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Alternativas éticas ao neo-liberalismo: as propostas de Rawls e Habermas

ESTADO, REFORMAS E DESENVOLVIMENTO

Alternativas éticas ao neo-liberalismo: as propostas de Rawls e Habermas

Luiz Antonio de Oliveira Lima

Professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo

No debate atual sobre as condições das liberdades individuais e públicas há uma clara opção pelo individualismo econômico, sustentado sobre as condições de funcionamento de um mercado livre e não regulado. Tal visão, que marca a ideologia "neoliberal", sustenta não só que o "livre mercado" é a condição da eficiência econômica, na medida em que a sociedade através dele se libertaria da ineficiência burocrática, como também que o comportamento individual utilitarista e maximizador da utilidade seria o único meio de os indivíduos estarem livres de formas de dominação que impliquem eventualmente em formas autoritárias de governo.

Tal idéia, no entanto, é insustentável, pois os mecanismos de mercado, deixados a si mesmos, envolvem uma lógica que, antes de levar às condições adequadas de liberdades políticas e democráticas, implica formas de dominação restritivas e o aumento das diferenças individuais concretas em função do fortalecimento das diferenças de classes.

Do ponto de vista das instituições políticas, tal forma de individualismo, que McPherson (McPherson: 1979) chamou, de maneira precisa, de "individualismo possessivo", implica uma neutralização de concepções caras à cultura política ocidental: não apenas da concepção do Estado como instrumento compensatório das desigualdades sociais determinadas pela lógica do mercado e capaz de reestabelecer formas comunitárias de associação, tal como aparece na tradição do Estado hegeliano, como também do conceito de liberdades comunitárias, tal como desenvolvido no pensamento de Tocqueville.

Antes, porém, de desenvolver de maneira mais precisa o tema proposto no título, será interessante salientar porque os conceitos de laços comunitários, e fundamentalmente de liberdade comunitária, não são contraditórios com a idéia de individualidade e subjetividade, caras também à tradição iluminista; e porque envolvem formas de organização política que, na verdade, se afastam grandemente das formas políticas decorrentes da lógica do "individualismo possessivo".

I

Consideremos inicialmente a concepção hegelianado "Estado racional", em oposição ao que hoje poderíamos chamar de "Estado realmente existente". A idéia de Estado em Hegel deve ser entendida em contraposição ao conceito de sociedade civil, que corresponde ao quadro da sociedade moderna tal como esboçado pelos teóricos do direito natural e da economia política clássica, isto é, "uma sociedade na qual a liberdade negativa foi institucionalizada, uma sociedade de direitos humanos universais e também de antagonismos sociais universais... Como uma sociedade de antagonismos sociais universais, entretanto, esta sociedade é ao mesmo tempo a negação não apenas de uma forma de vida ética específica, isto é, pré-moderna, mas a negação de toda e qualquer forma de vida ética" (Wellmer: 1990, p. 231). Por isso, para Hegel a sociedade civil não poderia sobreviver em termos apenas de seus antagonismos. Hegel afirma que a sociedade civil é algo mais do que aparenta ser, enquanto é considerada apenas em seus próprios termos, que são os termos das teorias do direito natural e da economia política clássica, pois a idéia mesma de indivíduos iguais, que como proprietários interagem estrategicamente no mercado de acordo com leis gerais, requer não apenas que estes indivíduos reconheçam-se moralmente como livres e iguais, mas requer antes e no mesmo nível a existência de instituições políticas e jurídicas, cujo funcionamento não pode ser explicado em termos apenas da racionalidade estratégica que é característica dos indivíduos enquanto membros da sociedade civil. Hegel reconhece assim a possibilidade de uma associação determinada pelas necessidades individuais e pelo sistema legal. "Na verdade este sistema (de interdependência universal) pode ser considerado prima facie como um estado externo, um estado baseado na necessidade, como entendido pela razão estratégica" (Hegel: 1976, p. 157).

Ocorre no entanto que esta sociedade, entregue a si mesma, ao destruir as relações comunitárias tradicionais, ao desconhecer qualquer idéia do bem público, cria um grupo de deserdados que são os perdedores na luta pela riqueza e poder. Daí a observação de Hegel: "Quando a sociedade civil se encontra em um estado de atividades sem obstáculos, pode ser concebida como um processo contínuo e intrínseco de crescimento da população e da operosidade. Com a universalização das conexões entre os homens, com o acerto das técnicas que permitem realizá-las, é certo que aumenta a acumulação das riquezas, pois essa dupla personalidade produz os maiores ganhos; mas certo é que, também, aumentam a especialização e a limitação do trabalho particular, e portanto a dependência e o abandono das classes ligadas a esse trabalho, bem como sua incapacidade para sentir e exercer outras faculdades, sobretudo as que se referem às vantagens espirituais da sociedade civil" (Idem, p. 243).

A resposta de Hegel a esta contradição é o "Estado", mas não o Estado "jusnaturalista", reflexo das simples necessidades materiais (externas) de associação entre agentes isolados. Pois nem todo Estado se reveste dos atributos exigidos por Hegel para a constituição do que chama Estado Racional: "O Estado só é absolutamente racional na medida em que se apresente como a realização de uma vontade substancial que possui através das auto-consciências individuais; e uma vez que tal consciência tenha sido elevada à consciência de sua universalidade. Esta substância é um fim absoluto em si, no qual a liberdade se manifesta como seu supremo direito. De outro lado, este objetivo final tem direito supremo sobre o individual, cujo dever supremo é o de ser um membro do Estado" (idem: 1976, p. 258). Obviamente, quando Hegel diz que o Estado é auto-consciência de sua universalidade pelas auto-consciências individuais, ele não está pensando no Estado como simples coerção arbitrária, mas como a condição da realização da liberdade para todos.

O Estado aparece para Hegel como a síntese de dois momentos da vida ética pois os homens podem relacionar-se entre si mediante um altruísmo particular (família); ou um egoísmo universal (sociedade civil); ou mediante um altruísmo universal (Estado). O Estado é altruísmo universal porque procura integrar os indivíduos não a partir unicamente de seu interesse próprio, como na sociedade civil, mas a partir da solidariedade, isto é, a partir do desejo de cada um conviver com os demais em uma relação comunitária; e neste caso, ao contrário do que ocorre com a família, tal desejo se baseia, não em uma determinação biológica, mas em uma consciência livre. Ocorre aqui o que Hegel denomina a passagem da "moralidade", que requer as relações de indivíduo para indivíduo (tal como ocorre na família) para a "eticidade" que é a generalização dos laços morais para a comunidade como um todo. Vê-se aqui a passagem da moralidade subjetiva, "do aquilo que deve ser" para uma forma de moralidade objetiva, isto é, a atualização do "dever ser", passagem em que a universalidade da lei, expressa pelo Estado, supera e engloba a mera intenção individual.

II

Apesar de Hegel ter caracterizado a idéia de um Estado moderno a partir da necessidade de realizar de maneira positiva e universal o conceito da subjetividade, ele não propôs uma forma democrática, secular e universal de vida ética para as sociedades modernas. E isto por duas razões: para ele era impossível passar diretamente de uma situação onde imperavam os interesses egoístas para uma situação em que dominassem as virtudes públicas, pois uma sociabilidade regida apenas pelas preocupações materiais é contraditória: em vez de unir os homens, desune. A outra é que a "coruja da sabedoria" de Hegel começou seu vôo um pouco cedo. Ele não teve a oportunidade de observar uma experiência original das tradições democráticas, a América estava bastante longe, e a monarquia prussiana, mesmo em sua versão idealizada, obviamente não era a última palavra da história européia" (Wellmer: 1990, p. 235). Em função disto Hegel não percebeu a possibilidade de traduzir os princípios universalistas do "direito natural" em uma concepção viável de uma vida ética democrática. Esses aspectos, no entanto, foram vistos de maneira clara por Tocqueville. Este procurou resolver o dilema de Hegel em outros termos, ao ver a imensa importância de uma política democrática de vigorosas comunidades componentes de uma estrutura centralizada do poder, contrapondo-se à simples busca de igualdade, que tendia a levar a sociedade moderna à uniformidade, e eventualmente à submissão a um governo onipotente.

Na verdade A democracia na América não deve ser vista como uma resposta de Tocqueville a Hegel, mas antes como a contrapartida democrática da Filosofia do Direito. Hegel e Tocqueville partem de uma série de pontos comuns: para eles a Revolução Francesa, com a sua dialética de libertação e repressão, constitui o marco histórico fundamental. Ambos viram o problema de institucionalização da liberdade, em uma sociedade igualitária, como uma contribuição irreversível da revolução burguesa. Para eles a sociedade civil representou a destruição de uma ordem feudal e aristocrática e a institucionalização de uma ordem de liberdade negativa centrada na propriedade privada. Finalmente, ambos consideraram que o potencial de igualitarismo da sociedade civil não significa por si a institucionalização da liberdade política. Na verdade, a diferença entre eles estava no fato de que para Tocqueville uma forma de "vida ética" dependia em última instância de um processo participativo e não da simples realização de uma determinada ordem pública baseada no Estado (Wellmer: 1990, p. 235 e seguintes).

Ao fazer tal observação aparentemente contraditória à concepção de Hegel, Tocqueville no entanto se aproxima dele, pois o Estado que ele rejeita é o mesmo "Estado externo" que Hegel critica, isto é, o Estado dos jusnaturalistas, que permite que os burgueses continuem a viver em associação, sem porém superar o seu isolamento.

Sintetizando a posição de Tocqueville quanto à relação dos cidadãos com essa forma de Estado, Pierre Manent faz a seguinte observação: se "existe um Estado que tradicionalmente administra seus interesses comuns, tais cidadãos lhe deixarão com a maior boa vontade esta responsabilidade e não se indignarão mesmo que ele tenha a 'mão-pesada', desde que apenas preserve a ordem civil. Os franceses tinham o costume de ver a administração real gerir seus negócios comuns: tornados iguais, eles deixaram ainda, pois todos são agora igualmente fracos. Se este Estado centralizado não existisse, os indivíduos iguais seriam obrigados a tratar, eles próprios, de seus negócios comuns, a abandonar sua vida privada com esta finalidade: como apenas instituições livres podem fazer pessoas iguais agir em conjunto, estes cidadãos construirão e farão funcionar instituições livres. Foi o que se passou nos Estados Unidos, onde o costume do self-government nasceu em função de suas necessidades; nas pequenas comunidades de imigrantes, nas quais os homens foram obrigados a aprender a arte da 'associação tão preciosa aos povos democráticos' " (Manent: 1987, pp. 228-229).

Ou, nas palavras do próprio Tocqueville, "apenas a liberdade pode tirar os burgueses do seu isolamento, que é conseqüência da sua independência, e forçá-los a se aproximarem um do outro; a liberdade os une cotidianamente pela necessidade de se entenderem sobre assuntos de interesse comum, de convencerem um ao outro e de se auxiliarem. Apenas a liberdade pode oferecer objetivos mais nobres como alternativa à aquisição de riquezas e criar o discernimento a partir do qual os vícios e as virtudes dos homens podem ser vistos e julgados" (citado em Wellmer: 1990, p. 237).

Tanto Hegel como Tocqueville vêem, portanto, a necessidade de uma forma comunitária de vida colocar-se acima das práticas dos negócios, para que os homens possam ser verdadeiramente livres. Desta maneira, se transpusermos a visão de Tocqueville em termos de análise de Hegel, veremos que a "vida ética" se realizará quando começarem a se apagar demarcações entre a sociedade civil e a sociedade política e entre as liberdades negativas—entendidas como as liberdades individuais que terminam onde começam a dos demais — e as liberdades positivas. Ou de maneira mais precisa, quando o exercício da liberdade negativa dos proprietários estiver condicionado ao exercício das liberdades públicas, cujo conteúdo é a solidariedade que se estabelece de maneira direta entre os cidadãos, mediante o discurso público, como meio de transformação e crítica das opiniões e julgamentos.

III

Um problema que surge de tal análise é o de se saber se as liberdades negativas, incluindo aqui o direito de propriedade, estariam à disposição de uma vontade democrática ou teriam um status suigeneris, que se justificasse por direito próprio. Ou colocado de maneira diferente: a forma de vida ética que caracteriza a democracia afetará a maneira pela qual a liberdade negativa dos proprietários é exercida e pode se manifestar?

Em primeiro lugar será importante determinar-se a acepção em que a propriedade, enquanto um dos aspectos da liberdade negativa, deve ser considerada. Para Hegel as liberdades negativas seriam um requisito no processo pelo qual o indivíduo busca o seu reconhecimento e sua realização no mundo real. O reconhecimento pelos outros da propriedade de alguém reflete a aceitação desse alguém como pessoa. Assim observa Hegel na Filosofia do Direito: "O racional da propriedade encontra-se não na mera satisfação das necessidades mas na superação (Aufhebung) da pura subjetividade da personalidade. Só através da propriedade uma pessoa existe como razão. Através da propriedade, minha vontade passa a ser a vontade de uma pessoa; mas uma pessoa é uma unidade, e assim a propriedade se torna a personalidade desta vontade unitária" (citado em Avineri: 1972, p. 136). A propriedade aparece portanto como uma forma de individualização, tendo muito pouco a ver para Hegel com a justificação de qualquer sistema econômico, especialmente o capitalismo.

Um dos corolários dessa defesa de Hegel da propriedade é a oposição fundamental a qualquer forma de comunismo. Daí sua crítica a Platão, que para Hegel na República emascula a personalidade individual pela abolição da propriedade e a introdução do comunismo. Por isso Hegel afirma que, embora a igualdade seja indesejável e inviável, a cada pessoa deve ser garantida sua propriedade, pois "naturalmente os homens são iguais apenas enquanto pessoas, isto é, apenas com respeito à fonte da qual a posse (propriedade) pode ser justificada; a inferência disto é que cada um deve ter propriedade" (idem, p. 137).

Obviamente a estratégia conceituai hegeliana é que as instituições éticas do Estado poderiam superar a contradição que existe na "sociedade civil", entre a manutenção da propriedade privada e a universalização dessa mesma propriedade. Porém tal solução não mais se sustenta atualmente, pois, como observou Habermas, "o sistema político permanece dependente dos imperativos de um sistema econômico que institucionalizou a distribuição desigual da propriedade dos meios de produção e portanto do poder e da riqueza. Por mais que o sistema capitalista tenha evoluído, desde então, e também se modificado no quadro de uma ampla democracia concorrencial, não se modificou um fato fundamental: mesmo hoje as prioridades sociais da ação do Estado se formam amplamente em função da espontaneidade natural e não como expressão dos interesses generalizados em seu conjunto. O mesmo vale para os Estados do socialismo burocrático, nos quais o poder de dispor dos meios de produção se encontra em mãos de uma elite. [Além disso], nesse meio tempo, com o crescimento da complexidade da sociedade, os problemas de direção e controle assumiram tal prioridade que o Estado não é mais capaz de efetuar uma integração mediante normas. O agir administrativo torna-se por sua vez dependente de problemas que são produzidos e definidos de um modo por assim dizer livre de normas, sem levar em conta os problemas do mundo da vida, sobretudo nos sistemas parciais relativos à ciência e à tecnologia, que entrementes tornaram-se prioritários" (Habermas: 1983, pp. 92-93).

IV

Diante dessa realidade, e da patente ineficiência dos mecanismos centralizados e burocráticos de decisão econômica, não é de estranhar o renascimento de uma visão conservadora da realidade social, o chamado "neoliberalismo". Tal visão não tem como objetivo apenas realizar uma crítica da imobilidade burocrática, que de alguma forma caracterizou a ação do "Estado realmente existente", mas propõe uma visão de liberdade baseada, única e tão somente, nos interesses individuais, tais como se manifestam no mercado, opondo-se a toda e qualquer concepção de "liberdade comunitária", na acepção hegeliana ou mesmo tocquevilliana. É a esta tendência que se procurará colocar como alternativa um modelo de liberdade comunitária, tal como desenvolvido contemporaneamente nas obras de John Rawls e Jurgen Habermas, que em última instância têm suas raízes nas tradições morais e políticas mais importantes de nossa civilização, a idéia kantiana de autonomia de um lado e a noção hegeliana de comunidade de outro.

V

Para Rawls a tentativa de se identificar um sistema de legitimação democrática do poder deve partir do conceito de liberdade individual ou liberdade negativa na acepção de Kant1 1 A liberdade individual para Kant significa liberdade negativa. A liberdade negativa, enquanto restrição determinada pela lei que garante liberdade igual para todos, é o conteúdo básico dos direitos e identificar as condições em que as ações individuais compatíveis com tal conceito de liberdade seriam também compatíveis com uma moralidade social ou com certas formas de eticidade. A análise de Rawls (Rawls: 1971) apresenta no que tem de mais original a possibilidade de compatibilizar tais realidades, podendo incluir a propriedade entre as liberdades negativas. Porém a restrição relativa à propriedade tem a ver com uma norma que Rawls chama de "princípio da diferença", de tal forma que o aumento da desigualdade em termos de propriedade só poderá ser permitido caso tenha como subproduto a melhoria das condições de vida dos grupos menos privilegiados. Dessa maneira é possível ter-se um sistema econômico descentralizado compatível com o dinamismo de mercado, com a diferença que o critério de acumulação fica condicionado, em última instância, não pela lógica do mercado, mas por valores comunitários.

Para desenvolver sua teoria de justiça, Rawls propôs uma interpretação do caráter humano que espera que todos aceitem como razoável. Segundo ele, todo indivíduo tem certas metas que só poderão ser atingidas se ele dispuser do que denomina bens primários, que, inicialmente, supõe serem constituídos por direitos e liberdades, poder e oportunidades, renda e riqueza. (Rawls: 1971, p. 62). O acesso a tais bens será facilitado pela associação entre os indivíduos. Esta, no entanto, só se justificará moralmente se tiver como conseqüência ganhos mútuos e nenhuma perda. A sociedade, portanto, será a forma pela qual os indivíduos escapariam de uma situação que lhes impediria a realização de suas metas.

Ocorre no entanto que nessa associação haverá mais de uma alternativa possível, de tal forma que surge a necessidade de se escolher uma delas. Isso depende de uma série de princípios capazes de permitir a escolha da estrutura de distribuição baseada em princípios de justiça que "atribuiriam direitos e deveres para os membros da sociedade" e a distribuição dos "ônus e beneficios da cooperação social". Ora, a definição de tais princípios depende do que os indivíduos consideram a forma de sua auto-realização. Para Rawls, ao contrário do que pensam os utilitaristas benthamianos, o sentido de auto-realização é algo mais que o simples sentimento de sucesso e competência. A auto-estima individual deriva também do sentimento de que suas ações foram honradas, de que suas realizações se justificariam diante dos outros. Assim a maioria das pessoas não quer parecer que venceu, quebrando certas normas e regras, nem tampouco que foram os felizes beneficiários de normas injustas de discriminação ou de vantagens políticas. Na verdade, mesmo quando isso acontece, as pessoas procuram esconder ou se justificar diante das outras, o que não deixa de ser uma situação em que a hipocrisia faz um aceno à virtude.

Diante de tal realidade, que princípios seriam escolhidos? A partir do que Rawls entende por uma concepção política de vantagens mútuas seria descartada toda distribuição de ônus e benefícios que deixasse cada membro da sociedade em uma situação pior do que se permanecesse sozinho. E a condição para isso acontecer, isto é, para que alguém não fosse um escravo, seria dada pelo princípio de liberdade negativa:

"Cada pessoa deve ter um direito igual à maior liberdade possível compatível com uma liberdade similar dos demais" (Rawls: 1971, p. 60). Do que decorreria 'que o esquema de cooperação social deve ser estável1 1 A liberdade individual para Kant significa liberdade negativa. A liberdade negativa, enquanto restrição determinada pela lei que garante liberdade igual para todos, é o conteúdo básico dos direitos , deve estar de acordo com regras básicas aceitas voluntariamente" (Idem p. 6).

O segundo princípio consistente com uma aceitação voluntária dos termos de associação teria a ver com a compatibilização da igualdade e da eficiência, partindo-se da hipótese, confirmada pelo fracasso das tentativas se engenharia social, de que o igualitarismo seria autodestrutivo ou mesmo irrealizável. Seria no entanto necessária uma justificativa de cada passo que fizesse a sociedade se distanciar de uma distribuição igualitária. Para Rawls cada incentivo individual, capaz de aumentar a desigualdade, só seria justificado se melhorasse a posição absoluta de todos. Daí o "princípio da diferença", segundo o qual: "as desigualdades sociais e econômicas só poderão ser constituídas se: a) for razoável esperar que venham beneficiar a todos; b) forem ligadas a posições sociais e profissões abertas para todos" (Idem, p. 60).

O raciocínio acima requer do ponto de vista individual um critério de imparcialidade, que se manifestaria por um princípio que deveria reger a elaboração de todas as normas: isto é, cada pessoa, ao decidir sobre sua ação, deveria estar certa de que se colocando na posição dos demais, as conseqüências dessa ação não lhes seriam prejudiciais ou indesejáveis. Consideraríamos neste caso, os dois princípios de Rawls uma aplicação específica do princípio de reciprocidade no campo da distribuição.

Tal comportamento ético eqüivaleria, em termos estratégicos, ao comportamento de pessoas que escolheriam uma distribuição dos bens produzidos em uma sociedade em uma situação de "ignorância" da posição que ocupam ou vão ocupar na sociedade. Isto é, diante da incerteza a respeito da sua posição, e admitindo a possibilidade de sua posição futura corresponder a dos menos privilegiados, os agentes procurariam uma forma de distribuição que tornasse melhor possível a posição destes.

Uma primeira qualificação que se pode fazer à análise acima tem a ver com o processo pelo qual tal idéia de justiça poderia tornar-se uma realidade. A solução de Rawls se aproxima bastante da solução hegeliana, na medida em que não haveria uma descontinuidade entre o privado e o público, isto é, a sociedade política passaria a absorver a sociedade civil. Daí sua observação de que "a teoria da justiça como eqüidade tem suas bases em uma intuição que nós julgamos estar implícita na cultura pública de uma sociedade democrática" (Rawls: 1988, p. 288).

Rawls procura tornar tal idéia ainda mais precisa: "Em oposição ao liberalismo enquanto doutrina moral completa, a teoria da justiça como eqüidade procura apresentar uma concepção da justiça política que esteja inscrita nas idéias intuitivas de base da cultura pública de uma democracia... Assim a teoria da justiça como eqüidade procura precisar o centro de um overlapping consensus, isto é, as idéias intuitivas comuns que articuladas em uma concepção política da justiça se revelarão suficientes para garantir um sistema constitucional justo" (Idem, p. 304).

Rawls, como observa Richard Rorty, propõe que nos contentemos em retomar as idéias iluministas sólidamente estabelecidas "como a crença na tolerância religiosa e a rejeição à escravidão para tentar estruturar as idéias e princípios intuitivos fundamentais sobre as quais tais convicções estão implicitamente fundamentadas para construir uma concepção coerente de justiça. De outra parte essa atitude é perfeitamente historicista e anti-universalista. Rawls pode-se ligar totalmente a Hegel e a Dewey contra Kant, para afirmar que a tentativa das Luzes de apelar à natureza e à razão com vistas a se libertar da tradição e da história foi ilusória; insiste assim sobre a inadequação de uma tentativa que atribui à filosofia a tarefa de realizar aquilo que a teologia não pôde fazer" (Rorty: 1987, p. 164).

VI

No entanto, o que para Rorty seria uma virtude de John Rawls, isto é, o caráter histórico e con textualista de sua teoria, para outros seria uma limitação. O estabelecimento de uma lista de bens primários incluindo riqueza e renda, bem como o fato de se supor um determinado tipo de homem representativo, aquele que opera sobre determinados valores, restringiria a possibilidade de se universalizar valores que se considera democráticos. Assim, para Habermas, a necessidade de se estabelecer uma visão universal da justiça—ou melhor, de legitimidade normativa—não pode deixar de existir, mas isto depende de tal processo ser desconectado de uma conceituação monológica, isto é, simplesmente deduzida pelo raciocínio do sábio, a qual marcou a tradição formalista que vai de Kant a Rawls.

O ponto de vista adequado para a realização de um processo de universalização de legitimação normativa é fundamentalmente dialógico. "É apenas pela estrutura comunicativa de um processo discursivo, envolvendo todos os afetados pelas normas propostas, que o processo de troca de papéis (reciprocidade), em que uns se colocam no lugar dos outros, pode ser efetivamente realizado" (Habermas, citado em White: 1988, p. 73).

Assim, embora o foco da análise de Habermas tenha sido também a justiça e a igualdade, como acontece com os modelos kantiano e rawlsiano, sua ênfase encontra-se não nas necessidades individuais definidas abstratamente, mas na possibilidade da universalização de interesses a qual deve nascer sempre em um contexto discursivo, isto é, em que todos participem:

"O interesse é comum porque o consenso livre de constrangimento permite a realização apenas daquilo que todos podem querer (e) está livre de qualquer decepção, porque mesmo as interpretações das necessidades nas quais cada indivíduo deve ser capaz de reconhecer aquilo que deseja se torna objeto de uma formação de vontade discursiva" (Habermas: 1975, p. 108).

Habermas, em artigo recente (Habermas 1990), procura detalhar mais seu ponto de vista ao mostrar que a justificação discursiva das normas pressupõe não apenas as necessidades individuais, incluindo aqui um conjunto de bens específicos e o respeito ao indivíduo tomado isoladamente, mas também o respeito à sua forma de vida social. Portanto, o que está em jogo não é apenas a justiça, mas a solidariedade, pois "a justiça, concebida deontologicamenje, requer a solidariedade como seu reverso. Não é uma questão apenas de dois momentos que se completam como aspectos de uma coisa (...). A justiça diz respeito à liberdade e direitos de um indivíduo único auto-suficiente, enquanto a solidariedade diz respeito ao bem-estar de seus semelhantes, e daqueles que a ele estão ligados intersubjetivamente em uma forma de vida comum, e assim também à manutenção da integridade dessa forma de vida. As normas não podem proteger uma coisa sem a outra, elas não podem protegeros direitos iguais e as liberdades individuais sem proteger o bem-estar de seus semelhantes e a comunidade à qual o indivíduo pertence" (Habermas, p. 47).

De outra parte, a convergência de justiça e moralidade, em termos de normas com caráter universal, deve ser construída em termos de simetria (igualdade entre as partes) e reciprocidade, para não ficarem essas normas restritas ao âmbito de família, tribo, cidade ou nação. Esses limites, portanto, só podem ser quebrados em uma prática discursiva. Dessa maneira tanto "em seu método argumentativo como nas suas pressuposições comunicativas, o procedimento discursivo refere-se a uma pré-compreensão existencial relativa às estruturas mais universais do 'mundo de vida' que tenham sido compartilhadas intersubjetivamente, desde um certo momento inicial" (Idem, p. 48).

Esse é um ponto crucial da metodologia de Habermas, pois para ele o caráter pragmático do discurso torna possível a formação de uma vontade consciente na qual os interesses de cada indivíduo podem ser considerados sem que se destruam os laços sociais que ligam cada indivíduo com seu semelhante. Nesse sentido o modelo de reciprocidade (role taking) utilizado no discurso não é equivalente ao do contrato social. Uma ética simplesmente procedimental (a la Rawls) torna-se parcial na medida em que a idéia de um acordo entre pessoas isoladas não é substituída pela idéia de uma formação de vontade racional ocorrendo no "mundo da vida de indivíduos socializados" (Idem, p. 48).

VII

Quais são as conseqüências práticas desse ponto de vista? O modelo contratualista, mesmo partindo de indivíduos que têm uma visão comunitária da vida social, é obrigado a definir de uma vez para sempre um conjunto estático de necessidades individuais e deduzir monologicamente o tipo de sociedade capaz de atender a tais necessidades. Nesse sentido o modelo de Rawls, embora constituindo um progresso em relação à teoria democrática liberal (pois dele podem-se deduzir diretamente políticas distributivas que caracterizam o welfare state)2 constitui no entanto um modelo monológico que se fecha para as reclamações de vozes potenciais, não só que apresentam formas de entendimentos diferentes do que devam ser os "bens primários", como também das que apresentam problemas de reconhecimento de identidade de grupo, tais como os ecologistas, pacifistas, grupos locais, etc. Tais vozes não apresentam reinvidicações do tipo tradicional na medida em que não falam em nome da sociedade, nem tampouco se propõem à conquista de centros de poder; como também não seguem os padrões convencionais da defesa dos interesses de grupo. Assim, observa Habermas, para tais movimentos "a política não é um assunto de benefícios que possam ser fornecidos pelo welfare state, mas é antes uma questão de como defender ou assegurar formas de vida colocadas em perigo. Em resumo os conflitos não se desenvolvem a partir de problemas distributivos, mas dizem respeito à 'gramática' das formas de vida" (Habermas: 1987, p. 556).

O modelo comunicativo de Habermas, como observa White, não só se apresenta como a melhor forma de explicitar o sentido de tais movimentos como também do porquê de tais movimentos. Em termos de seu comportamento, o modelo comunicativo é o único suficientemente completo para oferecer entendimento "do conjunto peculiar de ações estratégicas, normativas (especialmente suas qualidades universalistas) expressivas e dramatúrgicas envolvidas nesses movimentos" (White: 1988, p. 124).

Tais movimentos são peculiares porque não podem ser entendidos simplesmente como uma reação contra a destruição de formas tradicionais de vida, mas como uma reação contra as deformações das formas "pós-tradicionais" de vida tornadas possíveis pela racionalização extrema de esferas próprias da subjetividade. Assim, como observa Habermas, "proteger as condições de possíveis comunicações associativas significa gerar espaço para uma construção mais autônoma de identidade de grupos e para a deliberação política. O significado normativo da democracia pode ser expresso na idéia de que a realização das necessidades funcionais de esferas de ação sistematicamente integradas encontra seus limites na integridade do mundo da vida; isto é, nos requisitos de esferas de ação que são socialmente, isto é, comunicativamente integradas" (Habermas, citado em White, p. 124).

Tendo em vista tais observações, Habermas propõe uma visão mais ampla do processo político, isto é, uma visão que transcenda o contexto do que chama instituições políticas formais. Para Habermas é fundamental que haja uma clara separação entre a democracia e as condições de sua institucionalização em um sistema político formal. Tal só poderia ser conseguido pelo que identifica com a "esfera política pública", pois só esta permitirá às sociedades complexas obter uma distância normativa em relação a si mesmas e se tornar capazes de assimilar coletivamente experiências de crises. Tal esfera deve ser considerada tanto como distinta do sistema econômico como do sistema político formal. Isso porque este opera mediante um "sistema legal" administrativo que leva inevitavelmente a uma tendência à "normalização", em um sentido já apontado por Michel Foucault.

VIII

Em termos de consideração finais, não há como discordar de Habermas que o conceito de racionalidade discursiva constitui o elemento fundamental de uma visão não-metafísica e portanto moderna da razão. Assim, em contraposição a uma visão contextualista como de Rawls, que fundamenta seu critério de razão prática em certas intuições morais fortalecidas pelas instituições democráticas ocidentais, Habermas aponta o potencial da razão discursiva para estabilizar as condições de universalização: a partir do momento em que se disponha a justificar suas posições argumentativamente, estará automaticamente admitindo um potencial de racionalidade em relação aos que participam do discurso ou do debate.

É possível, no entanto, levantar-se um problema em relação a visão habermasiana. Um processo decisório universalizado poderia levar a uma decisão consensual de instituir-se por exemplo um estado totalitário. Nada impede a priori, como observa Carol Gould, que os participantes de um processo discursivo, em um determinado momento, deixem de reconhecer que tal fato seria uma violação de seu próprio interesse ou do interesse geral mesmo após um longo debate. Daí sua observação que, mesmo ocorrendo uma situação de discurso ideal, "esta situação não é por si mesma suficientemente forte para bloquear certos resultados consensuais. Habermas introduz algumas limitações substantivas, que ele não reconhece como substantivas, mas que alega que fazem parte do procedimento discursivo, isto é, a liberdade e a igualdade dos participantes do discurso. Mas sua interpretação de tal liberdade e igualdade não é suficientemente forte para gerar uma teoria dos direitos dos participantes que vá além da prática do próprio discurso" (Gould: 1990, p. 267). Daí a conclusão de Gould que talvez seja necessário que uma teoria mais forte sobre a realidade humana e sobre a discriminação de seus direitos possa servir como limite em relação a qualquer decisão consensual ou democrática.

Tal crítica nos leva a concordar com Wellmer, para quem não é possível estabelecer tal limite, que seriam os direitos humanos básicos, simplesmente a partir de qualquer princípio de racionalidade. "Um princípio de direitos não é uma daquelas normas específicas que possam ser justificadas por um consenso racional democrático: como um metaprincípio de direito, está bastante próximo de um metaprincípio de moralidade e define, portanto, uma condição limite do que pode ser contudo legítimo de um processo democrático" (Wellmer: 1990, p. 247).

Na verdade, esse princípio, pelas razões apontadas por Habermas, para não se tornar estático, ou identificado com certas instituições políticas ou econômicas, "deve ser suplementado por um conceito de racionalidade discursiva ou comunicativa, se pretende se tornar o núcleo 'abstrato' de uma concepção positiva de liberdade comunitária, isto é, de uma concepção universal de uma forma democrática de vida ética" (Idem, p. 247). Assim, apesar de os princípios de universalização dos direitos humanos e de suas implicações distributivas e o princípio da racionalidade comunicativa não se implicarem necessariamente, eles se demandam mutuamente para uma concepção democrática da vida, que se apresente não apenas como um instrumento crítico, mas como uma alternativa ao 'individualismo possessivo" implícito no discurso neoliberal.

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  • 1
    A liberdade individual para Kant significa liberdade negativa. A liberdade negativa, enquanto restrição determinada pela lei que garante liberdade igual para todos, é o conteúdo básico dos direitos
  • Welfare State"

    2 Daí a observação de Rawls de que a concepção de justiça que propõe "está na base da crítica liberal da aristocracia, da crítica socialista da democracia constitucional liberal e do conflito entre liberais e conservadores, na época em que atua a respeito da propriedade e da legitimidade (enquanto oposta a eficácia) dos programas sociais associados ao (Rawls, 1988. o. 292).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 1993
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