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Qualidade de vida e reformas de programas sociais: o Brasil no cenário latino-americano

Quality of life and social policies reforms: Brazil in the latin-american setting

Resumos

Com base na constatação de que o Brasil ocupa um dos piores lugares na América Latina no tocante à eficácia de suas políticas sociais, mesmo comparado com países que não promoveram a reforma dos seus programas sociais sob regime democrático (como o Chile) a autora busca caraterizar a especificidade do caso brasileiro no cenário latino-americano. O pano de fundo da sua análise é dado pelos problemas da reforma do Estado e dos caminhos da modernização do país.


Given the bad record of Brazilian social policies in a Latin-american comparative perspective (even if compared with a case of social programs reform under a non-democratic regime, like the Chilean one) the author studies the specifity of the Brazilian case. The background of the analysis is given by the problems of the reform of the State and of the country's modernization


QUALIDADE DE VIDA

Qualidade de vida e reformas de programas sociais: o Brasil no cenário latino-americano

Quality of life and social policies reforms: Brazil in the latin-american setting

Sônia Miriam Draibe

Coordenadora do Núcleo de Estudos de Políticas

RESUMO

Com base na constatação de que o Brasil ocupa um dos piores lugares na América Latina no tocante à eficácia de suas políticas sociais, mesmo comparado com países que não promoveram a reforma dos seus programas sociais sob regime democrático (como o Chile) a autora busca caraterizar a especificidade do caso brasileiro no cenário latino-americano. O pano de fundo da sua análise é dado pelos problemas da reforma do Estado e dos caminhos da modernização do país.

ABSTRACT

Given the bad record of Brazilian social policies in a Latin-american comparative perspective (even if compared with a case of social programs reform under a non-democratic regime, like the Chilean one) the author studies the specifity of the Brazilian case. The background of the analysis is given by the problems of the reform of the State and of the country's modernization.

Os contraditórios resultados que obtivemos no campo das reformas sociais, no último decênio, podem ser tomados como caso exemplar das dificuldades de reestruturação de sistemas de proteção social tão estratificados — leia-se corporativizados — como o nosso, nas condições particulares em que esse processo vem se verificando: democratização, crise econômica e um tipo bastante impiedoso de ajustamento econômico.

Após praticamente dez anos de reformas continuadas e com o volume de modificações pretendidas, que afinal sucedeu com nossas políticas de bem-estar social, com nosso Welfare State? Infelizmente, o balanço é bastante negativo. Chegamos em 1993 com as políticas sociais carentes de recursos e de rumos, além de se mostrarem dramaticamente ineficazes. Como em tudo, não será difícil apontar aqui e ali pequenas exceções e nós não as esquecemos.

Mas chegamos até aqui com nossos pobres mais pobres ainda, se é que se pode imaginar isso. Pior. Chegamos em 1993 com nossos pobres mais desprotegidos do que estavam há meia ou uma década atrás: paralizaram-se ou desapareceram quase todos os programas sociais especialmente destinados a eles, tais como os programas de alimentação e nutrição. Para a massa da população pobre e indigente, restaram a escola de primeiro grau e o atendimento básico de saúde, com todos os problemas que conhecemos. Restou também a merenda escolar: descontínua e sem financiamento garantido.

Por que? Claro que a instabilidade e a crise econômica constituem a resposta mais fácil, que não deixa de conter um grão de verdade. Mas é, a meu ver, uma resposta insuficiente. Afinal, a instabilidade e a crise se desenvolveram no ambiente da democratização e energização das instituições políticas. É verdade que esse ambiente e os processos sobre os quais se assentou dificilmente teriam sido capazes de inibir os efeitos desatrosos da crise sobre o maior empobrecimento da população. Mas era de se esperar pelo menos a manutenção do padrão anterior de proteção aos pobres, se não seu aumento. Deu-se o contrário: a maior pobreza é também maior pobreza de programas públicos destinados a minorar os impactos sociais da crise. Não por acaso, o grande programa social de 1993 é o Programa de Combate à Fome e à Miséria, o programa do Betinho, que se vem desenvolvendo principalmente fora do Estado.

Esse artigo busca entender as razões desse desacerto, que vem fazendo do cenário social brasileiro um dos piores da América Latina, mesmo quando comparado com outros que não fizeram sob o regime democrático a reforma de seus programas sociais, como o Chile. Ainda que não tenha pretensões comparativas, será na dimensão latino-americana que buscaremos compreender a "especificidade" brasileira das reformas dos programas sociais, em face do modelo chileno, tendo também por referência a Argentina, a Bolívia, a Costa Rica e o México1 1 Um estudo mais exaustivo, que compara a Argentina, a Bolivia, o Brasil, a Colômbia, a Costa Rica, o Chile e o México, está sendo por nós elaborado no âmbito do projeto "Reformas políticas para aumentar la efectividad del Estado en América Latina y el Caribe", da CEPAL. Versões mais extensas do caso brasileiro encontram-se em "Repensando a política social: dos anos 80 ao início dos 90", texto apresentado no seminário "O Brasil na assim chamada década perdida: o que aprendemos?" DCP/NAIPPE - USP e UNRISD, São Paulo, maio de 1993 e em "Brasil anos 8o: cambio social y político", na revista Situación Latino-americana, CEDEAL, Madrid (no prelo). .

O WELFARE STATE BRASILEIRO NO CENÁRIO LATINO-AMERICANO

O início dos anos 80 encontra a maior parte dos países latino-americanos dotados já de verdadeiros sistemas de proteção social — se por isso entendermos um conjunto articulado de ações públicas e privadas nas áreas de saúde, previdência e assistência social, educação básica/ secundária e habitação popular.

Argentina, Brasil, Costa Rica, Chile e México seguramente haviam alcançado em 1980 esse estágio de constituição dos seus Estados de Bem-Estar Social. Com mais dificuldade, poderíamos afirmar o mesmo para a Bolívia, dada a alta fragmentação de suas políticas sociais. De todos os casos, entretanto, pode-se afirmar sem diferenças serem resultados de densos e custosos processos de construção institucional, enraizados nos tecidos sociais de cada país, que seguramente envolveram lutas, conflitos, perdas e vitórias de grupos de contendores, história que deixou suas marcas na institucionalidade dos aparelhos e organismos do bem-estar social.

Qual a natureza e substância social desses sistemas? Com exceção de Cuba, os Estados de Bem-Estar latino-americanos até princípios dos anos 80 são do tipo meritocrático-particularista, segundo Titmus/Áscoli2 2 Áscoli, U.. "Il sistema italiano de Welfare State". In Áscoli, U. (org). Welfare State all'Italiana. Roma, Laterza, 1984. ou conservador/corporativista, segundo Esping-Andersen3 3 Esping-Andersen, G. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton University Press, 1980. , distintos portanto seja de um model residual ou liberal, seja do padrão institucional-redistributivista ou social-democrata4 4 Draibe, S.M. "Brasil: o sistema de proteção social e suas transformações recentes". .

O que é o modelo residual ou liberal? Segundo a literatura é aquele de mercado, no qual a política social intervém ex-post, quando os canais "naturais" e "tradicionais" de satisfação das necessidades (família, rede de parentesco, mercado) não estão em condições de resolver determinadas exigências do indivíduo. A intervenção social do Estado possui então um caráter temporalmente limitado e deve cessar com a eliminação da situação de emergência. Ou deve limitar-se a agir sobre grupos sabidamente "dependentes" e incapazes. O Estado Mínimo, neste campo, é mínimo porque só vai até esse limite.

No outro extremo estaria o modelo institucional redistributivista ou social-democrata, no qual se concebe o sistema de Welfare como eixo constitutivo das sociedades contemporâneas, voltado para a produção e distribuição de bens e serviços sociais "desmercantilizados" e garantidos a todos segundo critérios universalistas, configurando portanto direitos sociais dos cidadãos. Em tal sistema tendem a se mesclar mecanismos de renda mínima e programas previdenciários com aqueles típicos dos equipamentos coletivos públicos gratuitos para a prestação de serviços essenciais, especialmente os de saúde e de educação. Nas suas engrenagens gerais este padrão promove efeitos distributivos e niveladores entre seus "clientes". Por tais razões é comum a identificação desses sistemas com o conceito amplo de "seguridade social", para diferenciá-lo do estreito conceito de "seguro social".

O que mais nos interessa são as características do modelo meritocrático-particularista, conservador ou corporativo. A premissa sobre a qual repousa é a de que as pessoas devem estar em condições de resolver suas próprias necessidades, com base em seu trabalho, em seu mérito, no desempenho profissional, na sua produtividade. A política social intervém apenas parcialmente, completando e corrigindo as ações alocativas do mercado e as instituições econômicas. Esping-Andersen chama a atenção para as características histórico- constitutivas desse padrão, que vincula ao emprego o acesso aos benefícios. Antes de tudo esse é um sistema corporativo e estratificado, no qual tendem a coexistir distintos sistemas previsionais criados pelo Estado para diferentes categorias ocupacionais, os trabalhadores, os empregados "white collor", os funcionários públicos, os militares, dentre outros.

Estes tipos, como se sabe, não estão cristalizados no tempo. Aliás, um dos temas caros à literatura comparativa internacional neste campo é a tendência à homogeneização dos sistemas, detectando um movimento em direção a padrões mistos, nos quais os componentes de tipo seguridade social tendem a se impor ao componente seguro social5 5 Ferreira, M. Welfare Slate in Italia. Firenzi, Il Molino, 1984. . Assim, países "tardios", que construíram seus sistemas principalmente após a Segunda Guerra, tenderiam a adquirir desde o início as características mais homogêneas. Mas sem dúvida, as alternativas e, mais que tudo, a viabilidade dessa trajetória de transformação estiveram, e estão, muito dependentes seja da herança histórica destes.sistemas, seja dos diferentes impactos da crise sobre os distintos países, seja principalmente dos ambientes políticos e dos regimes (autoritários, democráticos ou em transição) em que ocorreram ou ocorrem. O processo de constituição daqueles sistemas, que esboçamos a seguir, exemplificam esses movimentos.

Um pouco de história

Como dissemos, o padrão geral que tais sistemas obedeceram é do tipo meritocrático-particularista, organizando sistemas estratificados e corporativos. Mas há diferenças no seu interior e são estas, agora, as que nos preocupam e que rapidamente serão expostas.

Se observaramos o critério de Mesa-Lago6 6 Mesa-Lago, C. Social Security in Latin America. University of Pittsburg Press, 1978. Do mesmo autor, também Ascent to Bankruptcy. University of Pittsburg Press, 1989. (graus de estratificação e momento de constituição dos sistemas) os países em estudo se agrupam do seguinte modo: Argentina, Brasil e Chile integram o grupo de países (os outros são o Uruguai e Cuba) que foram pioneiros na introdução de sistemas estratificados (por grupos ocupacionais, tipos e valores de benefícios) e administrados por múltiplas instituições, em geral dotadas de autonomia legislativa e financeira, com apoio de recursos públicos. O segundo grupo é constituído por países que, iniciando mais tardiamente a construção de seus regimes de seguridade (anos 40, e sob influência beveridgeana e da OIT): ainda que tivessem mantido privilégios para grupos anteriormente cobertos (como Costa Rica e México), lograram reduzir seu peso relativo em sistemas relativamente homogêneos e unificados, em geral administrados por uma agência única e geral. Um terceiro grupo é constituído por países pequenos e menos desenvolvidos da América Central (com exceção da Costa Rica e Panamá) e Caribe (com exceção de Cuba), que construíram seus regimes entre os anos 50 e 60, com graus bastante acentuados de homegeneidade e unificação institucional.

Abranches7 7 Abranches, S. "The politics of Social Welfare Sate development in Latin America", apresentado na reunião da ANPOCS, Nova Friburgo, 1982. examina, em perspectiva histórica, os casos argentino, brasileiro, chileno e mexicano sob o conceito de "mecanismo de cooptação", para dar conta da forma geral como se processou, nestes países, a incorporação da classe trabalhadora, comparando-o com outros mecanismos como o da incorporação autônoma, o da confrontação ou o da revolução. Há diferenças entre as trajetórias nacionais, mas o padrão cooptativo de incorporação das classes subalternas leva à segmentação política e legal da classe trabalhadora, produzindo um perfil de demandas e resistências particularistas e corporativamente articuladas, tendendo a se constituirem em obstáculos à universalização dos direitos sociais.

Visto historicamente, o México, na opinião, de Abranches, constitui o caso mais bem sucedido do padrão cooptativo, construindo um sistema que chama de "cidadania segmentada". A evolução dos programas sociais se caracterizou pela concessão seletiva de privilégios a categorias profissionais específicas e organizacionalmente fortes: militares, professores federais e trabalhadores de setores estratégicos (petróleo, ferrovias, eletricidade). Em 1943, com a criação do Instituto Mexicano de Seguridad Social (IMSS), tem início um lento processo de expansão horizontal dos benefícios e cobertura de outros segmentos da população, basicamente urbanos. Esse processo é acompanhado pelo adensamento (expansão vertical) de novos benefícios aos grupos anteriormente cobertos, entre eles os funcionários federais, que, em 1960, criam uma entidade própria, o Instituto de Serviços e Seguridade Social dos Trabalhadores do Estado. A posterior extensão da cobertura ou ampliação de benefícios ocorreu neste quadro institucional e através de ciclos que acompanharam bem de perto os movimentos da política eleitoral e da busca de ampliação das bases de apoio e legitimidade.

Na sua dinâmica, este padrão de cidadania segmentada, mesmo quando tenha avançado na unificação e padronização, reproduz o modo fragmentado e vertical de extensão de benefícios, tantos aos novos setores (que se mobilizam) quanto aos que já gozavam de um dado patamar de privilégios. Como registra Abranches, "nem mesmo a 'massificação de privilégios' — uma expresão usada por Mesa-Lago para caracterizar a gradual extensão de benefícios a todos os setores da sociedade — progrediu no México". Ao contrário, a sociedade permaneceu dual e os apelos políticos pela solidariedade social nos anos 70 não foram suficientes para avançar a cobertura à metade da população do país. Em 1977, com a adição do plano social para zonas deprimidas e grupos marginais (COPLAMAR), amplia-se a cobertura de saúde até 60% da população total, segundo Mesa-Lago. Nos anos 90, o PRONASOL passou a centralizar a ações do governo em direção às camadas pobres e desprotegidas da população.

O Chile, segundo Abranches, é um caso que combina confrontação e cooptação. Até os anos 70, o processo de construção do sistema de seguridade social chileno vai da cooptação a uma limitada incorporação autônoma, depois à confrontação e, finalmente, à exclusão. As primeiras medidas de política social resultam de um longo período de confrontação, entre aproximadamente 1905 e 1925. Desde aí e até os anos 70, a expansão dos programas sociais é marcada por esforços de cooptação, mas que tiveram muito pouco sucesso, pelas resistências dos setores organizados dos trabalhadores, principalmente em momentos de polarização política. De toda forma, os esforços cooptativos, que associaram repressão à distribuição de privilégios, moldaram um sistema dividido entre "white collors" e "blue collors"("empleados" e "obreros") que tendeu a se expandir combinando o modo vertical — criação crescente de novos benefícios — à expansão horizontal — a "massificação do privilégio".

Ao iniciar-se a década dos 70, o sistema de seguridade contava com 35 Caixas de Previsão, com planos de benefícios bastante diferenciados. Em termos de sua cobertura, atingiam 67.8 % da população total e 75,6 % da força de trabalho, estando marginalizados os trabalhadores do setor informal urbano e da economia camponesa8 8 Raczynski, D. e Cominetti. "Las políticas sociales en Chile: panorama de sus reformas". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992. . Entre meados dos anos 60 e os 70, os ensaios democrata-cristão e socialista de unificação e homogeneização dos sistemas foram frustrados. A ruptura definitiva do seu padrão histórico, transitando para um tipo residual ou liberal de proteção social, deu-se sob o regime militar de Pinochet.

O caso da Argentina é examinado por Abranches como exemplo de um processo em geral de confrontação, mas fortemente marcado pela associação cooptação - parceria que ocorre sob o peronismo, quando se estabelecem as bases desse sistema assentado, na relação entre política social e controle corporativo. Esta modalidade de cooptação produziu programas sociais abrangentes, estabelecidos como privilégios já que dirigidos aos segmentos mais organizados da classe trabalhadora, distribuídos pelos sindicados em troca do controle estatal. A extensão posterior se fez sob este padrão: "a universalização da cobertura das políticas sociais era pensada como uma somatória de corpos autônomos de seguros sociais, identificados com cada grupo trabalhador, em que o fato de pertencer a una organização sindical era a via de acesso ao direito à cobertura pública9 9 Lo Vuolo. "Maduración, crisis e tendências de reforma del sistema de políticas sociales de Argentina", mimeo, 1992. ". Desde 1967, três Caixas agrupam as antigas entidades: a dos trabalhadores dependentes do setor privado, a dos dependentes do Estado e a dos autônomos, permanecendo em regimes especiais as Forças Armadas e policiais, os magistrados e os funcionários provinciais e municipais.

Mesmo com as diferenças que manteve, a ampla expansão de benefícios e serviços sociais aos diferentes grupos, sob a gestão das três Caixas, conduziu a Argentina a uma situação bem próxima de um sistema de direitos sociais universais, dadas as fortes tendências de homogeneização e universalização que se foram impondo. Desde a queda de Perón o movimento sindical entra em rota de confrontação com o Estado, frustrando, afinal, as tentativas de cooptação ensaiadas entre meados dos 50 e a metade dos 70, mas resistindo também às tentativas de reversão liberal sob a ditadura dos militares. O sistema argentino atravessa os anos 70 como um dos menos desiguais da região, tanto nas questões de financiamento como planos de benefícios e cobertura, mas aos poucos passa a ser vítima de seu próprio sucesso. De fato, no plano financeiro, as Caixas enfrentaram problemas de desequilíbrios desde os anos 60, que tenderam a se agravar no tempo, mesmo com reformas e ajustes parciais. Nem o governo peronista de 73-76 nem medidas posteriores levadas a cabo pelos militares lograram avançar sobre os problemas estruturais do sistema de seguridade, que chega aos anos 80 pressionado por déficits, praticamente atingindo o limite de sua capacidade expansiva e de cumprimento de suas obrigações legais. A reforma radical que pretende reestruturá-lo à chilena vem há mais de um ano sendo debatida no Congresso.

O Brasil organizou sua proteção social fundamentalmente através da cooptação, combinando ingredientes de incorporação regulada, proteção social como privilégio legal e controle corporativo. Após as primeiras legislações e organizações dos anos 20, a partir de 1930 organiza-se e se expande o sistema de incorporação dos setores urbanos organizados da classe operária, segundo seu perfil ocupacional, e mediante o forte controle burocrático-político dos sindicatos pelo Estado. O padrão de cooptação, com seus resultados heterogêneos e fragmentados, predominou desde então, ancorado numa rede de patronagem e trocas políticas entre os sindicatos, o Ministério do Trabalho, as instituições de previdência por categoria ocupacional (as Caixas de Aposentadorias e Pensões — os IAPs) e o Partido Trabalhista, base do esquema conhecido como populista. Estas fortes relações de interesses entre burocracias públicas e sindicais, na concessão e troca de benefícios, frustraram também quaisquer tentativas de unificação, homogeneização e universalização, ainda que esta tenha constituído o centro da agenda política do sistema de previdência social, até os anos 6010 10 Em 1960 é aprovada a Lei Orgânica da Previdência Social, que cria os primeiros e ainda parciais mecanismos de estandardização. A real unificação do sistema se fará após 64, já sob o regime militar. É extensa a bibliografia brasileira sobre o tema. O estudo clássico, na perspectiva que estamos privilegiando, é o de Amélia Cohn, Previdência Social e Processo Político no Brasil. São Paulo, Moderna, 1981. .

O regime militar, no Brasil, rompeu o padrão histórico de cooptação, reformando o sistema previdenciário em 1966-1967, segundo os critérios de unificação, padronização dos benefícios e universalização, financiado por contribuições sociais de trabalhadores e empregados e gerido por sistema de repartição simples. A criação de uma agência única de coordenação — o Instituto Nacional de Previdência Social (INAMPS), dá organicidade administrativa ao sistema, substituindo as inúmeras Caixas anteriores. No plano político, os grupos ocupacionais organizados e dispondo de maior poder de barganha seguiram impulsionando a expansão horizontal posterior, durante os anos 70. Entre finais dos anos 70 e primeiros anos da nova década o sistema previdenciário cobre aproximadamente 52% da população economicamente ativa e pouco mais de um terço da população; seu volume de gasto é de aproximadamente 5% do PIB e, salvo anos de muita instabilidade e recessão econômica no país, o sistema mantém-se em relativo equilíbrio financeiro.

A reforma de 77 criou o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social — SINPAS, ao qual se vinculam as agências destinadas à arrecadação e gasto (LAPAS), a de concessão de benefícios (INPS) e a de prestação de serviços médicos (INAMPS). Mantém-se entretanto num grau bastante acentuado de desigualdade os trabalhadores rurais (por volta de 1985 os benefícios rurais, que em número correspondiam em média a 28% do total de benefícios, em valor significavam tão-somente 14%). Apesar de que medidas subseqüentes afetaram esta diferença, será somente com a volta do regime civil e a nova Constituição de 1988 que se dará sua completa superação. As diferenças entre as aposentadorias são também acentuadas, particularmente no que toca às aposentadorias especiais e a aposentadoria por tempo de serviço. A mais regressiva é a aposentadoria por tempo de serviço, benefício em geral concedido aos estratos de maiores rendas (corresponde a 22% do total das aposentadorias e a 50% do gasto com aposentadorias) e de valor individual médio superior em quase duas vezes às aposentadorias por acidentes de trabalho ou idade. Além disso, dados recentes mostram que 60% dos aposentados por esse critério tinham menos de 55 anos de idade no momento da concessão do benefício. Também os sistemas de aposentadorias dos militares e funcionários públicos — crescentemente pagos com recursos fiscais da União, Estados e Municípios — mantêm suas distâncias privilegiadas em relação ao regime geral. Paradoxalmente, desde o final dos anos 70 a universalização da política de saúde ocorre no interior dos serviços do sistema previdenciário (que chegará aos anos 80 atendendo a 80% da população total), situação que somente será revertida com a criação do Sistema Único de Saúde ao final dos anos 8011 11 Ver Abranches, "The politics of Social Welfare State", op. cit. e Draibe, S. M., Castro, G. e Azeredo, B. " O sistema de proteção social no Brasil", projeto "Social policies for the urban poor in Southern Latin America", Kellog/Mellon/CEBRAP, 1991. .

Não nos é possível examinar os casos da Bolívia e da Costa Rica com a perspectiva histórica que observou Abranches. Ainda assim, algumas observações podem ser feitas. Até finais dos anos 50 a Bolívia organizou um conjunto fragmentado de poucas entidades previdenciárias autônomas, incorporando através do movimento de cooptação os setores mais organizados dos trabalhadores, particularmente funcionários públicos, militares e os trabalhadores mineiros, estes últimos liderando os momentos de confrontação que marcaram a história boliviana. O esforço de unificação de 1959 logrou criar uma entidade nacional, o Instituto Boliviano de Seguridade Social, de baixo poder de controle sobre as 29 caixas e regimes sob sua jurisdição. Apenas em 1987, já sob o impacto da crise e do ajustamento, os diferentes regimes são extintos, ocorrendo uma unificação e padronização de contribuições e benefícios. Ainda assim as desigualdades nos valores das aposentadorias mantêm-se altas, com pensões variando de 74 a 270 bolivianos.

A Costa Rica talvez constitua o único exemplo, dentre os casos nacionais aqui referidos, de um bem sucedido processo de construção tardia de um sistema relativamente unificado, abrigando graus de redistributividade de algum significado social. A sua primeira entidade de seguro social, a Caixa Costarriquense de Seguro Social (CCSS) operando programas de pensões e saúde/maternidade, data de 1941. Para Mesa-Lago o país beneficiou-se do atraso, tanto pelo caráter unificado do sistema que passa a construir quanto pela equânime cobertura de quase toda a população, que se estende principalmente entre os anos 60 e 80. A CCSS incorporou a maior parte dos trabalhadores dos setores industrial, construção civil e comércio até o fim dos 60 e praticamente todos os outros grupos restantes, incluindo os trabalhadores rurais, na década seguinte. Além dos programas já citados, administra dois programas de welfare, financiados por fundos públicos, o de pensões não-contributivas e o de atenção médica para prisioneiros e indigentes e seus dependentes.

Padrões de intervenção social do Estado

Tanto o processo de constituição quanto as características mais gerais das políticas sociais levadas a cabo nos países em estudo permitiriam classificá-los segundo o tipo conservador, meritocrático-particularista, corporativo que descrevemos. Entretanto, são significativas as diferenças entre os países e entre os setores de política, como vimos. Até onde configuram estilos os padrões distintos dentro do tipo geral?

Não é fácil responder a essa questão que, afinal, significaria construir uma tipologia destes países. Sem esta pretensão, tratamos de avançar algumas observações sobre os traços estruturais que, na nossa opinião, aproximam ou afastam os países, quando examinados os objetivos, trajetórias e desempenho de suas políticas sociais básicas até os anos 80.

As economias capitalistas, à medida em que avançam no seu desenvolvimento, constróem sistemas de bem-estar e esta associação admitiu e admite incontáveis leituras e interpretações teóricas que não convém aqui reproduzir. Mas sem dúvida, para examinar as modalidades de intervenção social do Estado prevalecentes nos países que estamos estudando, uma dada dimensão dessa relação precisa ser verificada.

O que é o Estado de Bem-Estar Social se não um modo de equacionar o progresso social que acompanha o desenvolvimento econômico? As políticas sociais, na sua gênese e histórias particulares, obedecem a motivações e objetivos diversos. Mas em última instância o seu objetivo é o da distribuição da riqueza social, pelo menos para estabelecer, a cada momento da evolução de um dado país, certos patamares de equidade e de incorporação social da população ao nível de bem estar que aquela sociedade entende como mínimo e factível de ser estendido12 12 Essa é uma noção geral e simples, mas satisfatória para nossos propósitos. Formas mais sofisticadas de definição podem ser encontradas, por exemplo, em Solis, V. e Farfán, G. "El deterioro de bienestar social y de la salud en Mexico" (Mexico, Testimonios de la Crisis, 2,1988) que usam conceitos da "escola da regulação: "O Estado de bem-estar pode ser definido de uma perspectiva mais restrita ou de outra, mais ampla. No primeiro caso referimos-nos à modificação estatal da reprodução e das condições de utilização da força de trabalho, o que nos leva a pensar no surgimento de um salário indireto e na instauração de uma relação salarial de tipo monopolista. No segundo, encontramos-nos diante de uma série de relações entre os seguintes processos sociais: a) um padrão de reprodução do capital de cunho fordista, que permita potenciar não apenas a produção em massa como também o estabelecimento de uma norma de consumo em massa; b) uma nova relação entre o Estado e a sociedade na qual a classe trabalhadora é incorporada ao processo de tomada de decisões políticas, menos dependente do sistema parlamentar dos partidos políticos e mais próxima a certas formas corporalivcas de tipo industrial, e c) uma forma de política econômica que permita conciliar o ciclo global da reprodução do capital através da administração da demanda efetiva, do crédito e do pleno emprego. O último ponto associa-se fundamentalmente a políticas keynesianas..." (p. 140). . Esse objetivo maior pode explicitar-se mais ou menos na agenda governamental; pode estar mais ou menos apoiado pela vontade política das elites; pode ser concebido com graus variados de "generosidade"; pode ser desenhado de maneira mais igualitarista e niveladora ou admitindo graus de hierarquização social; pode admitir diferentes composições entre metas e eficiência e, enfim, pode ser equacionado segundo diferentes temporalidades (diferentes modos de conceber a relação temporal entre a produção da riqueza e a sua distribuição).

Pois bem, estas diferenças, que já distinguiam os três tipos gerais de Welfare State, estão também na base das diferentes modalidades ou padrões históricos de intervenção social dos nossos países. Parece desnecessário dizer que elas passam pelas forças e opções políticas, em cada momento da história de constituição daquelas modalidades.

É praticamente impossível para nós, neste momento, classificar os países segundo esses objetivos mais gerais das políticas sociais e de acordo com as correspondentes concepções de progresso social. O estabelecimento de coerências entre estas várias áreas de políticas em cada país e em cada momento, para identificar o objetivo geral, exigiria um trabalho que está muito além do que podemos aqui fazer. Vou usar um procedimento não muito ortodoxo: tomo um caso que considero extremo e, por isso, quase típico-ideal, e ao comentá-lo indicarei as diferenças e semelhanças com outros países.

O Brasil constitui um caso exemplar de desenvolvimento capitalista excludente e concentrador e, coerentemente, também construiu um sistema de políticas sociais com fortes características do tipo conservador. Pela dimensão de seus processos de industrialização e crescimento entre os anos 30 e 80, é certo que houve progresso social no país. Mas este assumiu a forma de mobilidade social com miséria absoluta de ampla parcela da população, de mobilidade com desigualdade extrema. Como registra Cardoso de Mello, "o progresso social, entre nós, realiza-se quase que preenchendo integralmente os requisitos da 'forma ideal' de desenvolvimento do capitalismo - a concorrência sem travas entre homens livres, que 'seleciona' os 'mais capazes'"13 13 Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder", mimeo, 1988. .

Essa é a outra face do rápido crescimento econômico, que provocou acelerada transformação da estrutura social, traduzida em modificações na estrutura de emprego e em fortes processos de mobilidade social ascendente. Dinamismo social que se manifesta (por razões que não serão aqui consideradas), num processo de extensão do assalariamento no qual vigoram baixos salários para amplos contingentes de trabalhadores, ao mesmo tempo em que a massa da população permaneceu ou subempregada nas cidades ou inteiramente marginalizada nas cidades e no campo. Os tão altos graus de concentração da renda com que vimos convivendo são mais uma manifestação dessas mesmas características.

Seria exagerado e incorreto afirmar que as políticas sociais brasileiras não produziram algum efeito positivo nesta situação. O país logrou constituir um denso sistema políticas sociais, apoiado em forte capacidade regulatória do Estado. Até por desdobramentos do próprio crescimento houve redução da pobreza absoluta, entre os anos 50 e 80. Também é certo que certos objetivos de equidade, transfigurados em metas de universalização de cobertura ou diminuição de privilégios, foram aqui e ali atribuídos à ação pública. É por isso que, no longo prazo, indicadores sociais básicos mostraram alguma melhora14 14 Ver o balanço do comportamento de longo prazo dos indicadores sociais e a avaliação da capacidade das políticas sociais no Brasil para reduzir as maiores desigualdades e iniquidades (relativas a cor, sexo, idade, renda e regionais) em Draibe, Castro e Azeredo, cit. .

Entretanto, tais políticas tenderam a reproduzir e reiterar as desigualdades iniciais. Em outras palavras, foram frágeis e muito pouco capazes de reduzir as grandes disparidades de oportunidades, de um lado, e o fosso que separava e ainda separa uma minoria "protegida" e a grande maioria desprotegida e marginalizada da população.

O próprio modo de financiamento do gasto social explica uma parte dessa situação. Como se sabe, até os anos 80 o gasto público social estava fortemente financiado por contribuições sociais, o que significa dizer, de outra maneira, que a intervenção social do Estado está fundada na capacidade contributiva do trabalhador, sancionando a distribuição primária da renda e tão somente reproduzindo, no plano dos benefícios sociais, as desigualdades iniciais. A parte do gasto social público sustentada pelo sistema tributário assumiu caracter residual, não desempenhando qualquer papel redistributivo que pudesse alterar a distribuição primária da renda e dos recursos das pessoas e famílias.

Mais ainda, organizado sob forma de fundos sociais específicos, esse modo de financiamento "...significa na prática, a exclusão de uma parcela substantiva da população do acesso aos programas. Isto porque, na maior parte das vezes, a distribuição dos benefícios está restrita aos empregados do chamado mercado formal de trabalho, que contribuem diretamente, ou em nome dos quais são feitos os recolhimentos"15 15 Azeredo, B. "O financiamnento do gasto público social na Argentina, no Brasil e no Chile". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992. .

A outra face desta situação é a estreita base com a qual se financia a política social (ou parte importante dela): a massa de assalariados do mercado formal de trabalho, que é pequena proporção da população e da população economicamente ativa, recebendo baixos salários. Duas conseqüências daí decorrem.

Além da enorme massa dos pobres e miseráveis que, em princípio, seriam "clientes" da política social assistencial, a grande maioria da população empregada e recebendo regularmente salários (baixos) necessita da assistência do Estado para assegurar uma condição de vida básica (para não exagerar e dizer digna), o que tende a "sobrecarregar" recorrentemente as políticas sociais. Segundo, e por isso, as políticas sociais recorrentemente contam com recursos insuficientes, o que compromete a qualidade e a quantidade dos serviços. Esse é o primeiro aspecto conservador que queríamos destacar, no caso brasileiro. O outro diz respeito ao peso relativo do setor público e à natureza das relações com o setor privado prestador de serviços sociais.

Como nos outros países, as redes públicas de serviços sociais de educação , saúde e assistência social são predominantes, até os anos 80. Com exceção da educação pré-primária e das universidades, o setor privado lucrativo e filantrópico ocupa um lugar menor senão residual na oferta explícita. Entretanto, principalmente em saúde, o Estado se faz presente através do setor privado (hospitalar); este é mesmo sua criatura, já que seus investimentos foram feitos, no passado, com forte finacimento público subsidiado. Já se chamou a este tipo de parceria de "estatista-privatista"16 16 Arretche, M. "Estado e mercado na provisão habitacional: três modelos de políticas". Campinas, UNICAMP, dissertação de Mestrado em Ciência Política, 1990. e foi a mesma que se verificou, por exemplo, na política habitacional. Este não é um setor privado complementar ou de ação autônoma, como o são nos outros segmentos. Aqui, trata-se de uma composição dentro do Estado e por este alavancada. É claro que isso não é uma novidade; seja o grau exasperado que assumiu no Brasil, criando uma especial e resistente rede de interesses entre burocracias estatais e grandes empresas, capazes de sobrevalorizar preços e introduzir ineficiências no setor público de muito difícil correção. Capazes também de solapar as capacidades regulatórias do Estado.

A outra dimensão a ser considerada é a fragmentação de clientelas que acompanha a divisão público/privado no período de acelerada expansão das políticas sociais nos anos 70. Num padrão de crescimento com as características que vimos de ressaltar não é de se estranhar que a expansão da cobertura, principalmente em educação e saúde, não tenha sido acompanhada pela manutenção ou melhoria da qualidade dos serviços. O resultado, nos anos 70, foi imediato: o bom hospital ou a boa escola básica e secundária passaram a ser oferecidos pelo setor privado autônomo aos estratos médios e altos da população, com capacidade de pagamento. A segmentação entre serviços sociais públicos pobres para a população pobre e serviços sociais privados sofisticados para os segmentos médios e ricos (com a exceção, freqüentemente assinalada, do ensino universitário) ocorreu no Brasil durante a expansão acelerada dos programas sociais, antes portanto da crise. O que, sem dúvida, acentua mais e mais aquele caráter conservador do estilo de intervenção social.

Por tudo isso — e esta é a última dimensão que queremos considerar no caso brasileiro — o volume do gasto social é um indicador muito insuficiente para se avaliar os graus de redistributividade das políticas sociais ou o papel do Estado na correção das maiores iniquidades da sociedade. O Brasil vem apresentando um gasto social, por volta dos 80, de cerca de 18% do PIB, nem tão alto quanto os da Argentina ou da Costa Rica, nem tão baixo quanto os do México ou da Bolívia. Mas muito dificilmente poderíamos por aí classificar nossos países em relação à questão da equidade. Não dispomos, nesse momento, de informações para comparar o gasto público social per capita, mas mesmo esse indicador esconderia aquela conformação estrutural das políticas, pelo menos no caso brasileiro, dadas as ineficiências e inefetividades que traz consigo.

O caso extremo do Brasil mostra uma estreita relação entre graus de assalariamento (e incorporação) e níveis salariais (distribuição de renda) de um lado, e de outro, formas de financiamento do gasto social + composição público/ privado na oferta de serviços na determinação dos graus de cumprimento de objetivos de equidade e bem-estar através das políticas sociais. Essa equação pode sugerir alguma coisa.

Eu tenderia a colocar no outro extremo o caso da Costa Rica, como um caso de progresso social predominantemente através de políticas sociais dentro de um tipo conservador de Welfare State. As bases conservadoras e corporativas originais do sistema costarriquense foram já indicadas. Também insuficiências e ineficiências de suas políticas e do gasto social podem ser invocadas. Mas é inegável que aquele país logrou associar mais favoravelmente os termos daquela equação e, portanto, reforçar a capacidade regulatória e redistributiva da ação pública através de suas policies. Por isso mesmo, o progresso social é mais harmônico; se envolve, como envolveu, mobilidade social, implicou também não deixar à margem parte da população, incorporada via políticas. A magnitude do gasto social — cerca de 20% do seu PIB — tem principalmente esse significado.

O Chile anterior às reformas em alguma medida aproxima-se do caso costarriquense, em que a ação estatal e a magnitude do gasto (20 a 25% do PB entre 1970-1973) foram cruciais para estender à população, insuficientemente ou não incorporada diretamente através do mercado, um patamar básico de serviços sociais e a melhoria da sua qualidade de vida, ainda que o fizesse também em benefício dos segmentos já incorporados. A segmentação do sistema previdenciário era, de algum modo, compensada pelas outras ações sociais públicas. Como assinala Raczynski, "o Estado operava através de políticas de emprego (salários e negociação coletiva); de políticas sociais propiamente tais (na educação, na saúde e na habitação); e de políticas de apoio à organização vicinal e comunitária, especialmente no final do período democrático... O sistema de políticas sociais, associado aos processos de desenvolvimento econômico, de industrialização e de urbanização do país, teve um impacto importante sobre a estrutura social". O caráter progressivo do gasto social é evidenciado pela autora: no início dos anos 70, 60% das famílias mais pobres captavam 45,5% dos benefícios, melhorando em 28% sua participação na distribuição original da renda.

Ainda que de mais difícil enquadramento, o caso da Argentina aproxima-se mais do pólo Costa Rica que do pólo Brasil, no que concerne aos efeitos positivos das políticas sociais sobre o progresso social do país. Sem dúvida as condições da "integração nacional" através de um mercado bastante homogêneo, no seu dinâmico passado exportador, tiveram uma importância que não pode ser negligenciada. Mas o êxito com que se estenderam e se homogeneizaram "privilégios" na proteção social e nos serviços de saúde das Obras Sociais, de um lado, e principalmente a educação em massa da população, mesmo durante a "difícil" industrialização do país, apoiado também em patamar alto de gasto social — acima de 20% do PIB nos 70 — criaram bases para que a Argentina avançasse até à crise dos 80 com o mais alto nível de condição de vida da América Latina e os patamares mais elevados dos "mínimos sociais" a que a população mais carente tinha acesso (a alimentação e a educação entre eles).

Com certeza o México é o caso que mais se aproxima do Brasil, e não por acaso. Lá também o acelerado crescimento econômico dos anos 70, se produziu impactos positivos nas condições de vida em geral da população não foi capaz de incorporar, via políticas sociais expansivas, as massas rurais pobres. O Welfare State mexicano , tanto na etapa de "desarrollo estabilizador", quanto no período do "milagre", desenvolveu-se apoiado no pacto corporativo que, embora estimulando políticas sociais , seguiu retringindo seus benefícios aos setores já protegidos da população. A baixa magnitude do gasto social — cerca de 7,5% do PB em média durante os anos 70 — tão-somente referendou o progresso com exclusão social que caracteriza esta modalidade de intervenção social.

As políticas sociais na Bolívia não parecem ter sido capazes, até os anos 80, de operar como mecanismo eficaz de progresso social. Os dois termos da equação associam-se negativamente: baixos graus de assalariamento e níveis salariais; gasto social modesto (cerca de 7% do PB, 70% dos quais dispendidos em educação e saúde); pequena extensão da cobertura mesmo de programas universais; fragmentação e descoordenação da ação pública e, em conseqüência, um porcentual muito elevado da população (cerca de 50%) não incoporada nem pelas relações mercantis nem pela ação pública.

Certo e justificadamente o argumento econômico — relativo a graus de desenvolvimento alcançado no passado moderno dos nossos países, no período 30/80 — será invocado por muitos para considerar as diferenças que quisemos sublinhar nos objetivos e escopo das políticas sociais, frente à questão da equidade. Entretanto, a meu ver, as condições políticas têm importância decisiva na explicação das distintas modalidades de equacionamento da relação entre crescimento econômico e progresso social que os Estados de Bem-Estar latino-americanos considerados vieram a definir. Vimos como se impõem os fatores políticos (graus de organização e capacidade de segmentos médios e dos trabalhadores) na conformação dos sistemas fragmentados e corporatizados de privilégios e na sua extensão posterior. Vimos mais: estes mesmos processos gerais se diferenciaram muito segundo os ambientes políticos em que se desenvolveram e as forças políticas que os conduziram: sistemas democráticos competitivos; democracias restritas ou regimes autoritários. Mais à frente, também as condições políticas foram decisivas para propiciar ou diminuir as possibilidades de reformas homogeneizadoras daqueles sistemas. Há mesmo quem registre a associação entre regimes autoritários e reformas deste tipo, como ocorreu no Brasil.

Portanto, tanto a constituição quanto a manutenção dessas modalidades de intervenção social do Estado parecem fortemente associadas a certas características políticas, além da base econômica e social sobre na qual se enraizam.

Por outro lado, dinamicamente estes sistemas apontavam para um certo tipo de transformação. Através do movimento de "massificação de privilégios" e, por isso mesmo, mantendo níveis de desigualdades bastante altos, tais sistemas pareceriam estar avançando em direção a um modelo mais generoso de proteção social — do tipo redistributivista de que fala a tipologia. Aparentemente, era esse o sentido do movimento "natural" que haveriam de cumprir desde meados dos anos 70, principalmente nos 80, quando foram surpreendidos pela crise.

Mas também o sistema político gerou pressões e expectativas por mudanças. Desde logo porque esta também foi a década da democratização e, mesmo com o avanço da crise econômica, houve movimentos e esperanças de reordenamento das políticas sociais de modo a fazer com que a democracia política pudesse se fazer acompanhar da sua base indispensável — a democracia social. Assim, tanto a crise quanto a democratização, e, mais freqüentemente, a ação combinada dos dois processos fizeram que nossos sistemas de políticas sociais integrassem a agenda de reformas dos anos 80.

Poucos foram, na verdade, aqueles países que de fato reformaram o sistema global de bem-estar, alterando os pilares sobre os quais se assentava. No grupo de países citados, apenas o Chile cabe nessa situação. No plano jurídico-formal, as reformas brasileiras foram significativas, ainda que não tenham revertido o padrão anterior. Outros países reestruturaram algum programa, em geral o de saúde ou o da previdência social, ou concentraram suas prioridades em programas emergenciais e fundos de investimento social. Todos, indistintamente, passaram por algum tipo de modificação, se não por experimentações ou inovações institucionais, já que partilharam as dificuldades da crise e da deterioração dos serviços públicos. Finalmente, muitos seguem ainda hoje com a agenda aberta, ou seja, adentram os anos 90 tendo ainda que buscar alternativas aos modos de organizar seus programas sociais.

O Chile e o Brasil seguiram caminhos rigorosamente opostos, no enfrentamento das suas reformas. Na segunda parte, indico o sentido e os contornos dessas reestruturações para refletir sobre dificuldades e desafios que a alternativa brasileira vem encontrando para efetivamente alterar seu padrão de progresso social.

BRASIL E CHILE, DOIS MODELOS

A década da crise foi também para o Brasil a década da democratização e, enquanto a primeira veio gradativamente minando os recursos disponívies para o gasto social, a segunda impulsionou movimentos generosos de reformas do seu sistema de proteção.

Assim, no caso brasileiro, foi sobretudo a luta pela democratização que impôs que os temas sociais ganhassem centralidade na agenda política de reformas democráticas. A reestruturação do sistema de políticas sociais constituiu mesmo parte integrante do núcleo das propostas de reorganização das formas de intervenção e regulação estatais da Estado brasileiro. Tratava-se de resgatar a dívida social, gestada pelo padrão excludente de desenvolvimento econômico anterior e agravada pela crise que o sucedeu.

De fato, no início da década passada, duas teses marcavam o debate sobre os problemas e as políticas sociais. De um lado, reconhecia-se que já havia avançado substancialmente a intervenção social do Estado, através de seus três níveis de governo. Em outros termos, admitia-se a existência, entre nós, de um Estado de Bem-Estar Social, quando avaliada a ação estatal tanto pelo volume do gasto quanto pela diversidade de programas sociais desenvolvidos, particularmente nas áreas de educação, saúde, previdência, assistência social e habitação.

Ao mesmo tempo, reconheciam-se quase unanimemente os maus resultados da política social brasileira, quando avaliada em termos de sua capacidade de, ao longo do ciclo expansivo anterior, ter contribuído para diminuir as desigualdades e extirpar a miséria e a pobreza. Também de modo quase consensual tendia-se a relacionar esses frustrantes resultados aos atributos autoritários do regime, incapaz que foi no passado de equacionar adequadamente as relações entre o desenvolvimento econômico e o social. Neste plano mais político da avaliação ganhou corpo a tese da reforma do sistema de proteção social como um dos pilares tanto da democratização do país quanto da retomada do crescimento econômico. Sob o rótulo do "resgate da dívida social", conformou-se uma especial agenda de reformas na área social do Estado, centrada sobretudo nos princípios que até então haviam estruturado e movido nosso Welfare State.

É possível acompanhar o movimento de reforma social pela seguinte cronologia:

* com a abertura do sistema político, desde o início da década, vão sendo postas em prática iniciativas bastante diversificadas de reordenação de algumas áreas e sub-áreas da ação social principalmente por governos estaduais e municipais de oposisção, eleitos em 82;

* a crise econômica e as várias fases e programas de ajustamento impõem também, e a seu modo, algumas modificações e, principalmente, restrições nos prazos e escopos das propostas e medidas de reforma, no momento mesmo em que severos impactos sociais começam a se fazer sentir;

* com o advento da Nova República, o período 1985-86 assiste a um movimento mais denso de alteração do perfil da proteção social no país, ainda que com resultados bastante modestos;

* a Constituição de 1988 consagrou novos direitos sociais e princípios de organização da política social que, pelo menos no nível das definições, alteraram alguns pilares básicos do padrão anterior de Estado de Bem-Estar no Brasil. Parte ponderável da nova legislação iniciou seu processo de implementação a partir de 1990, movimento que ainda não terminou.

No plano das características estruturais e morfológicas do Estado de Bem-Estar Social, as modificações constitucionais parecem à primeira vista projetar um movimento, um certo deslocamento que vai do modelo meritocrático-particularista em direção ao modelo institucional-redistributivo, isto é, em direção a uma forma mais universalista e igualitária de organização da proteção social no país.

Isto porque, vistas em conjunto, as inovações introduzidas sugerem um adensamento do caráter redistributivista das políticas sociais e uma maior responsabilidade pública na sua regulação, produção e operação. Registremos o sentido geral dessas modificações: a ampliação e extensão dos direitos sociais, a universalização do acesso e a expansão da cobertura, um certo afrouxamento do vínculo contributivo como princípio estruturante do sistema, a concepção de seguridade social como forma mais abrangente de proteção, a recuperação e redefinição de patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais e, enfim, um maior comprometimento do Estado e da sociedade no financiamento de todo o sistema.

No campo dos direitos trabalhistas a proteção ao trabalhador empregado foi ampliada e reforçada por um conjunto de medidas: redução a 6 horas para os turnos de revezamento; pagamento de um adicional de férias (um terço do salário); extensão do FGTS a todos os trabalhadores; ampliação dos direitos do trabalhador doméstico; extensão de 12 a 14 anos da faixa etária para a qual se proibe o trabalho; reforço dos direitos dos funcionários públicos, assegurando-lhes estabilidade após dois anos de contrato, se concursados, e extensão aos inativos dos benefícios concedidos aos ativos, inclusive os índices de aumentos salariais.

Outros direitos sociais foram bastante estendidos. Em relação à educação, houve um adensamento considerável. No tocante ao direito ao ensino básico, este está uma vez mais reafirmado, agora sem que "prescreva" quando se ultrapassa uma faixa etária específica. Em direção à sua efetiva universalização, a Constituição, nas suas disposições transitórias, prevê uma destinação de 50% dos recursos públicos relativos à área para o ensino básico, assim como para a erradicação do analfabetismo, em 10 anos. Está também presente na nova Carta a previsão da extensão gradativa do caráter obrigatório do ensino secundário. Reafirma-se a gratuidade do ensino público em todos os níveis. E finalmente, de modo inovador, a Constituição de 88 afirma ser a creche e a pré-escola um direito da criança (de 0 a 6 anos), a ser garantido como uma faixa do sistema de ensino fundamental.

Mas foi possivelmente no campo da agora denominada Seguridade Social que se processaram as inovações mais fortes. Sob tal conceito foram ampliadas as concepções relativas à previdência, saúde e assistência social: além de se registrar um novo modo de financiamento da área, apoiado em fundo e orçamento únicos, a redefinição dos planos de benefícios e as proposições sobre as formas de organização apontavam inequivocamente para um patamar bastante elevado de universalização do acesso àquelas três áreas.

Os princípios e objetivos da Seguridade Social tais como definidos no texto constitucional são os seguintes: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços à toda a população; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutividade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação do custeio; diversidade da base de financiamento; democratização e descentralização da gestão, com participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.

É fundamentalmente em relação à saúde que o princípio da universalização da cobertura e atendimento mais se diferencia em relação ao passado: garante-se o acesso igualitário a toda a população, o que deverá ser afirmado também pelas futuras proposições em termos organizacionais — a definição de uma rede integrada, descentralizada, regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único nacional e em cada nível de governo — o SUS.

Mas também no referente à assistência social a nova Constituição prescreve um avanço bastante acentuado. Prevista como um direito da população independentemente de constribuições prévias de qualquer natureza, as ações assistenciais são na verdade concebidas à maneira mais contemporânea de definição de renda mínima garantida àqueles que estiverem necessitados, ou cujos rendimentos estiverem em patamar inferior ao um mínimo considerado. Substantivamente, prevê-se aí a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração no mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiências, integrando-as à comunidade. Em termos de renda, é garantido um benefício mensal de um salário mínimo ao idoso que não disponha de meios para sua própria manutenção, assim como para pessoas portadoras de deficiências graves. Em termos organizacionais, também nesta área se preconiza a municipalizações das ações de assistência e a participação da população na formulação e implementação das políticas.

No caso da Previdência Social, naquilo que se refere ao plano de benefícios, sem nenhuma dúvida a igualização entre trabalhadores urbanos e rurais constituiu o passo mais importante na correção das desigualdades anteriores do sistema. Além da reiteração da cobertura aos riscos anteriormente considerados, modificações foram introduzidas de modo a permitir a introdução do critério da seletividade para a maior proteção aos segurados de baixa renda e seus dependentes (salário-família); reforço da proteção à maternidade (extensão para 120 dias da licença gestante) e introdução da licença ao pai (quando do nascimento de filhos); a proteção ao desempregado involuntário. No que se refere aos valores dos benefícios houve uma forte alteração, seja porque foram vinculados ao Piso Nacional de Salários, seja porque foram alterados os critérios de concessão e cálculo, no sentido da ampliação dos valores e garantia de sua manutenção. No tocante às aposentadorias, não houve modificação substancial que alterasse suas desigualdades: foram reafirmadas a aposentadoria por tempo de serviço e as aposentadorias especiais, incluindo as dos funcionários públicos.

Em termos da organização das políticas, os princípios preponderantes, tanto nas propostas quanto nas práticas dos governos foram: a descentralização, com sua forte vertente de municipalização e, eventualmente, de "prefeiturização"; a integração dos serviços e benefícios sociais face a clientelas dadas; a participação popular nos processos de decisão, implementação e controle dos programas sociais. Finalmente, uma concepção alternativa de produzir, organizar e distribuir bens e serviços sociais, contemplando várias dimensões: a desburocratização e a desinstitucionalização da ação estatal, a busca de relações custo-efetividade melhores que as vigentes (isto é, mais baratas), a incorporação de associações comunitárias na distribuição e operação dos serviços etc.

Finalmente, no que se refere ao financimento, estabelece-se que a seguridade social (saúde, previdência e assistência) se apoie numa composição de receitas fiscais (constantes dos orçamentos dos três níveis de governo) e nos recursos oriundos das contribuições sociais e receitas de concursos de prognósticos, compondo fundo e orçamento únicos.

A implementação destas medidas e decisões ficou quase que totalmente comprometida com a aceleração da crise econômica, após o fracasso da gestão Collor. Com exceção dos direitos trabalhistas e da previdência social, que vem apresentando resultados satisfatórios na implementação das novas medidas, todas as outras estão estagnadas, afetadas pelas brutais restrições financeiras do setor público. O caso mais dramático é o da Saúde, hoje praticamente desfinanciada. Apenas como exemplo registre-se que o gasto com saúde, que em 1987 alcançava cerca de US$ 80 per capita, baixa a US$21 em 1993.

Mas foram principalmente os programas nas áreas que afetariam mais diretamente as condições de vida dos segementos pobres da população, fora do mercado formal de trabalho, que não foram implementados ou que tiveram seus programas paralisados.' A grande exceção é o SUS: afinal, com todas as dificuldades que enfrenta — dada a má solução que se deu ao financiamento da saúde — tem havido inegável extensão da cobertura. Também é certo que o novo Estatuto da Criança e do Adolescente teve sua implementação iniciada. Mas a Lei Orgânica da Assistência Social, que daria formatos mais concretos àqueles generosos direitos definidos na Carta Constitucional não foi aprovada até hoje. Tampouco procedeu-se à municipalização dos recursos e organismos prestadores da assistência. Finalmente, entre os anos 90 e 93, paralizaram-se programas federais vitais para as camadas pobres. Dos oito ou dez programas de alimentação dos anos 80 só restou a merenda escolar e, ainda assim, sem recursos garantidos.

Parece, então, bastante negativo o balanço desses dez ou mais anos de reformas sociais no Brasil. Além de negativo, é esse um balanço difícil, que assim poderia ser expresso:

Ao se processar a agenda democrática de reformas dos programas sociais, deparamo-nos com essa situação desconcertante: o sistema brasileiro está assentado sobre um conjunto de definições e princípios bem mais generosos que aqueles vigentes até os anos 80, mas bastante defasados e distantes da efetiva proteção, mais frágil e cada vez menos capaz de enfrentar a situação social crescentemente agravada pela crise econômica. Mais ainda, a população pobre e miserável adentra os anos 90 desprovida até mesmo dos programas assistenciais com que contava, mesmo que precariamente, nos anos 80.

Mais à frente trataremos de rastrear as razões mais profundas que podem explicar, em parte, esse fracasso.

O caso chileno

O Chile, por sua vez, constitui no panorama latino-americano, e ao longo dos processos de crise e ajustamento, o único caso de radical alteração do seu padrão histórico de intervenção pública no social. Nos termos que vimos utilizando neste trabalho, o Estado de Bem-Estar chileno, em trânsito de um tipo meritocrático-particularista a um modelos misto, com conteúdos institucionais-redistributivistas, foi interrompido na década dos 70 e um novo modelo de intervenção foi erigido. Menos do que reconstituir todos os passos das reformas efetuadas em cada área social nosso objetivo é o de sublinhar a direção em que se deram, assim como seus principais resultados, após aproximadamente quinze anos da experiência reformista.

Cabe lembrar, ainda que rapidamente, que a economia chilena entre 1974 e 1988, foi marcada por instabilidade e um relativamente baixo crescimento do produto, apresentando em média uma taxa de 2,6% anuais. A estratégia de ajustamento foi acompanhada por um substancial aumento da desigualdade distributiva: as altas taxas de desemprego (18% em média até 90) e os baixos salários, com impactos mais fortes sobre os estratos mais pobres, resultam em aumento do coeficiente de Gini de 0,50 em 1970 a 0,55 em 1984. Nunca será demasiado relembrar a crueldade social do ajustamento chileno, que jogou na indigência e na pobreza mais da metade dos lares dos seus cidadãos: segundo Raczynski em 1987 a porcentagem de domicílios indigentes era de 13% e a de pobres, 38% .

As reformas sociais que acompanharam o conjunto de reformas estruturais do ajuste chileno afetaram praticamente todas as áreas de ação estatal e obedeceram aos seguintes princípios: subsidiariedade do Estado; focalização do gasto social; subsídio direto à demanda; descentralização dos serviços públicos. Raczynski e Cominetti indicam os principais conteúdos dessas reformas:

a) Descentralização da gestão pública, municipalização da saúde e da educação. A partir da Reforma Administrativa de 75 e da regionalização do país, as competências municipais foram reforçadas, principalmente na área social (Lei municipal de 75 e lei de Ingresos Municipales de 79). Passaram a estar sob sua responsabilidade o planejamento do desenvolvimento local, incluindo a realização de diagnósticos sociais, a administração da "rede social", a gestão de estabelecimentos de educação e saúde, a formulação de projetos sociais específicos da área.

No setor de saúde dois movimentos descentralizaram a função executiva do antigo Sistema Nacional de Saúde, SNS. Em primeiro lugar, um novo Sistema Nacional de Serviços de Saúde (SNSS) resultou da divisão do SNS em 27 unidades gozando de autonomia operacional, às quais se juntou o serviço de meio-ambiente. Por outro lado, procedeu-se à municipalização do sistema primário, através da transferência, do SNS aos municípios, de estabelecimentos primários, equipamentos e pessoal de consultórios urbanos e de consultórios, postos e centros médicos rurais. A responsabilidade por cuidados secundários e terciarios ficou a cargo dos serviços regionais do SNSS.

Para financiar suas novas responsabilidades, instituiu-se um sistema de financiamento que, a partir do Fundo Nacional de Saúde (FONASA), reembolsa a municipalidade pelos serviços que presta, com base em uma lista de preços pré-estabelecidos (sistema FAP/FAPEM). O pessoal municipalizado passou a estar submetido às leis trabalhistas do setor privado, embora sem direito a greves e à negociação coletiva.

A municipalização da educação primária e secundária significou a descentralização da função executiva do Ministério da Educação, com a transferência, para as municipalidades, das construções, equipamentos e pessoal empregado nas escolas públicas. O município assume com plena autonomia a administração das escolas, o Ministério comprometendo-se a pagar um subsídio baseado na matrícula e freqüência de cada estudante. Na gestão das escolas, os municípios podiam criar um departamento próprio (opção da maioria) ou uma corporação privada de desenvolvimento social, presidida pelo Prefeito. Em relação aos professores, abriu-se a opção de receberem segundo a escala do setor público ou de se adotar o sistema privado de negociação salarial, escolha esta que encontrou forte resistência.

Apesar das dificuldades de avaliação, a descentralização em ambos os setores parece ter resultado na extensão dos cuidados de saúde à maioria da população17 17 Médici, A., Oliveira, F. B. e Beltrão, K. "O sistema de saúde chileno: mitos e realidades". Rio de Janeiro, 1992, mimeo, assinalam, para os anos 83/84, uma expansão de 45% na capacidade insulada para o atendimento primário e de 75% nos consultórios odontológicos. Registram também o desembolso de recursos adicionais por parte dos municípios, um dos objetivos da reforma. , assim como, no caso da educação, numa maior fluidez de decisões. No caso da saúde, além de grandes disparidades regionais e locais que foram acentuadas pela descentralização, registram-se problemas no sistema de referência (níveis secundário e terciário), assim como na qualidade dos recursos humanos e nas suas condições de trabalho. No caso da municipalização da educação, seu difícil processo envolveu aumento do gasto fiscal (até 1981); redução da jornada escolar; deterioração das condições de trabalho dos professores e um ainda indesejável grau de centralização, dada a relação direta entre as municipalidades e o Ministério.

b) Privatização da gestão pública em saúde, seguridade social e educação. São conhecidas as medidas que, na reesturação do sistema de seguridade, privatizaram seu segmento de seguros. Alterando-se para um sistema de capitalização individual, sua administração é realizada por 14 instituições privadas de seguros, as Administradoras de Fondos de Pensiones (APF). As cotizações do trabalhador (10% do salário de referência) são obrigatórias e o empregador não contribui. O Estado, além de funções de regulamentação e fiscalização, contribui com recursos para pagamento de bonos aos trabalhadores que preferiram permanecer no antigo regime e para garantir uma pensão mínima a idosos carentes. O novo sistema oferece os benefícios de pensão por idade e pensões de invalidez ou sobrevida, estas financiadas por um seguro coletivo também de capitalização.

Do ponto de vista financeiro o desempenho das APF foi positivo, mobilizando recursos da ordem de 26% do PIB. A reforma teve, para o Estado, um alto custo fiscal, provocando um déficit de cerca de 7,5% do PIB (1982), custos da transição de um regime ao outro que vem implicando uma significativa transferência de recusos públicos ao setor de previdência. Do ponto de vista da cobertura do sistema, sua tendência foi ascendente nos anos 80, ainda que haja discrepância nos números disponíveis. Raczynski e Cominetti registram um nível de cobertura da população ocupada de cerca de 55% entre 1983 e 1990; Iglésias & Acuña18 18 Iglesias, A. e Acuña, R.. "Chile: Experiência con un régimen de capitalizatión, 1981-1991". Santiago, CEPAL/PNUD, 1991. mostram um crescimento na relação afiliados/força de trabalho de 56,8% em 1985 a 79,1% em 1990.

A reforma, em relação ao sistema anterior, significou uma forte homogeneização e uniformização de normas, requisitos e prestações, embora registre perda do poder de compra das pensões. Significou a eliminação das diferenças entre "obreros" e "empleados"; mas o grau de exclusão dos trabalhadores do mercado informal é ainda alto, apesar de que o sistema suponha programas assistenciais progressivos, quais sejam, o subsídio único familiar, a pensão assistencial e o subsídio ao desemprego. Segundo Raczynski e Cominetti "estes subsídios atingiram uma porcentagem importante da população de menores rendas, compensando as perdas de benefícios presidenciários de uma parte da população e incorporando alguns benefícios a setores da população que nunca haviam tido acesso aos benefícios da previdência social".

Na área da sáude o estímulo à maior participação do setor privado deu-se tanto pela introdução, em 1980, de planos de saúde pré-pagos, oferecidos por Instituciones de Salud Previsional (ISAPRES) quanto pela reestruturação do SERMENA, que se desdobrou no SNSS e no FONASA.

A contribuição obrigatória para o seguro saúde, é de 7% sobre as remunerações. Com contribuições adicionais, os que desejam ter acesso a planos melhores filiam-se às ISAPRES, que reembolsa parcialmente os gastos e compensa em 100% os salários perdidos por enfermidade ou invalidez. As ISAPRES cobrem hoje 12% da população, em geral constituídos por grupos de maiores ingressos (as ISAPRES arrecadam mais da metade das cotizações previsionais obrigatórias para a saúde). O antigo SERMENA foi substituído pelo FONASA, ao qual toda a população tem acesso, optando pela atenção de saúde pública do SNSS ou pelo sistema de livre eleição (pagando preços estabelecidos segundo um dos quatro níveis aos quais o prestador do serviço se vincula).

A heterogeneidade da atenção médica é bastante acentuada, tendo melhorado a qualidade do atendimento para os segmentos médios que buscam os sistemas de livre escolha, enquanto o setor gratuito, público e municipalizado — cuja cobertura aumentou de 68 a 75% de todos os usuários do sistema estatal — reflete as restrições financeiras derivadas do recorte do gasto em saúde.

Na área da educação a privatização se traduziu em estímulos à provisão privada de serviços educacionais em todos os níveis de ensino, em troca de subvenções públicas. Os critérios para a subvenção estão relacionados com o custo da educação e a freqüência estudantil, e se fazem igualmente para o setor público ou privado. Estes estímulos determinaram mudanças na composição das matrículas. Em 1980, a matrícula básica pública era de 79%, a particular subvencionada de 14% e a particular paga de 7%.

c) Focalização do gasto em programas sociais, de modo a elevar a progressividade do gasto social e apoiado por instrumentos de identificação fina das famílias e indivíduos carentes, assim como de suas necessidades. Dessa forma, o Chile experimentou importantes avanços na focalização do gasto em saúde, habitação e subsídios monetários, criando a chamada rede de seguridade social. Rapidamente podemos lembrar, com Raczynki e Cominetti, os principais conteúdos da focalização. Na saúde, tratou-se de concentrar a atenção primária nos serviços materno-infantis e o fortalecimento da infraestrutura rural de saúde pública primária. Na habitação, a política concentrou-se na população urbana em extrema pobreza, no saneamento básico e na melhoria progressiva dos critérios de alocação de subsídios. No campo dos subsídios monetários foram instituídos o Programa de Pensões Assistenciais (PASIS) dirigido aos idosos e menores marginalizados dos benefícios previdenciários; o Subsídio Único Familiar (SUF) destinado a compensar perdas de benefícios familiares da previdência; programa de emprego de emergência. Segundo Raczynski e Cominetti esses subsídios cobriram uma porcentagem importante da população pobre, permitindo incrementar o nível de renda do decil inferior e compensando as perdas de emprego, renda e benefícios previdenciários.

As reformas da área social levadas a cabo pelo regime militar produziram alterações significativas no padrão anterior. Segundo Raczynski e Cominetti, o antigo Estado Providência, centralizado na sua gestão, apoiado em patamar alto de gasto social com ênfase na ampliação das coberturas e com a universalidade dos programas, foi substituído pelo papel subsidiário reservado ao Estado, descentralizado quanto à execução dos programas, apoiado em patamar baixo de gasto social, com ênfase em programas assistenciais e focalizados. Como já afirmamos, em termos da tipologia que usamos, o Chile fez um movimento em direção ao modelo residual ou liberal, ainda que algumas especificidades devam ser registradas.

Em primeiro lugar, a forte ênfase nos programas emrgenciais e destinados à população pobre, praticamente toda coberta pelos programas mínimos da rede social. Em segundo lugar, ainda que estimulando a participação de associações voluntárias e não-governamentais, a assistência social se faz em redes municipais públicas, que contam com profissionais competentes e permanentes. Também a privatização da saúde atingiu uma pequena proporção de população de alta renda: praticamente, se financia em 90% com recursos públicos e atende a 90% da população em geral. Finalmente, as redes municipais públicas de educação pré-primária e básica são predominantes. Ora, estas qualificações dão um caráter bem particular ao modelo chileno de serviços sociais dirigidos as camadas pobres: a forte presença do Estado nas áreas básicas e na atenção às camadas pobres, contando com funcionários especializados e programas permanentes. Sem dúvida a queda do gasto social durante os anos de ajustamento foi responsável pela deterioração desses serviços públicos reformados e pelo aviltamento dos salários dos profissionais que operam as áreas sociais.

Mas, possivelmente por essas particularidades, parece que a reforma veio para ficar, mesmo com a volta à democracia. No que se refere à proteção aos segmentos pobres é quase consensual o reconhecimento da progressividade e efetividade da focalização19 19 Vergara, P. Políticas Hacia Ia Extrema Pobreza en Chile: 1973-1988. Santiago, FLACSO, 1990. . Estima-se que o conjunto de benefícios outorgados pelo Estado represente para o decil inferior a duplicação da renda que este setor é capaz de gerar autônomamente. Os problemas que em geral são assinalados dizem respeito a grupos excluídos do foco, por exemplo o segmento de rendas médias ou o grupo etário dos jovens de famílias pobres e médias; a passividade e dependência da população beneficiária; a incidência de mecanismos e critérios clientelistas e, finalmente, a permanência de disparidades regionais, particularmente no caso da saúde.

Estes e outros problemas de equidade constituíram o desafio que o governo civil vem tratando de equacionar, especialmente os relacionados com a distribução de renda e as brechas sociais — velhas e novas — que permanecem na sociedade chilena. São, entretanto, propostas corretivas do novo modelo instaurado pelas reformas dos 70/80, muito mais que a pretensão de restauração do padrão anterior.

Quão democrática foi a nossa reforma?

As razões tanto do sucesso quanto dos fracassos da reforma social chilena têm sido muito debatidas, até porque para os setores progressistas da América Latina foram tomadas como modelo do que não se devia fazer, se se quisesse trilhar um caminho mais progressista e democrático de reordenamento do Estado Social. Não vamos reproduzi-las aqui20 20 Tavares, Maria C. "Las políticas de ajuste de Brasil: los limites de la resistência". Washington, BID, 1992, mimeo. . Queremos, sim, começar a entender o fracasso das nossas reformas, essas que se opuseram ao modelo chileno e que, optanto pelo universalismo redistributivista, afastaram a focalização e a seletividade como parâmetros de organização e direcionamento do gasto social.

Afinal, o processamento daquela que poderíamos chamar a agenda de reformas da transição política brasileira poucos resultados produziu na efetiva modificação dos pilares e princípios do sistema de proteção social, principalmente nas suas formas de operação e no impacto das políticas sobre as condições sociais da população. Dessa forma, simultaneamente ao agravamento da situação econômica, o país não se armou, no plano institucional, daqueles instrumentos que lhe teriam permitido êxito numa positiva articulação entre estabilização econômica, transformação produtiva com elevação dos patamares de competitividade, reorganização do Estado, menor desigualdade e maior justiça social — ingredientes mínimos da combinação, nos nossos tempos e nas nossas condições, de modernização e democracia. Os anos 80 ficaram conhecidos, afinal, como os da "década perdida" e foram referidos recentemente (PNUD.1990) como "década das oportunidades perdidas para o desenvolvimento humano".

Parece-nos pertinente que a compreensão do movimento de reformas sociais dos anos 80 seja examinado à luz de pelo menos três conjuntos de fatores cujos efeitos, bastante associados, nem sempre se deram com o mesmo sentido e sinal. Estamos nos referindo ao ajuste passivo da economia, aos seus impactos nas condições de vida da população e à natureza conservadora da transição democrática, com seus fortes conteúdos clientelistas e corporativos.

a) O ajuste

O fraco desempenho econômico do país nos anos 80 confirma-se pelo comportamento do PIB: em 1989, foi apenas 22% superior ao de 1980, crescendo a uma taxa média de 1,7% ao ano, praticamente estagnado em termos per capita21 21 Bonelli, R. e Landau. "Do ajuste à abertura: a economia brasileira em transição para os anos 90". Rio de Janeiro, PUC, 1990, mimeo. , muito distante, portanto, do patamar histórico de 7%.

Foi também oscilante este medíocre crescimento. Esgotado o padrão de "crescimento com endividamento" adotado na década anterior e vigente até o segundo choque do petróleo, o país vive um forte período recessivo entre fins de 1980 e o segundo semestre de 1984. O ano de 85 segue a tendência de recuperação baseada no dinamismo das exportações e em 86 a economia se aquece, quase caracterizando um "boom"; 87 e 88 registram nova retração; novo pico se manifesta em 89 e, a partir daí, o país ingressa em crescente recessão. Todo o período foi marcado por altas taxas de inflação, debeladas por curtos prazos pelos planos de estabilização que se sucederam de 86 a 90. Desde os dois últimos anos dos 80, as taxas inflacionárias tornaram-se explosivas, numa situação de hiperinflação contida.

A oscilação das taxas de crescimento não esconde, entretanto, a contínua tendência à estagnação, demonstrada, entre outras, pela forte queda da taxa de investimentos: de 22,9% do PIB em 80, cai a 17,6% em 1989.

Os efeitos negativos desses anos de crise, inflação e estagnação sobre o mercado de trabalho e sobre as condições de vida da população foram muito acentuados, como se indicará mais à frente. Aqui é importante registrar, desde logo, que tão sérios quanto os sociais foram os efeitos negativos sobre a qualidade do parque produtivo e do próprio setor público: de fato, como muitos estudos vêm mostrando, foi crescente a obsolescência e a defasagem tecnológica do parque industrial brasileiro22 22 Coutinho, L. "A reforma do Estado". 1990, mimeo. , assim como foi praticamente irreversível a deterioração das atividades do setor público, minados que foram seus recursos e instrumentos de política e de ação.

Em grande medida o baixo ritmo de crescimento e o atraso tecnológico resultaram da crise da dívida (e da progressiva restrição de crédito externo) assim como da crise fiscal e da incapacidade de, através de programas pragmáticos, ortodoxos ou heterodoxos, estabilizar-se a economia. Mas sem dúvida, decorreram também da forma pela qual a política econômica tratou de enfrentar aqueles problemas, o que tem que ver com a natureza e a lógica do ajuste exportador do início da década, mas também com a lógica da abertura política, na etapa final do regime militar.

De fato, entre 80 e 84 o país cumpre uma etapa inicial de ajuste externo e fiscal23 23 Damill e Fanelli e Frenkel. "Shok externo y desequilíbrio fiscal. La macroeconomia de los 80 - Brasil", Buenos Aires, CEDES, 1991, mimeo. ; entre 80 e 82 efetua a chamada "política do ajustamento voluntário", na expressão de Arruda Sampaio24 24 Arruda Sampaio, P. (coord) "Características e conseqüências da estratégia de ajustamento voluntário de 1981-1982", relatório de pesquisa sobre "Ajustamento e Estabilização no Brasil nos anos 80", São Paulo, CEBRAP, 1990. ; e entre 83 e 84 continua o ajustamento, agora sob a supervisão formal do Fundo Monetário Internacional. Não nos cabe, aqui, examinar o conteúdo das políticas econômicas adotadas. Importante, para os fins que nos propomos, é sublinhar a lógica desse tipo de ajustamento e algumas de suas conseqüências, nos desdobramentos que sobrevieram ao longo da década.

Cardoso de Mello25 25 Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder", op. cit. indica as bases do ajuste recessivo:

* contração da demanda interna (corte de gastos, elevação dos juros, queda dos salários, visando gerar saldos exportáveis e servir à dívida externa);

* promoção do ajuste privado: as grandes empresas voltam-se para as exportações; racionalizam a produção e aproveitam-se das condições propícias e de seu poder de mercado para elevar suas margens de lucro, elevando seu grau de liquidez, sustentando sua rentabilidade corrente e recompondo sua estrutura patrimonial — tanto do lado ativo quanto do passivo.

* os investimentos privados praticamente se reduzem ao investimento de modernização, visando aumentar a produtividade e apenas marginalmente a oferta. O investimento público sofre cortes profundos.

Almeida e Belluzzo e Biasotto26 26 Almeida, J., Belluzzo, L. G. e Biasotto, G. "Endividamento e crise da economia brasileira nos anos 90". Campinas, IE/UNICAMP, 1991, mimeo. já insistiram no fato de que tal tipo de ajustamento privado, sob a lógica da recessão, tem o caráter da preservação da riqueza existente, que vai assumindo a forma predominantemente financeira, com a "oligarquização" do grande empresariado e a perda da capacidade dinâmica do regime econômico em operar transformações produtivas de envergadura.

Por outro lado, o "ajuste exportador" e a preservação ampla da solvência do setor privado não se fariam sem uma forte ação compensatória do Estado: concessão de incentivos e subsídios; assunção pelo Estado, de forma crescente, do passivo dolarizado das empresas; expansão da dívida pública, lastreando assim o crescimento das aplicações financeiras; represamento das tarifas públicas, criando condições favoráveis de rentabilidade ao setor privado; finalmente, embora de modo indireto, a queda da arrecadação fiscal, tanto pela transferência do dinamismo ao setor exportador quanto pela aceleração inflacionária, reforçando o processo de ajuste privado, mas significando um pesado ônus ao setor público. Em texto mais recente27 27 Cardoso de Mello, J. M. "Conseqüências do Neoliberalismo". Economia e Sociedade. IE/ UNICAMP,n.o 1,1992. Cardoso de Mello retrata assim a natureza do ajuste exportador: "O 'ajustamento' aos novos termos foi deliberadamente promovido pela política econômica que: 1) provocou um queda do salário real; 2) permitiu ao setor privado transferir para o Estado sua dívida externa; 3) promoveu fortes desvalorizações cambiais; 4) aceitou a subida das margens de lucro; 5) elevou as taxas de juros. A grande empresa, estimulada pelo câmbio e coagida pela recessão, aumentou rapidamente as exportações, defendeu seu patrimônio e sua rentabilidade real, livrou-se da dívida bancária e acumulou grandes excedentes financeiros, valorizados a altas taxas de juros. A contrapartida, como se sabe, foi o extraordinário agravamento da situação financeira do Estado. Por três razões básicas : 1) pelos efeitos das desvalorizações cambiais sobre a dívida externa; 2) pelas conseqüências da recessão e da aceleração da inflação sobre a arrecadação fiscal e sobre as receitas das empresas estatais; 3) pelo impacto das altas taxas de juros sobre a dívida mobiliária e bancária."

Seguramente, a lógica desse tipo de ajustamento, que redundou num progressivo desmantelamento do Estado, estava associada aos mecanismos políticos de preservação da base de interesses e do mínimo de "solidariedade" que presidiram a abertura política e a transição democrática: os mecanismos corporativistas, patrimonialistas e privatistas, com a conseqüente e progressiva paralisia da política econômica.

Mecanismos próprios, como afirmou Cardoso de Mello, de uma transição conservadora que fincou suas raízes na estratégia dos militares (Geisel-Golberi) de "mudar o regime para preservar o poder". Estreita estratégia de liberalização que, ao se ampliar nas condições da crise do regime (sucessão de Figueiredo) não extravasa entretanto seus limites conservadores, manifestos no caráter conciliador dos compromissos do candidato Tancredo com os "revolucionários moderados": a manutenção do papel tutelar das Forças Armadas e o compromisso em não tocar na sua organização; a manutenção da política de comunicação de massas e da legislação de controle das classes subalternas (lei de Greve, Lei de Segurança etc) e, enfim, a condução ortodoxa da economia — esses pilares traduziam o caráter conservador da Aliança Democrática.

Provavelmente a morte de Tancredo permitiu uma ampliação da aliança original, abrindo espaço para que setores mais "radicais" das oposições (os "autênticos" do PMDE, por exemplo) integrassem o governo e obtivessem o controle sobre áreas de decisão da política econômica e social, introduzindo heterodoxia onde o compromisso anterior apenas previa ortodoxia; buscando retomar políticas desenvolvimentistas, ali onde antes apenas se propunha recessão. A natureza conciliadora e conservadora do núcleo central da nova elite dirigente volta a se refirmar em 88 e 89, seguramente sem que o governo Sarney se sentisse prisioneiro dos compromissos originais da Conciliação, mas certamente demonstrando cabalmente que o processo de transição brasileiro não contara com uma coalização reformista com capacidade e resistência, no tempo, para efetivamente dirigi-lo.

Por isso mesmo a mudança do regime e o inegável avanço da democracia política não se constituíram em mecanismos eficazes para minorar os efeitos sociais perversos da instabilidade e crise econômica e menos ainda para evitar a acelerada decomposição daquele Estado em crise.

No plano social, os efeitos da paralisia do Estado e dos fracasssos dos diferentes planos de estabilização se fizeram sentir com força, num momento em que o Estado perdia capacidade para pelo menos compensar aqueles impactos. Alguns indicadores sociais mostram com clareza o aumento da pobreza e a piora nas condições de vida da massa da população.

b) Os efeitos

Não dispomos ainda de todas as informações quantitativas necessárias, mas já sabemos que não apenas degradaram-se as condições sociais de vida da população brasileira como, pela primeira vez desde os anos 50, houve aumento da pobreza, revertendo uma tendência de melhora que até então vinha se verificando.

O país apresentou piora da distribuição da renda, o índice de Gini saltando de 0,572 para 0,652 entre 1981 e 1989.

No que respeita ao mercado de trabalho, sabe-se que as taxas de desemprego seguiram mais ou menos o comportamento da economia, mostrando-se muito altas em 83, baixando razoavelmente em 86, mas subindo aceleradamente em 91 e 92. Por sua vez, o crescimento do emprego foi muito baixo na década passada, cerca de 1,3% ao ano, devendo-se a geração das oportunidades ocupacionais principalmente ao setor público e muito pouco ao setor privado organizado (0,3% ao ano). Estes comportamentos, em conjunto, revelam um tipo de ajuste pelo lado do mercado de trabalho coerente com o padrão recessivo que foi assinalado.

Um retrato, no tempo, do mercado de trabalho pode ser visto pelos dados referentes a 1988: de uma população de cerca de 141,3 milhões, 76% (107,4 mi) correspondiam a pessoas em idade ativa (PIA), 43,2% a pessoas economicamente ativas (PEA) e 41,5% a pessoas economicamente ocupadas (PEO). Neste mesmo ano, 49,3% das pessoas economicamente ocupadas (PEO) não contribuíam para com a previdência social. Estimava-se para 1988 que 57,9% das pessoas economicamente ocupadas integravam o mercado informal de trabalho, contra 42,1% que estariam integrando o mercado formal. Neste contingente, está incluída pequena proporção de pessoas que são contribuintes do sistema previdenciário.

No final da década de 80, 48,6% da força de trabalho ganhavam até dois salários mínimos e 27,2% da população ocupada recebiam 1 salário mínimo. Para se ter uma idéia dos baixos valores salariais e da crescente concentração da riqueza, vale assinalar o comportamento da participação da massa salarial na renda interna total: cai de 40,79% em 1970 a 37,9% em 1980 e em 1989 estava estimada em 30%. Não dispomos de séries confiáveis de salários, principalmente relativas à década de 80, mas algumas estimativas indicam uma queda real do salário mínimo — historicamente muito baixo, oscilando em tomo a US$50 — da ordem de 40%.

O quadro social do país ganha dramaticidade quando examinado sob o ângulo da pobreza e da miséria tanto nas suas dimensões mais estruturais e rígidas (quando associadas a diferenças étnicas, regionais, ocupacionais etc) quanto nas referentes às modificações das proporções das camadas pobres e miseráveis segundo os ciclos econômicos.

O Brasil ingressa nos anos 90 com cerca de um terço da sua população em estado de pobreza. Desse conjunto metade é rural, metade urbana. A pobreza rural concentra-se sobretudo na região nordeste, e a urbana nas periferias das metrópoles e grandes cidades. O Mapa da Fome recentemente produzido pelo IPEA fala de 9 milhões de famílias ou 32 milhões de pessoas qualificadas como indigentes.

Durante toda a década, com exceção do ano de 86, há um aumento da incidência da pobreza, num movimento que seguiu o da economia: em 80, atinge 18% das famílias; em 83, a 31%; em 88, a 26%. Para Valle Silva, "dada a associação do ciclo econômico e o atual aprofundamento da recessão, pode-se estimar que a incidência da pobreza, hoje, está próxima ou mesmo supera os 31% observados em 1983"28 28 Valle e Silva, N. "A situação social no fim da 'década perdida'". Rio de Janeiro, IUPERJ, Cadernos de Conjuntura, n.o 44,1991. .

Brandão Lopes29 29 Brandão Lopes, J. R. "Brasil, 1989: um estudo sócio-econômico da indigência e pobreza urbanas". NEPP/UNICAMP, 1991, mimeo. mostra que a proporção de pobres no Brasil, que decrescera nos anos 60 e 70, aumenta no início dos anos 80 com a recessão, atingindo em 1983 o nível de 1960, ou seja 41,9% da população. Decresce a 28,4% em 1986, com a recuperação e o Plano Cruzado, e volta a crescer nos anos finais da década a 39,3%.

Na identificação mais fina das características dos pobres urbanos, o estudo citado indica que, em 1989, 8,6 milhões de domicílios (um terço do total) e 41,6 milhões de pessoas (cerca de 40% do total da população urbana) são constituídos por pessoas pobres. Vivem nestes domicílios 52% das crianças de 0 a 3 anos, com chefes negros ou pardos, em proporção maior que a média nacional. Localizam-se majoritariamente nas regiões de menor desenvolvimento econômico do país, Norte, Centro-Oeste e Nordeste: enquanto no Sul e no Sudeste as probabilidades de ser pobre são respectivamente 22 e 28%, no Nordeste e no Norte/Centro-Oeste são respectivamente 54 e 44%.

Em termos de estrutura familiar, os domicílios pobres são mais freqüentemente constituídos por casais jovens com filhos, por idosos sós, por famílias múltiplas e sobretudo por mulheres (jovens ou de meia idade) sem cônjuge e com filhos. O autor chama a atenção ainda para as informações que mostram, entre os idosos pobres, ausência de aposentadorias ou acesso a pensões de valores irrisórios. Situação que se relaciona com outra das evidências importantes do estudo, qual seja a de que "a principal diferença entre estar abaixo da linha de pobreza ou não, é poder ou não continuar trabalhando, conseguir emprego ou não depois de aposentado, sendo esta possibilidade menor para os pobres".

Examinando a seguir as características das pessoas dos domicílios, principalmente as dos seus chefes, que condicionam a situação de pobreza, Brandão Lopes sublinha:

* a estrutura sexo-idade desfavorável: nos domicílios pobres há um número maior de pessoas em idade não-produtiva (0 a 17 anos e 60 anos e mais) em relação a pessoas em idade produtiva, o que aumenta os encargos das pessoas que trabalham; um peso maior nos domicílios pobres de mulheres chefes de domicílio;

* a baixa capacitação de seus membros: mais de dois terços dos chefes de domicílios indigentes e mais da metade dos de domicílios pobres não-indigentes são ou analfabetos ou têm uma base escolar muito precária;

* uma alta proporção de ocupações agrícolas entre os chefes pobres que vivem nas zonas urbanas das regiões mais desenvolvidas;

* precariedade do emprego e desemprego: um em cada dois chefes pobres que são empregados não têm carteira assinada, contra pouco mais de um quarto total dos domicílios urbanos; alta proporção de desempregados: considerando a média de desempregados por domicílios, o valor para os domicílios pobres indigentes e quase três vezes e meia (e para os pobres não indigentes bem mais de duas vezes) a média para os domicílios não-pobres.

* concentração regional da pobreza: além de a grande região Centro-Norte (Norte, Centro-Oeste e Nordeste) concentrar maior número de domicílios pobres, concentra também desfavoráveis condições etárias, particularmente no tocante a crianças: duas de cada três crianças urbanas da Grande Região Centro-Norte são pobres. "Na grande região mais atrasada do país, tendo menos de um terço dos domicílios urbanos totais do país e 54% dos domicílios indigentes, estão quase três de cada cinco crianças indigentes do Brasil urbano total".

Na década da democratização e das reformas sociais, quais os esforços realizados pelo país para acudir, ainda que assistencialmente, esta população pobre, vítima primeira da instabilidade, da crise e da sua gestão ortodoxa?

c) As medidas oficiais

Alguns diagnósticos negativos da política social e tentativas de modificações foram timidamente levadas a cabo, principalmente nos primeiros anos dos 80. De fato, a crise econômica expunha rapidamente o déficit social acumulado, elevando mesmo as demandas e suas manifestações agressivas. Por outro lado, abalava as bases do financiamento do gasto social: este cai acentuadamente e, em toda a década, o ano de 1983 é o que apresenta os piores desempenhos. Apenas em 1989 o gasto social vai recuperar o patamar de 1981. Mas as ações concretas que poderiam compensar ou minimizar tal queda ou atuar mais decicisavamente para atender as necessidades mais urgentes da população foram, na verdade, muito modestas.

Apenas três medidas de conteúdo social com algum sentido compensatório podem ser creditadas às autoridades federais, nos primeiros anos dos 80, durante o ajuste externo:

* criação do FINSOCIAL (Fundo para o Investimento Social) em maio de 1982, fundo que, nos seus momentos melhores, significou um volume de recursos em torno a 1% do PIB. Registre-se que do ponto de vista de efetivamente ampliar recursos para a área social, particularmente para programas compensatórios, os resultados desse Fundo foram modestos, até mesmo porque, na saúde e na educação, seus recursos foram utilizados para substituir recursos fiscais. Também em 82 foram elevadas as alíquotas de contribuição à Previdência Social, objetivando cobrir os déficits que vinha apresentando.

* em 1984, o governo federal cria um subsídio para os mutuários do Sistema Federal de Habitação, ao atrelar a indexação dos valores mensais de pagamento da dívida hipotecária aos indices de reajuste salarial, e não mais segundo as taxas de inflação (outorgou também um desconto explícito durante doze meses). Tal benefício foi de caráter geral, não especialmente dirigido aos mutuários de baixa renda, o que significou de fato subsidiar principalmente setores médios, com resultados regressivos no seu impacto distributive.

* a terceira medida com algum conteúdo social foi a introdução do controle de aluguéis30 30 Macedo, R. "La infância en Brasil y la crisis económica: situación del Estado de São Paulo" in Comia, A., Jolly, R. e Stewart, F. Ajuste con Rosto Humano. México, Siglo XXI, 1987. .

No que se refere a medidas relacionadas ao emprego, além de carecer sempre de políticas ativas de emprego ou qualquer coisa semelhante a programas de emprego mínimo, um programa de seguro-desemprego, bem modesto, foi criado em 86 e ampliado pela Constituição de 88. Merecem registro as Frentes de Trabalho criadas no Nordeste nesse período. Ainda que concebidas para responder ao problema da seca, não deixaram de ter algum significado como alternativa de emprego emergencial, ou emprego mínimo pelo menos para os desempregados da região (envolvendo aproximadamente 2 milhões de frentistas), retendo-os aí num período de forte recessão e desemprego no sudeste e sul.

Já no novo ambiente político do período 85/86, e de acordo com a estratégia, anteriormente definida, da agenda de reformas da transição, altera-se também a ênfase sobre os timings e modos de tratar a questão social. Em simultâneo às discussões de reformas estruturais do sistema de políticas sociais, introduz-se a idéia de tratamento emergencial da pobreza. Vejamos.

O Plano Cruzado trazia consigo, entre seus vários componentes, a elevação do salário mínimo e esta, mais seu impacto na geração de empregos e o programa de seguro-desemprego, constituíram o forte conteúdo social compensatório daquela tentativa de ajustamento. A par, foram propostos os Planos de Prioridades Sociais de 85 e 86, concebidos como Planos de Emergência para o combate à fome, ao desemprego e à miséria mais gritante.

Expressando claramente as restrições financeiras e organizacionais do momento, os Programas de Prioridades Sociais (PPS) buscaram aproveitar ao máximo os programas governamentais federais já existentes nas áreas de suplementação alimentar, com prioridade para as clientelas compostas por crianças, gestantes e nutrizes pertencentes às faixas de renda familiar de até dois salários mínimos. Além dos programas de alimentação e nutrição, incluindo o novo Programa Nacional do Leite, foram propostas medidas pontuais ou regionalmente definidas nas áreas de abastecimento, saúde, educação, habitação, assentamentos agrários, estímulos à integração da pequena produção (de alimentos) e programas regionais de alimentação31 31 Draibe, S. M. "As políticas sociais e o neoliberalismo". São Paulo, Revista da USP, n.o 17,1993. .

Os PPS expressaram a intenção de constituir um programa de combate à pobreza, modesto se considerarmos que em 1986 os recursos previstos giraram em torno de 1.6% do PIB e os efetivamente gastos eventualmente tenham sido da ordem de 1%, praticamente o mesmo montante de recursos alavancados pelo FINSOCIAL. Partindo da tese correta de que não seria necessário criar novos programas (já contávamos com muitos) nem mesmo fontes adicionais para seu financiamento (já havia o Unsocial), os PPS contaram entretanto com muito baixo apoio político, de nenhum modo comparável aos apoios e mobilizações que sustentaram, na Constituinte, as reformas antes assinaladas. Seus resultados — enquanto programa integrado — foram praticamente nulos e, desde 87, os programas que os compunham desapareceram na máquina, sendo paulatinamente reduzidos. Foi de muito curto fôlego, portanto, a pretensão de reforçar um conjunto de ações sociais compensatórias que minorassem a situação das camadas mais pobres durante os planos de ajustamento.

Nos dois últimos anos da gestão Sarney, sob o Plano Verão, a política social perdeu centralidade. No plano concreto das ações governamentais procedeu-se a operações descentralizadoras, que, sob o título de "desmonte", tiveram sobretudo o significado, naquele momento, de retração da ação social federal. A isso somou-se um forte adensamento das ações assistencialistas de organismos federais que, sob a bandeira de "tudo pelo social", obedeceram fundamentalmente ao calendário e objetivos eleitorais.

Paralelamente aos programas emergenciais, as outras áreas de política social seguiram, entre 85 e 89, um comportamento incremental que espelhava o movimento mais geral da economia e, em particular, o do financimanto e do gasto público: cortes e reduções nos anos piores, pequenas recuperações nos melhores.

Nos anos Collor, entre 90 e 92, completou-se o desastre da política social, em meio ao desastre total: a queda do gasto social, a desarticulação da ação estatal por meio da malfadada Reforma Administrativa, e a paralisação crescente dos programas destinados às camadas pobres da população, em particular os programas de alimentação e nutrição.

Resumindo a argumentação, o fracasso dos programas de ajustamento e a paralisia do Estado conduziram a esta situação paradoxal de disjunção de democracia política e democracia social. O ajustamento passivo e, nesse sentido, selvagem que vem se processando no país mostrou, aí, sua face impiedosa: nem mesmo uma mínima proteção aos mais pobres foi garantida.

Uma nova agenda de reformas?

Vimos na primeira parte deste trabalho que a dinâmica de sistemas de bem-estar social meritocráticos e estratificados como o nosso assenta-se sobretudo na lógica da expansão de privilégios, o que faz com que suas reformas se transformem em processos extremamente difíceis.

Valenzuela32 32 Valenzuela , S. "Reflexiones sobre los sistemas de políticas sociales en el cono Sur". São Paulo, projeto "Políticas Sociales", 1991, mimeo. assinala mesmo essa marca natural: uma vez constituídos, os sistemas corporativos demonstram fortes resistentes à mudança, já que na sua lógica "...aproximam-se aqueles que demandam o benefício (de forma bem sucedida as categorias mais capazes de organizar-se para fazê-lo) e os que constroem sua carreira política oferecendo-o (os politicos, sejam parlamentares ou ministros, que buscan firmar seu apoio eleitoral). Isto conduz ao que se poderia chamar 'clientelismo categorial particularista'". Segundo ele, esse tipo de clientelismo institucionaliza privilégios e opõe forte resistência à sua eliminação, principalmente nos ambientes de permeabilidade política dos processos de democratização. Esta forma moderna de clientelismo, em regimes democráticos, produz efeitos paradoxais perversos: funda o apoio e a legitimação do regime em categorias que dispõem de força de pressão para conseguir suas demandas, mas também contam com força para atuar na desestabilização dos governos, quando insatisfeitas. De outro lado, tende a perpetuar as desigualdades sociais, concentrando o gasto social nas camadas mais favorecidas, e, dada a segmentação dos regimes de previdência, fragiliza o fundo comum que poderia estabelecer certos patamares redistributivos.

As reformas dos nossos programas sociais mostraram também essas características. A voz e a força dos setores mais organizados tiveram ressonância em segmentos e personalidades de partidos predispostos a assim retribuir e barganhar apoios presentes ou futuros. Houve inegáveis avanços no campo social, sem dúvida. Mas certamente, uma vez mais tais avanços vieram com essa marca original, a de proteger os protegidos. Em outras palavras, seguimos, nas reformas sociais dos anos 80, o mecanismo cooptativo e o padrão vertical de expansão de benefícios que, por isso mesmo, cristalizam-se em privilégios. Mecanismos de um processo de cooptação que, como registra Abranches, envolve manipulação sem dúvida, mas supõe pressão desde baixo. Significa portanto, politicamente, um instrumento alternativo à coerção, já que atua como forma de controle preventivo do ativismo e independência da classe trabalhadora, maximizando assim objetivos políticos dos setores dominantes via Estado. Por isso mesmo requer concessões reais aos de baixo, sob formas de redistribuição seletiva e benefícios sociais. Estes, portanto, não constituem direitos, antes configuram privilégios de categorias funcionais. As concessões tendem a ser instrumentalizadas através de uma rede burocrática clientelística, mecanismo de reforço das relações entre burocratas públicos, sindicais e de partidos, articulados nestes mecanismos crescentemente poderosos de transferência de recursos a setores organizados, reforçando assim a regra privada na lógica da ação estatal.

As características conservadoras da democratização do país coerentemente puderam conviver com tais mecansimos e processos de reformas sociais. O resultado aí está: ao se processar a agenda democrática de reforma dos programas sociais brasileiros, ao mesmo tempo em que no plano jurídico-institucional ampliaram-se os direitos sociais e se estendeu portanto o escopo da proteção, ocorreu um aprofundamento do fosso entre os que estão habilitados (entitlements) para benefícios e serviços sociais, e os que não estão; para um aumento das distâncias entre os protegidos e os precária ou nulamente protegidos. Mas então, reiterando nosso passado, as políticas sociais dificilmente contribuirão para o progresso social, e isso em condições de estagnação dos processos de mobilidade social que antes cumpriam em parte tal papel.

Às vésperas da revisão constitucional, vale a pena registrar e defender os ganhos passados, mas também refletir sobre as possibilidades de ampliar a proteção àqueles que não têm voz e força. É para contribuir para com esse esfoço de reflexão que faço as observações seguintes.

Perdemos algumas oportunidades, nessa década que vem de terminar: uma delas foi a de não ter, com os recursos já disponíveis e num momento em que a crise não tinha se aprofundado tanto, introduzir programas compensatórios de largo alcance e diretamente voltados para a população pobre.

Mas por isso mesmo, ao se processar se a agenda de reforma social da transição democrática, e antes mesmo que se implementassem todas as suas diretrizes, esgotaram-se os conteúdos das suas proposições. Entre 89 e os dias atuais, no mesmo momento em que teoricamente se avança na implementação, desenha-se uma outra agenda de reformas, cujos contornos e temas estão agora (re)definidos pelo agravamento da crise e pelo embate com o neoliberalismo.33 33 Sobre esse conjunto de questões, veja-se Sola, L. "Estado, reformas estruturais e democratização no Brasil". São Paulo, 1993, mimeo. Para captar o desenho dessa nova agenda em formação, devemos voltar às nossas preocupações iniciais.

Tal como pretende a tipologia e demonstram as análises históricas, um sistema institucional-redistributivo de Welfare State tratou de conciliar princípios universalistas de conceber os direitos sociais com uma dada concepção de busca de maior igualdade social via políticas do Estado: por isso mesmo, sua forma se expressa na manutenção de uma renda mínima, e na edificação de equipamentos públicos gratuitos de acesso universal, igualitariamente oferecidos a toda a população.

Ora, numa sociedade tão desigual como a nossa, a busca de maior igualdade via políticas sociais tem significado concebê-las com um caráter cada vez mais compensatório, acentuando então menos a concepção universalista e sim a seletiva, dirigida privilegiadamente aos grupos mais carentes. Em outras palavras, é como se, na situação atual, tivéssemos que nos afastar de uma concepção do tipo "dar cada vez mais tudo a todos" — base daquele modelo generoso de proteção — e caminharmos em direção à concepção de" dar mais a quem tem menos", a ação do Estado tendendo a discriminar positivamente os mais necessitados.

Obviamente, esta não é a forma residual liberal de organizar a intervenção social do Estado. O caso chileno aí está, com suas dificuldades e limites, a demonstrar o anacronismo da solução liberal. Mas sem nenhuma dúvida tende a se afastar das concepções universalistas e equânimes de direitos sociais relativos a toda a cidadania mas captados privilegiadamente apenas por categorias que dispõem de voz, organização e força. Também alguns dos sucessos do caso chileno — particularmente a proteção aos mais pobres, realizada em redes públicas e através de programas permanentes — podem auxiliar na busca de alternativas.

Um segundo aspecto da questão refere-se à forma e aos mecanismos através dos quais se tenderá, no Brasil, a garantir o efetivo cumprimento dos direitos sociais recentemente ampliados. No modelo institucional - redistributivista, a forma típica de fazê-lo foi através da edificação de imensos equipamentos coletivos público e gratuitos, basicamente nas áreas de saúde, educação e assistência social. Também aqui construiu-se desse modo o embrião da ação pública naquelas áreas, padrão acentuado pela Constituição de 88. Dada, entretanto, a falência da nosso política social, a questão, hoje, é como ampliar a responsabilidade estatal nesta área, numa equação que combine, adequadamente, estes três termos:

a) a enorme escassez de recursos públicos;

b) as urgentes e crescentes demandas da população marginalizada e miserável;

c) a redução dos custos e efeitos negativos do gigantismo, do burocratismo, das autonomizações indevidas e da ausência de controles sobre a operação dos recursos públicos.

E isso numa época em que a sensibilidade social e da opinião pública para tais questões aumentou enormemente; em que, por outro lado, o discursos e os pontos de vista liberais privatizantes vêm ganhando amplo espaço e em que, finalmente, foram alteradas e ampliadas as possibilidades de envolvimento de formas organizadas da sociedade na própria operação dos serviços sociais, apontando para modos distintos de organização e equilíbrio entre o Estado, o setor privado lucrativo e o setor privado não-lucrativo na produção e distribuição de bens e serviços sociais.

Estão aí contemplados, a nosso ver, os temas da nova agenda de reformas dos anos 90, que possivelmente assim se mostrará na revisão constitucional.

A questão maior que vem sendo posta na mesa é a que se refere ao papel do Estado e dos fundos públicos na provisão do bem-estar social da população miserável e carente em particular.

Os dilemas estatização versus privatização; universalismo versus seletividade (ou focalização); seguro social versus seguridade; patamares mínimos de atenção às necessidades versus sistemas complementares; parcerias Estado versus setor privado lucrativo versus setor privado não-lucrativo na produção de bens e serviços sociais-todas estas oposições e alternativas vêm ocupando sistematicamente a nova agenda de discussão sobre o futuro das políticas sociais, remetendo quase todas elas à questão mais geral da reforma do Estado e dos caminhos da modernização do país.

A defesa dos direitos sociais, inegavelmente ampliados na Constituição de 88, não nos exime de refletir e amadurecer essa nova agenda.

  • 2 Áscoli, U.. "Il sistema italiano de Welfare State". In Áscoli, U. (org). Welfare State all'Italiana. Roma, Laterza, 1984.
  • 3 Esping-Andersen, G. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton University Press, 1980.
  • 4 Draibe, S.M. "Brasil: o sistema de proteçăo social e suas transformaçőes recentes".
  • 5 Ferreira, M. Welfare Slate in Italia. Firenzi, Il Molino, 1984.
  • 6 Mesa-Lago, C. Social Security in Latin America. University of Pittsburg Press, 1978.
  • 7 Abranches, S. "The politics of Social Welfare Sate development in Latin America", apresentado na reuniăo da ANPOCS, Nova Friburgo, 1982.
  • 8 Raczynski, D. e Cominetti. "Las políticas sociales en Chile: panorama de sus reformas". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992.
  • 9 Lo Vuolo. "Maduración, crisis e tendęncias de reforma del sistema de políticas sociales de Argentina", mimeo, 1992.
  • 10 Em 1960 é aprovada a Lei Orgânica da Previdęncia Social, que cria os primeiros e ainda parciais mecanismos de estandardizaçăo. A real unificaçăo do sistema se fará após 64, já sob o regime militar. É extensa a bibliografia brasileira sobre o tema. O estudo clássico, na perspectiva que estamos privilegiando, é o de Amélia Cohn, Previdęncia Social e Processo Político no Brasil. Săo Paulo, Moderna, 1981.
  • 11 Ver Abranches, "The politics of Social Welfare State", op. cit. e Draibe, S. M., Castro, G. e Azeredo, B. " O sistema de proteçăo social no Brasil", projeto "Social policies for the urban poor in Southern Latin America", Kellog/Mellon/CEBRAP, 1991.
  • 12 Essa é uma noçăo geral e simples, mas satisfatória para nossos propósitos. Formas mais sofisticadas de definiçăo podem ser encontradas, por exemplo, em Solis, V. e Farfán, G. "El deterioro de bienestar social y de la salud en Mexico" (Mexico, Testimonios de la Crisis, 2,1988) que usam conceitos da "escola da regulaçăo: "O Estado de bem-estar pode ser definido de uma perspectiva mais restrita ou de outra,
  • 13 Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder", mimeo, 1988.
  • 15 Azeredo, B. "O financiamnento do gasto público social na Argentina, no Brasil e no Chile". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992.
  • 16 Arretche, M. "Estado e mercado na provisăo habitacional: tręs modelos de políticas". Campinas, UNICAMP, dissertaçăo de Mestrado em Cięncia Política, 1990.
  • 17 Médici, A., Oliveira, F. B. e Beltrăo, K. "O sistema de saúde chileno: mitos e realidades". Rio de Janeiro, 1992,
  • 18 Iglesias, A. e Acuńa, R.. "Chile: Experięncia con un régimen de capitalizatión, 1981-1991". Santiago, CEPAL/PNUD, 1991.
  • 19 Vergara, P. Políticas Hacia Ia Extrema Pobreza en Chile: 1973-1988. Santiago, FLACSO, 1990.
  • 20 Tavares, Maria C. "Las políticas de ajuste de Brasil: los limites de la resistęncia". Washington, BID, 1992,
  • 21 Bonelli, R. e Landau. "Do ajuste ŕ abertura: a economia brasileira em transiçăo para os anos 90". Rio de Janeiro, PUC, 1990,
  • 22 Coutinho, L. "A reforma do Estado". 1990,
  • 23 Damill e Fanelli e Frenkel. "Shok externo y desequilíbrio fiscal. La macroeconomia de los 80 - Brasil", Buenos Aires, CEDES, 1991,
  • 24 Arruda Sampaio, P. (coord) "Características e conseqüęncias da estratégia de ajustamento voluntário de 1981-1982", relatório de pesquisa sobre "Ajustamento e Estabilizaçăo no Brasil nos anos 80", Săo Paulo, CEBRAP, 1990.
  • 25 Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder",
  • 26 Almeida, J., Belluzzo, L. G. e Biasotto, G. "Endividamento e crise da economia brasileira nos anos 90". Campinas, IE/UNICAMP, 1991,
  • 27 Cardoso de Mello, J. M. "Conseqüęncias do Neoliberalismo". Economia e Sociedade. IE/ UNICAMP,n.o 1,1992.
  • 28 Valle e Silva, N. "A situaçăo social no fim da 'década perdida'". Rio de Janeiro, IUPERJ, Cadernos de Conjuntura, n.o 44,1991.
  • 29 Brandăo Lopes, J. R. "Brasil, 1989: um estudo sócio-econômico da indigęncia e pobreza urbanas". NEPP/UNICAMP, 1991,
  • 30 Macedo, R. "La infância en Brasil y la crisis económica: situación del Estado de Săo Paulo" in Comia, A., Jolly, R. e Stewart, F. Ajuste con Rosto Humano. México, Siglo XXI, 1987.
  • 31 Draibe, S. M. "As políticas sociais e o neoliberalismo". Săo Paulo, Revista da USP, n.o 17,1993.
  • 32 Valenzuela , S. "Reflexiones sobre los sistemas de políticas sociales en el cono Sur". Săo Paulo, projeto "Políticas Sociales", 1991,
  • 33 Sobre esse conjunto de questőes, veja-se Sola, L. "Estado, reformas estruturais e democratizaçăo no Brasil". Săo Paulo, 1993,
  • 1
    Um estudo mais exaustivo, que compara a Argentina, a Bolivia, o Brasil, a Colômbia, a Costa Rica, o Chile e o México, está sendo por nós elaborado no âmbito do projeto "Reformas políticas para aumentar la efectividad del Estado en América Latina y el Caribe", da CEPAL. Versões mais extensas do caso brasileiro encontram-se em "Repensando a política social: dos anos 80 ao início dos 90", texto apresentado no seminário "O Brasil na assim chamada década perdida: o que aprendemos?" DCP/NAIPPE - USP e UNRISD, São Paulo, maio de 1993 e em "Brasil anos 8o: cambio social y político", na revista Situación Latino-americana, CEDEAL, Madrid (no prelo).
  • 2
    Áscoli, U.. "Il sistema italiano de Welfare State". In Áscoli, U. (org).
    Welfare State all'Italiana. Roma, Laterza, 1984.
  • 3
    Esping-Andersen, G.
    The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton University Press, 1980.
  • 4
    Draibe, S.M. "Brasil: o sistema de proteção social e suas transformações recentes".
  • 5
    Ferreira, M.
    Welfare Slate in Italia. Firenzi, Il Molino, 1984.
  • 6
    Mesa-Lago, C.
    Social Security in Latin America. University of Pittsburg Press, 1978. Do mesmo autor, também
    Ascent to Bankruptcy. University of Pittsburg Press, 1989.
  • 7
    Abranches, S. "The politics of Social Welfare Sate development in Latin America", apresentado na reunião da ANPOCS, Nova Friburgo, 1982.
  • 8
    Raczynski, D. e Cominetti. "Las políticas sociales en Chile: panorama de sus reformas". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992.
  • 9
    Lo Vuolo. "Maduración, crisis e tendências de reforma del sistema de políticas sociales de Argentina", mimeo, 1992.
  • 10
    Em 1960 é aprovada a Lei Orgânica da Previdência Social, que cria os primeiros e ainda parciais mecanismos de estandardização. A real unificação do sistema se fará após 64, já sob o regime militar. É extensa a bibliografia brasileira sobre o tema. O estudo clássico, na perspectiva que estamos privilegiando, é o de Amélia Cohn,
    Previdência Social e Processo Político no Brasil. São Paulo, Moderna, 1981.
  • 11
    Ver Abranches, "The politics of Social Welfare State", op. cit. e Draibe, S. M., Castro, G. e Azeredo, B. " O sistema de proteção social no Brasil", projeto "Social policies for the urban poor in Southern Latin America", Kellog/Mellon/CEBRAP, 1991.
  • 12
    Essa é uma noção geral e simples, mas satisfatória para nossos propósitos. Formas mais sofisticadas de definição podem ser encontradas, por exemplo, em Solis, V. e Farfán, G. "El deterioro de bienestar social y de la salud en Mexico" (Mexico, Testimonios de la Crisis, 2,1988) que usam conceitos da "escola da regulação: "O Estado de bem-estar pode ser definido de uma perspectiva mais restrita ou de outra, mais ampla. No primeiro caso referimos-nos à modificação estatal da reprodução e das condições de utilização da força de trabalho, o que nos leva a pensar no surgimento de um salário indireto e na instauração de uma relação salarial de tipo monopolista. No segundo, encontramos-nos diante de uma série de relações entre os seguintes processos sociais: a) um padrão de reprodução do capital de cunho fordista, que permita potenciar não apenas a produção em massa como também o estabelecimento de uma norma de consumo em massa; b) uma nova relação entre o Estado e a sociedade na qual a classe trabalhadora é incorporada ao processo de tomada de decisões políticas, menos dependente do sistema parlamentar dos partidos políticos e mais próxima a certas formas corporalivcas de tipo industrial, e c) uma forma de política econômica que permita conciliar o ciclo global da reprodução do capital através da administração da demanda efetiva, do crédito e do pleno emprego. O último ponto associa-se fundamentalmente a políticas keynesianas..." (p. 140).
  • 13
    Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder", mimeo, 1988.
  • 14
    Ver o balanço do comportamento de longo prazo dos indicadores sociais e a avaliação da capacidade das políticas sociais no Brasil para reduzir as maiores desigualdades e iniquidades (relativas a cor, sexo, idade, renda e regionais) em Draibe, Castro e Azeredo, cit.
  • 15
    Azeredo, B. "O financiamnento do gasto público social na Argentina, no Brasil e no Chile". Santiago, CEPAL, mimeo, 1992.
  • 16
    Arretche, M. "Estado e mercado na provisão habitacional: três modelos de políticas". Campinas, UNICAMP, dissertação de Mestrado em Ciência Política, 1990.
  • 17
    Médici, A., Oliveira, F. B. e Beltrão, K. "O sistema de saúde chileno: mitos e realidades". Rio de Janeiro, 1992, mimeo, assinalam, para os anos 83/84, uma expansão de 45% na capacidade insulada para o atendimento primário e de 75% nos consultórios odontológicos. Registram também o desembolso de recursos adicionais por parte dos municípios, um dos objetivos da reforma.
  • 18
    Iglesias, A. e Acuña, R.. "Chile: Experiência con un régimen de capitalizatión, 1981-1991". Santiago, CEPAL/PNUD, 1991.
  • 19
    Vergara, P.
    Políticas Hacia Ia Extrema Pobreza en Chile: 1973-1988. Santiago, FLACSO, 1990.
  • 20
    Tavares, Maria C. "Las políticas de ajuste de Brasil: los limites de la resistência". Washington, BID, 1992, mimeo.
  • 21
    Bonelli, R. e Landau. "Do ajuste à abertura: a economia brasileira em transição para os anos 90". Rio de Janeiro, PUC, 1990, mimeo.
  • 22
    Coutinho, L. "A reforma do Estado". 1990, mimeo.
  • 23
    Damill e Fanelli e Frenkel. "Shok externo y desequilíbrio fiscal. La macroeconomia de los 80 - Brasil", Buenos Aires, CEDES, 1991, mimeo.
  • 24
    Arruda Sampaio, P. (coord) "Características e conseqüências da estratégia de ajustamento voluntário de 1981-1982", relatório de pesquisa sobre "Ajustamento e Estabilização no Brasil nos anos 80", São Paulo, CEBRAP, 1990.
  • 25
    Cardoso de Mello, J. M. "Mudar o regime para conservar o poder", op. cit.
  • 26
    Almeida, J., Belluzzo, L. G. e Biasotto, G. "Endividamento e crise da economia brasileira nos anos 90". Campinas, IE/UNICAMP, 1991, mimeo.
  • 27
    Cardoso de Mello, J. M. "Conseqüências do Neoliberalismo".
    Economia e Sociedade. IE/ UNICAMP,n.o 1,1992.
  • 28
    Valle e Silva, N. "A situação social no fim da 'década perdida'". Rio de Janeiro, IUPERJ, Cadernos de Conjuntura, n.o 44,1991.
  • 29
    Brandão Lopes, J. R. "Brasil, 1989: um estudo sócio-econômico da indigência e pobreza urbanas". NEPP/UNICAMP, 1991, mimeo.
  • 30
    Macedo, R. "La infância en Brasil y la crisis económica: situación del Estado de São Paulo" in Comia, A., Jolly, R. e Stewart, F. Ajuste con Rosto Humano. México, Siglo XXI, 1987.
  • 31
    Draibe, S. M. "As políticas sociais e o neoliberalismo". São Paulo,
    Revista da USP, n.o 17,1993.
  • 32
    Valenzuela , S. "Reflexiones sobre los sistemas de políticas sociales en el cono Sur". São Paulo, projeto "Políticas Sociales", 1991, mimeo.
  • 33
    Sobre esse conjunto de questões, veja-se Sola, L. "Estado, reformas estruturais e democratização no Brasil". São Paulo, 1993, mimeo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1993
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