Acessibilidade / Reportar erro

Identidade, oposição e pragmatismo: uma teoria política do voto

CULTURA POLÍTICA

Identidade, oposição e pragmatismo: uma teoria política do voto

J. A. Guilhon Albuquerque

Professor do Departamento de Ciência Política e coordenador do Programa de Pós-Doutorado em Relações Internacionais da USP

A construção de uma tipologia do eleitorado tem por objeto definir tipos de comportamento eleitoral. Ela consiste na definição de um conjunto de variáveis capazes de identificar tipos diferentes de eleitores com comportamentos eleitorais distintos, de modo que, com base nessa tipologia, seja possível predizer o voto futuro desses grupos.

A referência mais usual para tipologias dessa natureza está na literatura norte-americana1 1 A tradição francesa é, no entanto, bastante respeitável. Para uma visão de conjunto recente, Colette Ysmal, Le Comportement électoral des Français, Paris, Ed. La Découverte, 1986. Dois livros fornecem dados comparados de grande utilidade: Richard Rose (org.), Electoral behavior: a comparative handbook, N. York, London, The Free Press, 1974, e David Butler, Howard Penniman e Austin Ranney (orgs.), Democracy at the Polls, Washington, American Enteprise Institute, 1981. . A predição do voto do eleitorado norte-americano baseia-se essencialmente em três tipos de variáveis, a saber, atitudes políticas, tais como a identificação partidária e as orientações de tipo liberal ou conservador; pertinência cultural, como a filiação religiosa e a origem étnica; e as variáveis demográficas, como idade, sexo, nível de renda e grau de instrução. As correlações entre essas variáveis foram estabelecidas há muito e sofrem constantes correções que aumentam o poder preditivo das tipologias daí resultantes, em que a identificação partidária desempenha, sem dúvida, o papel determinante.

No Brasil, as pesquisas acadêmicas têm trabalhado com conjuntos complexos de variáveis que, além das dimensões apontadas no que se refere à literatura norte-americana, incluem participação e informação política, opiniões sobre as instituições e a classe política, atitudes com relação às instituições e ao regime, etc. Não temos conhecimento, entretanto, de qualquer tentativa de construção de tipologia do eleitorado no sentido estrito aqui mencionado.

Por outro lado, as pesquisas acadêmicas de comportamento eleitoral já realizadas não podem ser consideradas pesquisas nacionais no sentido estrito, já que não se basearam em surveys com amostras estratificadas por região, Estado e município. As pesquisas dos Institutos de opinião, algumas das quais podem ser aceitas, com restrições, como sendo baseadas em amostras probabilísticas da população nacional, padecem de outra ordem de limitações.

Com efeito, essas pesquisas tendem a empregar exclusivamente, como variáveis explicativas, as dimensões demográficas e ecológicas. Além do mais, as análises geralmente divulgadas restringem-se à associação de variáveis duas a duas, sempre uma variável explicativa e uma variável de comportamento eleitoral. São praticamente inexistentes as análises e projeções que incluam associações das variáveis explicativas ou das variáveis "dependentes" entre si. Tampouco tenho conhecimento de análises ou projeções das associações entre as variáveis demográficas ou ecológicas e as variáveis de comportamento eleitoral, com o emprego de variáveis de controle, o que reduz enormemente, quando não anula, o poder preditivo das projeções feitas.

Nessas análises, baseadas nos dados de surveys nacionais dos institutos de pesquisa de opinião, prevalecem, portanto, o que se poderia chamar de tipologias de uma só variável: "o voto do interior" por oposição ao das capitais e regiões metropolitanas, o "voto jovem" por oposição ao dos adultos e idosos, o "voto das classes D e E" por oposição às demais, e assim por diante.

A tipologia que pretendemos construir apresenta, com relação a esses estudos, pelo menos dois aspectos inovadores. Em primeiro lugar, trata-se de definir uma tipologia do eleitorado no sentido estrito: a combinação de um conjunto de variáveis que defina um número determinado de tipos, isto é, grupos coletivamente exaustivos e mutuamente excludentes de eleitores, cujos comportamentos de escolha eleitoral sejam significativamente distintos uns dos outros do ponto de vista teórico, e passíveis de ser empiricamente discriminados entre si.

Em segundo lugar, trata-se de conferir prioridade teórica e peso empírico preponderante às variáveis de comportamento político. Isto significa que, ao invés de priorizarmos as variáveis demográficas e contextuais para explicar o comportamento eleitoral, daremos prioridade às variáveis de comportamento político. Isto equivale a evitar a redução do comportamento eleitoral a dimensões não-políticas, explicando e predizendo o comportamento eleitoral a partir do comportamento político prévio.

O ponto de partida para este projeto foi a crítica à tipologia tradicional do eleitorado americano - em termos de Liberais, Conservadores e Independentes - feita por Ornstein, Kohut e McCarthy2 2 Norman Ornstein, Andrew Kohut e Larry McCarthy, The People, the Press, & Politics, Addison-Wesley Publishing Company, Inc., Reading, Mass., 1988. no estudo realizado para a Times-Mirror, com vistas às eleições presidenciais de 1988. Nesse estudo, baseado em surueys conduzidos pela Gallup Organization, a tipologia resultou da combinação de nove dimensões (basic values and personal orientations)- . fé religiosa, alienação e pressão financeira (orientações pessoais); e tolerância, justiça social, anti-comunismo militante, atitudes para com o governo, excepcionalismo americano e atitudes para com o big business americano (valores básicos).

Confrontando as dimensões daquele estudo com as variáveis presentes no questionário Cedec/Data-Folha e na literatura brasileira, e levando em conta minhas próprias hipóteses teóricas, particularmente no que diz respeito às dimensões do voto3 3 J. A. Guilhon Albuquerque, "Estratégia eleitoral", In Curso de Especialização em eleições Municipais, (orgs.) J. A. Guilhon Albuquerque e A. Prado Jr.), Ibeac, 1988, pp. 17-26: e "Estraté gia eleitoral e identificação", comunicação apresentada no Grupo de eleições e Processos Políticos da Anpocs, 1988. , cheguei a uma lista de 10 dimensões. Essas dimensões compreendem um total de 22 variáveis.

1. ENVOLVIMENTO/NÃO-ENVOLVIMENTO COM AS INSTITUIÇÕES - Minha hipótese é que o baixo ou nenhum envolvimento com as instituições políticas está associado ao desinteresse e à desinformação sobre o processo eleitoral e ao voto nulo ou em branco e ao voto "cacareco". Também está associado à inclinação por candidatos que se apresentam como anti-sistema ou como outsiders e a movimentos "contra tudo e contra todos".

2. PARTICIPAÇÃO - Minha hipótese é que uma alta participação é independente da maioria das dimensões do comportamento eleitoral e permite, numa tipologia, qualificar as orientações resultantes de outras dimensões. A hipótese mais geral, neste caso, é que, quanto maior a participação, mais forte será o efeito dessas variáveis.

3. ORIENTAÇÃO DO VOTO - Esta dimensão compreende dois grupos de questões: o primeiro diz respeito diretamente à razão do voto e da inclinação partidária, interpretadas em termos das categorias de Identidade, Oposição e Totalidade, propostas por Touraine para interpretar as orientações da ação coletiva4 4 Alain Touraine, Sociologia de l'action, Paris, Seuil, 1965. .

Neste caso, trata-se das razões do voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais, e da razão da preferência partidária.

4. IDENTIDADE PARTIDÁRIA - Trata-se de um indicador bastante eficiente de identidade partidária, uma vez que a resposta foi espontânea e única a pergunta: "Qual o partido político de sua preferência?" A identificação partidária deve, portanto, ser entendida no seu sentido mais estrito, e o fato de que a amostra revele cerca de metade dos entrevistados com identidade partidária é inesperado em face da literatura sobre a questão5 5 Cf. Elizabeth Balbachevsky, Identificação partidária e comportamento político: o caso de S. Paulo (1974-1982), diss. de mestrado, S. Paulo, D. C. P. PUC/SP, 1988, cap. I, pp. 6-25. .

5. ORIENTAÇÃO IDEOLÓGICA - Nesta dimensão inclui-se a auto-definição e a definição do partido de preferência numa escala de direita- esquerda com sete posições.

6. JUSTIÇA SOCIAL/DESEMPENHO INDIVIDUAL Agrupamos aqui um conjunto de indicadores que dizem respeito à expectativa de proteção social e, particularmente, estatal, por oposição à confiança no desempenho individual.

Minha hipótese é que a experiência de migração, de afluência, de sucesso na competição determine orientações políticas que levem ao voto em candidatos ou partidos identificados com propostas empresariais ou de restrição às políticas sociais de caráter assistencial.

7. TOLERÂNCIA/RIGIDEZ - São duas questões distintas que pretendem avaliar a tolerância à diferença, à dissidência e a eventual quebra de normas, tanto pessoais quanto sociais.

Minha hipótese é que em ambos os casos a tolerância ou a rigidez levará à identificação com determinados candidatos e, sobretudo, à rejeição de outros.

8. AUTORITARISMO - Além da clássica oposição à democracia, juntam-se aqui indicadores de atitudes com relação ao governo militar e de preferência por um partido único.

9. OTIMISMO/PESSIMISMO - Temos, aqui, uma escala de auto-avaliação do sucesso pessoal. São duas questões em que o entrevistado se coloca por referência ao seu próprio ideal de sucesso no presente e no futuro (o máximo que poderá atingir). Minha hipótese é que o contraste entre as duas avaliações determina diferentes orientações eleitorais.

10. ALIENAÇÃO - Trata-se aqui do sentimento de alienação política, medido por indicadores da percepção de ser influenciado ou de influenciar a política, questões mantidas apenas na primeira e segunda ondas de entrevistas.

TIPOLOGIA: PRIMEIROS PASSOS

A análise das variáveis explicativas, isto é, das dez dimensões com que pretendemos construir a tipologia do voto, encontra-se num estágio bem menos avançado. Um primeiro levantamento foi feito, compreendendo as variáveis demográficas, sexo, idade, instrução e renda, o que não sugeriu nenhum caminho em particular. O fato promissor é que, das variáveis já analisadas, a maioria se apresenta independente das variáveis demográficas, o que permite esperar que elas se prestem à função de definir uma tipologia.

Os resultados que apresentamos aqui constituem um estudo da dimensão de orientação do voto com vistas à definição de seu papel na construção de uma tipologia do comportamento eleitoral, que permita predizer o sucesso ou o insucesso nas eleições.

Saber quem irá ganhar as próximas eleições, ou saber quem irá perdê-las, o que pode dar na mesma, é um problema extremamente simples, mas de difícil solução. A rigor, basta saber em quem irá votar cada eleitor. A dificuldade consiste em que é praticamente impossível saber de antemão o voto de cada eleitor, não somente pela massa que representa nos grandes Estados mas, principalmente porque muitos eleitores ainda não sabem em quem vão votar, e muitos outros, dentre os que já sabem, mudarão de idéia: tão certo quanto dois mais dois são quatro.

A solução está em prever como votarão grupos ou categorias de eleitores. Se for possível descobrir que uma categoria de eleitores tem características que tendem a inclinar os eleitores a ela pertencentes a votar desta ou daquela maneira, estaremos a um passo da solução. Isto porque não dependeremos mais das variações individuais e, portanto, contornaremos dois problemas: os que ainda não sabem em quem votarão, mas pertencem àquela categoria, muito provavelmente votarão como os demais; e os que mudarem de voto, muito provavelmente saíram daquela categoria, porque perderam alguma de suas características. Estes serão substituídos por outros que vierem a adquirir aquela característica que os inclui no grupo em questão.

Isto permite tratar o problema em termos probabilísticos, problema para o qual existem soluções técnicas relativamente simples, e há muito tempo estabelecidas. A técnica do survey probabilístico permite estudar as características de uma parcela bastante pequena da população e estabelecer, com que precisão - muitas vezes superior à 99% de chances de acerto - essas características serão encontradas na população em geral.

O QUE DETERMINA O VOTO?

Portanto, o problema é simples. Quanto à solução, agora é que ela começa a complicar: como escolher de antemão essas características que eu preciso observar na parcela da população estudada, para comprovar que elas determinam a escolha eleitoral? Podemos observar a fase da lua no momento do survey ou a cor dos olhos do eleitor, seu sexo, idade, maneiras à mesa, enfim, tudo! Quais as características pertinentes?

O que estou sugerindo é que o problema técnico é simples, mas a solução é extremamente difícil, porque depende de uma teoria do comportamento eleitoral. As pessoas experientes se guiam por um punhado de idéias adquiridas a respeito dos eleitores. Uns dizem que as pessoas votam por gratidão, outros, que se vota em quem vai ganhar; para uns, a maioria vota no governo, para outros vota para protestar; uns afirmam que o povo vota com o bolso, outros que vota com a barriga.

Os estudiosos do comportamento eleitoral se guiam por um punhado de conclusões empíricas bem estabelecidas. Uns dirão que os mais velhos votam conservadoramente e, os mais jovens, ao contrário; que os mais instruídos são mais liberais, e os mais ignorantes são autoritários; que os pobres querem mudanças, e os ricos querem voltar ao passado. Tomada isoladamente cada uma dessas previsões é rigorosamente correta, mas que fazer dos jovens pobres, dos ricos jovens e instruídos e dos velhos pobres e ignorantes?

UMA TEORIA DO VOTO

Não bastam, portanto, nem a experiência dos políticos, nem as generalizações baseadas em correlações demográficas, é preciso uma teoria do voto para indicar quais são as características que eu preciso procurar na amostra - isto é, na parcela da população estudada no survey - que sejam diretamente associadas ao ato de votar e não, características fáceis de observar, mas ligadas ao voto de modo muito indireto.

Por exemplo: a riqueza está ligada à instrução que, por sua vez, geralmente leva a uma abertura mental para idéias, o que provavelmente está. ligado a uma visão liberal do mundo e, portanto, leva o rico a votar, em determinadas circunstâncias, em candidatos progressistas. Isto parece bastar para que o nível de renda se torne uma das variáveis mais universalmente aceitas para prever o comportamento eleitoral, mas baseia-se num equívoco. No exemplo acima, não é a característica sócio-econômica que determina o voto "progressista ", mas uma certa atitude mental ou comportamento social, que geralmente estão associados a um modo de vida; o qual é mais comum entre pessoas de um certo nível de instrução; o que, por sua vez, no caso de sociedades como a nossa, depende do nível de renda.

Portanto, pode-se dizer que o voto é determinado por características sócio-econômicas como nível de renda, grau de instrução, idade, sexo, local de moradia, região geográfica, mas desde que ocorram todas essas condições estabelecendo a ligação entre, digamos nível de renda, e o comportamento social ou atitude mental que de fato determina que o eleitor vote assim ou assado. Desgraçadamente, idade, sexo, local de moradia e, em menor medida, grau de instrução e nível de renda, são facílimos de observar em um survey, mas extremamente difíceis de interpretar com rigor, enquanto o comportamento eleitoral propriamente dito - tal tipo de atitude que fará escolher tal tipo de candidato - seria facílimo de interpretar se se soubesse qual é e como observá-lo por meio de surveys.

A construção de uma tipologia de comportamento eleitoral visa precisamente dar uma resposta simples para um problema simples: se basta saber como as pessoas votam para prever quem irá vencer ou perder as eleições, por que não tentar, por meio de um survey, que autoriza predições probabilísticas com margem de erro conhecida, descobrir como e por que as pessoas votam, em vez de se ater a constatar que idade têm, quanto ganham e onde moram?

A tipologia do eleitorado, cujo primeiro esboço está sendo apresentado aqui, parte de uma descoberta bem simples, mas essencial: sabendo como votam determinados tipos de eleitor, será possível explicar por que eles escolhem determinados tipos de candidatos.

No exemplo mais simples, baseado no survey USP/Cedec/Data- Folha de março de 1990, podemos considerar três tipos de eleitor. Os que votaram em função da expectativa de desempenho do candidato praticamente consagraram, no primeiro turno, Fernando Collor (58,9%), em detrimento de todos os demais (Brizola 9,4%, Lula 18,3%, Covas 6,2% e, curiosamente, Maluf 7,2%).

Os que votaram em função de sua identificação com o candidato, dividiram-se entre Collor (37,2%) e Lula (30,2%), mas foram muito importantes para o candidato petista, pois representaram 62,7% do seu eleitorado, e apenas 43,6% dos que declararam ter votado em Collor.

Quanto aos que escolheram seu candidato por oposição aos demais, dividiram-se entre Brizola, Covas e Maluf. De fato,. eles representaram pouco mais de 10% dos eleitorados de Collor e Lula, mas constituíram uma proporção até três vezes maior dos que votaram nos outros três (respectivamente 24,7%, 32,5% e 30,0%).

No segundo turno, o perfil do eleitorado de Collor se manteve e, o de Lula, foi reforçado. Com isso, Collor praticamente dividiu com Lula a tendência do voto por identificação e por oposição, mas arrebanhou sozinho o voto por expectativa de realizações (80,3%), o que explica, desse ponto de vista, seu sucesso.

TIPOLOGIA: TROCANDO EM MIÚDOS

O primeiro passo para a construção de uma tipologia do eleitorado consiste na definição do comportamento mais próximo do ato de votar. É o que chamaremos de orientação ou estratégia do voto. Incluímos nesta categoria dois conjuntos de indicadores: um referente à razão da escolha do candidato e, o outro, referente à razão da preferência partidária.

As questões referentes à escolha do candidato e do partido foram pré-codificadas de modo a reproduzir as três orientações da ação social de acordo com A. Touraine: Identidade, Oposição e Totalidade6 6 A Touraine, Sociologie de l'Action, Paris, Seuil, 1965; ver, também, J. A. Guilhon Albuquerque, Movimento estudantil e consciência social na América Latina, Rio, Paz e Terra, 1977, especialmente os capítulos I e VII. . Os entrevistados foram perguntados se teriam votado, no segundo turno das eleições presidenciais, principalmente porque: o candidato escolhido "prometeu realizar as melhorias (de) que o Brasil precisa; porque ele combate os inimigos do Brasil; porque ele era o candidato que melhor representa pessoas como você; ou porque queria derrotar outro candidato ".

AÇÃO ESTRATÉGICA

O pressuposto dessas categorias é que as pessoas votam por identificação, por oposição ou por expectativa de desempenho.Isto equivale a entender o voto como uma ação racional estratégica. Que quer dizer isso? Uma ação racional estratégica contém três elementos: um ator, o objeto de sua ação e um obstáculo entre ator e objeto. Ela é estratégica porque o ator tem que medir seu objetivo não só à sua capacidade ou interesse em atingi-lo, mas também à oposição posta pelo obstáculo ou adversário. E é racional porque o ator precisa comparar o beneficio de possuir o objeto ao custo da transposição do obstáculo.

No voto por identificação, o eleitor valoriza sobretudo o ator e sua ação, em detrimento dos obstáculos existentes e da realização do objetivo. Eu voto em alguém como eu e que, portanto, pensa como eu penso, quer o que eu quero e vai agir como eu agiria. Pode ser alguém que encarne as minhas expectativas ou, ao contrário, as minhas carências; o meu sucesso ou, ao contrário, o meu fracasso. Em suma, o eleitor vota em alguém de sua profissão, de sua região, de seu partido. Essa identificação pode, portanto, ser material e imediata, ou espiritual e mediada por idéias ou instituições.

Temos, nessa categoria, o voto corporativo, o voto regional mas, também, um dos sustentáculos do voto partidário e do voto ideológico. Isto significa que se trata apenas de uma das dimensões do voto, que deve ser combinada com outras para que se possa estabelecer uma tipologia válida empiricamente.

No voto por oposição, a dimensão estratégica está mais presente, e o eleitor valoriza mais a remoção do obstáculo, ou a derrota do adversário, do que a questão de saber quem realiza a ação, ou a própria concretização do objetivo. Eu voto em quem tem os mesmos adversários que eu. Trata-se de uma identificação indireta, mediada pelo outro, e que tem um conteúdo pragmático: já que não posso obter o que quero, trato de evitar o que eu não quero. Do ponto de vista psicológico o voto por oposição ou voto negativo envolve mecanismos mais complexos do que a identificação e, do ponto de vista político, representa a passagem de mecanismos puramente psicológicos para mecanismos institucionais. Ou, para manter as categorias de Montesquieu, a passagem da paixão para a virtude.

No voto por expectativa de desempenho, o eleitor valoriza mais os resultados do que a questão de saber quem os produziu ou quais eram e como foram removidos os obstáculos porventura existentes. Eu voto em quem irá realizar o que eu espero, fazer o que eu preciso. Aqui, pouco me importa em quem eu voto, como na escolha por oposição mas, diferentemente desta, não basta saber quem não se elege, e sim o que será feito. É o que podemos chamar de voto pragmático.

Essas três categorias não são excludentes. Na prática elas se combinam, mas há sempre predominância de uma sobre as demais. Assim, pode haver uma identificação negativa ou pragmática, isto é, posso me identificar com o candidato que mais se opõe aos meus adversários, ou com aquele que mais tem chances de se eleger e trazer os benefícios que espero.

ORIENTAÇÃO PARTIDÁRIA

Quanto à razão da preferência partidária, perguntou-se ao entrevistado se ele preferia o Seu partido principalmente porque: "é o partido que tem o melhor programa para o Brasil; é o partido que tem os melhores homens para dirigir o país; ou é o partido que melhor combate os males do Brasil". Temos aqui novamente as três categorias de identificação, oposição e totalidade. Entretanto, elas têm um significado próprio, diferente do que se observa na escolha do candidato. Além disso, as duas variáveis são estatisticamente independentes entre si7 7 Como se pode observar, o Chi 2 não é significativo (margem de erro inferior a 0,36, para uma margem aceitável de 0,05). , o que nos permite um primeiro esboço de tipologia.

É o que podemos observar na Tabela 1, a seguir:

Como vemos, qualquer que seja a razão da escolha partidária, os eleitores escolhem seus candidatos indiferentemente por identidade, oposição ou desempenho.

Assim, se o candidato é escolhido por identificação, as três possibilidades são a - o voto ideológico (identificação com o candidato e referência ao programa), b- o voto corporativo (identificação com o candidato e referência aos quadros que o cercam), e c- o voto sectário ou maniqueísta (identificação por oposição).

Se a escolha do candidato é por oposição, temos a - o protesto simbólico (oposição ao candidato e referência ao programa), b - a oposição ou protesto pragmático (oposição ao candidato e referência aos quadros partidários), e c- o protesto ressentido (oposição ao candidato e referência aos adversários).

Analogamente, podemos ter três tipos de escolha do candidado pelas realizações que ele promete, isto é, três tipos de voto pragmático: a - quando a referência ao partido é devida ao seu programa, temos um apoio plebiscitário; b - se a referência é aos quadros partidários, temos o voto pragmático propriamente dito; c- se é por oposição, temos a contestação.

O quadro a seguir mostra a construção da tipologia e como ela funciona para explicar o voto nas eleições presidenciais passadas:


AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 89 E A TIPOLOGIA DO ELEITOR

Vejamos em que medida podemos explicar o voto nas eleições presidenciais passadas em função da tipologia do voto. Para tanto vamos considerar, primeiramente, o voto no primeiro turno, para o qual retivemos apenas alguns candidatos mais significativos, seja pela sua importância nas eleições presidenciais de 1989, seja pelo interesse de avaliar seu atual desempenho nas eleições estaduais de 1990.

A Tabela 2 resume esses resultados e confirma claramente a importância decisiva da tipologia baseada na estratégia do voto na escolha do candidato.

A tabela apresenta os eleitores de Fernando Collor, Leonel Brizola, Lula, Mário Covas e Paulo Maluf, de acordo com a razão que os levou a escolher seu candidato no primeiro turno.

Podemos observar que Collor foi o candidato que melhor soube catalisar o voto dos eleitores que fizeram a escolha que estamos chamando de pragmática, isto é, os que tendem a escolher o seu candidato muito mais em função do que ele prometeu realizar do que por qualquer outra razão. De fato, enquanto 26,3% dos que votaram por oposição, e 37,2% dos que votaram por identificação admitiram votar em Collor, quase 60% (58,9%) do voto pragmático recaiu sobre o atual Presidente.

Quanto a Brizola, arrebanhou sobretudo votos daqueles que se decidem principalmente por oposição, isto é, para derrotar outro candidato ou para combater os problemas do País (19,3%). Dos eleitores que orientam sua escolha pelas realizações do candidato, apenas 9,4% votaram em Brizola. Essa tendência dos eleitores que votaram negativamente no primeiro turno se repete com Mário Covas e Paulo Maluf. O primeiro recebeu 21,5% do voto negativo, contra 11,1% do voto por identificação, e apenas 6,2% do voto pragmático. O segundo, embora tenha- se caracterizado pelo fazismo em eleições passadas ( "Maluf faz "), recebeu apenas 7,2% do voto por realizações, e o dobro (15,8%) do voto por oposição.

Quanto ao Lula, o resultado é ainda mais impressionante, porque, além de uma forte associação com o voto por identificação - isto é, em cada três eleitores que votaram no candidato que mais representava alguém como eles, um escolheu Lula - este candidato apresenta uma associação negativa, tanto com o voto pragmático quanto com o voto por oposição. Como podemos observar, apenas 18,3% do voto pragmático, e 17,1% do voto negativo vieram para Lula.

CANDIDATOS INDIFERENCIADOS

Um primeiro conjunto de constatações se impõe do ponto de vista da análise das estratégias eleitorais. O voto por identificação, embora fosse o mais numeroso nas últimas eleições presidenciais, foi também o mais disputado pelos candidatos. Como se pode observar na Tabela 2, 49,9% dos eleitores escolheram seus candidatos dessa maneira, e todos os candidatos que estamos aqui considerando, obtiveram entre 40% e 50% de sua votação nessa categoria. No caso do Lula, essa proporção sobe para 62,7%.

O sucesso dos candidatos nessa disputa pela identificação com o eleitor foi, entretanto, desigual: Collor e Lula obtiveram, juntos, mais de dois terços do total de votos por identificação, praticamente inviabilizando os demais candidatos que apostaram na imagem individual. Mas o sucesso de ambos também redundou em resultados diferenciados. Lula, que concentrou no voto por identificação dois terços do seu eleitorado, obteve, ao final, apenas 30,2% - quase o dobro do que obteve do voto por oposição e do voto por expectativa de desempenho (pragmático) - mas, ainda assim, menos do que os 37,2% obtidos por Collor naquela categoria, que, por outro lado, representou menos da metade do eleitorado total desse outro candidato.

A ILUSÃO DO PROTESTO

O voto por oposição foi, em 1989, bem menos numeroso no eleitorado nacional do que se imaginava, e distribuído de modo desigual entre as regiões. Embora represente 17,0% na Tabela 2, dados desagregados por Estado e Município mostram que, na Capital de São Paulo, o voto negativo sobe para 27,7%. Os resultados das eleições municipais de 1988, sobretudo nas capitais, permitiram pensar que essa seria uma boa via para o sucesso eleitoral. Entretanto, seria desconsiderar a estratégia dos demais candidatos: tomando-se o conjunto dos candidatos aqui examinados, o voto por oposição se distribuiu entre todos de maneira praticamente homogênea, de modo que, entre o que obteve maior votação nessa categoria - de novo o Presidente eleito - e o menos escolhido por oposição, Paulo Maluf, a diferença é de cerca de 10 pontos percentuais, enquanto foi de 30 pontos percentuais no voto por identificação!

COLLOR CORRE SOZINHO

Ao contrário dos demais, o voto pragmático, comportamento adotado por um em cada três eleitores, concentrou-se no candidato Fernando Collor, o que representou um ganho excelente, já que o atual Presidente retirou daí 45,8, menos da metade, portanto, de seu cacife eleitoral. Nesta categoria Collor reinou absoluto, pois todos os demais parecem ter concentrado suas estratégias em outras direções, obtendo, aqui, parcos percentuais. Neste tipo de voto, a diferença entre Collor e o menos escolhido por escolha pragmática sobe para mais de 50 pontos percentuais!

PROMETEU VERSUS NARCISO

A Tabela 3 é ainda mais clara quanto à utilidade da dimensão da orientação do voto para explicar as estratégias e os resultados eleitorais.

No segundo turno, cujos resultados estão apresentados nesta tabela, a exclusão dos demais candidatos tornou mais clara ainda a natureza do voto que se distribuiu entre Lula e Collor. As tendências apontadas para o primeiro turno se reforçaram vigorosamente: um se beneficiou sobretudo do voto por identificação e, o outro, do voto por expectativa de realização (voto pragmático).

De fato, enquanto 48,4% dos eleitores que orientaram sua escolha pela identificação votaram em Lula, apenas 43,2% do voto negativo e 19,7% do voto pragmático se concentraram no candidato do PT.

Em compensação, enquanto 51,6% do voto por identificação e 56,8% do voto por oposição couberam a Collor, ele arrebanhou 4 em cada 5 eleitores que se baseiam na expectativa de desempenho dos candidatos (80,3%).

Estes resultados confirmam uma vez mais o grande equívoco de basear análises políticas nas aparências. Sobretudo, obriga a distinguir claramente entre a pessoa do candidato, com suas características psicológicas, e sua candidatura, com a estratégia que ela veicula. Tentou-se vender ao eleitor um espelho para sua identificação, um Narciso, mas o povo esperava um Prometeu.

IMAGEM DIVERSIFICADA

Podemos avançar aqui novos comentários. Lula parece ter concentrado toda sua estratégia no voto por identificação, pois daí obteve nada menos de 408 dos 649 "votos " nesta amostra (62,8%), isto é, praticamente dois terços do total que lhe coube. Entretanto, todo esse desempenho não bastou sequer para que igualasse Collor junto a esse tipo de eleitor, embora o resultado seja equilibrado entre ambos, como de resto o é também na categoria dos eleitores por oposição (Lula 43,2% e Collor 56,8%). O que desequilibra dramaticamente o escore de ambos é o voto pragmático, isto é, por expectativa de realizações: a diferença a favor de Collor sobe para mais de 60 pontos percentuais.

Isto já bastaria para confirmar que a atribuição, ao candidato Fernando Collor, de uma estratégia grosseira mas eficaz, baseada numa imagem simplificada de xerife é, pelo menos, resultado de uma análise precipitada. De fato, Collor transmitiu ao eleitorado uma imagem complexa que conjugou as três dimensões do voto: alguém que se opunha ao estado de coisas vigente, de quem se poderia esperar realizações, e com quem a massa poderia identificar-se. Ele obteve a maioria de cada tipo de eleitor, mas seu resultado mais significativo, e o que lhe garantiu a vitória, foi o fato de disputar sozinho um tipo de eleitor que representou quase um terço do eleitorado, o eleitor que espera benefícios ou realizações.

PARTIDO PARA, GOVERNAR OU PARA MILITAR

Vamos agora introduzir a outra variável da tipologia do voto, que traduz a razão da preferência partidária que, como se vê na Tabela 1, independe da estratégia do voto, isto é, da razão pela qual o eleitor escolhe seu candidato. Na Tabela 4, apresentada em seguida, podemos examinar até que ponto a razão da preferência partidária influencia a escolha de alguns candidatos.

Uma rápida leitura desta tabela mostra que apenas dois candidatos, dentre os que foram votados no primeiro turno, tiveram sua escolha influenciada pela maneira como seus eleitores se orientam na preferência partidária: Covas e Lula, sendo este de maneira negativa. Para os demais, Collor, Brizola e Maluf, a proporção de eleitores dos três tipos é estatisticamente invariável.

Quanto a Lula, vemos que a relação significativa está no fato de que seus eleitores são menos inclinados a escolher o partido por referência aos quadros governativos que possa possuir. De fato, enquanto Lula obteve, no total, 30,5% dos "votos" nesta amostra, a proporção de eleitores seus que escolhem o partido em função de seus quadros é de apenas 20,3%11 11 Como podemos observar, o valor do desvio estandardizado com relação à freqüência devida ao acaso é de - 2,7, portanto significativo. .

O outro candidato para quem contou a referência partidária foi Mário Covas. Os eleitores que se referem aos quadros governativos do partido representam até quase o dobro dos outros tipos dentre os que escolheram Covas no primeiro turno. Além disso, enquanto Covas obteve, nesta amostra 10,0% dos "votos", couberam-lhe 15,3%, isto é, 50% a mais, entre os eleitores que escolhem o partido preocupados com quadros governativos12 12 Como podemos observar, o Chi 2 é significativo com margem de erro inferior a 0,5%. . Por outro lado, esse tipo de eleitor representou quase a metade, isto é, 45,7% dos que declararam ter votado em Covas no primeiro turno.

No que se refere aos outros tipos, isto é, à escolha pragmática (referência ao programa partidário), e à escolha por oposição (combater os males do País), não interferiram diretamente na escolha dos candidatos, ou, como veremos adiante, no caso do Lula, tiveram sua influência compensada por outras variáveis.

SEGUNDO TURNO ZERA REFERÊNCIA A PARTIDOS

É fácil prever o que ocorre quando procuramos analisar os resultados do segundo turno: as transferências de votos reforçaram as tendências já observadas e, nos casos em que havia discrepâncias (por exemplo, entre Mário Covas e Lula quanto à referência aos quadros governativos), anularam- se.

O resultado, como podemos observar na Tabela 5, é que o voto no segundo turno não foi influenciado pela orientação partidária, isto é, pela razão da preferência partidária dos eleitores.

PROGRAMA, QUADROS, MILITÂNCIA

Vamos examinar, agora, a orientação partidária de modo mais aprofundado.

Analisaremos sua consistência com a preferência partidária e tentaremos extrair mais informações que nos ajudem a compreender o voto nas últimas eleições, e a prever futuros comportamentos eleitorais.

A Tabela 6 se presta a essa análise porque indica a preferência partidária combinada com a orientação da escolha, isto é, a razão que levou o entrevistado a preferir este ou aquele partido.

A primeira constatação de ordem geral que se pode fazer é a de que existe uma associação significativa entre a escolha e a orientação partidária, isto é, de que a escolha dos partidos é diferente conforme o eleitor se refira ao programa, aos quadros governativos ou a capacidade de combate ou de oposição do partido, isto é, sua capacidade de militância14 14 De fato, o Chi 2 é significativo com probabilidade de erro inferior a 0,01%. . Em segundo lugar, o grau de importância da orientação partidária varia bastante entre os partidos e, para alguns, como o PDT e o PFL, simplesmente não pesa. De fato, neste último, a proporção de simpatizantes dos três tipos é praticamente idêntica (8,0, 8,1 e 8,0%) e, no PDT, a pequena variação de 4,9 pontos percentuais não é significativa15 15 A diferença estandardizada entre a associação encontrada e a que seria devida ao acaso varia, como vemos, entre - 0,1 e 1,4. .

Em três outros partidos existe uma associação que não pode ser descartada estatisticamente, embora muito tênue. No caso do PMDB, o número de simpatizantes que se orientam pelo programa, isto é, de modo pragmático, é significativamente inferior ao dos demais. No PDS, a referência aos quadros governativos é superior às demais razões de preferência partidária e, no caso do PRN, a referência pragmática, opostamente ao que ocorre com o PMDB, é ligeiramente superior às demais razões de preferência partidária.

PARTIDO PARA COMBATER

As associações mais importantes são com o PT e o PSDB, partidos cujos simpatizantes têm a orientação partidária mais definida de acordo com os dados encontrados. O mais importante a notar é que as orientações partidárias dos dois são simétricas e opostas: enquanto os simpatizantes do PT são mais propensos a escolher o seu partido por oposição, isto é, porque o consideram o melhor instrumento de combate aos males do País, e menos propensos a referir- se aos eventuais quadros governativos do partido para justificar sua escolha - respectivamente, 29,7% contra 11,7% - os simpatizantes do PSDB, ao contrário, são os mais propensos a escolher o partido em função de seus quadros governativos e os que menos se referem a uma escolha por oposição (respectivamente, 10,7% contra 0,9%).

Vemos, assim, que o simpatizante do PT e o eleitor do Lula no pleito presidencial combinam as mesmas variáveis de modo inverso. Enquanto o eleitor do Lula escolhe seu candidato por identificação, o simpatizante do PT escolhe o seu partido por oposição. Enquanto o eleitor do Lula minimiza a dimensão oposicional (e também programática) na escolha do candidato, o simpatizante do PT minimiza a identidade, isto é, a composição de seus quadros, na escolha do partido.

No segundo turno das eleições presidenciais, essa inversão foi bastante atenuada. Enquanto os eleitores de Lula no primeiro turno davam importância clara à sua identificação com o candidato, em detrimento das dimensões de oposição e desempenho, os eleitores do segundo turno apenas ressaltam seu descompromisso com os eventuais quadros governativos do partido, sem conferir importância maior às outras dimensões: capacidade de combate e realizações. Isto se deve, provavelmente, ao grande contingente de eleitores no segundo turno com outros tipos de orientação partidária, diferentes dos simpatizantes do PT.

Embora o eleitor de Lula no primeiro turno represente um contingente do eleitorado muito próximo do típico eleitor petista, e suas orientações possam ser consideradas uma boa aproximação das orientações do simpatizante petista, não devemos confundi-los inteiramente.

Consideradas essas diferenças, podemos dizer que o eleitor petista compreende dois contingentes distintos. O primeiro, escolhe o candidato e o partido por razões opostas16 16 A título de comparação, os dados são os seguintes: . O candidato, por sua capacidade de representá-lo e, o partido, por sua capacidade de opor-se aos adversários. A esta combinação (identificação por oposição) chamaremos identificação sectária ou maniqueísta (ver Quadro 1).

O segundo escolhe o candidato e o partido por oposição. Ao primeiro, escolhe para derrotar seus adversários, particularmente outro candidato, opção curiosamente muito mais freqüente entre os petistas do que entre os eleitores do Lula em geral. E justificam sua preferência pelo PT por sua capacidade de expressar sua insatisfação. A essa combinação de orientação do voto e orientação partidária, ambas negativas, chamaremos de protesto ressentido (ver Quadro 1).

PARTIDO PARA GOVERNAR

Como já havíamos avançado, a orientação partidária dos simpatizantes do PSDB é bastante clara: eles preferem o partido em função da capacidade governativa de seus quadros, em detrimento da dimensão oposicional do partido. Esse é o mesmo perfil do eleitor de Covas no primeiro turno das eleições de 1989, no que diz respeito à preferência partidária. A discrepância aparece com relação à escolha do candidato Covas, referida, como vimos na Tabela 2, a um voto negativo ou por oposição, em detrimento da dimensão de realização.

Neste caso, entretanto, não podemos considerar equivalentes os dois contingentes - eleitor de Covas=eleitor do PSDB - e teremos que tratá-los separadamente17 17 Comparemos o comportamento dos dois contingentes: . Tanto o simpatizante do PSDB quanto o eleitor de Covas escolhem o partido por referência aos seus quadros, em detrimento da referência ao combate a adversários. Isto, com maior nitidez para a orientação partidária do peessedebista do que para o eleitor de Covas em geral.

Quanto ao voto, tanto o simpatizante do PSDB quanto o eleitor de Covas no primeiro turno, escolhem o candidato por oposição, em claro detrimento das suas promessas de realização, e com relativa indiferença quanto à sua identificação. Trata-se, portanto, de um grupo de eleitores, mais amplo do que o universo peessedebista, mas de perfil idêntico, que escolhe partido e candidato por razões diferentes: o primeiro, por sua capacidade de abrigar quadros capazes de governar e, o segundo, por sua imagem oposta à de outros políticos.

A referência aos quadros do partido, "capazes de governar o País " é essencial para entendermos esta orientação. A referência negativa ao programa é, na verdade, uma referência pragmática, isto é, o eleitor refere-se às idéias do candidato de maneira indireta e subordinada: referir-se aos quadros partidários, por exclusão da referência ao programa do candidato significa subordinar o programa aos homens que irão realizá-lo.

DOIS PRAGMATISMOS

Esse aspecto é importante para distinguir' o PSDB do PDS. Ambos são partidos "para governar", e seus simpatizantes enfatizam a existência de quadros governativos para definir sua preferência partidária. Além disso, o PDS, como o PSDB, tende a escolher seu candidato por oposição aos demais, assim como Covas divide com Maluf a escolha por oposição no primeiro turno. Por essa razão ambos os partidos estão classificados no voto de oposição pragmática.

A diferença entre os dois está mais no que o PSDB rejeita do que naquilo que ambos os partidos afirmam. Das três dimensões da estratégia do voto, o simpatizante do PSDB recusa, mais do que os outros, a expectativa de desempenho do candidato, isto é, a liderança forte, que o simpatizante do PDS não parece descartar. E das três dimensões da orientação partidária, o peessedebista recusa, mais do que os demais, o partido como arma de combate, que o pedessista também não descarta.

Por isso, temos que qualificar diferentemente o pragmatismo desse tipo de eleitor. Podemos pensar que a referência aos quadros governativos, quando associada a uma rejeição do partido enquanto máquina de combate, tem por horizonte a governabilidade. Na falta disso, a referência aos quadros pode ser personalista ou particularista.

Analogamente, podemos pensar que a escolha do candidato por oposição, quando associada a uma rejeição do líder realizador, tem por referência negativa o populismo. Na falta disso, a escolha por oposição pode ser ressentida ou carismática ou ambas.

No primeiro caso, é a diferença entre dizer: "Eu quero eleger os melhores quadros para governar" ou dizer: "Eu quero no governo os quadros do meu partido". No segundo caso, é a diferença entre dizer: "Eu quero alguém que se oponha a esse estado de coisas" ou dizer: "Meu candidato é contra tudo e contra todos".

Em suma, parecemos estar em face de dois tipos de eleitor pragmático, um que se refere à governabilidade, que chamaríamos de pragmatismo estratégico, e que se distingue do pragmatismo tout-court porque. tende a não apoiar simplesmente as lideranças realizadoras; outro, que só se distingue do apoio pragmático (referência às realizações do candidato e aos quadros do partido) porque não está no governo: é o pragmatismo particularista.

Como podemos notar, enquanto ambos se destacam pelo voto por identificação, o eleitor de Lula o faz em detrimento das dimensões de oposição e desempenho, enquanto o eleitor petista descarta apenas o desempenho.

  • 1 A tradição francesa é, no entanto, bastante respeitável. Para uma visão de conjunto recente, Colette Ysmal, Le Comportement électoral des Français, Paris, Ed. La Découverte, 1986.
  • Dois livros fornecem dados comparados de grande utilidade: Richard Rose (org.), Electoral behavior: a comparative handbook, N. York, London, The Free Press, 1974,
  • e David Butler, Howard Penniman e Austin Ranney (orgs.), Democracy at the Polls, Washington, American Enteprise Institute, 1981.
  • 2 Norman Ornstein, Andrew Kohut e Larry McCarthy, The People, the Press, & Politics, Addison-Wesley Publishing Company, Inc., Reading, Mass., 1988.
  • 3 J. A. Guilhon Albuquerque, "Estratégia eleitoral", In Curso de Especialização em eleições Municipais, (orgs.) J. A. Guilhon Albuquerque e A. Prado Jr.), Ibeac, 1988, pp. 17-26: e "Estraté
  • 4 Alain Touraine, Sociologia de l'action, Paris, Seuil, 1965.
  • 5 Cf. Elizabeth Balbachevsky, Identificação partidária e comportamento político: o caso de S. Paulo (1974-1982), diss. de mestrado, S. Paulo, D. C. P. PUC/SP, 1988, cap. I, pp. 6-25.
  • 6 A Touraine, Sociologie de l'Action, Paris, Seuil, 1965;
  • ver, também, J. A. Guilhon Albuquerque, Movimento estudantil e consciência social na América Latina, Rio, Paz e Terra, 1977, especialmente os capítulos I e VII.
  • 1
    A tradição francesa é, no entanto, bastante respeitável. Para uma visão de conjunto recente, Colette Ysmal,
    Le Comportement électoral des Français, Paris, Ed. La Découverte, 1986. Dois livros fornecem dados comparados de grande utilidade: Richard Rose (org.),
    Electoral behavior: a comparative handbook, N. York, London, The Free Press, 1974, e David Butler, Howard Penniman e Austin Ranney (orgs.),
    Democracy at the Polls, Washington, American Enteprise Institute, 1981.
  • 2
    Norman Ornstein, Andrew Kohut e Larry McCarthy,
    The People, the Press, & Politics, Addison-Wesley Publishing Company, Inc., Reading, Mass., 1988.
  • 3
    J. A. Guilhon Albuquerque, "Estratégia eleitoral", In
    Curso de Especialização em eleições Municipais, (orgs.) J. A. Guilhon Albuquerque e A. Prado Jr.), Ibeac, 1988, pp. 17-26: e "Estraté gia eleitoral e identificação", comunicação apresentada no Grupo de eleições e Processos Políticos da Anpocs, 1988.
  • 4
    Alain Touraine,
    Sociologia de l'action, Paris, Seuil, 1965.
  • 5
    Cf. Elizabeth Balbachevsky,
    Identificação partidária e comportamento político: o caso de S. Paulo (1974-1982), diss. de mestrado, S. Paulo, D. C. P. PUC/SP, 1988, cap. I, pp. 6-25.
  • 6
    A Touraine,
    Sociologie de l'Action, Paris, Seuil, 1965; ver, também, J. A. Guilhon Albuquerque,
    Movimento estudantil e consciência social na América Latina, Rio, Paz e Terra, 1977, especialmente os capítulos I e VII.
  • 7
    Como se pode observar, o Chi
    2 não é significativo (margem de erro inferior a 0,36, para uma margem aceitável de 0,05).
  • 8
    Fonte: Pesquisa USP/Cedec/Data- Folha,
    survey de março de 1990.
  • 9
    O teste de Chi
    2 é significativo a menos de 0.00001, o que equivale a uma margem de erro inferior a 0,01%. Observe- se que apresentamos na tabela, além da freqüência absoluta e da percentagem por coluna, o valor estandardizado da diferença entre a freqüência da tabela e a freqüência devida ao acaso. Os valores abaixo de - 2 e acima de 2 são significativos e indicam a existência de associação entre aqueles valores das duas variáveis. As associações significativas estão assinaladas em negrito.
  • 2
    10 Também neste caso o Chi é significativo até a quinta casa decimal. Além das freqüências e porcentagens, constam em negrito os valores que indicam associações significativas entre valores específicos das duas variáveis.
  • 11
    Como podemos observar, o valor do desvio estandardizado com relação à freqüência devida ao acaso é de - 2,7, portanto significativo.
  • 12
    Como podemos observar, o Chi
    2 é significativo com margem de erro inferior a 0,5%.
  • 13
    A discrepância que pode ser observada nesta tabela, com relação aos índices de preferência partidária conhecidos, provém do fato de que, para facilitar a leitura e tornar mais evidentes as correlações, foram excluídos os que declararam não ter preferência partidária e os que indicaram outros partidos que não vem ao caso analisar no presente contexto, porque obtiveram percentuais não significativos. Para obter uma estimativa mais realista da preferência partidária, basta dividir os totais de cada partido por 3.
  • 14
    De fato, o Chi
    2 é significativo com probabilidade de erro inferior a 0,01%.
  • 15
    A diferença estandardizada entre a associação encontrada e a que seria devida ao acaso varia, como vemos, entre - 0,1 e 1,4.
  • 16
    A título de comparação, os dados são os seguintes:
  • 17
    Comparemos o comportamento dos dois contingentes:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1992
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br