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A crise da consciência histórica e a Europa

The crisis of historical consciousness and Europe

Resumos

A crise da consciência histórica pela qual passa a Europa é analisada por um eminente filósofo europeu no intuito de propor uma terapia da memória coletiva e individual e promover a integração entre as migrações culturais.


The crisis of historical conscience in Europe is examined by a leading european philosopher in order do propose a therapy of the collective and individual memory and to promote the integration of cultural migrations.


CIDADANIA

A crise da consciência histórica e a Europa*

The crisis of historical consciousness and Europe

Paul Ricoeur

Filósofo, da Universidade da Paris, tem extensa obra traduzida em português

RESUMO

A crise da consciência histórica pela qual passa a Europa é analisada por um eminente filósofo europeu no intuito de propor uma terapia da memória coletiva e individual e promover a integração entre as migrações culturais.

ABSTRACT

The crisis of historical conscience in Europe is examined by a leading european philosopher in order do propose a therapy of the collective and individual memory and to promote the integration of cultural migrations.

Antes de me dirigir de maneira específica à Europa e à consciência histórica da Europa, gostaria de fixar o quadro conceituai de minhas reflexões. Para tanto, adoto de bom grado o vocabulário proposto por R. Koselleck em suas obras — Kritik und Krise e sobretudo die Vergangene Zukunfi — consagradas a uma semântica filosófica aplicada precisamente à noção de tempo histórico e de consciência histórica. Manterei das análises do professor da Universidade de Bielefeld e de Chicago os três traços seguintes que ultrapassam o caso da Europa e, ao mesmo tempo, permitem circunscrever a especificidade da consciência histórica européia.

O primeiro traço concerne à polaridade de base entre o que Koselleck chama de "espaço de experiência" e "horizonte de expectativa". Por "espaço de experiência" é necessário entender o conjunto das heranças do passado, do qual os traços sedimentados constituem, de certo modo, o solo sobre o qual se apóia o que o título de nosso simpósio designa por Kulturwandel (mudança civilizatória). Mas o espaço de experiência só existe opostamente a um horizonte de expectativa, sobre o qual se projetam as previsões e as antecipações, os temores e as esperanças, até mesmo as utopias, que dão conteúdo ao futuro histórico. Acrescentemos de imediato que o horizonte do futuro é irredutível ao espaço de experiência, e que a dialética entre esses dois pólos é o que assegura a dinâmica da consciência histórica.

Segundo traço: a troca entre o espaço de experiência e horizonte de expectativa se produz no presente vivo de uma cultura. Esse presente não é redutível a um ponto na linha do tempo, um simples corte entre um antes e um depois. Definiríamos, assim, apenas um instante qualquer, não o presente vivo. Este é o mediador da dialética entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Ele é rico de passado recente e de futuro iminente. Ademais, não se reduz à simples presença do meio, isto é, à percepção do mundo tal qual ele se oferece ao nosso olhar. Ele comporta a forma ativa e prática daquilo que podemos chamar iniciativa, se entendemos com isso a capacidade de intervir no curso das coisas, o poder de produzir novos acontecimentos.

Enfim, gostaria de destacar um terceiro traço da consciência histórica, a saber, o sentimento de uma orientação na passagem do tempo. Essa orientação toma seu impulso primeiro no horizonte de expectativa, depois afeta correlativamente o espaço de experiência, seja para empobrecê-lo, seja para enriquecê-lo; confere enfim à experiência do presente o grau de sentido ou de não-sentido que dá finalmente à consciência histórica seu valor qualitativo, irredutível à dimensão simplesmente cronológica do tempo. Sentido, aqui, significa a uma só vez direção e significação, como é o caso da expressão francesa sens.

É armado desses instrumentos conceituais que gostaria agora de caracterizar a consciência histórica da Europa.

Acentuarei primeiramente a crise que afeta hoje esta consciência histórica e em seguida arriscarei algumas observações consagradas à inversão da dissolução em reconstrução.

Começando pelo espaço de experiência próprio à Europa, gostaria de destacar os dois maiores caracteres que condicionam todas as formas possíveis de mudança civilizatória que certamente não deixarão de ser examinados ao longo de nosso simpósio. O que é necessário destacar de início é a complexidade da herança deixada pelo passado. Esta é, de fato, o resultado do entrecruzamento de fortes tradições extraordinariamente heterogêneas: aquelas de Israel antigo e do cristianismo primitivo, entrelaçadas muito cedo às culturas grega e latina, a mistura greco-judaica prosseguindo de crise em crise através da Idade Média, do Renascimento, da Reforma, do Iluminismo, do romantismo filosófico, literário e político, etc... Este primeiro traço relaciona-se imediatamente ao tema de nosso simpósio: migração e mudança cultural, na medida em que essas misturas foram o fruto de reais migrações no espaço e corresponderam, a cada passo, a mudanças culturais consideráveis.

Logo de início ressaltemos que o tecido resultante do entrecruzamento de filhos tão diversos é extraordinariamente frágil. Esta fragilidade é particularmente devida a outro caráter maior da consciência histórica européia, a saber, a intersecção entre as convicções ligadas à tradições fortemente rivais e o espírito da crítica. A esse respeito, a cultura européia tomada em seu conjunto é provavelmente a única que tenha assumido a tarefa considerável de conjugar de maneira tão constante convicções e crítica. Assim, o cristianismo, diferentemente do Islã, sempre se compôs com seu adversário racionalista e interiorizou a crítica em autocrítica. Em certo sentido, a crise não é um acidente contingente, menos ainda uma doença moderna: ela é constitutiva da consciência européia. A heterogeneidade das tradições fundadoras e a discordância entre convicções e crítica me levaram a pronunciar a palavra fragilidade. E nessa fragilidade do espaço de experiência da Europa que eu gostaria de insistir antes de me voltar para aquela da consciência do futuro. Com efeito, passa-se facilmente da fragilidade à patologia. Esta última se apresenta como uma crise da memória e da tradição. Crise da memória: tocamos aqui um paradoxo desconcertante; conforme as regiões, as nações ou os povos sofrem ora de um excesso de memória, ora de uma falta de memória. No primeiro caso, que a ex-Iugoslávia ilustra tragicamente, cada comunidade quer se lembrar apenas das épocas de grandeza e de glória, e somente em contraste às humilhações sofridas. No segundo caso, que é o da Europa ocidental pós-hitleriana e provavelmente o da Europa oriental pós-staliniana, a recusa de transparência equivale a uma vontade de esquecimento e conduz a uma fuga diante da culpabilidade. O que é comum a estes dois fenômenos, aparentemente opostos, é uma relação pervertida com a tradição. Destacada da dialética evocada acima entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, a tradição se reduz a um depósito sedimentado e petrificado, que alguns exaltam e que outros se esforçam por cobrir e enterrar.

Mas a crise da memória e da tradição jamais surge sem uma crise da projeção em direção ao futuro; o horizonte de expectativa se esvazia de todo conteúdo, de todo objetivo digno de ser perseguido; vemos, assim, se difundir por todos os lados a desconfiança em relação a toda previsão a médio prazo e ainda mais acentuadamente em relação a toda profecia a longo prazo; mas os fatos opostos se deixam igualmente observar: na falta de um projeto acessível, nos refugiamos nas utopias de sonho que arruinam toda vontade razoável e tenaz de reformas.

Essa dupla patologia, que atinge o futuro tanto quanto o passado, se reflete por sua vez em um empobrecimento do presente, entendido, como sugerido acima, em termos de capacidade de iniciativa, de intervenção no curso das coisas. É assim que assistimos aqui e acolá a uma privatização dos desejos e dos projetos, a um culto do consumismo míope; na origem deste movimento de retração discernimos sem dificuldade um desengajamento em relação a toda responsabilidade cívica. Os indivíduos se esquecem que a nação existe apenas em virtude de um querer viver em conjunto, sustentado e ratificado por um contrato tácito entre os cidadãos de um mesmo povo ou de uma mesma nação. O individualismo, que com freqüência deploramos sem analisar, não é outra coisa senão o efeito do movimento de abandono desse querer viver em conjunto, daquele contrato cívico que ratifica essa vontade. Também aqui, a patologia do laço social somente torna visível sua extrema fragilidade.

Concluirei esta reflexão sobre a crise da consciência histórica na Europa, sublinhando o fenômeno fortemente acentuado por Koselleck, a saber, a perda de todo sentido da história, de toda orientação no tempo histórico. Se alguns falam de época pós-moderna, a expressão se justifica na medida em que podemos identificar a modernidade com a idéia racional de progresso. No fundo, sofremos tanto de um esvaecimento da idéia racionalista de progresso transmitida pelo Iluminismo quanto da secularização que afeta a Europa cristã, até mesmo um distanciamento profundo das fontes grega e judaica de nossa cultura pública e privada. Assim é que o desabamento da idéia de progresso conduz, por oposição, a uma majoração do sentimento do aleatório, ou o de um destino esmagador, quando não leva a ceder à sedução exercida sobre nós pelas idéias de caos, de diferença, de errância. Este último termo deveria alertar-nos aqui e agora, nós que falamos de migrações. Pois as migrações que constituíram a Europa, às quais fiz uma primeira alusão, foram o contrário de uma errância; ou melhor, são espécies de errância que foram interceptadas e interrompidas por lentas e penosas experiências de aculturação dos bárbaros dos quais descendemos todos em certo grau, em espaços culturais estáveis do Império romano, da Europa cristã, do Renascimento e da Reforma, e depois da Europa das Luzes. Estes são os componentes do que chamamos mais acima de espaço de experiência. Antes de serem espaços de sedimentação, foram espaços de integração, de estabilização. Por isso se coloca a questão de saber se — para retomar uma fórmula de Habermas — o projeto do Iluminismo está hoje esgotado, ou, retornando mais longe no passado, se a herança greco-romana e a herança judaica-cristã são ainda suscetíveis de serem reativadas.

DA DISSOLUÇÃO À RECONSTRUÇÃO

Havíamos evocado acima o paradoxo que constitui a alternância entre o excesso e a falta de memória. Para curar, e não somente compreender este paradoxo, é importante se interrogar sobre a maneira pela qual se forma a memória coletiva, tanto quanto a memória individual. A memória coletiva repousa em grande parte sobre os relatos aceitos pela maioria relativos aos acontecimentos fundadores, sobre os momentos de glória e sobre os sofrimentos dos povos. A estrutura de tal memória é portanto essencialmente narrativa. É a esta estrutura narrativa de nossas convicções que precisamos aplicar o espírito da crítica citado entre as grandes conquistas da cultura européia. Eis como isso pode ser feito. É preciso inicialmente aceitar a idéia de que sempre é possível relatar diferentemente os mesmos acontecimentos. Este grande princípio hermenêutico nos foi ensinado primeiramente pelos historiadores profissionais. Para estes, os testemunhos dos contemporâneos a um acontecimento marcante, as recordações dos sobreviventes de grandes provações, as tradições que atravessaram várias gerações devem passar pelo crivo dos documentos escritos e pela prova de uma crítica textual. Essa confrontação entre memória e história é neste sentido o teste critico maior ao qual a memória coletiva deve ser submetida. A conseqüência mais importante desta verificação é um desdobramento do que comumente nós chamamos memória. De um lado temos o que Bergson chamava de memória-hábito ou, em outros termos, o que Freud chamava de memória-repetição, à qual ele atribuía a resistência à tomada de consciência do passado infantil e portanto à cura. E esta memória que encerra os povos no ressentimento e no ódio. A outra memória é aquela que Bergson de signava por memória-recordação e Freud por rememoração. É uma memória ativa, discriminadora, interrogativa, meditante. A memória-repetição resiste à crítica; a memória-recordação é fundamentalmente uma memória-crítica.

Compreendemos agora que certos povos sofram de excesso de memória e outros de falta de memória. Pois o que uns cultivam com um prazer mórbido e o que outros recusam com má consciência é a mesma memória-repetição. Uns gostam de se perder nela, outros têm medo de por ela serem engolidos. Mas uns e outros sofrem do mesmo déficit de memória crítica; em particular eles não aceitam a prova da história documental com sua fase necessária de distanciamento e objetivação. Mas esta é apenas uma primeira condição para a cura da memória. Nos dissemos que a memória constitui-se de uma estrutura narrativa. Ora, os relatos que uma pessoa ou que uma comunidade constróem a propósito delas mesmas são entremesclados com os relatos que outros transmitem entre si, não somente a respeito deles mesmos mas a respeito de nós mesmos. Nós somos os personagens dos relatos que os outros contam. O relato de glória está entre os relatos de humilhação de nossos vizinhos, de nossos adversários passados ou presentes, e isso reciprocamente. Ora, esta mescla dos relatos reflete um fenômeno mais profundo, a saber, a mescla das próprias memórias. É sobre este fenômeno que Wilhelm Schapp insistiu em seu belo livro In Geschichten Verstrickt ("Enredado em histórias"). Esta mescla pode efetivamente ser tratada como um fenômeno simplesmente passivo, quiçá como simples obra do destino, como sugere primeiramente a expressão mescla. Mas do mesmo modo em que é preciso passar da memória-repetição à memória-recordação, à memória-crítica, é preciso ousar passar da simples mescla a uma verdadeira troca ativa das memórias. É a maneira mais eficaz de relatar de outra forma: passar pelo relato dos outros para compreender a nós mesmos, ler nossa história com olhos de historiadores pertencentes a outros povos que não o nosso, talvez até mesmo a outras grandes culturas que não tenham participado do entrelaçamento evocado antes entre as culturas fundadoras da Europa contemporânea, esta é a imensa tarefa à qual deve se propor uma terapia da memória européia.

A troca das memórias da qual acabamos de falar consiste em uma verdadeira migração, e uma migração cruzada: nós aprendemos a nos transportar nas memórias dos outros e a habitar seus relatos; nós acolhemos como migrantes as recordações que nutrem a consciência histórica de nossos hóspedes. É a partir desta experiência espiritual de troca voluntária de memórias, no interior do espaço europeu, que pode ser legitimamente colocada a questão de saber se esta troca pode ser estendida além do espaço cultural nascido das grandes migrações do passado, se quisermos chamar de migrações as tranferências que estão na origem das grandes mudanças culturais do passado. A questão se coloca de maneira bastante aguda em relação às culturas islâmicas, que, com exceção das frutíferas trocas na Idade Média, não participaram das grandes aventuras espirituais que fizeram a Europa moderna, a saber, mais uma vez, o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Sem emitir precipitadamente uma resposta a esta questão embaraçante, é necessário talvez dizer, com Husserl e Jaspers, que a Europa não é definida por fronteiras, mas por centros de irradiação dispostos em constelações de limites incertos, e que é esta estrutura em rede que engendrou uma certa idéia móvel da Europa. Perrmitam-me abrir aqui um parêntese a propósito da relação entre memória e esquecimento. Da mesma maneira que há duas memórias, a memória-repetição e a memória interrogativa e crítica, há dois tipos de esquecimento. Aquele do qual falamos, do déficit de memória ativa, e que é um esquecimento de fuga; mas há também um esquecimento voluntário, aparentado ao perdão, e que pertence à terapêutica da vingança. Este esquecimento, cultivado com precaução, põe fim à vingança sem abolir a responsabilidade moral, solidária de uma culpabilidade sem fim. É bom para a saúde das sociedades que se prescrevam os crimes que não podem ser assimilados a genocídios e crimes contra a humanidade. Não é um paradoxo afirmar que este esquecimento é um corolário da memória crítica que opusemos à memória-repetição. Fecho aqui este parêntese.

Mas antes de dizer uma palavra sobre a terapia aplicada ao sentido do futuro, gostaria ainda de insistir no fenômeno que pusemos ao lado daquele da memória, a saber, a tradição. Em certo sentido tradição e memória são fenômenos solidários; mas a tradição parece ter mais afinidades com a memória-repetição do que com a memória-recordação e a memória-crítica. Isso é verdade até certo ponto: a tradição obtém seu caráter de transmissão de seu caráter de sedimento, o qual remete ao fenômeno dos rastros. Mas como um rastro não é simplesmente deixado como uma marca ou uma pegada de um ser vivo, como ele deve ser ativa e criticamente percorrido e seguido, uma tradição deve ser tratada como uma realidade viva. E isso da maneira seguinte. Antes de mais nada uma tradição só permanece viva se ela é incessantemente reinterpretada. Essa observação se aplica tanto às tradições cristãs como às heranças greco-romanas, medievais, e às tradições legadas pelo Iluminismo. A própria crítica é uma tradição entre outras, incorporada às convicções herdadas e que continuamente requer uma cultura renovada. Além disso, à luz da crítica histórica, uma tradição se revela portadora de promessas não cumpridas, talvez bloqueadas e recalcadas por novos atores da história. Podemos dizer, sem paradoxo excessivo, que os homens de épocas passadas eram portadores de expectativas, de sonho, de utopias que não foram satisfeitas, e que é interessante liberá-las e incorporá-las às nossas próprias expectativas, para lhes dar um conteúdo, e, se ouso dizer, um corpo. Em suma, é preciso elevar-nos a uma concepção aberta da tradição. Mais exatamente, é preciso reabrir o passado, e liberar sua carga de futuro. Não será esta uma forma de migração no irrealizado do passado?

Essa última sugestão nos permite dizer uma palavra sobre a terapia do futuro. Liberar as promessas não cumpridas do passado já é uma parte da terapia, na medida em que o mal de que sofre a nossa capacidade de projeção no futuro é o de uma falta de conteúdo. Nesse sentido, inovação e tradição são as duas faces do mesmo fenômeno constitutivo da consciência histórica. Mas concordo que não basta beber no passado e tratar as tradições como fontes vivas, ao invés de simples repositórios, para nutrir nosso impulso em direção ao futuro. Aqui gostaria de insistir em um aspecto do problema que toca a questão da migração enquanto aspecto da mudança cultural. A invenção maior para a qual somos hoje convidados concerne à integração de atitudes a respeito do futuro, que são continuamente ameaçadas de dissociação: quer se trate de prospectiva técnica, de antecipação econômica, de resolução de problemas morais inéditos postos pelas ameaças ao ecossistema, pelas possibilidades de intervenção no patrimônio genético humano ou pela abundância de signos em circulação que excedem nossa capacidade de integração. Afirmo que o problema da integração toca no fenômeno da migração, na medida em que as migrações consumadas no passado também consistiram em uma integração progressiva de valores heterogêneos em um espaço cultural que se enriqueceu com invasões que, em um primeiro momento, ameaçaram sua coesão. Gostaria de acrescentar algo a esses dois componentes da terapia do passado da qual falamos, a saber, a integração de promessas liberadas dos grilhões do passado morto à nossa capacidade de projetar o futuro, e a integração em um mesmo horizonte de expectativa de modalidades heterogêneas de antecipações. Este terceiro componente é o mais difícil de ser apreciado em sue valor preciso; quero falar da dimensão utópica. Podemos desconfiar das utopias devido ao seu rigor doutrinal, seu desprezo em relação às primeiras medidas concretas a tomar na direção de sua realização. Mas os povos não podem viver sem utopias assim como os indivíduos sem sonhos. A propósito, a Europa sem fronteiras fixas é uma utopia, pois é antes de mais nada uma Idéia, como queriam os já citados Husserl e Jaspers. A própria expressão horizonte de expectativa evoca de certo modo a utopia, na medida em que o horizonte jamais é alcançado. Mas o importante é que nossas utopias sejam utopias responsáveis, que levem em conta do mesmo modo o factível e o desejável, que saibam compor não somente com as resistências lamentáveis do real mas também com as vias praticáveis abertas pela experiência histórica. E o momento de relembrar, com Max Weber, que a ética da convicção não deve ocultar a ética da responsabilidade. Integrar uma ética à outra permanece sendo uma grande tarefa, talvez a maior utopia.

Permitam-me terminar, como prometido, com uma questão que toca o último dos componentes da consciência histórica evocada na introdução a respeito de Koselleck. A questão é esta: podemos viver sem um sentido da história? A questão tornou-se perturbadora desde a perda na crença do progresso. Reencontramos a questão colocada por Habermas de saber se o programa do Iluminismo está esgotado. Eu esboçaria rapidamente duas respostas, que apenas tangenciam a questão. Diria primeiramente que nós não temos necessidade de saber para onde vai a história para compreender nosso dever a seu respeito. Tudo o que dissemos da terapia da consciência histórica diz respeito à razão prática e não pressupõe qualquer saber em relação à orientação final da história. Isso é característico da idéia de uma Europa como espaço de integração das migrações passadas, presentes e futuras, como da idéia de paz perpétua de Kant. A certeza do dever não exige a garantia de um sentido que se imporia independentemente do que quer que fizéssemos. O dever jamais é um saber. Segunda resposta: mesmo se levarmos a sério, como o próprio Kant, a questão: o que nos é permitido esperar?, a esperança que suscitam as promessas não cumpridas do passado, juntamente com as projeções utópicas de nossa imaginação, serão sempre diferentes de qualquer garantia que pretendamos ter de dominar o curso da história. Enquanto permanecer como uma aposta desprovida de garantia, a esperança será, a sua maneira, uma docta ignorantia.

  • * "La crise de la conscience historique et l'TSurope". Conferência realizada no Simpósio Internacional Ética e o Futuro da Democracia, organizado pela Sociedade Portuguesa de Filosofia, em 25-28 de maio de 1994, Lisboa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 1994
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