constituem de elementos homogêneos, mas têm uma estrutura temporal complexa.

O ALCANCE DA AUTO-REALIZAÇÃO NA INDÚSTRIA

Poderá o trabalho nas sociedades modernas oferecer modos de auto-realização? Marx cita habitualmente a arte e a ciência como paradigmas de auto-realização, o que não ajuda muito. Mesmo insistindo em que o comunismo se basearia na grande indústria e argumentando contra o modelo do trabalho artesanal, seus exemplos de auto-realização adequam-se mais a esse modelo que ao da grande indústria. Trabalhos recentes na área da psicologia industrial são mais úteis, embora, por várias razões, não se ajustem perfeitamente aos meus objetivos. De um lado, esses estudos tomam como dadas as relações de propriedade e a estrutura de incentivos das firmas capitalistas; de outro, seu conceito central, o de "satisfação no trabalho", é muito mais amplo e mais vago que o conceito de auto-realização (tal como o utilizo aqui)29 29 Na literatura sobre satisfação no trabalho a noção de auto-realização é usualmente discutida em relação com os escritos de Abraham Maslow e rejeitada sob alegação de ser irremediavelmente confusa. Ver, por exemplo, Edwin A. Locke, "Nature and Causes of Job Satisfaction", in Marvin D. Dunnette (ed.), Handbook of Industrial and Organizational Psychology, Rand McNaally, Chicago, 1976, pp. 1307-9. Embora concorde com as críticas de Maslow, espero ter mostrado na presente discussão que a noção não é inerentemente inutilizável numa análise precisa. . Por razões de espaço e de competência não poderei sumariar esses trabalhos aqui; mas tentarei reapresentar e discutir algumas de suas descobertas em termos do marco de referência construído na seção 1.

Uma pesquisa recente lista o trabalho, a remuneração, a promoção, o reconhecimento verbal e as condições de trabalho como as principais causas da satisfação no trabalho. A primeira causa - o trabalho - é desenvolvida em termos muito próximos do meu enfoque:

"Os atributos do trabalho que, pelo que se observou, relacionam-se ao interesse e satisfação no trabalho incluem: a oportunidade que tem a pessoa de utilizar suas habilidades e capacidades; a oportunidade de aprender; criatividade; dificuldade; quantidade de trabalho; responsabilidade; pressão não-arbitrária pela melhoria do desempenho; controle dos métodos de trabalho e do ritmo de trabalho (autonomia); o enriquecimento da função (que envolve responsabilidade e controle crescentes); e complexidade. Embora os fatores acima sejam conceitualmente distintos uns dos outros, todos têm um elemento em comum, que é o desafio mental" 30 30 Locke, id.,p . 1319. .

De modo parecido, um autor influente argumenta que:

"A redefinição do trabalho (work redesign) pode ajudar os indivíduos a reaver a oportunidade de experimentar o estímulo interior que vem de fazer bem seu trabalho, e pode encorajá-los a gostar dele de novo e de desenvolver a competência necessária a fazê-lo ainda melhor. Esses benefícios da redefinição do trabalho vão bem além da simples satisfação no trabalho. Vacas pastando podem estar satisfeitas, e pode-se da mesma forma satisfazer os empregados de uma organização pagando-os bem, reduzindo a pressão dois chefes sobre eles, instalando-os em salas agradáveis na companhia de pessoas agradáveis e organizando as coisas de modo a que os dias passem sem excessivas pressões e stress. O tipo de satisfação referido aqui é diferente. É uma satisfação que se desenvolve apenas quando "os indivíduos estão se ampliando e crescendo como seres humanos, aumentando seu sentido da própria competência e mérito".

Em seguida, esse autor decompõe as condições para o enriquecimento da função em cinco elementos: variedade dê habilidades, identidade da tarefa, relevância da tarefa, autonomia e feed-back31 31 Hackman, J. Richard, "Work Design", in). Richard Hackman e J. Lloyd Suttle (eds.) Improving Life at Work, Goodyear, Santa Monica, Calif., 1977, pp. 96-162. Claramente, essa é uma torta que pode ser cortada de várias maneiras. Entretanto, parece haver algumas premissas e problemas comuns que podem ter relação com minhas preocupações aqui.

Rotina, variedade ou complexidade? Tarefas monótonas e repetitivas de modo geral não conduzem à satisfação no trabalho. A monotonia pode ser aliviada mediante o aumento da variedade da tarefa ou da complexidade da tarefa. O aumento da variedade pode obter-se através da rotação de funções em grupos semi-autônomos, mas parece haver algum ceticismo quanto a esse tipo de solução32 32 O' Brien, Gordon, "The Centrality of Skill-Utilization for Job Design", in K. D. Duncan, Michael M. Gruneberg e Donald Wallis (eds.) Changes in Working Life, Wiley, New York, 1980, p. 180. Ver também Hackman, " Work Design" , op. cit. , pp. 115-20. . Em termos do marco de referência que utilizo aqui, pode-se justificar esse ceticismo observando-se que a rotação das funções não permite a exploração das economias de escala próprias da auto-realização. A variedade é desejável no consumo não no trabalho. Sem dúvida é preferível realizar alternadamente várias tarefas simples do que devotar-se em tempo integral a uma delas, mas devotar-se em tempo integral a uma tarefa complexa é ainda melhor.

J. Richard Hackman assinalada, porém, que "nem todas as tarefas adequam-se a todas as pessoas. Alguns indivíduos prosperam num trabalho simples e rotinizado, ao passo que outros preferem tarefas altamente complexas e desafiadoras... Que porcentagem da força de trabalho realmente deseja a satisfação de necessidades de ordem superior e, em consequência, provavelmente responderão bem ao enriquecimento de suas funções ? Alguns observadores estimam que apenas uns 15% dos empregados de base apresentam essa motivação"33 33 Hackman, id. ib. p. 115-20. . Partindo-se do argumento da seção 1, pode-se fazer imediatamente duas objeções a tais proposições. Primeiramente, em lugar de dizer que algumas pessoas gostam de desafios e outras não, dever-se-ia dizer que a natureza do desafio varia segundo a pessoa. Em seguida, o fato de que muitas pessoas não desejam trabalhos que as desafiam não significa que elas não possam "prosperar" nele, desde que tenham superado os obstáculos iniciais.

Adequando trabalhadores e funções. G. E. O'Brien distingue várias estratégias para alcançar essa adequação34 34 O'Brien, "The Centrality...", op. cit. , pp. 180 e ss. . A primeira é adaptar as tarefas aos trabalhadores mediante reforma do local de trabalho. Essa estratégia ocupa lugar central na literatura. O'Brien pergunta-se se a democracia econômica poderia ser orientada para esse objetivo. Na sua opinião, essa não será uma estratégia bem-sucedida porque, entre outras razões, "quanto menos as pessoas utilizam suas habilidades e quanto menos influem nos seus trabalhos, maiores serão as chances de considerarem suas vidas determinadas por outros... Essa expectativa torna difícil para eles responder, de início, a mudanças nas funções ou estruturas de poder tendentes a dar-lhes maior autonomia". Voltarei a alguns aspectos desse problema na seção 5.

Inversamente, pode-se tentar adequar o trabalhador à função mediante certos critérios de contratação de pessoal. Segundo O'Brien, "psicólogos trabalhando com seleção de pessoal fizeram bom trabalho na rejeição de candidatos com qualificações inferiores às necessárias, mas não foram tão cuidadosos ao rejeitar candidatos cujas qualificações eram superiores às demandadas pela descrição da função". Se isso é verdade, essa observação pode ser explicada pelo fato de que uma firma capitalista não tem incentivo - ou pode pensar que não tem incentivo - para evitar a contratação de empregados superqualificados. Se um empregado subqualificado for admitido, tanto a firma como o empregado serão prejudicados, mas se o empregado for superqualificado, somente ele sofrerá as conseqüências35 35 Hackman, "Work Design", p. 117. O autor sustenta que a superqualificação também ocasiona perda de produtividade por via da falta de motivação. Isso pode ser verdade para alguns trabalhadores e algumas tarefas, mas por vezes um nível de qualificação mais alto leva a um desempenho superior. .

Podemos também atacar o problema mediante estratégias de planejamento a longo prazo ao invés de estratégias de adaptação a curto prazo. Uma dessas estratégias de longo prazo seria a de planejar novas fábricas e organizações de maneira a facilitar a adequação de trabalhadores e funções. Uma outra seria "levar a efeito uma política educacional tendente a encorajar os estudantes a avaliar realisticamente suas próprias capacidades e a probabilidade de conseguir empregos congruentes com essas capacidades". A idéia aqui, suponho, é a de que com avaliações mais realistas, os estudantes resolverão não desenvolver capacidades que não serão demandadas no mercado. O argumento pode ser válido ou não, dependendo de outras suposições a respeito da motivação individual36 36 Boudon, Raymond, Effets Pervers et Ordre Social, Presses Universitaires de France, Paris, 1977, cap. 4. Esse autor argumenta que isso pode transformar-se num problema de ação coletiva: pode ser individualmente racional para cada estudante buscar educação superior, embora todos ficassem em melhor situação se todos decidissem por cara ou coroa. Isso pressupõe, contudo, que os estudantes são motivados pela expectativa de rendimento e não pela expectativa de satisfação, o que também incluiria o desapontamento e a frustração gerados pela obtenção de um emprego de baixa qualificação ao final da educação superior. O próprio Boudon (id., cap. 5) oferece a melhor análise desse problema, embora, surpreendentemente, não a estenda à questão da escolha educacional. . Em todo caso, convém distinguir dois problemas. Como disse anteriormente, nenhuma sociedade pode garantir que haverá demanda por uma dada capacidade. De outro lado, uma boa sociedade deveria assegurar que para cada indivíduo haja alguma capacidade susceptível de ser desenvolvida que será objeto de uma demanda efetiva.

Autonomia e feed-back. Essas necessidades, tal como aparecem na literatura sobre satisfação no trabalho, refletem a interação entre o Eu e os Outros na auto-realização. Por um lado, para serem satisfatórias, as tarefas devem ser livremente escolhidas e realizadas. "Um empregado não apreciará uma tarefa de modo automático simplesmente porque é desafiadora ou porque ele dominou a maneira de fazê-la. Ele também terá de gostar dela por ela própria. Isso significa que uma pessoa tem de escolher uma linha de trabalho porque gosta dela, e não porque alguém disse a ela que gostasse, ou porque esteja querendo provar alguma coisa"37 37 Locke, "Nature and Causes...", pp. 1320-1. . Por outro lado, o indivíduo necessita do reconhecimento e da avaliação de outras pessoas competentes, tanto para certificar-se de quão bem está desempenhando seu trabalho como para dar substância à sua auto-estima. O feed-back mais satisfatório vem dos companheiros de trabalho e dos clientes e não dos supervisores, pois esses últimos são pagos para utilizar a rentabilidade, e não a qualidade, como critério de avaliação do trabalho.

Essa última observação aponta para um possível conflito entre a eficiência econômica e a auto-realização. Tocqueville conta na Democracia na América que "encontrou um marinheiro americano e perguntou-lhe por que os navios do seu país não eram feitos para durar muito tempo. O marinheiro respondeu sem pensar duas vezes que a arte da navegação progredia tão depressa que mesmo o melhor dos navios seria inútil depois de alguns anos"38 38 Tocqueville, Alexis de, Democracy in America, Anchor Books, New York, 1969, p. 453. . Com o rápido processo de mudança técnica, a cuidadosa atenção ao detalhe que caracteriza a maior parte das formas de auto-realização perde o sentido; inversamente, o apreço pela qualidade artesanal pode bloquear a inovação. A saída para esse dilema teria de ser o desenvolvimento de capacidades adaptáveis que podem ser dirigidas a uma variedade de tarefas concretas e, que, na verdade, podem ser reforçadas por tal variedade. Isso seria diferente da rotação de funções, pois aqui cada tarefa seria a aplicação e a extensão da mesma capacidade, de maneira que as economias de escala não seriam perdidas.

3. A POLÍTICA COMO VEÍCULO DE AUTO-REALIZAÇÃO

Marx não acreditava que no comunismo houvesse necessidade ou espaço para a política conflitiva; a fortiori, não poderia ele encarar a política como canal para a auto-realização individual. Marxistas posteriores vêem a questão de modo diferente, especialmente Jurgen Habermas. Ele sugere que Marx enfatizou excessivamente o trabalho em detrimento da interação, tanto na sua teoria da história como na sua antropologia filosófica. O desenvolvimento da competência moral através da discussão racional é uma forma de auto-realização que deveria ser tão altamente valorizada como a auto-realização no local de trabalho39 39 Habermas, Jürgen, Theorie des Kommunikativen Handelns, Suhrkamp, Frankfurt, 1981. .

Como já discuti esse argumento de maneira mais completa em outro trabalho40 40 No meu artigo "The Market and the Forum", in Aanund Hylland e John Elster (eds.) , Foundations of School Choice Theory, Cambridge University Press, 1986, pp. 103-32. Ver também o meu Sour Grapes, cap. 2, seção 9. , minhas observações aqui serão mais sucintas. De uma parte, a política pode ser concebida seja como uma atividade privada seja como uma atividade que se desenvolve essencialmente na esfera pública. De outra, pode ser valorizada seja como meio para alcançar certos objetivos não-políticos; seja como um fim em si mesma. Essa última distinção não é excludente: a política pode ser valorizada como meio e fim ao mesmo tempo. Na verdade, sustento basicamente que para ser um fim em si mesma, a política tem de ser também um meio para algo que a ultrapasse.

POLÍTICA PRIVADA

"Segundo essa concepção - memoravelmente exposta por Anthony Downs - a atividade política de massa essencial e quase única são as eleições41 41 Downs, Anthony, An Economic Theory of Democracy, Harper, New York, 1957. . Na seção 1 votar foi classificado como atividade sem interesse (drudgery), isto é, como atividade inerentemente não-gratificante, a ser prezada apenas pelo seu resultado. Essa caracterização, porém, esconde um paradoxo, pois não se entende facilmente porque o resultado - uma probabilidade infinitesimalmente pequena de depositar o voto decisivo - possa motivar o ato de votar (presumindo-se que não seja compulsório)42 42 Especialmente Barry, Brian M. , Economists, Sociologists and Democracy, University of Chicago Press, 1979. .

Quando se usa o voto secreto, não é plausível sustentar que votar tenha qualquer valor de uso43 43 Para uma breve discussão e rejeição dessa possibilidade, ver Margolis, Howard, Selfishness, Altruism and Rationality, Cambridge University Press, 1982, p. 86. . Tampouco ele oferece a oportunidade de auto-realização, pois não é algo que se possa fazer mais ou menos bem. É verdade que a decisão de votar num partido ou candidato e não em outro pode resultar de uma deliberação que pode ser avaliada segundo critérios independentes; mas expor-se a tal avaliação é abandonar a esfera da política privada. É difícil conceber o voto como algo distinto de uma atividade desinteressante; mas também é difícil imaginar que motivação pode ter enquanto tal.

A solução do paradoxo está numa classe de motivações que inclui o dever, a equidade, as normas sociais internalizadas e o puro pensamento mágico44 44 Mais detalhes sobre esse ponto no capítulo 5 do meu livro Cement of Society, Cambridge University Press, 1989. Atitudes mais instrumentais, tais como as motivações altruístas e utilitárias poderiam também entrar na explicação do voto, mas eu creio que sua importância é menor que as mencionadas no texto. . Tais atitudes não são facilmente categorizáveis segundo as dimensões de finalidade (purposi-veness) e satisfação introduzidas na seção 1. Em condições normais, a atividade de votar não pode ser justificada por nenhum objetivo nem produz qualquer satisfação - exceto a de fazer o que se julga que deve ser feito. Temos de nos perguntar então por que uma pessoa acreditaria em que deve fazer algo que não tem um objetivo extrínseco nem uma satisfação intrínseca. Não desenvolverei essa questão aqui; apenas notarei mais uma vez que o comportamento orientado pelo dever ou por normas sociais é algo resistente ao esquema conceitual aqui utilizado.

UMA CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA POLÍTICA ANTIGA

O argumento de que a política deve ser valorizada principalmente ou mesmo exclusivamente como uma forma de auto-realização foi apresentado em discussões sobre a antiga polis. Hannah Arendt, em especial, sustentou que a política nas antigas cidades-Estado dizia respeito à demonstração, em polêmicas, da excelência e da individualidade, e nada mais: "sem o domínio das necessidades da vida doméstica, nem a vida nem a 'boa vida' são possíveis, mas a política não se exerce para manter a vida. No que concerne os membros da polis, a vida que se sustenta na família existe para possibilitar a 'boa vida' na polis"45 45 Arendt, Hannah, The Human Condition, University of Chicago Press, 1958, p. 37. . Em termos simples, a economia é a condição da política, mas não o objeto da política. Tampouco pelo que se pode entrever no seu texto, tinha a política antiga qualquer outro objetivo capaz de valorizá-la como veículo de auto-realização.

Uma versão mais irônica da tese da Hannah Arendt foi apresentada por Stephen Holmes. Sumariando as opiniões de Benjamin Constant sobre a política antiga, também Holmes parece negar que a política antiga teve qualquer fim não-político: "auto-governo participatório na polis... foi uma solução improvisada para o terrível problema dos hoplitos: um excesso de tempo de lazer e a ameaça aterrorizante do tédio"46 46 Holmes, Stephen, Benjamin Constant and the Making of Modern Liberalism, Yale University Press, New Haven, Conn., 1984, p. 60. . O objetivo - fugir do tédio, mais do que a auto-realização - é menos nobre, mas a rejeição de qualquer valor instrumental da política é igualmente explícito.

Essa posição pode ser contestada com base nos fatos e do ângulo da coerência. Quanto à primeira parte, podemos nos valer do trabalho de Moses Finley. Esse autor inverte a visão de Arendt e argumenta que "nas cidades-Estado, a premissa, ou como poderíamos dizer, o axioma, geralmente aceito, era o de que a boa vida (não importa como fosse concebida) só era possível na polis; que o regime deveria promover a boa vida; que, portanto, avaliações políticas corretas, a escolha entre políticas conflitantes na polis ou, se as coisas chegassem até lá, a escolha entre regimes da polis, deveriam ser determinadas pela consideração do que melhor promoveria a boa vida... A boa vida, devemos sublinhar, tinha um substancial componente material"47 47 Finley, Moses I., "Authority and Legitimacy in the Classical City-State", Det Kongelige Danske Videnskapernes Selskab, Historisk-Filosofiscke Meddelelser, 50, nº 3, Kobenhavn, Munksgaard, 1982, p. 12. . Em outra passagem, perguntando-se por que o povo ateniense reivindicava para cada cidadão o direito de falar e de fazer propostas na Assembléia, ao mesmo tempo em que deixava a poucos o exercício desse direito, Finley diz: "uma parte da resposta é que o demos reconhecia o papel instrumental dos direitos políticos e preocupava-se mais, no final das contas, com decisões substantivas; contentava-se com seu poder de escolher, demitir e punir seus líderes"48 48 "Finley, Moses I., "The Freedom of the Citizen in the Ancient Greek World", no seu Economy and Society in Ancient Greece, Chatto e Windus, Londres, 1981, p.83. .

Meu argumento é o de que destas duas proposições - a maioria das pessoas não valorizavam a política como veículo de auto-realização; elas valorizavam a política como meios para fins não-políticos - a segunda seria verdadeira mesmo que a primeira não fosse. Não é coerente valorizar a participação política se ela não disser respeito a algo. Segue-se do argumento apresentado na seção 1 que a discussão política tem de ter um objetivo definido de modo independente se se pretende que ela possa ser um canal para a auto-realização. O objetivo será tomar boas decisões sobre o que, em última instância, tem de ser matéria não-política. Para chegar a uma boa decisão, a discussão política tem de guiar-se pelas normas da racionalidade; daí que os poderes e capacidades mobilizados na discussão são os de deliberação racional. Quanto mais urgente e importante for a decisão, maior será o potencial de auto-realização.

Segue-se a política antiga tal como concebida por Arendt e Constant seria contraditória consigo mesma. Para escapar do tédio, uma pessoa tem de propor-se um outro objetivo que não o de escapar do tédio. Mas Holmes e Constant também enfatizam, de maneira algo incoerente, que a constante ameaça de guerra fornecia o objeto externamente dado e indispensável da política antiga. A urgência da guerra concentra maravilhosamente o espírito e confere à política o grau apropriado de seriedade, sem o qual não poderia ser um remédio contra o tédio nem um veículo de auto-realização.

A participação política de massa, portanto, pode ser uma forma de auto-realização, se ela toma a forma de discussão e decisão pública racional sobre questões substantivas. A política nacional nas sociedades modernas envolve gente demais para oferecer a oportunidade de auto-realização participatória, ao passo que manifestações de massa e atividades similares têm o defeito de não se orientarem para a tomada de decisões. As arenas mais promissoras para essa forma de auto-realização são os governos locais, a democracia econômica e, de modo geral, a democracia no âmbito das organizações. As condições sob as quais elas apresentam-se como oportunidades de auto-realização serão discutidas nas seções seguintes.

4. AUTO-REALIZAÇÃO E COMUNIDADE

De acordo com Hegel e Marx, as sociedades pré-capitalistas eram caracterizadas pela comunidade sem individualidade. O período moderno, ao contrário, vive a emergência de uma individualidade frenética e a desintegração generalizada da comunidade. Marx acreditava que o comunismo ocasionaria a síntese dos dois valores. Embora eu não possa sustentar em detalhe minha opinião aqui, parece-me que essa concepção inspirou-se na filosofia de Leibniz, o qual argumentava, de modo similar, que cada mônada difere de todas as outras e também que cada mônada reflete todas as outras do seu ponto de vista49 49 Cf. meu artigo "Marx et Leibniz", Review Philosophique, 108, 1989, 167-77. . De um lado, as pessoas tenderão a escolher veículos de auto-realização que correspondem a sua "essência individual", para usar uma frase de Leibniz. "Milton produziu o Paraíso Perdido pela mesma razão que a lagarta produz a seda. Produzir o livro correspondia a uma atividade da sua natureza"50 50 Marx, Theories of Surplus-Value, Lawrence e Wishart, Londres, 1963, 1, p. 401. . Uma exigência do individualismo ético do marxismo é esta: "sobretudo temos de evitar postular novamente a sociedade como um abstração em face do indivíduo"51 51 Economic and Philosophical Manuscripts, in Marx e Engels, Collected Works, 3, p. 299. . De outro lado, a auto-realização do indivíduo não deve ser um processo conflitivo e antagônico, mas deve ocorrer na comunidade e em benefício dela. De acordo com Marx, a auto-realização integra-se à comunidade quando envolve produção para outros. Considerarei primeiro essa idéia e depois a proposição alternativa de que os dois valores poderiam ser reconciliados na produção com outros.

A AUTO-REALIZAÇÃO PARA OUTROS

A passagem em que essa idéia foi mais claramente exposta está nos primeiros manuscritos de Marx:

"Vamos supor que tenhamos produzido algo como seres humanos. Cada um de nós terá afirmado de duas maneiras a si próprio e a outra pessoa. (1) Na minha produção terei objetivado minha individualidade, seu caráter específico, e obtido, em consequência, não apenas uma manifestação individual da minha vida durante a atividade, mas também, contemplando o produto, o prazer individual de saber que minha personalidade é objetiva, constatável pelos sentidos, e que portanto é sem nenhuma dúvida uma capacidade. (2) No desfrute ou uso do meu produto eu terei usufruído diretamente tanto a consciência de ter satisfeito, mediante meu trabalho, uma necessidade humana, como a consciência de ter assim criado um objeto correspondente à natureza essencial de outra pessoa... Nossos produtos terão sido espelhos nos quais vimos refletidas nossas naturezas essenciais"52 52 "Comments on James Mill", id. ib. , pp. 227-8. .

O texto não é transparentemente claro. Podemos encontrar nele a sugestão de uma distinção entre duas maneiras por meio das quais a apreciação favorável de outras pessoas aumenta a satisfação que obtenho do meu trabalho. De um lado, fico satisfeito com o prazer que as pessoas extraem do meu produto. Isso ocorrerá, apenas quando produzo para pessoas que conheço bem, como, por exemplo, quando cozinho para minha família. A idéia de que uma pessoa pode tirar prazer de saber que produz algo para a "sociedade" parece-me irrealista53 53 Essa idéia é central em Kolm, La Bonne Economie. Embora Kolm tenha razão em observar que essa "reciprocidade geral" superaria alguns dos defeitos da reciprocidade ordinária, também é verdade que perderia a principal virtude dessa última, que é o calor e a espontaneidade das relações pessoais. . De outro lado, a avaliação crítica de outra pessoa é necessária para que eu saiba se estou, trabalhando bem ou não. Para esse fim, é crucial que. a avaliação possa ser - e que às vezes o seja - negativa: "Sans la liberte de blamer il r'y a pas d'éloge flatteur"2* 2* NT: "Sem a liberdade de criticar não há elogio gratificante". . Os membros da família e os amigos não desempenham facilmente esse papel, pois relações interpessoais espontâneas não se coadunam bem com aquela fria atitude de avaliação. Cozinhar para estranhos é mais satisfatório. Sugiro, portanto, que Marx errou se para ele o mesmo grupo de referência poderia desempenhar as duas funções; mas não é certo que pensasse assim. Mesmo que cozinhar seja um trabalho desinteressante e não um veículo de auto-realização, uma pessoa pode preferir cozinhar para estranhos. Fazer ou produzir algo pelo qual os outros estão dispostos a pagar é fonte de auto-estima mesmo quando o trabalho dispendido na produção não é desafiador ou interessante. Essa pode ser uma das razões pelas quais as mulheres muitas vezes sentem a necessidade de fugir da atmosfera fechada e às vezes sufocantemente ambígua da família. Repetindo, não se trata de tirar prazer do fato de que se faz algo socialmente valorizado, mas de criar as condições para tirar prazer de outras atividades.

AUTO-REALIZAÇÃO COM OUTROS

Uma síntese alternativa de auto-realização e comunidade seria produzir com outros e não para outros. Ela se realizaria no coletivo de trabalho, e não na comunidade de produtores-consumidores. Não estou pensando no que poderíamos denominar auto-realização comum, na qual cada uma entre várias pessoas realizaria uma tarefa separada sob condições comuns a todas (pensemos num grupo de acadêmicos trabalhando juntos numa biblioteca). Refiro-me, antes, à auto-realização conjunta, na qual "o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos"54 54 Manifesto of the Communist Party, in Marx e Engels Collected Works, 6, p. 506. (pensemos nos músicos de uma orquestra ou nos participantes de uma discussão política). Dando seqüência à discussão das seções 2 e 3, podemos distinguir entre auto-realização conjunta no trabalho e na tomada de decisões (os músicos de uma orquestra, ademais de tocar juntos, também podem decidir juntos que peças tocar e o que fazer com a receita do concerto).

Consideremos primeiramente a auto-realização conjunta no processo de produção. Historicamente, a divisão do trabalho tendeu, por um lado, à maior integração e independência de tarefas, e por outro, a gerar tarefas cada vez mais simples, cada vez menos propícias à auto-realização. O modo de interdependência na indústria moderna é tal que, se A não faz sua parte, B não pode fazer a sua; mas não é necessariamente verdadeiro que quanto melhor A faz sua parte, melhor B fará a sua, e certamente não é verdadeiro que o bom desempenho de B melhora, inversamente, as condições para o bom desempenho de A. E mesmo que tal seja também o caso, não é necessariamente verdadeiro que as duas tarefas oferecem uma oportunidade sempre renovável de melhoria e crescimento. As condições para a auto-realização conjunta podem ser observadas num pequeno barco de pesca ou numa autoria conjunta, mas não parecem ser favorecidas pela natureza do trabalho industrial.

Consideremos em seguida a democracia participatória no local de trabalho. É trivial observar que qualquer avanço na democracia econômica direta requer um compromisso entre os valores da auto-realização participatória e a eficiência. Um compromisso semelhante deve ser alcançado entre a auto-realização no trabalho e a eficiência, bem como, de modo geral, um compromisso deve ser alcançado entre dois valores quaisquer a promover. Uma proposição menos trivial é a de que a auto-realização participatória pode, na verdade, depender da eficiência. Como argumentei acima, o valor da participação depende do grau em que o objeto da participação seja tomar boas decisões. No caso em exame, o objeto não é chegar à melhor decisão como se ela não envolvesse custos, mas chegar à melhor decisão considerando todos os fatores, incluindo o próprio custo da decisão. Se as empresas geridas pela democracia direta não funcionam, os trabalhadores não terão nem os benefícios da eficiência nem os da auto-realização. Segue-se que a auto-realização máxima ocorre num grau inferior ao máximo de participação; a democracia direta total se contradiria a si própria.

O mercado é um instrumento capaz de informar as firmas sobre a qualidade do seu desempenho. Segue-se que um argumento em favor do socialismo de mercado, por oposição ao socialismo de Estado, é o de que a ameaça de falência, assim como a ameaça de guerra, concentra maravilhosamente o espírito. Gostaria de ilustrar esse argumento com um episódio de história pessoal. Em 1970, eu estava de alguma forma envolvido em dois coletivos de trabalho: numa firma editora que dependia do sucesso de mercado para sobreviver, e numa instituição acadêmica que não dependia disso. Embora a democracia participatória fosse muito mais trabalhosa e exigente na primeira, era também mais gratifícante. Nós aumentamos muito nosso conhecimento dos vários subprocessos da área de publicações, e da maneira pela qual eles convergiam no produto final: um livro, que é algo comprado por alguém. Depois de algum tempo, porém, a tensão se fez sentir, e o coletivo renunciou em favor de um líder. No segundo grupo, a falta de um objetivo independente e de critérios bem definidos de desempenho levou a uma democracia de faz-de-conta. A discussão sobre quem tinha o direito de votar, e em que questões, tomou uma quantidade cada vez maior de tempo. O processo de autogoverno voltou-se para dentro de si mesmo, resultado, previsivelmente, mais em tédio que em auto-realização.

É possível contrastar a democracia participatória direta com a democracia econômica representativa. A democracia direta é trabalhosa mas gratificante, contanto que a exigência de eficiência seja respeitada. A democracia representativa tem a virtude da justiça, mas não oferece oportunidade de auto-realização para os trabalhadores de base. O pior sistema é aquele que resulta da degeneração da democracia direta no império dos ati-vistas, que ocorre na medida em que, para muitos, os custos da participação excedem a gratificação. Os ativistas não se submetem aos questionamentos e controles pouco custosos da democracia representativa, mas apenas aos controles de alto custo da co-participação.

Há duas maneiras possíveis de lidar com a instabilidade da democracia participatória. Uma é basear a democracia direta na participação compulsória. Minha opinião é que, a menos que seja escolhida unanimemente como forma de autocontrole coletivo, refletindo o fato de que a auto-realização exige grande empenho e padece das hesitações da vontade, esse sistema não se justificaria. Ele envolveria a utilização de outras pessoas como meios para a própria auto-realização, e minaria a natureza essencialmente livre da discussão racional. A outra solução é passar automaticamente da democracia direta à representativa quando o nível de participação cai abaixo de certo nível. Se os ativistas são pessoas para quem a tomada de decisões é uma forma central de auto-realização, eles podem apresentar-se como candidatos a eleições representativas. Se eles preferem o poder incontrastável, nesse caso não se apresentariam, que é como as coisas devem ser.

Essas observações aplicam-se à democracia política 'tanto quanto à democracia econômica. Sob condições adequadas, ambas podem ser arenas de auto-realização. Embora na democracia econômica a coletividade seja formada por trabalhadores e não por cidadãos, não se orienta para a auto-realização no próprio trabalho que efetivamente executam, mas para a auto-realização no processo de tomar decisões relativas ao trabalho. Isso não significa que os trabalhadores desempenham funções de gerência. Eles desenvolvem uma discussão racional e bem informada, da qual resultam instruções aos gerentes. Os gerentes podem alcançar a auto-realização individualmente, desenvolvendo e ampliando suas capacidades administrativas. A auto-realização dos trabalhadores, tal como a dos músicos numa orquestra, seria genuinamente conjunta. Se alguns dos participantes desviam-se das regras da discussão racional, eles tornam difícil ou sem sentido para os outros acompanhá-los55 55 Habernas, Theorie..., op. cit. Ver também Knut Midgaard, "On the Significance of Language and a Richer Concept of Rationality", in Leif Lewin e Evert Vedung (eds.), Politics as Rational Action, Reidel, Dordrecht, 1980, pp. 87-93. .

5. INSTITUIÇÕES, DESEJOS E OPORTUNIDADES

Que instituições promovem ou bloqueiam a auto-realização? Mais precisamente, como as relações institucionais intra e entre firmas afetam o desejo e a oportunidade de auto-realização no trabalho e na política? Essa é uma questão que envolve duas variáveis independentes e quatro dependentes; além disso, pode-se esperar que as variáveis dependentes relacionem-se entre si. Aqui farei apenas algumas ponderações sobre algumas das conexões que podem verificar-se. Primeiro, retornarei ao tema das preferências adaptativas, já mencionadas na seção 1. Depois considerarei a maneira pela qual as relações no interior das firmas podem afetar a oportunidade de auto-realização e como as relações entre firmas podem afetar tanto o desejo como a oportunidade para tal. Concluirei com algumas considerações sobre como "ir daqui até lá".

PREFERENCIAS ADAPTATIVAS

A ausência de auto-realização pode dever-se à ausência de desejo ou à ausência de oportunidade para tal. Se, numa sociedade dada, observamos que há poucas oportunidades de auto-realização e que as pessoas não parecem muito inclinadas a ela, seria tentador explicar o primeiro fato pelo segundo. Mas a relação causal poderia ter sentido inverso. Devido a que a maioria das pessoas tem poucas oportunidades para auto-realizar-se, seus desejos e aspirações podem inconscientemente ajustar-se a essa limitação de maneira a evitar uma dissonância cognitiva. Em particular, uma alta taxa de desconto no tempo e um alto grau de aversão ao risco podem surgir endogenamente, para fazer com que os melhores elementos no conjunto factível pareçam ótimos mesmo no interior do conjunto mais abrangente que inclua oportunidades de auto-realização e de consumo. A idéia de que a auto-realização é muito trabalhosa e exigente pode ser afetada por um elemento de "uvas verdes"56 56 Uma exposição mais detalhada desse argumento encontra-se no cap. 6 do meu Sour Grapes. . De outra parte, pode bem refletir uma preferência respeitável e autônoma por uma vida sossegada ou uma vida dedicada à amizade. Seríamos capazes de perceber a diferença se maiores oportunidades de auto-realização fossem disponíveis, pois nesse caso, se não fossem escolhidas, saberíamos que o desejo de um estilo de vida diferente seria autônomo, ou pelo menos não determinado pelo conjunto factível.

DEMOCRACIA E TAMANHO

Oliver Williamson e outros sustentaram que há vantagens inerentes à hierarquia em comparação com organizações de grupos com base na paridade dos membros57 57 Williamson, Oliver E., Markets and Hierarchies, Free Press, New York, 1975. Para uma resenha mais recente, ver McPherson, M., "Efficiency and Liberty in the Productive Enterprise: Recent Work in the Economics of Work Organization", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983, pp. 354-68. . A hierarquia economiza nos custos de difusão de informação, que é canalizada pela liderança ao invés de circular entre todos os membros no âmbito de interações paritárias. A hierarquia impõe uma solução a problemas triviais de alocação, que, de outra forma, seriam objeto de longas negociações. Ela é mais coerente com o monitoramento da produtividade do trabalho que, embora não seja impossível no grupo formado por pares, viola seu espírito. Essas vantagens, finalmente, aumentam mais que proporcionalmente com o tamanho do grupo.

Para que essas proposições possam ser avaliadas, o problema tem de ser formulado com mais precisão. Minha preocupação é avaliar as instituições econômicas em termos de justiça: das oportunidades abertas à auto-realização e à estabilidade psicológica. A eficiência não está explicitamente em questão, mas é tratada indiretamente como um requisito da auto-realização, conforme procurei mostrar acima. Lembremo-nos, ademais que do grupo formado por pares espera-se que decida apenas a respeito de grandes questões de políticas, e não que supervisione as atividades cotidianas de todos os membros. Parece-me que todas as vantagens da hierarquia acima citadas poderiam ser preservadas atribuindo-se a alguns membros do grupo de pares funções de gerência no quadro das referidas decisões sobre políticas. A dificuldade, pode-se supor, ocorreria no âmbito dessas próprias decisões. A democracia direta é vulnerável aos atritos e à pura e simples falta de interesse no processo de decisão, como por exemplo no caso de trabalhadores plenamente devotados à auto-realização pelo trabalho. Além disso, se o número de trabalhadores é grande, a democracia direta frustra-se a si própria em seus próprios termos. Para preservar a eficiência e a justiça econômica, a delegação do poder de decidir a representantes eleitos torna-se necessária. Esse arranjo permitiria a auto-realização dos representantes, mas não dos membros de base. No melhor dos mundos possíveis, os trabalhadores de base seriam então capazes de auto-realizar-se no próprio processo de trabalho.

O tamanho da .firma depende em grande medida da tecnologia. Na medida em que seja possível canalizar a mudança técnica no sentido de unidades produtivas menores, será urgente fazê-lo em firmas em que as próprias tarefas não constituem veículos de auto-realização. Devido às economias de escala próprias da auto-realização, não é tão importante insistir na democracia direta sempre que o próprio trabalho é suficientemente desafiador. Os músicos de uma orquestra podem preferir um líder ditatorial, mesmo que às vezes ele tome decisões das quais discordem, contanto que esse arranjo dê a eles mais tempo para concentrar-se no seu trabalho.

MERCADO OU PLANO?

As instituições macroeconômicas de uma sociedade influenciarão profundamente tanto o desejo como a oportunidade de auto-realização. O que direi a respeito do impacto sobre os desejos é em boa medida especulativo; os comentários concernentes às oportunidades serão algo mais robustos.

O planejamento central não favorece nenhum dos dois modos de auto-realização em discussão. Imaginar uma democracia econômica participatória numa economia centralmente planificada é quase uma contradição lógica, pois isso significaria que a mesma decisão seria tomada por dois conjuntos diferentes de pessoas (imaginemos ainda a confusão que seria a democracia direta nas agências de. planejamento!). Da mesma forma, sustentei acima que o mercado desempenha uma útil função para a auto-realização pelo trabalho ao proporcionar critérios externos e independentes de avaliação, ao passo que economias do tipo soviético têm sido prejudicadas pela dificuldade de encontrar critérios similarmente não-manipuláveis. Por outro lado, a "mentalidade de mercado" poderia dificultar a auto-realização ao proporcionar incentivos à produção de porcarias rentáveis ao invés de produtos de alta qualidade que não têm demanda efetiva. O problema é análogo ao conflito entre mudança técnica e auto-realização mencionado acima, e sua solução teria de ser semelhante: oferecer oportunidades de auto-realização por via das capacidades gerais de experimentação e improvisação.

O "socialismo de mercado" com democracia econômica direta poderia também ser considerado no mínimo psicologicamente instável, senão uma contradição em termos. Não seria a competição entre as empresas incompatível com a solidariedade no interior delas, que é necessária para que a autogestão funcione? O papel da solidariedade é duplo. De um lado, todos os trabalhadores têm de ser motivados a trabalhar constantemente sem fazer "cera". De outro, os trabalhadores mais qualificados têm de aceitar baixos diferenciais de salários, isto é, que o mercado de trabalho seja regulado, pois se não for assim a motivação dos menos qualificados será reduzida. Não há evidência, que eu saiba, de que esses requisitos sejam incompatíveis com o espírito de competição. Sem levar o argumento ao ponto de afirmar que a solidariedade não funciona a não ser como solidariedade contra outros, parece-me uma realidade da vida que a competição entre grupos e a solidariedade intra grupo frequentemente coexistem estavelmente.

COMO "IR DAQUI ATÉ LÁ" (E PERMANECER LÁ)?

Consideremos algumas possibilidades:

O cenário (I) corresponde à ideologia capitalista dominante: os trabalhadores não querem passar ao socialismo, e se lá chegassem prefeririam deixá-lo. O cenário (II) pode ser considerado uma expressão de "preferências contra-adaptativas", criadas pelo fato de que tanto o capitalismo como o socialismo têm muitas características negativas e objetáveis, de tal maneira que cada regime despertaria o desejo do outro58 58 Sobre a idéia de preferências contra-adaptativas, ver Elster, Sour Grapes, pp. 111-12. Sobre a idéia de que o capitalismo e o socialismo geram ciclicamente cada um o desejo do outro, ver John Dunn, The Politics of Socialism, Cambridge University Press, 1984. . O cenário (III) não pode ser considerado, similarmente, a expressão de preferências adaptativas. Se o socialismo mantiver todas as opções do capitalismo, acrescentando a da auto-realização, o desejo do socialismo no socialismo não será adaptativo. A preferência pelo capitalismo no capitalismo será, no entanto, adaptativa. O cenário (IV) parece inteiramente utópico no presente momento histórico. Note-se, contudo, que da resistência observada em nossos dias à passagem ao socialismo não se poderá inferir a ausência de preferência pelo socialismo, pois aquela resistência pode decorrer dos custos da transição e dos problemas de "carona" na ação revolucionária.

Sustentei na seção 1 que a resistência à auto-realização deve-se em grande parte à miopia e à "carona". Agora damo-nos conta que os mesmos problemas aparecem no caminho do socialismo. Creio que os dois problemas e suas soluções relacionam-se estreitamente. Mas essa é matéria de um outro trabalho59 59 Ver Elster, "Weakness of Will", op. cit. .

  • * Jon Elster, "self-realization in work and politics: the Marxist conception of the good life", Social Philosophy and Policy vol. 3, 1986, nş 1.
  • Republicado em John Elster and Karl Moene (ed) Alternatives to Capitalism. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990, capítulo 8.
  • 1 A interpretaçăo mais desenvolvida de Marx em favor dessa proposiçăo está no meu Making Sense of Marx, Cambridge University Press, 1985.
  • 2 Sobre a noçăo de welfarism, ver Amartya Sen, "Welfarism and Utilitarianism", Journal of Philosophy, 76, 1979, pp. 463-88.
  • 3 Rawls, John, A Theory of Justice, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1971, pp. 90-3.
  • 4 Ver o meu Sour Grapes, Cambridge University Press, 1983, cap. 3,
  • 5 Um exemplo extremo de como uma pessoa pode "aperfeiçoar-se até a morte" está em Carl Christian von Weizsacker, "Notes on Endogenous Change of Tostes", Journal of Economic Theory 3, 1971, p. 336.
  • 6 Sobre a noçăo de autopaternalismo individual e coletivo, ver o meu Ulysses and the Sirens, ed. revista, Cambridge University Press, 1984, cap. 2.
  • 10 Passagens conhecidas em que Marx insiste na plenitude da auto-realizaçăo estăo na The German Ideology, in Marx, K. e Engels, F., Collected Works, Lawrence e Wishart, Londres, 1976, 5, pp. 47, 394.
  • 11 Sobre esse enfoque da produçăo, ver Leif Johansen, "Substitution versus Fixed Production Coefficients in Theory of Production", Econometrica, 27, 1959, pp. 157-76.
  • 12 Uma análise conceitual das capacidades e sua atualizaçăo encontra-se em Anthony Kenny, Action, Emotion and Will, Routledge e Kegan Paul, Londres, 1963, cap. 8.
  • O conceito de Kenny é um conceito aristotélico de auto-atualizaçăo, distinto tanto da noçăo freudiana de liberaçăo de pensamentos e desejos reprimidos quanto da noçăo nietzscheana de identificaçăo com seus próprios feitos. Uma proveitosa discussăo dessa questăo encontra-se em Alexander Nehamas, "How One Becomes What One Is", Philosophical Review, 92, 1983, pp. 385-417.
  • 13Nouveaux Essais sur l'Entendement Humain, in C.W. Leibniz, Die Philosophischen Schriften, ed. por C.J. Gerhardt, 7 volumes, Hildescheim, Olms, 1966, 6, p. 175.
  • 14 Marx, Grundrisse, Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p. 611.
  • 15 Solomon, Richard L. e Corbit, J. D., "An Opponent-Process Theory of Motivation", Psychological Review, 81, 1974, pp. 119-145.
  • Ver também o meu "Sadder but Wiser ? Rationality and the Emotions", Social Science Information, 24, 1983, pp. 375-406.
  • Para uma aplicaçăo ao problema em pauta, ver Frank J. Landy, "An Opponent-Process Theory of Job Satisfaction", Journal of Applied Psychology, 63, 1978, pp. 533-47.
  • 18 Hegel, G.W.F. , Phenomenology of Spirit, Oxford University Press, New York, 1977, pp. 118,193,395-7.
  • 20 Dworkin, Ronald, "What is Equalily? Part I: Equality of Welfare", Philosophy and Public Affairs, 10, 1981, p. 222.
  • 21 "Weakness of Will and the Free Rider Problem", Economics and Philosophy, 1985, pp. 231-65.
  • 22 Para uma resenha das vias de superaçăo da "carona", ver o artigo citado na nota anterior e também o meu "Rationality, Morality and Collective Action", Ethics, 96, 1985, pp. 136-55.
  • 23 Nisbett, Richard E. e Ross, Lee, Human Inference: Strategies and Shortcomings of Social Judgement, Prentice Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1980, p. 271.
  • 24 Sobre essa distinçăo consultar G. A. Cohen, "Karl Marx's Dialectic of Labour",. Philosophy and Public Affairs, 3, 1974, pp. 235-61.
  • 25 Para uma resenha completa ver Pagano, Ugo, Work and Welfare in Economic Theory, Blackwell Publisher, Oxford, 1984.
  • 26 Kolm, S. C, La Bonne Economie, Presses Universitaires de France, Paris, 1984, pp. 119-20.
  • 29 Na literatura sobre satisfaçăo no trabalho a noçăo de auto-realizaçăo é usualmente discutida em relaçăo com os escritos de Abraham Maslow e rejeitada sob alegaçăo de ser irremediavelmente confusa. Ver, por exemplo, Edwin A. Locke, "Nature and Causes of Job Satisfaction", in Marvin D. Dunnette (ed.), Handbook of Industrial and Organizational Psychology, Rand McNaally, Chicago, 1976, pp. 1307-9.
  • 31 Hackman, J. Richard, "Work Design", in). Richard Hackman e J. Lloyd Suttle (eds.) Improving Life at Work, Goodyear, Santa Monica, Calif., 1977, pp. 96-162.
  • 32 O' Brien, Gordon, "The Centrality of Skill-Utilization for Job Design", in K. D. Duncan, Michael M. Gruneberg e Donald Wallis (eds.) Changes in Working Life, Wiley, New York, 1980, p. 180.
  • 35 Hackman, "Work Design", p. 117.
  • 36 Boudon, Raymond, Effets Pervers et Ordre Social, Presses Universitaires de France, Paris, 1977, cap. 4.
  • 38 Tocqueville, Alexis de, Democracy in America, Anchor Books, New York, 1969, p. 453.
  • 39 Habermas, Jürgen, Theorie des Kommunikativen Handelns, Suhrkamp, Frankfurt, 1981.
  • 40 No meu artigo "The Market and the Forum", in Aanund Hylland e John Elster (eds.) , Foundations of School Choice Theory, Cambridge University Press, 1986, pp. 103-32.
  • 41 Downs, Anthony, An Economic Theory of Democracy, Harper, New York, 1957.
  • 42 Especialmente Barry, Brian M. , Economists, Sociologists and Democracy, University of Chicago Press, 1979.
  • 43 Para uma breve discussăo e rejeiçăo dessa possibilidade, ver Margolis, Howard, Selfishness, Altruism and Rationality, Cambridge University Press, 1982, p. 86.
  • 44 Mais detalhes sobre esse ponto no capítulo 5 do meu livro Cement of Society, Cambridge University Press, 1989.
  • 45 Arendt, Hannah, The Human Condition, University of Chicago Press, 1958, p. 37.
  • 46 Holmes, Stephen, Benjamin Constant and the Making of Modern Liberalism, Yale University Press, New Haven, Conn., 1984, p. 60.
  • 47 Finley, Moses I., "Authority and Legitimacy in the Classical City-State", Det Kongelige Danske Videnskapernes Selskab, Historisk-Filosofiscke Meddelelser, 50, nş 3, Kobenhavn, Munksgaard, 1982, p. 12.
  • 48 "Finley, Moses I., "The Freedom of the Citizen in the Ancient Greek World", no seu Economy and Society in Ancient Greece, Chatto e Windus, Londres, 1981, p.83.
  • 49 Cf. meu artigo "Marx et Leibniz", Review Philosophique, 108, 1989, 167-77.
  • 50 Marx, Theories of Surplus-Value, Lawrence e Wishart, Londres, 1963, 1, p. 401.
  • 51Economic and Philosophical Manuscripts, in Marx e Engels, Collected Works, 3, p. 299.
  • 54 Manifesto of the Communist Party, in Marx e Engels Collected Works, 6, p. 506.
  • 55 Habernas, Theorie..., op. cit. Ver também Knut Midgaard, "On the Significance of Language and a Richer Concept of Rationality", in Leif Lewin e Evert Vedung (eds.), Politics as Rational Action, Reidel, Dordrecht, 1980, pp. 87-93.
  • 57 Williamson, Oliver E., Markets and Hierarchies, Free Press, New York, 1975.
  • Para uma resenha mais recente, ver McPherson, M., "Efficiency and Liberty in the Productive Enterprise: Recent Work in the Economics of Work Organization", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983, pp. 354-68.
  • 58 Sobre a idéia de preferęncias contra-adaptativas, ver Elster, Sour Grapes, pp. 111-12.
  • Sobre a idéia de que o capitalismo e o socialismo geram ciclicamente cada um o desejo do outro, ver John Dunn, The Politics of Socialism, Cambridge University Press, 1984.
  • *
    Jon Elster, "self-realization in work and politics: the Marxist conception of the good life",
    Social Philosophy and Policy vol. 3, 1986, nº 1. Republicado em John Elster and Karl Moene (ed)
    Alternatives to Capitalism. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990, capítulo 8. )
    **
    Tradução de Regis Castro Andrade.
  • 1*
    NT: "Todo início é difícil".
  • 2*
    NT: "Sem a liberdade de criticar não há elogio gratificante".
  • 1
    A interpretação mais desenvolvida de Marx em favor dessa proposição está no meu
    Making Sense of Marx, Cambridge University Press, 1985.
  • 2
    Sobre a noção de
    welfarism, ver Amartya Sen,
    "Welfarism and Utilitarianism", Journal of Philosophy, 76, 1979, pp. 463-88.
  • 3
    Rawls, John,
    A Theory of Justice, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1971, pp. 90-3. Devo acrescentar que muitas proposições do livro de Rawls vão além da simples consideração dos bens primários. Sua discussão do que ele chama de Princípio Aristotélico (p. 424 e ss.), em particular, tem muitas afinidades com a presente análise da auto-realização. Não obstante, o argumento referente à organização das instituições sociais básicas não vai além dos bens primários.
  • 4
    Ver o meu
    Sour Grapes, Cambridge University Press, 1983, cap. 3, a respeito da importância da formação das preferências endógenas na filosofia política.
  • 5
    Um exemplo extremo de como uma pessoa pode "aperfeiçoar-se até a morte" está em Carl Christian von Weizsacker,
    "Notes on Endogenous Change of Tostes", Journal of Economic Theory 3, 1971, p. 336.
  • 6
    Sobre a noção de autopaternalismo individual e coletivo, ver o meu
    Ulysses and the Sirens, ed. revista, Cambridge University Press, 1984, cap. 2.
  • 7
    As
    Watts Towers em Los Angeles foram construídas por um imigrante italiano, Sam Rodia, que trabalhou sozinho durante trinta e três anos, utilizando materiais diversos encontrados nas ruas da cidade. Informações sobre o assunto encontram-se no
    Los Angeles Times de 12 de agosto de 1984. Elas são maravilhosas na concepção e na execução, diferentemente da arte conceitual, por exemplo, que tem o valor caprichoso da novidade atordoante e que rapidamente torna-se tediosa. Para uma discussão das condições da auto-realização na arte, ver o meu
    Sour Grapes, cap. 2, seção 7.
  • 8
    Este exemplo, como o anterior, foi observado na praia Venice, em Los Angeles. Foram incluídos para recordar-nos de que a auto-realização nem sempre se dá em atividades que, em sentido substantivo, são socialmente úteis.
  • 9
    Para uma discussão geral dessa noção, ver o meu
    Sour Grapes, cap. 2.
  • 10
    Passagens conhecidas em que Marx insiste na plenitude da auto-realização estão na
    The German Ideology, in Marx, K. e Engels, F.,
    Collected Works, Lawrence e Wishart, Londres, 1976, 5, pp. 47, 394.
  • 11
    Sobre esse enfoque da produção, ver Leif Johansen,
    "Substitution versus Fixed Production Coefficients in Theory of Production", Econometrica, 27, 1959, pp. 157-76.
  • 12
    Uma análise conceitual das capacidades e sua atualização encontra-se em Anthony Kenny,
    Action, Emotion and Will, Routledge e Kegan Paul, Londres, 1963, cap. 8. O conceito de Kenny é um conceito aristotélico de auto-atualização, distinto tanto da noção freudiana de liberação de pensamentos e desejos reprimidos quanto da noção nietzscheana de identificação com seus próprios feitos. Uma proveitosa discussão dessa questão encontra-se em Alexander Nehamas,
    "How One Becomes What One Is", Philosophical Review, 92, 1983, pp. 385-417.
  • 13
    Nouveaux Essais sur l'Entendement Humain, in C.W. Leibniz,
    Die Philosophischen Schriften, ed. por C.J. Gerhardt, 7 volumes, Hildescheim, Olms, 1966, 6, p. 175.
  • 14
    Marx,
    Grundrisse, Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p. 611.
  • 15
    Solomon, Richard L. e Corbit, J. D.,
    "An Opponent-Process Theory of Motivation", Psychological Review, 81, 1974, pp. 119-145. Ver também o meu
    "Sadder but Wiser ? Rationality and the Emotions", Social Science Information, 24, 1983, pp. 375-406. Para uma aplicação ao problema em pauta, ver Frank J. Landy,
    "An Opponent-Process Theory of Job Satisfaction", Journal of Applied Psychology, 63, 1978, pp. 533-47.
  • 16
    Pode-se objetar que esse é um modelo de consumo por vício, ou consumo compulsivo, e não de consumo de modo geral. No consumo não-compulsivo, pode-se presumir a ocorrência de um processo oponente de intensidade crescente, embora a idéia de uma intensidade decrescente do processo principal permaneça plausível. Como
    esse último é o aspecto decisivo para o meu argumento, a objeção não o afeta. Em todo caso, pode haver um elemento de vício, ou compulsão (no sentido de um processo oponente de intensidade crescente) em todas as formas de consumo, embora seja menos dramático do que no uso de drogas, cigarro ou álcool. A objeção pode então ser reformulada como uma questão sobre se o efeito líquido de um dado episódio torna-se cada vez mais negativo à medida que o número de episódios aumenta.
  • 17
    Essa proposição admite duas exceções. Em primeiro lugar, algumas capacidades não são susceptíveis de desenvolvimento indefinido; em segundo lugar, algumas pessoas podem não ser capazes de desenvolver indefinidamente suas capacidades. O jogo da velha, diferentemente do xadrez, logo torna-se aborrecido; uma pessoa com reflexos motores pouco desenvolvidos pode dar-se conta, dolorosamente, de que não foi feita para fazer malabarismo. As economias de escala operam somente no caso de adequação entre capacidades e tarefas, que evita os extremos do tédio e da frustração.
  • 18
    Hegel, G.W.F. ,
    Phenomenology of Spirit, Oxford University Press, New York, 1977, pp. 118,193,395-7.
  • 19
    Para uma exposição mais detalhada de um argumento semelhante, ver o meu
    Sour Grapes, pp. 124 e 133-40.
  • 20
    Dworkin, Ronald,
    "What is Equalily? Part I: Equality of Welfare", Philosophy and Public Affairs, 10, 1981, p. 222.
  • 21
    "Weakness of Will and the Free Rider Problem", Economics and Philosophy, 1985, pp. 231-65.
  • 22
    Para uma resenha das vias de superação da "carona", ver o artigo citado na nota anterior e também o meu
    "Rationality, Morality and Collective Action", Ethics, 96, 1985, pp. 136-55.
  • 23
    Nisbett, Richard E. e Ross, Lee,
    Human Inference: Strategies and Shortcomings of Social Judgement, Prentice Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1980, p. 271.
  • 24
    Sobre essa distinção consultar G. A. Cohen,
    "Karl Marx's
    Dialectic of Labour",. Philosophy and Public Affairs, 3, 1974, pp. 235-61.
  • 25
    Para uma resenha completa ver Pagano, Ugo,
    Work and Welfare in Economic Theory, Blackwell Publisher, Oxford, 1984.
  • 26
    Kolm, S. C,
    La Bonne Economie, Presses Universitaires de France, Paris, 1984, pp. 119-20.
  • 27
    Para uma discussão desse ponto, ver Elster,
    "Weakness of Will", op. cit.
  • 28
    Em alguns casos, o resultado também seria diferente se a medida fosse feita muito perto do final. Byron escreveu: "Nothing so difficult as a beginning/In poesy, unless perhaps the end".
  • 29
    Na literatura sobre satisfação no trabalho a noção de auto-realização é usualmente discutida em relação com os escritos de Abraham Maslow e rejeitada sob alegação de ser irremediavelmente confusa. Ver, por exemplo, Edwin A. Locke,
    "Nature and Causes of Job Satisfaction", in Marvin D. Dunnette (ed.),
    Handbook of Industrial and Organizational Psychology, Rand McNaally, Chicago, 1976, pp. 1307-9. Embora concorde com as críticas de Maslow, espero ter mostrado na presente discussão que a noção não é inerentemente inutilizável numa análise precisa.
  • 30
    Locke,
    id.,p
    . 1319.
  • 31
    Hackman, J. Richard,
    "Work Design", in). Richard Hackman e J. Lloyd Suttle (eds.)
    Improving Life at Work, Goodyear, Santa Monica, Calif., 1977, pp. 96-162.
  • 32
    O' Brien, Gordon,
    "The Centrality of Skill-Utilization for Job Design", in K. D. Duncan, Michael M. Gruneberg e Donald Wallis (eds.)
    Changes in Working Life, Wiley, New York, 1980, p. 180. Ver também Hackman, "
    Work Design"
    , op. cit. , pp. 115-20.
  • 33
    Hackman,
    id. ib. p. 115-20.
  • 34
    O'Brien, "The Centrality...",
    op. cit. , pp. 180 e ss.
  • 35
    Hackman,
    "Work Design", p. 117. O autor sustenta que a superqualificação também ocasiona perda de produtividade por via da falta de motivação. Isso pode ser verdade para alguns trabalhadores e algumas tarefas, mas por vezes um nível de qualificação mais alto leva a um desempenho superior.
  • 36
    Boudon, Raymond,
    Effets Pervers et Ordre Social, Presses Universitaires de France, Paris, 1977, cap. 4. Esse autor argumenta que isso pode transformar-se num problema de ação coletiva: pode ser individualmente racional para cada estudante buscar educação superior, embora todos ficassem em melhor situação se todos decidissem por cara ou coroa. Isso pressupõe, contudo, que os estudantes são motivados pela expectativa de rendimento e não pela expectativa de satisfação, o que também incluiria o desapontamento e a frustração gerados pela obtenção de um emprego de baixa qualificação ao final da educação superior. O próprio Boudon
    (id., cap. 5) oferece a melhor análise desse problema, embora, surpreendentemente, não a estenda à questão da escolha educacional.
  • 37
    Locke,
    "Nature and Causes...", pp. 1320-1.
  • 38
    Tocqueville, Alexis de,
    Democracy in America, Anchor Books, New York, 1969, p. 453.
  • 39
    Habermas, Jürgen,
    Theorie des Kommunikativen Handelns, Suhrkamp, Frankfurt, 1981.
  • 40
    No meu artigo "The Market and the Forum",
    in Aanund Hylland e John Elster (eds.) ,
    Foundations of School Choice Theory, Cambridge University Press, 1986, pp. 103-32. Ver também o meu
    Sour Grapes, cap. 2, seção 9.
  • 41
    Downs, Anthony,
    An Economic Theory of Democracy, Harper, New York, 1957.
  • 42
    Especialmente Barry, Brian M. ,
    Economists, Sociologists and Democracy, University of Chicago Press, 1979.
  • 43
    Para uma breve discussão e rejeição dessa possibilidade, ver Margolis, Howard,
    Selfishness, Altruism and Rationality, Cambridge University Press, 1982, p. 86.
  • 44
    Mais detalhes sobre
    esse ponto no capítulo 5 do meu livro
    Cement of Society, Cambridge University Press, 1989. Atitudes mais instrumentais, tais como as motivações altruístas e utilitárias poderiam também entrar na explicação do voto, mas eu creio que sua importância é menor que as mencionadas no texto.
  • 45
    Arendt, Hannah,
    The Human Condition, University of Chicago Press, 1958, p. 37.
  • 46
    Holmes, Stephen,
    Benjamin Constant and the Making of Modern Liberalism, Yale University Press, New Haven, Conn., 1984, p. 60.
  • 47
    Finley, Moses I.,
    "Authority and Legitimacy in the Classical City-State", Det Kongelige Danske Videnskapernes Selskab, Historisk-Filosofiscke Meddelelser, 50, nº 3, Kobenhavn, Munksgaard, 1982, p. 12.
  • 48
    "Finley, Moses I., "The Freedom of the Citizen in the Ancient Greek World", no seu
    Economy and Society in Ancient Greece, Chatto e Windus, Londres, 1981, p.83.
  • 49
    Cf. meu artigo
    "Marx et Leibniz", Review Philosophique, 108, 1989, 167-77.
  • 50
    Marx,
    Theories of Surplus-Value, Lawrence e Wishart, Londres, 1963, 1, p. 401.
  • 51
    Economic and Philosophical Manuscripts, in Marx e Engels,
    Collected Works, 3, p. 299.
  • 52
    "Comments on James Mill",
    id. ib. , pp. 227-8.
  • 53
    Essa idéia é central em Kolm,
    La Bonne Economie. Embora Kolm tenha razão em observar que essa "reciprocidade geral" superaria alguns dos defeitos da reciprocidade ordinária, também é verdade que perderia a principal virtude dessa última, que é o calor e a espontaneidade das relações pessoais.
  • 54
    Manifesto of the Communist Party, in Marx e Engels
    Collected Works, 6, p. 506.
  • 55
    Habernas, Theorie..., op. cit. Ver também Knut Midgaard, "On the Significance of Language and a Richer Concept of Rationality",
    in Leif Lewin e Evert Vedung (eds.),
    Politics as Rational Action, Reidel, Dordrecht, 1980, pp. 87-93.
  • 56
    Uma exposição mais detalhada desse argumento encontra-se no cap. 6 do meu
    Sour Grapes.
  • 57
    Williamson, Oliver E.,
    Markets and Hierarchies, Free Press, New York, 1975. Para uma resenha mais recente, ver McPherson, M.,
    "Efficiency and Liberty in the Productive Enterprise: Recent Work in the Economics of Work Organization", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983, pp. 354-68.
  • 58
    Sobre a idéia de preferências contra-adaptativas, ver Elster,
    Sour Grapes, pp. 111-12. Sobre a idéia de que o capitalismo e o socialismo geram ciclicamente cada um o desejo do outro, ver John Dunn,
    The Politics of Socialism, Cambridge University Press, 1984.
  • 59
    Ver Elster, "Weakness of Will",
    op. cit.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 1992
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