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O paradigma de Huntington e o realismo político

Huntington's paradigm and political realism

Resumos

Examina-se a proposta de Huntington de um novo paradigma da política internacional (centrado na idéia de "civilizações") em substituição ao paradigma do realismo. Demonstra-se que se trata, na realidade, de um subparadigma do realismo e, portanto, a ele subordinado. Aplica-se isso à mudança da concepção estratégica de "contenção", que passa a aplicar-se às civilizações não-ocidentais e não mais ao expansionismo soviético.


Huntington's proposal of a new paradigm for international politics (focused on the idea of "civilizations"), meant to replace the paradigm of realism, is examined. It is shown that the proposed new paradigm should in fact be viewed as as sub-paradigm of the realist one. In particular, it is pointed out that Huntington's proposal, in a realist vein, draws on the idea of "containment", which is now directed (instead of its former target, the soviet expansionism) to non-Western civilizations.


FRONTEIRAS

O paradigma de Huntington e o realismo político

Huntington's paradigm and political realism

José R. Novaes Chiappin

Professor do Departamento de Filosofia da USP

RESUMO

Examina-se a proposta de Huntington de um novo paradigma da política internacional (centrado na idéia de "civilizações") em substituição ao paradigma do realismo. Demonstra-se que se trata, na realidade, de um subparadigma do realismo e, portanto, a ele subordinado. Aplica-se isso à mudança da concepção estratégica de "contenção", que passa a aplicar-se às civilizações não-ocidentais e não mais ao expansionismo soviético.

ABSTRACT

Huntington's proposal of a new paradigm for international politics (focused on the idea of "civilizations"), meant to replace the paradigm of realism, is examined. It is shown that the proposed new paradigm should in fact be viewed as as sub-paradigm of the realist one. In particular, it is pointed out that Huntington's proposal, in a realist vein, draws on the idea of "containment", which is now directed (instead of its former target, the soviet expansionism) to non-Western civilizations.

A política internacional saiu das esferas da diplomacia para tornar-se uma atividade acadêmica após a Primeira Guerra Mundial, ao tomar-se consciência de que eventos internacionais tinham efeitos significativos não apenas na conduta externa de um país mas também em suas dimensões políticas e econômicas internas. Essa secularização da política internacional logo manifestou-se em numerosas concepções. Em particular, duas grandes concepções marcaram o debate: a concepção realista e a concepção idealista. A concepção idealista teve um período de rápido sucesso entre as duas guerras mundiais. Pensava-se, então, que a solução do problema da guerra e da paz pudesse ser elaborado no contexto de um sistema de crenças que incluía a idéia da harmonia de interesses entre os homens e as nações. Em conseqüência, assumia-se que as questões políticas deveriam ser conduzidas por valores éticos, fazendo do domínio da política uma área da ética. Os princípios da bondade natural e da natureza cooperativa dos homens eram vistos como organizadores do sistema internacional e, assim, da construção de arranjos institucionais que pudessem dar-lhes corpo na comunidade das nações. Foi sob a égide dessa concepção que nasceu a Liga das Nações. No entanto, a Segunda Guerra Mundial colocou sérias dúvidas sobre a eficácia e a plausibilidade destas pressuposições para formular políticas capazes de elaborar uma organização do sistema internacional que proporcionasse equilíbrio e estabilidade duráveis. A partir de então, durante todo o período da Guerra Fria, a concepção realista predominou praticamente incontestável e foi responsável pela formulação dos mais importantes quadros de análise e explicações dos eventos internacionais. A concepção realista moderna assenta-se em várias pressuposições: de que o Estado é a entidade básica do sistema internacional, que as principais características destas entidades são o egoísmo e o interesse, que elas comportam-se no sentido de otimizar esses interesses e que o método de equilíbrio do poder, juntamente com um sistema de valores, funciona como um mecanismo pelo qual o sistema internacional se organiza numa configuração de equilíbrio estável.

Na década de 70 surgiu um programa que se propunha desafiar e competir com o programa realista: o programa neoliberal institu-cionalista,' proposto por Keohane e Nye.1 1 Keohane e Nye, 1970. Este programa emerge da percepção de que certos acontecimentos internacionais das últimas décadas parecem desafiar teses centrais da concepção realista. Por exemplo, a tese de que o Estado nacional é o único agente dos acontecimentos globais no sistema internacional é desafiada pelo surgimento de outros atores transnacionais, do mesmo modo como a tese da estabilidade hegemônica, tendo os Estados Unidos como o estabilizador do sistema internacional, é desafiada pela percepção de um declínio na hegemonia americana. Além disso, a idéia de que a característica dos conflitos no sistema internacional é de natureza ideológica/militar é também vista como cedendo lugar para a idéia de que sua natureza é antes de tudo econômica. Este último aspecto reforça o argumento de que, conforme esta concepção, deve-se buscar um afastamento de enfoque realista, pois ela seria mais ajustada a questões de ordem ideológico/militar e não à característica predominante, a econômica. Este último programa encontra-se ainda em processo de elaboração.

No entanto, na década de 90 essas duas concepções do sistema internacional estão sendo desafiadas por uma nova proposta acerca das características do sistema internacional. Elas estão sendo desafiadas pela proposta, por Huntington, do que pretende ser um novo paradigma da política internacional, que ele denomina "Choque das Civilizações". Este paradigma afirma certas pressuposições básicas, tais como: os principais eventos globais ou conflitos não são mais fundamentalmente de natureza ideológica/militar nem mesmo de natureza econômica, mas têm características culturais e civilizacionais; as entidades básicas do sistema internacional não são mais nem as unidades políticas definidas pelos estados nacionais nem os blocos econômicos ou outros atores transnacionais, mas agrupamentos dos quais o mais básico, e que permite a mais abrangente demarcação entre os indivíduos, é a unidade política "civilização". Assim, os principais conflitos internacionais contemporâneos são conflitos entre civilizações e não entre estados ou blocos econômicos, como consideravam as concepções anteriores, e têm uma característica antes cultural do que ideológica, militar ou econômica.

Esta proposta tem recebido forte apoio de um grande número de evidências proporcionado pelos eventos internacionais contemporâneos, os quais apontam para característicasc marcadamente culturais e religiosas. No entanto, quero assinalar que alguns problemas fundamentais permanecem. Um deles é quanto à questão da sua própria natureza. Assim, significa a proposta de Huntington que o novo paradigma pretende substituir o da Guerra Fria, entendido como o paradigma do realismo político? Ou, então, corresponde ele a um subparadigma do paradigma do realismo político e, neste caso, pretende substituir o subparadigma da Guerra Fria, também do realismo político? Qualquer que seja o caso, o paradigma da Guerra Fria, no entender de Huntington, proporcionou os meios para elaborar as mais importantes explicações dos eventos globais do sistema internacional pós Guerra Mundial, assim como produziu as normas que nortearam a construção e organização institucional deste sistema. No entanto, após queda do Muro de Berlim, ele se mostra inadequado tanto para explicar como para gerir, mediante as instituições correspondentes, as novas espécies de conflitos do sistema internacional contemporâneo, que dizem respeito a religiões, culturas, etnias e valores; são conflitos civilizacionais, em suma.

Neste contexto pretendo mostrar que Huntington não está desafiando o realismo político, representado pelo que chama de paradigma da Guerra Fria, mas apenas modalidades ou subparadigmas do próprio paradigma realista. Assim, minha tese central é de que sua concepção não passa de uma outra modalidade de realismo político. Não passaria de um caso, um modelo, ou ainda (para manter sua terminologia) um subparadigma do realismo político. Com o objetivo de esclarecer a proposta de Huntington introduzo, inicialmente, uma concepção mais geral de realismo político. Em seguida, apresento como modalidades ou modelos desta concepção básica aquilo que se convencionou chamar de diferentes concepções de realismo político. Pode-se ganhar em clareza e precisão sob este aspecto fazendo uso de uma outra linguagem a respeito de concepções, além daquela centrada na idéia de paradigma. Refiro-me portanto a uma concepção mais geral de realismo como "teoria realista da política internacional" e às suas instâncias como "modelos" desta teoria. Faço uso intercambiável deste dois tipos de linguagens: do paradigma e da teoria. Em seguida, faço uma exposição geral da concepção de Huntington para um novo paradigma da política internacional e de sua defesa em face das críticas apresentadas. Finalmente, elaboro minha tese, de que Huntington pode estar propondo apenas um novo modelo de realismo político ou, para não fugir da sua semântica metodológica, um paradigma interno (subparadigma) ao paradigma do realismo político e não um paradigma competidor deste. Defendo, assim, que Huntington pode estar deslocando, dentro do próprio realismo político, a ênfase para uma nova unidade política, e trazendo para o primeiro plano o papel da dimensão cultural nas questões de relação de poder entre essas unidades. Dessa forma, a unidade civiliza-cional (a unidade básica para Huntington) estaria substituindo aquela dos estados nacionais e blocos econômicos, e a característica relevante desta nova entidade, a dimensão cultural, adquiriria maior importância em relação à militar, ideológica e também econômica. Esses seriam os principais componentes a serem utilizados nas explicações dos eventos e conflitos globais, assim como nas considerações e sugestões normativas para organizar o arranjo institucional do sistema internacional.

A CONCEPÇÃO REALISTA

O quadro teórico geral do realismo político no tocante à política internacional propõe-se proporcionar uma síntese de todas as diferentes versões do realismo, que seria aplicável a todos os momentos da história da humanidade. Quando aplicado a um momento específico da história, permitiria entender a relação de poder entre as diferentes unidades políticas componentes do sistema internacional em questão.

A reconstrução deste quadro teórico e de seu projeto de pesquisa pode ser feita de maneira mais organizada e precisa mediante uma estrutura denominada Teoria da Ciência. A Teoria da Ciência é um método de reconstrução e organização de teorias com o objetivo de explicitar e organizar os principais componentes envolvidos na sua elaboração e desenvolvimento.

Uma Teoria da Ciência é uma estrutura composta de três níveis: metafísico, lógica da ciência e história. No nível metafísico descrevemos o domínio de estudo da teoria sendo reconstruída, assim como as características abstratas do conhecimento por ela proporcionado, os valores e os fins assumidos nesta área. No nível da lógica da ciência definimos os recursos metodológicos que descrevem como devemos construir a teoria e as explicações dos fenômenos estudados, assim como os métodos de escolha das teorias e das explicações construídas. Neste mesmo nível definimos também as características da legitimidade e justificação das concepções sendo elaboradas. No terceiro nível discutimos o papel que a história desempenha na concepção sendo reconstruída, se for o caso. O nível metafísico é composto, por sua vez, de três subníveis: o ontológico, onde ficam estabelecidas as principais entidades do domínio estudado; o epistemológico, onde são afirmadas as considerações sobre essas entidades e suas relações com os fenômenos; o axiológico, onde são afirmados os fins e os valores com os quais a concepção se encontra comprometida. O nível da lógica da ciência pode também ser dividido em dois subníveis: o metodológico (relativo à construção de teorias e explicações e à escolha entre elas) e o metamedológico.

Mediante esses recursos podemos construir uma concepção geral de realismo da seguinte maneira. (Contudo, não faremos uso de todas essas categorias.) No nível metafísico assume-se como a principal tese on-tológica a de que o mundo social existe e que sua entidade básica é o indivíduo. Neste nível o que se assume é a concepção do individualismo ontológico ou metodológico. Esta concepção parece ser a mais comum entre todos os realistas. Como primeira tese fundamental ontológica do sistema internacional assume-se a existência de uma unidade política e de relações fundamentais entre elas. Esses elementos são considerados como os principais componentes das explicações dos fenômenos internacionais. Neste quadro, os eventos globais ou internacionais são entendidos como sendo produzidos pelas ações destas unidades e pelas suas relações de poder. O que vêm a ser estas unidades políticas depende das circunstâncias históricas. Elas podem ser cidades-estados, estados nacionais, blocos econômicos, grupos, comunidades ou unidades civilizacionais etc. Elas são definidas historicamente e não impostas teoricamente pelos pressupostos do realismo político. Assim, na Grécia antiga as unidades políticas eram as cidades-estados. Na idade moderna as unidades políticas foram e são os estados nacionais. Nesta concepção a maneira como estas unidades são construídas a partir dos indivíduos depende também de cada uma das concepções em particular. Mas, em geral, elas têm sido consideradas de forma agregada. Esta agregação constitui um problema bastante importante. A segunda tese ontológica é conclusiva na sua afirmação de que o atributo principal dessas unidades é o interesse ou o poder. No entanto, o poder é visto como sendo multidimensional. Quais são as dimensões relevantes da determinação do poder depende também das circunstâncias históricas. Por exemplo, na Grécia antiga, a relação de poder entre as cidades-estados era determinada pela dimensão militar do poder, enquanto na idade moderna as dimensões predominantes na determinação do poder são de natureza militar/ideológica/econômica. Juntamente com estas teses, que definem o domínio do realismo político, temos pelo menos um conceito fundamental, mencionado acima, que é introduzido por meio de uma definição: o poder, que é entendido, por Morgenthau, como a capacidade de uma unidade política de alterar o comportamento de outra unidade política no sentido de fazê-la comportar-se conforme seu interesse. Do ponto de vista metodológico um dos principais compromissos do realismo político é o de proporcionar os meios de avaliar quantitativamente o poder. No que diz respeito às leis que regulam o comportamento destas unidades, é um pressuposto epistemológico que elas são obtidas a partir das leis das relações de poder, que são inerentes à natureza individual. Estes elementos formam o núcleo do realismo político. O realismo é definido, portanto, por afirmar que a natureza das relações entre as unidades políticas é de poder, que este poder tem múltiplas dimensões, que esta relação é considerada, em última instância, pertinente à natureza do indivíduo e que o comporta-mento destas unidades, como o dos indivíduos, é regulado pelo propósito de aumentar seu poder ou promover seu interesse. Não se trata, então, de determinação histórica, mas de um pressuposto que transcende o caráter histórico. Por outro lado, o cálculo desse poder depende das suas dimensões relevantes, que são determinadas pelas circunstâncias históricas. No nível epistemológico diríamos que o conhecimento das relações de poder entre essas unidades é formulada em termos de sistemas teóricos que são julgados por sua coerência e adequação empírica. No nível axiológico afirmamos que o principal fim normativo da teoria da política internacional, um fim transcendente, é o de ajudar a resolver o problema da paz e de sua durabilidade a partir daquelas considerações sobre as unidades políticas e as relações entre elas. Quanto a outros valores e fins, dependerão também das circunstâncias históricas. No nível da lógica da ciência, em particular no nível da construção de teorias e explicações, uma coisa certa é que todas as modalidades, ou modelos, de explicações realistas dos fenômenos internacionais ou globais devem, em última instância, reduzir-se a essas entidades e às relações de poder entre elas. A configuração do poder e o arranjo institucional do sistema internacional é considerado um resultado dessas relações ou da distribuição de poder no sistema.

Na linguagem metodológica adotada por Huntington diríamos que as diversas modalidades (ou modelos) do realismo fazem parte, na condição de subparadigmas, do paradigma mais amplo ou matriz: o paradigma realista. Como subparadigmas teríamos, por exemplo, a concepção realista de Morgenthau2 2 Morgenthau, 1967. , na qual as entidades particulares seriam os Estados nacionais e as dimensões fundamentais do poder seriam dependentes das circunstâncias históricas (modernamente elas seriam as dimensões população, geografia, capacidade militar, capacidade industrial, vontade nacional e moral nacional). De acordo com Morgenthau, a teoria da política internacional não deve apenas descrever como funciona o sistema internacional mas, comprometida com valores que indicam como a paz deve ser alcançada (por exemplo, com o valor de que o "estado mundial" é a única solução possível para o problema da paz e guerra), extrair normas para coordenar os esforços no sentido de conduzir o sistema internacional rumo à construção de um estado mundial. Outros modelos dessa concepção (ou subparadigmas do realismo) seriam o de Fukuyama sobre o mundo único; ou o modelo que, aos componentes acima, adiciona que a configuração do equilíbrio e estabilidade do sistema internacional depende da hegemonia de um ou mais países (estabilidade hegemônica). Um outro modelo é aquele que, dentro da concepção de Morgenthau, adiciona uma subdivisão do sistema internacional em três mundos.

O PARADIGMA DAS CIVILIZAÇÕES

Nesta seção analiso a proposta de Samuel P. Huntington3 3 Huntington 1994a e 1994b. , de um novo paradigma da política internacional. Buscando desafiar as concepções tradicionais e modernas da política internacional, ele propõe uma nova concepção, que denomina "Choque das Civilizações", e que denominarei neste texto "paradigma das civilizações". Para ele a política mundial está entrando numa nova fase, cuja natureza todas as propostas de análise falham em capturar: a sua dimensão cultural e civilizacional. Nesta fase, conflitos globais deixaram de ser fundamentalmente de natureza militar, ideológica e mesmo econômica para se manifestarem como conflitos de natureza civilizacional.

Na sua perspectiva o sistema moderno das relações internacionais pode ser considerado como tendo percorrido três grandes fases: a primeira, correspondendo ao período de um século e meio desde o tratado de Vestfália até a Revolução Francesa, pode ser caracterizada por serem os seus conflitos basicamente restritos ao mundo ocidental e terem como unidades políticas os governantes. Os estados nacionais foram criados nesta fase e o tratado de Vestfália visava consolidá-los.

A segunda fase, correspondendo ao período entre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial, pode ser caracterizada por serem os seus conflitos entre nações e não mais entre governantes, ainda no interior do mundo ocidental. Desta forma pode-se dizer que as unidades políticas entre as quais se distribuía o poder passavam a ser os estados nacionais é não mais os governantes, que representavam unidades como os principados ou as cidades-estados.

A terceira fase, correspondendo ao período entre a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa até a queda do muro de Berlim, pode ser caracterizada por ter como forma predominante de conflito de poder o confronto de natureza ideológica, ou conflito de ideologias e não entre nações. Essa terceira fase pode ser decomposta em duas subfases. A primeira é a do conflito entre três ideologias, o comunismo, o fascismo e a democracia liberal, e dura até final da Segunda Grande Guerra. A segunda subfase é caracterizada pelo conflito entre duas ideologias, a democracia liberal e o comunismo, indo do final da segunda guerra mundial até a queda do muro de Berlim. Esse conflito ideológico tornou-se a luta entre duas superpotências. A unidade política dessa relação de poder ainda era o Estado nacional, e as dimensões do poder relevantes eram a capacidade militar, a capacidade econômica e a arregimentação ideológica.

Finalmente, a nova ou quarta fase pode ser demarcada a partir da queda do muro de Berlim, e tem como característica que os conflitos internacionais decisivos não são mais de natureza ideológica, militar ou econômica, mas entre culturas. E as unidades políticas entre as quais essas relações de poder ou conflitos ocorrem passam a ser as unidades culturais, em particular as civilizações. Em conseqüência, um resultado importante desta nova clivagem de entidades políticas e relações de poder é que a política internacional deixa de ser uma política de características predominantemente ocidentais, inequivocamente marcada e coordenada por agentes, valores e instituições ocidentais, para tornar-se uma política entre culturas, e, portanto, entre civilizações; em particular entre a civilização ocidental e as não-ocidentais, e entre as não-ocidentais. Assim, nesta nova fase, a civilização ocidental terá de competir com as outras civilizações não-ocidentais. Estas não serão mais meras coadjuvantes ou pacientes da ação da civilização ocidental mas agentes que lutam para construir a configuração e o arranjo institucional do sistema internacional. De acordo com Huntington, "na política das civilizações, os povos e governos das civilizações não-ocidentais já não são os objetos da história enquanto alvos da colonização ocidental, mas juntam-se ao Ocidente como agentes e sujeitos da história".

Por tratar-se de uma proposta de um novo paradigma, Huntington mostra algum cuidado (ainda que insuficiente, como depois aponto) em esclarecer seus componentes e traços distintivos, em particular no que se refere à natureza tanto da nova unidade básica da política internacional quanto de seu atributo, característica ou fator principal. Em contraste com o paradigma dos estados nacionais, que fazia destas entidades os "principais agentes dos acontecimentos globais", o paradigma das civilizações, que se propõe como seu substituto, identifica como sua unidade básica a entidade cultural civilização.

A clivagem civilizacional vai estabelecer o nível mais geral de identificação de um indivíduo, grupo, comunidade ou nação, substituindo assim o critério da nacionalidade. Em conseqüência, forma a maior unidade política do sistema internacional. E consiste, também, no meio fundamental para estabelecer linhas demarcatórias entre indivíduos. Nesta hierarquia de identificação de indivíduos, segundo Huntington, apenas a separação entre indivíduos e outras espécies é mais básica do que a demarcação cultural. Para Huntington a civilização é "o mais amplo agrupamento cultural de pessoas e o mais abrangente nível de identidade cultural que se verifica entre os homens, excetuando-se aquilo que distingue os seres humanos das demais espécies. Define-se por elementos objetivos comuns, como língua, história, religião, costumes e instituições, e também pela auto-identificação subjetiva dos povos".

Huntington não se limita afazer da civilização o novo agente dos eventos globais. Ao afirmar que a unidade básica do paradigma que está sendo substituído, o Estado nacional, teve uma presença muito recente (apenas nos últimos quatro séculos) e portanto reduzida na história humana, ele procura enfatizar que a unidade civilizacional tem estado presente e agindo ao longo de toda a história. Por circunstâncias históricas as suas manifestações têm sido camufladas e abafadas tanto pelas outras unidades políticas quanto pelas dimensões militares, econômicas e ideológicas das relações de poder entre elas. Pode-se, assim, dizer que a história humana é, no seu sentido mais abrangente, uma história das civilizações. E é esta dimensão da política internacional que cada vez mais vai moldar e determinar a configuração e o arranjo institucional do sistema internacional e, com isso, os novos agrupamentos e alianças de poder. Até agora a civilização ocidental tem conduzido a política de poder do sistema internacional, pela sua predominância militar, econômica e mesmo cultural. Como diz Huntington, "exceto pelo Japão, o Ocidente não enfrenta desafio econômico. Domina as instituições políticas e de segurança internacional e, junto com o Japão, as instituições econômicas internacionais. (...) O Ocidente, de fato, está usando as instituições internacionais, o poder militar e os recursos econômicos para dirigir o mundo de modo a preservar o domínio ocidental, proteger os interesses ocidentais e promover valores políticos e econômicos ocidentais".4 4 Huntington, 1994a.

No entanto, entende ele que com o colapso do muro de Berlim, que simboliza a crise e destruição da matriz institucional do paradigma da Guerra Fria, emerge uma matriz institucional cuja principal conseqüência é que "o eixo central da política mundial no futuro tende a ser, na frase de Kishore Mahbubani, o conflito entre 'o Ocidente e o Resto', e as respostas das civilizações não ocidentais ao poderio e aos valores do Ocidente".5 5 Huntington, 1996 b.

Com este ponto, Huntington aponta para um aspecto fundamental do novo paradigma: formular novas estratégias de política externa, e, nesse sentido, está fazendo o papel que george Kenan6 6 Kenan, 1947. fez relação ao paradigma da Gerra Fria quando, em seu famoso artigo assinado como "Mr. X", tirou as importantes implicações para a política externa e doméstica americana formuladas como a estratégia de contenção americana ao ex-pansionismo soviético. E o núcleo dessa estratégia é que "o Ocidente terá que manter o poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses diante dessas civilizações... Será necessário, ainda, um esforço para identificar os elementos comuns entre a civilização ocidental e as demais. Pois no futuro não haverá uma civilização universal, mas um mundo de diferentes civilizações, e cada qual precisará aprender a conviver com as outras".7 7 Huntington, 1994a.

O PARADIGMA E SEUS COMPETIDORES

A proposta de Huntington não tem sido, contudo, recebida pacificamente e muito menos como proposta consolidada, mas apenas como uma proposta alternativa e competidora entre outras. Ela tem sido alvo de críticas de vários pontos de vista, principalmente dos representantes do realismo político. Como parte do esforço para consolidar seu paradigma, Huntington empenha-se em contestar essas críticas e empreender um processo de conversão dos seus adversários. A estratégia perseguida para contestar tais críticas segue a orientação teórica da interpretação da dinâmica do conhecimento intelectual e científico proposta por Thomas Kuhn.8 8 Kuhn, 1975. Essa estratégia segue as seguintes etapas.

Numa primeira etapa Huntington compromete-se com uma posição contrária à empirista vulgar, associada à crença na coleta neutra dos fatos e generalizações, seguida de organização destas generalizações. Huntington segue o ponto de vista de Kuhn, segundo o qual não há ciência sem paradigma, sem quadro teórico. Numa segunda etapa, Huntington compromete-se com a idéia de que a dinâmica do conhecimento intelectual e científico, que são formas de conhecimento abstrato, ocorre pela substituição ou transformação de quadros conceituais e não pelo acúmulo de dados ou leis empíricas. Com respeito à dinâmica kuhniana do conhecimento científico, Huntington menciona dois pontos importantes sobre a mudança de paradigmas, que devem guiar sua argumentação. O primeiro é que a mudança ou substituição ocorre todas as vezes que um paradigma se mostra incapaz de dar conta do aumento crescente de novos fatos ou descobertas, que se tornam anomalias no seu interior, e só serão explicados mais satisfatoriamente por um outro paradigma. O segundo ponto, no entanto, adverte que o novo paradigma, para ser aceito, não precisa explicar todos os fatos ou descobertas com os quais se defronta. Assim, Huntington sustenta que seu paradigma das civilizações pode explicar muitas das anomalias do paradigma anterior, ainda que não dê conta de todos os problemas. Ao contrário, abre muitas promessas de realizações, isto é, deixa muitos problemas para serem resolvidos por quem o aceitar.

Huntington começa por apontar que o paradigma da Guerra Fria, apesar de ser uma representação bastante simplificada do cenário mundial, foi muito útil. Ele dividia o cenário mundial em três grupos de sociedades: o Primeiro, o Segundo e o Terceiro mundos. O Primeiro Mundo era um grupo de sociedades relativamente prósperas e democráticas, em sua maioria lideradas pelos Estados Unidos. Este grupo travava um conflito com um outro amplo grupo de sociedades, o Segundo Mundo, lideradas pela União Soviética. Este conflito era de natureza ideológica, política e econômica e também militar. Um terceiro grupo de sociedades também participava deste conflito, o Terceiro Mundo. Este era composto de países geralmente pobres, politicamente instáveis, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, muitos com independência recente, e que, em geral, se pretendiam não-alinhados. O Terceiro Mundo era o principal cenário no qual este conflito se realizava. Este paradigma da Guerra Fria não explicava todos os eventos globais em curso. O número de anomalias era grande e, entre estas, uma parecia bastante singular: o conflito sino-soviético. Mas, como afirma Kuhn, um paradigma não explica todos os fatos e nem precisa fazê-lo para ser aceito. Além disso, o paradigma da Guerra Fria, como modelo simples da política global, explicava mais fenômenos importantes que qualquer um dos seus rivais; e, isto é fundamental para ser aceito como um paradigma. Como diz Huntington, este paradigma tornou-se "quase universalmente aceito e modelou o pensamento político mundial por duas gerações".

No entanto, as anomalias, que se avolumaram, permaneceram como um sinal das dificuldades e das fraquezas do paradigma, lançando suspeitas acerca de sua eficiência. Isto, na linguagem kuhniana, é sinal de crise do paradigma. Ainda assim, isto, por si só, não implica a exigência da sua substituição. Eventualmente o próprio paradigma realista possa resolver suas anomalias. De qualquer modo, enquanto não houver outro disponível os cientistas não abrem mão do atual, por mais dificuldades e problemas que ele enfrente. Huntington, entretanto, vê a crise do paradigma da Guerra Fria como decisiva. Entende ser necessária sua substituição por um novo: o das civilizações.

Huntington sustenta que um novo paradigma surgiu no rastro "dos dramáticos acontecimentos dos últimos cinco anos", reduzindo o da Guerra Fria a história intelectual. Segundo Huntington, e usando a terminologia kuhniana, esses eventos tornaram-se anomalias significativas para o paradigma da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, as novas explicações elaboradas por ele, em termos culturais, aparecem como verdadeiras realizações, sobre a qual o novo paradigma, o das civilizações, está se forjando e lutando para ser aceito. Nesta fase, então, o propósito de Huntington é de consolidar o seu paradigma das civilizações como o substituto do da Guerra Fria.

Huntington responde às críticas à sua proposta mediante a análise do que, para ele, são também propostas alternativas ao paradigma da Guerra Fria. Só há, para ele, duas candidatas a isso: a concepção estadista e a do mundo único. A primeira ele considera uma pseudo-alternativa, e a segunda uma alternativa irreal.

Os proponentes do paradigma estadista presumem uma oposição entre estados e civilizações e afirmam que os estados nacionais são as principais entidades e agentes dos acontecimentos globais, e que "estados controlam civilizações" e não "civilizações controlam estados". Huntington contesta tal oposição como irrelevante e artificial, além de afirmar que não se podem reduzir as relações entre estados e civilizações à dimensão de "controle". Não se pode negar que os estados buscam o equilíbrio de forças; mas as ações dos estados não podem ser reduzidas à mera distribuição de forças entre eles. Se assim fosse, os países da Europa Ocidental teriam se aliado à União Soviética contra os Estados Unidos no final dos anos 40. Na verdade, diz ele, os estados europeus ocidentais fizeram opções a partir de avaliações que transcendem a questão da correlação de forças e concernem também a valores, cultura e costumes. Neste aspecto pode estar uma profunda cisão com o realismo político: a natureza do conflito não é apenas de poder — a questão dos valores e da cultura não pode ser reduzida a poder e interesse.

No entanto, Huntington alerta que a crítica ao paradigma estadista não significa a recusa à idéia de que os estados nacionais "continuarão a ser os agentes mais poderosos dos acontecimentos mundiais". Mas significa a aceitação que eles são também membros de uma unidade mais fundamental, agora cultural e portanto mais ampla, que se torna um novo agente dos acontecimentos globais das civilizações.

A outra alternativa, que ele denomina de irreal, é o paradigma do mundo único ou da civilização universal. Seus proponentes afirmam que existe, ou é provável que exista em poucos anos, uma civilização universal. Afirmam portanto que há uma cultura ou civilização universal emergente. A primeira coisa que se pode dizer sobre isso é que não se pode negar que a espécie humana tem características comuns, que a distinguem das outras espécies. No entanto, para Huntington, "estas características sempre foram compatíveis com a existência de culturas muito diferentes".

Na crítica do paradigma do mundo único, Huntington recusa a concepção da convergência do sistema internacional para uma única sociedade ou Estado mundial. Sustenta que a História não terminou e que , o mundo não é um só. E a razão dessa multiplicidade de mundos é a dimensão cultural ou civilizacional. "O que de fato importa para as pessoas não é a ideologia política ou o interesse econômico. Fé e família, sangue e crença, é com isso que as pessoas se identificam e é por isso que lutam e morrem. É por isso que o choque entre civilizações está substituindo a Guerra Fria como fenômeno central da política global".9 9 Huntington, 1994a. (A propósito, cabe lembrar que recusar a convergência do sistema internacional para um Estado mundial é paralelo e compatível com as críticas kuhnianas, a partir da noção de paradigma e da teoria da dinâmica do conhecimento científico, ao mito da teoria da convergência da verdade. Kuhn afirma que não há garantias de convergência para um fim último. Não há teleo-logia na história, e este é um dos mitos de que análise da dinâmica do conhecimentos deve se desvencilhar.)

Numa análise mais detalhada desta proposta alternativa, ele examina uma das suas formas: a da universalização da democracia liberal. Seu primeiro argumento é o de que ela se assenta numa falácia, a "falácia da alternativa única". Esta falácia encontra-se por detrás do argumento de que o "colapso da União Soviética significa o fim da história e a vitória universal da democracia liberal em todo o mundo". Certamente, Huntington refere-se aqui à proposta de Fukuyama sobre o "fim da história". O paradigma da democracia liberal foi elaborado no sentido de ser a única alternativa ao comunismo. Portanto, ao ser destruída a primeira alternativa, ocorreria automaticamente a universalização da segunda. Ora, diz ele, podemos pensar em muitas formas de autoritarismo, nacionalismo, comunismo e corporativismo de mercado que ainda sobrevivem no mundo de hoje. Além disso, podemos imaginai" outras alternativas de universalização, por exemplo aquelas proporcionadas pelas alternativas religiosas, que são, hoje, percebidas como ideologias seculares. Neste aspecto, Huntington aproveita para aventai" que a força central do cenário mundial, que motiva e mobiliza os povos, seja a religião. Na esteira destes elementos e desta reflexão, ele considera que é extrema "presunção imaginar que, porque o comunismo fracassou, o Ocidente ganhou o mundo para sempre".

Em segundo lugar, argumenta-se que a interação crescente, proporcionada pela maior comunicação e mais meios de transporte, pode produzir uma cultura comum. Huntington responde afirmando que a interação crescente, em determinadas circunstâncias, pode produzir uma cultura comum, mas que também aumenta a probabilidade de guerras e reforça identidades, produzindo resistência, reação e confronto.

O terceiro argumento é o de que a modernização e o desenvolvimento econômico têm um efeito homogeneizador e ajudam a produzir uma cultura moderna comum semelhante à cultura que tem existido no Ocidente neste século. Huntington, apesar de aceitar que no mundo contemporâneo as sociedades modernas têm sido as sociedades ocidentais, recusa a identidade entre modernização e ocidentalização.

Huntington questiona também o paradigma de uma civilização universal. Tal civilização teria que ser produto de um poder universal, à semelhança do poder romano, que criou uma civilização quase universal nos limites do mundo antigo. Contudo, não há tal poder no mundo contemporâneo. Mesmo que não se possa negar que o poder ocidental estendeu sua cultura a boa parte do mundo, não há mais, hoje, um poder nesta civilização para continuar a estender e consolidar a cultura ocidental. Como diz Huntington, "o colonialismo europeu acabou; a hegemonia americana está se desfazendo. A conseqüência, à medida que se reafirmam moralidades, línguas, crenças e instituições nativas, é a erosão da cultura ocidental".

Finalmente, pode-se ir mais fundo e afirmar que não só não há um poder capaz de continuar a estender a cultura ocidental no sentido de universalizá-la mas que o próprio poder ocidental, apesar de encontrar-se no seu apogeu, começa a dar sinais de declínio e "será seguido, o que já começa a acontecer, pelo recuo da cultura ocidental". Associado a tudo isso, existe a percepção de que a civilização confuciana parece estar em rápido crescimento de poder. O Leste asiático mostra um crescimento em poder econômico, e este vai levar ao crescimento de seu poder militar, de sua influência política e, finalmente, de sua afirmação e influência cultural. O sucesso econômico é visto cada vez mais como a manifestação do valor de suas raízes, tradições, culturas e instituições, fazendo-os mais conscientes e orgulhosos de suas próprias civilizações e de suas identidades culturais. Enfim, conclui Huntington, "no futuro não haverá uma civilização universal, mas um mundo de diferentes civilizações, e cada qual precisará aprender a coexistir com outras".

No fecho da defesa da sua proposta Huntington afirma categoricamente que o estado atual do mundo é de conflito, ao contrário das previsões do paradigma do mundo único, para o qual esses conflitos se reduziriam, devido à universalização do liberalismo econômico, a proporções inferiores às do período da Guerra Fria. No entanto, num certo sentido, as violências e conflitos entre certas unidades políticas devem de fato diminuir. A correção a ser feita na previsão dos defensores da tese do mundo único é que os conflitos e violências entre estados e grupos vão diminuir, mas apenas no que diz respeito aos membros de unia mesma civilização. Em contrapartida, devem aumentar para os membros de civilizações diferentes. Como diz ele, "conflitos e violência também vão ocorrer entre estados e grupos de uma mesma civilização. Tais conflitos, entretanto, deverão ser menos intensos, e sua expansão é menos provável que os conflitos entre civilizações. Quando dois grupos fazem parte de uma mesma civilização, a probabilidade de conflito é menor".

UM SUBPARADIGMA DO REALISMO

Defendo aqui a tese de que a argumentação de Huntington não permite demarcar de maneira conclusiva sua posição relativamente à do realista político. Pelo contrário, sua concepção pode ser enquadrada dentro dos contornos dessa concepção. O ponto de partida para essa posição é o modelo de realismo político, que foi apresentado na primeira seção. Lá dois pontos são assumidos para definir o realismo político: 1) o pressuposto de que o indivíduo é, em última instância, a entidade fundamental do reino social e político e de que existem diferentes unidades políticas que interagem no interior desse reino; 2) que a característica fundamental do indivíduo e das unidades políticas em suas relações mútuas é o interesse ou poder. A utilizarão desse quadro permite mostrar que a interpretação do sistema internacional por Huntington pode ser considerada como a de um debate entre diferentes instâncias ou modelos do realismo. Em particular, a sua própria concepção aparece como um desses modelos ou subparadigmas.

Inicialmente vemos que Huntington parece identificar o paradigma da Guerra Fria com o que corresponde ao realismo político clássico. Neste sentido, ele assume dois aspectos deste: que as unidades políticas do sistema internacional são os estados nacionais e que as relações entre elas são relações de poder nas suas dimensões ideológica e militar. Huntington também identifica como competidores com este o paradigma estadista e o do mundo único.

No caso do paradigma da Guerra Fria, Huntington enfatiza como característica relevante a divisão do conjunto dos estados nacionais em três grupos: o Primeiro, o Segundo e o Terceiro mundos. Essa formulação pode ser facilmente mostrada como desempenhando o papel de um modelo ou um subparadigma do sistema internacional construído a partir do paradigma realista, considerando-se este como a matriz mais básica de outros paradigmas. No caso, as unidades políticas básicas são os três mundos em questão (definidos historicamente) e as relações entre elas são as relações de poder historicamente definidas como militares, econômicas e ideológicas. Assim, podemos pensar o paradigma da Guerra Fria como um caso particular do realismo político. Pois ele não passa de uma particulari-zação histórica dos dois elementos básicos do realismo político, referentes à natureza das unidades políticas e às relações de poder entre elas. Mais do que isso, o paradigma da Gueixa Fria é na realidade um subparadigma. Dado que identificamos as unidades políticas como os estados nacionais e as suas relações de poder como tendo como relevantes as dimensões militar, econômica e ideológica, podemos dizer que já neste nível estamos diante de um subparadigma do paradigma do realismo político, ou de um modelo da teoria do realismo político.

No caso do paradigma estadista, Huntington afirma que, por assumir que as unidades básicas do sistema internacional são os estados nacionais e que as relações de poder entre elas são de natureza militar, econômica e ideológica, ele não passa de uma pseudo-alternativa ao paradigma da Guerra Fria. Ele está certo ao afirmar isso, uma vez que esse pretenso paradigma, que ele mesmo criou como competidor, tem os mesmos pressupostos do da Guerra Fria. Tudo indica que Huntington o apresenta como um novo paradigma por uma questão de retórica. Isto serve a seus interesses estratégicos de defesa da sua proposta, por acentuar a idéia da crise do paradigma da Guerra Fria (pois neste caso teríamos a proliferação de teorias, que é um outro sinal de crise, ao lado da proliferação de problemas não resolvidos, ou anomalias).

Algo semelhante parece suceder com o que ele denomina paradigma do mundo único. Neste, temos os mesmos elementos do da Guerra Fria, com a adição de um valor e de um fim acerca da natureza política e econômica do mundo: o mundo se encontraria num processo de globalização ou convergência para um mundo de natureza política democrática liberal e de natureza econômica definida pelo mercado competitivo. Portanto, uma análise do paradigma do mundo único mostra que ele não é senão um caso daquele do realismo político, com as unidades sendo os estados nacionais, as relações de poder sendo predominantemente econômicas e com a adição dos valores e fins mencionados acima, que são totalmente compatíveis com o realismo político moderno, como demonstra Morgenthau.

Finalmente, com respeito ao próprio paradigma das civilizações, a mesma análise pode ser conduzida, para então apontar que Huntington, ao afirmar que as novas unidades não são apenas os estados nacionais mas comunidades, aldeias, cidades, grupos, civilizações, não está desafiando a concepção geral do realismo político. Pois este não especifica suas unidades políticas, mas as torna dependentes das circunstâncias históricas e do foco de análise. Da mesma maneira, Huntington, ao afirmar que a característica fundamental das relações entre essas unidades não é mais a relação de poder nas suas dimensões ideológica, militar e mesmo econômica, mas que se trata de relações de natureza cultural, pode ser interpretado como sustentando que, dentre as múltiplas dimensões do poder, torna-se agora relevante a dimensão cultural. A dimensão cultural ascende em importância em face das dimensões tradicionalmente consideradas como as mais relevantes nas relações entre as unidades políticas. Podemos, portanto, subsumir a proposta de Huntington à concepção mais geral do realismo político. Pois o realismo político afirma que o poder é multidimensional e que a definição das dimensões relevantes das relações de poder depende das circunstâncias históricas. A dimensão cultural é assumida teoricamente pelo realismo como dimensão determinante do poder. Neste sentido, o debate de Huntington pode ser inserido no quadro do realismo político. Mantendo a terminologia de Huntington, pode-se afirmar que o paradigma das civilizações não apresenta nenhuma revolução com respeito ao paradigma do realismo político, e que temos uma mudança profunda tão somente no interior do campo dos subparadigmas do paradigma realista. Urna análise, mesmo superficial, dos seus textos sobre o paradigma das civilizações mostra que a sua linguagem, o seu sistema teórico, as suas avaliações e recomendações são típicas daquelas do realismo político.

  • Chiappin, José R.N. Duhem's Theory of Science: An Interplay between Philosophy and History of Science. Ph.D thesis. Pittsburgh. University of Pittesburg. [1989]
  • Huntington, Samuel P. "Choque das Civilizações?". Revista de Política Externa. Vol. 2. Março. [1994A]
  • Huntington, Samuel P. "Civilizações ou o quê? Paradigmas do mundo pós-Gerra fria." Revista de Política Externa. Vol. 2. Março. [1994B]
  • Kenan, George. "The Sources of Soviet Conduct". Foreign Affairs, July. [1947]
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  • Keohane, Robert. Nye, Joseph S. Transnational Relations and World Politics. Cambridge. Harvard University Press. [1970]
  • Kuhn, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo. Editora Perspectiva. [1975]
  • Morgenthau, Hans. Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace. New York. Alfred. A. Knoff. [1967]
  • 1
    Keohane e Nye, 1970.
  • 2
    Morgenthau, 1967.
  • 3
    Huntington 1994a e 1994b.
  • 4
    Huntington, 1994a.
  • 5
    Huntington, 1996 b.
  • 6
    Kenan, 1947.
  • 7
    Huntington, 1994a.
  • 8
    Kuhn, 1975.
  • 9
    Huntington, 1994a.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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