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Segurança internacional: novos atores e ampliação da agenda

International security: new actors and changes of agenda

Resumos

Os desequilíbrios ecológicos, no mundo contemporâneo, têm a particularidade de não se circunscreverem às fronteiras nacionais. Assim, o problema não pode ser tratado exclusivamente da ética do Estado nacional. Isso sugere a incorporação de outros atores, os chamados não-governamentais, na formulação de políticas e de opções técnicas. Este artigo, tendo como referência o debate ambiental concernente à Antártida, explora a tese de que as preocupações globais com relação à componente ecológica ilustram como o sistema internacional está se ampliando, incorporando novos atores e uma nova agenda. Em decorrência, um renovado conceito de segurança internacional está emergindo, com conseqüências políticas e teóricas para as relações internacionais.


The impossibility of dealing with environmental problems in the contemporary world from the restricted viewpoint of the nation-state suggests that new actors have to be taken in account in the designing of policies and technical options. The environmental debate concerning the Antarctic is illustrative of this new feature of the international system. The author argues that, as as result of this change, a new concept of international security is emerging.


FRONTEIRAS

Segurança internacional: novos atores e ampliação da agenda

International security: new actors and changes of agenda

Rafael Duarte Villa

Prepara tese de doutoramento em Ciência Política na USP

RESUMO

Os desequilíbrios ecológicos, no mundo contemporâneo, têm a particularidade de não se circunscreverem às fronteiras nacionais. Assim, o problema não pode ser tratado exclusivamente da ética do Estado nacional. Isso sugere a incorporação de outros atores, os chamados não-governamentais, na formulação de políticas e de opções técnicas. Este artigo, tendo como referência o debate ambiental concernente à Antártida, explora a tese de que as preocupações globais com relação à componente ecológica ilustram como o sistema internacional está se ampliando, incorporando novos atores e uma nova agenda. Em decorrência, um renovado conceito de segurança internacional está emergindo, com conseqüências políticas e teóricas para as relações internacionais.

ABSTRACT

The impossibility of dealing with environmental problems in the contemporary world from the restricted viewpoint of the nation-state suggests that new actors have to be taken in account in the designing of policies and technical options. The environmental debate concerning the Antarctic is illustrative of this new feature of the international system. The author argues that, as as result of this change, a new concept of international security is emerging.

O campo das relações internacionais apresenta uma tendência que sinaliza uma superação da concepção estatocêntrica. Esta visão identifica os Estados como os únicos atores do sistema internacional com capacidade de decisão; ou, pelo menos, como os únicos com capacidade de influir nos processos de tomada de decisão. Expressa no conceito clássico das relações internacionais, remete sua argumentação teórica à metáfora das "bolas de bilhar", segundo o modelo de Morgenthau.1 1 Morgenthau, Hans. Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace. New York, A.A. Knopf, 1950. Seguindo este modelo, o sistema internacional está constituído por Estados soberanos que se comportam anar-quicamente, ao estilo de bolas de bilhar. Os Estados, nesta situação, estariam interessados fundamentalmente na sua segurança, o que os levaria a definir seu interesse nacional em termos de poder, o que implica que um incremento no poder de um Estado origina a diminuição do poder relativo do outro. Dessa forma, essa concepção vê a especificidade das relações internacionais predominantemente no uso da força, reduzindo o sistema internacional ao fluxo de intercâmbios entre os únicos atores, os Estados, com capacidade para monopolizar e utilizar a violência. Nesse sentido, as relações internacionais são definidas como um sistema interestatal.

Recentes tendências nas relações internacionais apontam para a incorporação gradual de novos atores. Num primeiro momento, esses novos atores estiveram limitados aos organismos internacionais tipo ONU: "sin embargo, no se agota allí, el espectro de entidades que desenvuelven sua acción en el ámbito internacional. La aparición de nuevos actores, los chamados multinacionales o transnacionales, denota la existencia de otro tipo de vinculación o existencia, más allá de los Estados, que a nivel internacional, a veces, se transforman en verdaderos competidores del Estado-Nación".2 2 Colacrai de Trevisán, Mirian. In: Carlos Moneta (org..). La Antártida en el sistema internacional del futuro. Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano/Centro Lartinoamericano de Estudios Estratégicos, 1988. p. 163.

Raymond Aron tem sintetizou bem essa tendência no que designou de sociedade internacional ou mundial: "esta fórmula designa, sem descrevê-la, uma totalidade que incluiria ao mesmo tempo o sistema inter-estatal, o sistema econômico, os movimentos transnacionais e as diversas formas de troca (de comércio, no sentido lato do século XVIII), as sociedades e as instituições supranacionais"3 3 Aron, Raymond. Os últimos anos do século. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987. p. 27. .

A existência desses novos atores, que têm por âmbito de ação a sociedade internacional, gera novos tipos de vinculações extra-estatais, que dizem respeito a contatos, coligações e interações através de fronteiras estatais que não são reguladas nem controladas pelos órgãos centrais da política exterior. Cumprem por vezes uma dupla função: constituem fatores de pressão dentro de cada Estado e conservam, por sua vez, sua dimensão internacional. O espectro de sua atividade é variado. A influência pode se dar no campo político, econômico, cultural, religioso, existindo também uma multiplicidade de grupos pacifistas e ecológicos. A profundidade de sua ação é também diversa, na medida em que podem passar do plano da pressão ao plano do confronto político e à ação direta.4 4 Colacrai de Trevisán, Mirian, op. cit.

Este salto qualitativo do quadro das relações, internacionais no que se refere aos atores políticos, significou também a introdução de novos temas. Limitado ao tradicional objeto das relações de poder entre Estados-Nação e, em conseqüência, reduzido aos temas da segurança nacional-militar e econômicos-tecnológicos, o sistema internacional começou a ser revisitado com a aparição de novos temas como ecologismo, desarmamentismo, anti-racismo, direitos humanos, tráfico de drogas, crescimento populacional, migrações internacionais, entre outros. Deu-se, em outras palavras, a ampliação da agenda das relações internacionais.

Deve ficar claro, entretanto, que pensar a noção metodológica realista, baseada no "estado de natureza hobbesiano", como não-adequado, em certas circunstâncias, para o estudo das relações internacionais pós-Guerra Fria, não entra em contradição com o reconhecimento de que o Es-tado-Nação permanece ainda como o principal instrumento e/ou referente das relações internacionais. O que se pretende é chamar a atenção para a constatação de que o Estado-Nação parece estar perdendo a exclusividade e o monopólio do direcionamento das relações internacionais.

UM CASO REPRESENTATIVO: A ANTÁRTIDA

A Antártida, como objeto de estudo da história, tem sua existência mencionada já nas viagens de navegantes portugueses, a serviço da coroa espanhola, realizadas no século XVI, na tentativa de identificar as águas do Atlântico Sul. Mas seria James Cook, oficial da armada britânica, quem atravessaria, pela primeira vez, o Círculo Polar Antártico, em 1772.5 5 Ver, para estes dados históricos: Castro de, Terezinha. Rumo à Antártida. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1976. pp. 16-17; Sullivan, Walter. En busca de un continente. México, Editaria Roble, 1965. p.27. Porém, a Antártida, continente gelado — o chamado sexto continente, com 14 milhões de quilômetros quadrados e 70% das reservas mundiais de água — situado no extremo mais austral do planeta, foi considerado, por muito tempo, como um espaço com influência marginal em relação à interação global de elementos políticos, econômicos e estratégicos do sistema internacional. Contrariamente a essa constatação, afirmou-se um imaginário da Antártida em que predominava um convite à aventura romântica no desconhecido, ou, em uma versão "científica" da mesma percepção, ressaltavam-se seus supostos e fabulosos recursos econômicos. Ambos os imaginários demonstravam, na verdade, a ausência de um referente sólido de conhecimentos objetivos nos quais enquadrar as potencialidades e problemas da Antártida.

Essa percepção marginal, entretanto, começaria a mudar no final dos anos 50 de uma forma até certo ponto sui generis. No final da década de 1950, o cenário internacional apresentava uma polarização ideológica e militar em torno das duas superpotências, que, apoiadas no desenvolvimento tecnológico do arsenal atômico, consolidaram sua hegemonia no período do segundo pós-guerra. Este fato significou, também, desde a Conferência de Yalta, em 1945, a divisão dos espaços geográficos mundiais em áreas de influência no contexto internacional da Guerra Fria. A Antártida foi possivelmente o único território, incluindo os continentais e peninsulares, com respeito ao qual as superpotências chegaram a um consenso mínimo para poupá-la dos efeitos do conflito. Nesse sentido, a partir de uma iniciativa norte-americana, em 1959 assina-se, por motivo do Ano Geofísico Internacional, o Tratado Antártico.6 6 Os países assinantes originais do tratado foram: Austrália, Argentina, Chile, Noruega, Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Japão, África do Sul, Bélgica e URSS. Os membros dividem-se em Partes Consultivas (com plenos direitos) e Não-Consultivas (só direito a voz). Estes últimos podem virar Partes Consultivas desde que realizem significativa pesquisa e instalem uma base científica. Sua disposição mais importante refere-se ao "congelamento" das reivindicações de soberania sobre o continente antártico, o que foi muito relevante, levando-se em consideração o fato de a Antártida ser a única porção geográfica do planeta onde ainda é possível a qualquer Estado fazer reivindicações territoriais. Mas, por outro lado, o Tratado Antártico deixou indeterminado o status jurídico daquela região, isto é, não a definiu nem como território submetido à soberania, nem como herança comum da humanidade, nem como terra nullis. De início, isso fez surgirem duas posições básicas em torno deste problema: 1) a dos países membros do Sistema Antártico com pretensões de soberania, embora devamos esclarecer que, no caso dos países reivindicantes de soberania (Argentina, Chile, Inglaterra, Nova Zelândia, França, Noruega e Austrália), tais reivindicações foram feitas anteriormente à assinatura do Tratado; 2) a dos países liderados por Malásia, Antigua e Barbados, que defendiam uma internacionalização da Antártida sob a figura de patrimônio comum da humanidade.

A análise que vem a seguir realiza uma leitura da Antártida diferente do que tradicionalmente costuma-se priorizar as reivindicações de soberania de alguns membros do Sistema do Tratado Antártico, ou as propostas de internacionalização de alguns países do Terceiro Mundo. Em vez disso, a atenção será dirigida a seus aspetos relacionados com o meio ambiente. Essa escolha, ou hierarquia de problemas, não poderia ser aleatória. Ao contrário, o surgimento de novos atores internacionais, a ampliação da agenda das relações internacionais e uma nova visão de segurança internacional estão diretamente vinculados ao debate ambiental global.

A INTERAÇÃO DOS ATORES

O tratamento ecológico da Antártida é recente. Um fato fundamental, ocorrido em 1988, veio a definir a natureza do debate sobre a Antártida. Foi redigida, neste ano, pelos países membros do Tratado Antártico, a "Convenção para a Regulamentação das Atividades sobre Recursos Minerais", ou "Convenção de Wellington", que regularia a exploração futura de minerais na Antártida. A assinatura desta Convenção abriu uma extensa polêmica sobre os efeitos globais de uma Antártida poluída. Não é por acaso que as principais vozes discordantes da Convenção de Wellington foram a organizações não-governamentais ambientalistas. É importante destacar, entre as ONGs ambientalistas presentes na Antártida, o grupo Greenpeace que é o único ator não-estatal a ter uma base de pesquisas científicas na Antártida.7 7 Nos anos anos 87-88 o Greenpeace produziu detalhado relatório sobre a Antártida, que mostrava os crescentes impactos ambientais originados pelas bases científicas dos países presentes na Antártida.

A necessidade de a Convenção de Wellington ser aprovada decorria de um sólido argumento dos atores estatais do Sistema do Tratado Antártico: sua não-aprovação poderia gerar uma corrida incontrolável pela exploração mineral e uma conseqüente deterioração ambiental, pois considerava-se praticamente impossível, em resguardo do interesse nacional, renunciar à exploração de riquezas econômicas como o petróleo e o krill (uma espécie de camarão) na Antártida.8 8 Leis, Héctor. "Ecologia vs. soberania - notas sobre a questão antártica" In: Separata Brasil Perspectivas jul.-dez., 1989.

Os atores não-estatais ecológicos que faziam pressão pela preservação ambiental da Antártida, representados na Coalização Antártica e do Oceano Ártico (ASOC), por sua vez, tinham também dois sólidos argumentos para contrapor aos atores estatais. A pesquisa científica para detectar mudanças globais na biosfera depende de uma Antártida intocada, uma vez que, se ela sofresse alterações ambientais, perder-se-ia a possibilidade de utilizá-la como laboratório privilegiado de pesquisa planetária. E, além da poluição localizada e dos riscos para seus frágeis ecossistemas, há ainda o problema do aumento da poluição global que se produziria pelo ingresso dos principais recursos do continente — petróleo, gás e carvão — no sistema produtivo internacional. São precisamente esses combustíveis fósseis os principais responsáveis pelo efeito estufa.9 9 Ibid., p. 14. A proposta concreta da ASOC era então estabelecer uma "Convenção para a Proteção Permanente do Ambiente Antártico", o que incluiria transformar a Antártida num "parque mundial".10 10 O ponto de vista da ASOC está contido nos seguintes documentos: "Protección permanente para a Antártida: se requiere con caracter urgente una convención para la reglamentación de las actividades minerales", (s/d), (s/l); "Análisis de la Convención para la Reglamentación de Actividades de Recursos Minerales Antárticos", Buenos Aires, 1988. Ambos impressos pelo Greenpeace.

Nesse confronto de posições, dois elementos importantes consolidaram os argumentos dos ambientalistas: o já citado "Relatório da expedição antártica Greenpeace 1987/1988" e o impacto que causou na opinião pública mundial o vazamento de combustível de um petroleiro da Exxon Valdes, em 1989, no Alasca. Esses dois fatos foram de importância fundamental, pois tinham uma vinculação direta com as mudanças ambientais globais e ocasionaram uma mudança de posições no interior do Sistema do Tratado Antártico. Tal mudança veio a se refletir diretamente no fortalecimento dos objetivos das ONGs ambientalistas: "quando o Greenpeace, em 1982, se prôpos a proteger a Antártida, através de um parque mundial, o 'senso comum' ( e a maioria dos internacionalistas) qualificava de utópico e politicamente impossível esse objetivo. No entanto, sete anos depois não foi o Greenpeace que mudou, e sim importantes membros do Sistema do Tratado Antártico."11 11 Leis, Héctor, op. cit., p. 15. Em 1989, dois países do Sistema do Tratado Antártico reivindicantes de soberania, França e Austrália12 12 Juntos, esses dois países reivindicam quase 45% do território antártico, sendo que só a Austrália reivindica 43%. , anunciaram que estavam se abstendo de assinar a Convenção de Wellington. Em seu lugar, em declaração conjunta, passaram a propor a criação de uma "reserva internacional natural" para a Antártida, proposta inspirada no Regime Permanente de Proteção Ambiental ou "parque mundial" feita pelas ONGs ambientalistas.13 13 "Documento de Declaração Conjunta Franco-Australiana sobre a Antártida", Paris, 1989. No caso da França, a mudança foi influenciada pelo fortalecimento interno da green politics e por uma resolução do Parlamento Europeu, avaliando que "convinha renunciar à exploração das riquezas minerais da Antártida". Ver, para esta declaração: Parlamento Europeu. Doc. A2-57/87. A posição da França e da Austrália viu-se reforçada com a adesão de outras Partes Consultivas, como a então União Soviética, Bélgica, Itália, Polônia, e Nova Zelândia. Esses países passaram, inclusive, a defender a proposta do "parque mundial".

Em outro bloco de Partes Consultivas, favoráveis à assinatura da Convenção de Wellington, alinhavam-se Estados Unidos, Inglaterra, Argentina e Chile. No caso dos Estados Unidos, compreende-se o interesse nacional pelo petróleo. Mas no caso da Inglaterra — país produtor de petróleo — Argentina e Chile, além dos interesses geopolíticos que os animam14 14 É preciso ter em mente a superposição de reivindicações teritoriais antárticas da Inglaterra, Argentina e Chile entre os meridianos 20 e 90 de longitude oeste, e as projeções do impasse anglo-argentino pela disputa das Malvinas, assim como as projeções do impasse chileno-argentino pelo Canal dos Beagle. Estas considerações são levadas em conta para a definição da política antártica destes três países. , a posição deve ser interpretada como uma forma de se opor ao surgimento de qualquer instância administrativa supranacional que diminua a força de suas já minguadas pretensões de soberania antártica.

Em abril de 1991 realizou-se a Conferência Antártica de Madri, em que se confrontaram duas posições: a proposta franco-australiana, agora mais radicalizada, em vista de a ela ter se acrescentado que a Convenção de Proteção Ambiental Permanente proibisse ad infinitum toda atividade de prospecção ou mineração; e a proposta norte-americana — apoiada por Japão, Alemanha e Inglaterra — de redigir um protocolo que deixasse aberta a possibilidade da mineração antártica no futuro próximo. As partes entraram dessa forma num impasse, devido à atitude intransigente de ambos lados. Mas as negociações levaram a uma proposta intermediária, o Protocolo de Madri, que proíbe por 50 anos qualquer atividade de prospecção ou exploração mineral na Antártida. Mesmo assim a posição dos Estados Unidos continuou irredutível. O impasse só se resolveu quando o Japão e a Alemanha — pressionados pelas organizações verdes internas — se decidiram pela moratória de 50 anos, deixando isolada a posição anglo-americana.

O revés anglo-americano não foi encarado com muita satisfação pelas transnacionais americanas do petróleo, que passaram a pressionar o governo de Bush para que o Protocolo fosse revisto. Essa pressão surtiu efeito quando, em nova reunião das Partes Consultivas em junho de 1991, o governo Bush surpreendeu o resto das delegações ao anunciar que não assinaria o Protocolo se não fosse revisto o artigo 25. Diante da insistência de lobbies industriais, o governo Bush denunciou o artigo 25 do Protocolo, que exige o consenso para permitir uma eventual prospecção mineral do continente antártico.15 15 Folha de S. Paulo, 5 de julho de 1991. Porém, a pressão das organizações ecológicas, do Presidente francês Mitterand, do Prirneiro-Ministro australiano Bob Haw-ke e de uma parte da imprensa norte-americana fizeram com que Bush recuasse e assinasse o Protocolo.

A assinatura do Protocolo de Madri significou um revés à política exterior americana para a região. De outra parte, deve-se interpretar esse fato, um caso evidente de jogo de soma-zero nas relações internacionais, como um claro ganho tanto do bloco de países que constituem as Partes Consultivas, liderado pela França e pela Austrália, quanto das ONGs ambientalistas, encabeçadas pelo Greenpeace. Se, por um lado, as ONGs não conseguiram que se endossasse a proposta de transformar a Antártida num "parque mundial", por outro, elas conseguiram realizar o objetivo de que a Antártida fosse definida como uma "reserva natural" pelo Protocolo.

O epílogo da discussão do Protocolo de Madri não deixa dúvidas sobre a crescente integração de diversos atores políticos internacionais no que respeita ao futuro do continente gelado, tornando os planos interdependentes. Daí o interesse geo-estratégico e econômico dos Estados Unidos coincidir com o das multinacionais do petróleo. Entretanto, a posição das ONGs ambientalistas encontraram receptividade em atores estatais do Sistema Antártico. Nessa interação e desencontro de interesses, a ameaça representada pelos desequilíbrios ecológicos globais agiu como ponto de regulação das posições. O que pode acontecer no futuro, ao cabo dos 50 anos do Protocolo, é imprevisível e dependerá da conjuntura internacional. O importante a destacar, contudo, é que as negociações do regime de minerais mostraram uma tendência daquilo que será, no futuro, uma característica do sistema internacional: a superioridade material, em força e recursos econômicos, nem sempre será o último argumento a dirimir disputas. O sistema internacional tornou-se mais complexo quanto a atores e temas. Surgem, portanto, novos fatores na política internacional, daí que os argumentos de atores com pouca ou nenhuma força material, em comparação aos Estados ou às multinacionais, possam prevalecer em determinados momentos e condições.

O argumento inicial sustentava que no Sistema do Tratado Antártico, o Estado-Nação, representado nas Partes Consultivas e Não-Consultivas, conservava seu poder de negociação e decisão. Isto poderia, eventualmente, forçar uma solução no sentido de abrir novos espaços para as reivindicações de soberania ou de internacionalização. Observou-se, no entanto, que recentes fatos indicavam também a possibilidade de uma saída que não priorizava nem uma nem outra opção, mas sim um acordo em torno de considerações ambientais, que passavam a ser o eixo central das preocupações estatais. A assinatura do Protocolo de Madri serve de evidência empírica a essa proposição teórica.

Tal proposição, portanto, não têm por embasamento um raciocínio determinista abstrato, e sim referências fatuais concretas, tais como a discusão da Convenção de Wellington, o "Relatório da Expedição Greenpeace 1987/1988" e a posição conjunta franco-australiana. Esses dados da realidade antártica permitiram identificar a priorização das questões ambientais, por parte dos atores estatais antárticos, em tomo de uma preocupação comum: os potenciais desequilíbrios ambientais globais que uma exploração mineral da Antártida poderia gerar. Ora, essa priorização responde, primeiro, à importância que, em nível internacional, os problemas ecológicos adquiriram desde a década passada. Segundo, ela responde à pressão, municiada em dados precisos, dos atores transnacionais ambientalistas. Esses dois fatores tornaram possível uma polarização de posições estatais — que se expressou na criação de dois blocos de países, um a favor e um contra a permissão à mineração — no interior do Sistema do Tratado Antártico. Nesse sentido, a forma como se deu a discussão do regime de mineração na Antártida é uma demonstração de como a Antártida constitui um exemplo ilustrativo das mudanças que estão se operando no sistema internacional, no que diz respeito à incorporação de novos atores e à ampliação da agenda com novos temas.

AS CONSEQÜÊNCIAS DAS MUDANÇAS

A principal conseqüência da proposição acima é a verificação de uma tendência à relativização do papel do Estado no sistema internacional — ainda o principal agente das relações internacionais — na medida em que os processos de tomada de decisão sejam resultantes de processos globais. Tais processos envolvem aspectos da administração monetária, saúde, formas de regulamentação das comunicacações, questões ambientais, explosão populacional, migrações internacionais, entre outros. Convém, entretanto, esclarecer dois pontos: primeiro, a relativização não se dá pelo lado da soberania interna do Estado, isto é, enquanto ente que define normas, regulamentos e políticas num dado território. Dá-se a relativização na chamada "autonomia do Estado", quer dizer, na capacidade de o Estado continuar agindo e fixando objetivos políticos, independentemente das restrições internacionais e transnacionais.16 16 Held, David. "A democracia, o Estado-Nação e o sistema global". Lua Nova 23, março de 1991. Segundo, o impacto dos processos globais depende muito da natureza dos mesmos. Por exemplo, a posição do Estado nas questões militares continua inabalável.

É cedo ainda para falar em consolidação de um processo de tomada de decisões internacionais de múltiplos centros, ou, se se prefere de múltiplos atores. O Estado continua a ser o eixo principal, mas não exclusivo, do proces-so de decisões internacionais. Isso significa que a tendência, caso se consolide, aponta para um processo de tomada de decisões a partir de uma diversidade de atores. No caso da Antártida, as Partes Consultivas não perderam, em momento algum, a capacidade de decidir sobre o futuro do continente. Assim, conservaram o papel de eixo central do Sistema. Aliás, as regulamentações mais recentes, como o Protocolo de Madri, deram-se em conformidade com as formalidades jurídicas definidas pelo Sistema do Tratado Antártico. Acontece, porém, que politicamente a decisão de congelar por 50 anos a questão da mineração mostra que se desenham negociações e acomodações de interesses que escapam ao controle exclusivo do Sistema Interestatal Antártico. A proposta franco-australiana, referendada pelo Protocolo, que define a Antártida como "reserva natural, terra da paz, terra da ciência", está próxima, de outra parte, da proposta do "parque mundial" dos grupos ecológicos. Isso comprova a influência que tiveram os atores transnacionais ambientalistas — caso do Greenpeace — na decisão final de congelar por 50 anos qualquer possibilidade de mineração. Significa dizer que o Sistema do Tratado Antártico tomou essa decisão com base nas considerações feitas, dentro e fora do Sistema, por atores internacionais sensibilizados com a problemática ambiental global.

É possível pensar também que essa decisão tenha sido facilitada pelo significado tão próximo do cotidiano que têm as questões ambientais. Após o declínio da Guerra Fria, o tema das mudanças ambientais globais surge como um dos principais da agenda internacional. Isso sem desconhecer o impacto, no sistema internacional, do ressurgimento de velhos ternas, como os nacionalismos, que se expressam nos conflitos raciais e religiosos em várias das ex-repúblicas soviéticas ou na ex-Iugoslávia; ou de temas como a consolidação das democracias no Leste Europeu, ou ainda a vertiginosa ascensão das economias japonesa e alemã e, como resultante, o hipotético declínio da hegemonia americana.

Fala-se, com freqüência, no caráter global, ou sistêmico, da questão ambiental. A paridade nuclear que caracterizou o período do segundo pós-guerra também teve esse caráter. Só que o chamado "equilíbrio do terror" surgia como um fato centralizado no Estado e racionalizado em complexas fórmulas estratégicas — como a "destruição mútua assegurada" ou a "dissuasão gradual" —, e, por isso mesmo, mitificado no espaço do diálogo cotidiano. O fato ambiental, ao contrário, é descentralizado e escapa ao controle e à manipulação política e técnica unicamente por parte dos centros de decisão estatal. Seu controle e manipulação requerem um mínimo de cooperação e coordenação com outros organismos internacionais, nem sempre estatais. De outra parte, as conseqüências, e possíveis desdobramentos, dos desequilíbrios ambientais, expressos em simples fórmulas como "poluição", começam a formar parte da fala do cotidiano.

Para as relações internacionais, o advento da problemática ambiental seria meramente episódico se seus efeitos, em nível nacional e global, não afetassem as relações de poder entre os Estados. Mas afetam. As interações globais, que envolvem a questão ambiental, fizeram com que algumas funções tradicionais do Estado (segurança, administração da economia, comunicações, etc.) deixassem de ser tratadas nos marcos reduzidos das relações bilaterais ou multilaterais estatais. Depois, o caráter sistêmico do fenômeno e a permeabilidade das fronteiras nacionais fizeram o Estado começar a considerar a possibilidade de ampliar o conceito de segurança,17 17 Nesse sentido, refiro-me aqui à questão ambiental como um outro elemento que se incorpora ao conceito de segurança. Não acredito, como Clóvis Brigagão em "Segurança ecológica: Amazônia e Antártica, 1990" (mimeo), que a problemática ambiental defina ura novo tipo de segurança. Prefiro acreditar que a questão ecológica é um elemento a mais que se integra no conceito de segurança internacional. tradicionalmente limitado à questão das barganhas militares, e, desde a década de 70, voltado também para os fatores econômicos-tecnológicos. O elemento ecológico veio, então, incorporar-se à definição de segurança.

Contudo, embora os fatores militar, econômico-tecnológico e ambiental sejam componentes de um conceito de segurança ampliado, existem diferenças entre estes três elementos. A forma como os fatores militares e econômicos-tecnológicos afetam as relações entre Estados supõe uma ampla concorrência com o outro, seja pela primazia de armas convencionais e estratégicas, seja pelo controle dos mercados. O componente ambiental da segurança, diferentemente, não supõe a ameaça do outro Estado, mas a ameaça de um fator externo, comum a todos e para todos os Estados. De outra parte, a globalidade das questões militares e econômicas-tecnológicas supõe sempre que o arranjo dos atores hegemônicos é condição suficiente para o funcionamento das regras do jogo. Esse era o princípio em que se sustentava o "equilíbrio do terror". A globalidade da questão ambiental implica, por sua vez, que os arranjos nos centros hegemônicos podem ser inócuos sem a cola-boração de, ao menos, potências intermediárias e de alguns atores não-estatais. Os acordos sobre os CFCs (gases que atigem a camada de ozônio), para ilustrar, seriam inúteis sem a participação dos países em desenvolvimento, produtores de aerosóis e das multinacionais do ramo.18 18 Os acordos sobre os CFCs seriam poucos efetivos sem a participação da Dupont, a maior na área.

No futuro, podem surgir conflitos que não necessariamente impliquem ameaças políticas e militares à soberania nacional. Eles também podem advir da deterioração do meio ambiente e das opções de desenvolvimento. Tal como sustentado por Rowlands,19 19 Rowland, Ian. "The Security Challenges of Global Environmental Change". The Washington Quarterly, Winter, 1991, p. 135. o maior exemplo de ameaça ambiental à segurança nacional é representado pelo "fluído de material transnacional". Esta categoria incluiria toda matéria natural poluente que flui de um Estado a outro. Isso diz respeito às matérias que, após cruzar os limites das fronteiras nacionais (através do ar ou da terra), podem provocar degradação no ambiente físico de várias formas — a contaminação de águas, de produtos agrícolas, a destruição de florestas, etc. Essas formas de poluição podem desestruturar o modo de vida normal de um país, e, portanto, ameaçar a segurança do Estado.

A REDEFINIÇÃO CONCEITUAL

Em decorrência do que foi dito, a redefinição do conceito de segurança parece inevitável: o conceito de soberania nacional foi substancialmente atingido pela interdependência nos campos econômico e ecológico. Nessa perspectiva, os bens comuns a todos não podem ser geridos a partir de um único centro nacional. O Estado-Nação passou a sentir-se impotente quando se trata de lidar com ameaças a ecossistemas que pertencem a mais de um país. Isso quer dizer que só é possível lidar com as ameaças à segurança ambiental mediante a administração conjunta ou multilateral.

A redefinição do conceito de segurança, formulada dessa forma, teria dois significados. Primeiro, os desequilíbrios ambientais (um dos cernes da redefinição) são um efeito do crescimento populacional, da expansão urbana e do padrão tecnológico. E devemos ter clareza que não se trata da substituição de um conceito por outro; isto é, da substituição de um conceito de segurança militar-econômica-tecnológica por um outro de segurança ambiental. Trata-se de uma ampliação dos elementos do conceito, como destaca o relatório Brundtland: "para reduzir as ameças à segurança decorrentes de fatores ambientais é preciso redefinir as prioridades tanto no plano nacional como no global. Essa redefinição se daria pela ampla aceitação de concepções mais abrangentes de segurança e incluiria componentes militares, políticas e ambientais, entre outras".20 20 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1988.

É interessante anotar que essa visão de segurança ampliada começa a passar por um esforço inicial de elaboração conceituai. No âmbito político-acadêmico surgiu uma corrente que coloca a eco-segurança como uma macro-realidade que revisita os paradigmas, os modelos teóricos das relações internacionais. Os principais expoentes dessa corrente são Jessica Mathews, Edgardo Mercado Jarrín e Norman Myers.21 21 Jessica Mathews trabalhou de 1977 a 1979 no Conselho de Segurança Nacional do governo norte-americano, como diretora do Escritório de Questões Globais, enquanto Edgardo Mercado Jarrín foi ministro peruano de Relações Exteriores no governo militar-nacionalista de Velazco Alvarado. Aliás Mercado Jarrín pode ser considerado, junto a Cavagnari no Brasil, como um dos poucos militares latino-americanos que nas décadas de 60-70 discordaram da visão norte-americana da segurança Leste-Oeste para a América Latina, propondo uma visão regional de segurança que se inseria mais no debate Norte-Sul. Segundo Mathews, a década de 90 exigirá uma a redefinição do que constitui a segurança nacional. Isso daria seguimento a um processo que iniciou-se nos anos 70. Naquele período, a economia foi percebida como item de segurança, ao se tornar evidente que os Estados Unidos já não constituíam, como outrora, a única força econômica global, tendo que compartilhar o fluxo da economia internacional com novas e vigorosas economias. "Os acontecimentos mundiais hoje sugerem a necessidade de uma nova e mais ampla definição de segurança nacional, para incluir questões demográficas, ecológicas e de recursos naturais".22 22 Mathews, Jessica. "Segurança nacional redefinida". Diálogo XIII, 2, 1990, p.3.

Mercado Jarrín chega a ser mais explícito. A partir de uma concepção próxima a uma definição geopolítica, entende a segurança como: "la garantia que se proporciona a la nation a través del desarrollo y manteni-miento de los ecosistemas naturales apesar de las presiones y tensiones am-bientales. El concepto de seguridad nacional poderia ser expressado así: la garantia que se proporciona a la nación por médio de acciones políticas, económias, psicosociales, militares y ecológicas para el logro de los objetivos nacionales, no obstante las presiones existentes o potenciales".23 23 Mercado Jarrín, Edgardo. "Seguridad y ecologia: reformulación de concepto". Nueva Sociedad 107, mayo/junio, 1990, p. 23.

Myers, por sua vez, está mais preocupado em estabelecer como a problemática ambiental pode afetar a "paz e segurança" dos Estados Unidos e, em decorrência, como pode afetar sua posição de hegemonia estratégica no sistema internacional. Os problemas ecológicos são vistos por ele como potenciais desestabilizadores de regimes políticos, o que poderia afetar àqueles que mantêm alianças estratégicas com os Estados Unidos. Por isso, para Myers, os Estados Unidos não deveriam desconhecer que a temática ambiental passou hoje a ser incorporada como um dos elementos básicos do interesse nacional. As políticas ambientais (conservacionistas e preservacio-nistas), nesse sentido, seriam um reflexo da preocupação dos Estados com seu interesse nacional, e "os políticos não podem coerentemente estabelecer os objetivos nacionais, econômicos e de segurança sem uma compreensão básica de quais são as tendências ambientais que estão em operação".24 24 Myers, Norman. "Environment security". Foreign Policy 74, 1989.

Como resume uma estudiosa dos paradigmas das relações internacionais, os representantes da vertente da eco-segurança têm como preocupação central determinar como o advento da problemática ambiental e seus efeitos nos níveis global e nacional podem vir a afetar as relações de poder entre os Estados.25 25 Jabor Canízio, Márcia. "Ecologia e ordem internacional — uma discussão sobre os paradigmas de análise". Contexto Internacional 12,

Na Antártida, as pressões e as pesquisas feitas pelas organizações não-estatais só aingiram certo nível de eficácia (em termos de influência sobre as decisões estatais) quando os atores estatais do Sistema Antártico compreenderam que um potencial desequilíbrio ecológico, gerado a partir da Antártida, expressava, antes de qualquer coisa, um problema de segurança internacional. Mas a escolha pela questão ambiental não foi fácil, pois havia um novo dilema emergindo: o dilema entre a ecologia, como elemento de segurança, e o interesse nacional. Por parte de países como Estados Unidos, Inglaterra e Chile, não havia, quando se posicionaram contra um congelamento de longo prazo da mineração, falta de compreensão do problema ambiental que seria gerado. Ao contrário, estavam sendo coerentes com seu interesse nacional. Se ao final cederam foi porque, nos meios oficiais — e este é o caso dos Estados Unidos —, a possibilidade de desequilíbrios ecológicos globais passou a ser encarada como um problema de segurança internacional. Isso porque um problema maior se apresentava: que tipo de exploração de recursos (e que opção de desenvolvimento) é essa que pode, ao menos em hipótese, levar à desestruturação da vida normal de um Estado?26 26 Deve-se Lembrar que Jessica Mathews, defensora da eco-segurança é uma assessora do Conselho Nacional de Segurança norte-americano. Também é muito significativo que Albert Gore, o vice do presidente Clinton, tenha incluído entre seus pontos do programa de governo, um Programa de Iniciativa Ambiental Estratégica, similar à Iniciativa Estratégica de Defesa. Seu argumento é, precisamente, que o meio ambiente tornou-se uma questão de segurança nacional. Uma outra proposta de Gore é a de reeditar uma espácie de Plano Marshall para recuperar o meio ambiente nos países pobres mediante um fundo de financiamento de US$ 100 bilhões. Para esta última informação ver: Jornal do Brasil de 2/11/92. "Clinton quer EUA na vanguarda ambiental".

A SOCIEDADE MUNDIAL

A incorporação de atores não-estatais na tomada de decisões internacionais e a ampliação da agenda, a exemplo do tema ambiental, sugerem, por fim, uma questão teórica importante: existe uma evidência quase tautológica de que o conceito clássico das relações internacionais é insuficiente para dar conta dessa nova tendência. Entretanto, pode-se pensar que não existe um vácuo teórico para lidar com ela. A nova realidade poderia ser abordada a partir do que se conhece como teoria dos regimes internacionais. Isso diz respeito aos princípios, normas, regras e procedimentos de decision making em torno dos quais convergem as expectativas dos atores em relação a um assunto. No sistema internacional, os regimes derivam de acordos voluntários entre atores juridicamente iguais. A função básica dos regimes seria a de coordenar a conduta dos atores para conseguir, ou evitar, determinado resultado em áreas específicas.27 27 Krasner, Stephen. "Structural causes and regime consequences: regimes as intervening variables". In: Krasner, Stephen (org..). International Regimes. Itaca, Cornell University Press, 1983. p. 2

O Sistema do Tratado Antártico é por definição um regime. Trata-se de um conjunto de normas e princípios criado por atores politicamente racionais, que optaram pela cooperação e pela paz antes de ter que optar pela escolha, menos racional, de chegar a um conflito em época de Guerra Fria.

As categorias do regime tais como cooperação, coordenação, dilema de interesse comum, escolha racionais, etc., adequam-se perfeitamente ao caso do Sistema do Tratado Antártico. Não se trata, entretanto, de analisar formalmente o objeto, mas de inquirir as determinações que explicam as posições e interações entre atores internacionais, em relação a um determinado problema global. Daí que os regimes internacionais acabam tendo, no caso da Antártida, uma cobertura teórica limitada. A determinação de regras, princípios e normas é de grande importância no sistema internacional. Porém, as relações internacionais são algo mais que procedimentos de Direito Positivo Internacional. A determinação dos interesses que levam a normativizar um arranjo pode ficar obscurecida nas análises formais. E mais ainda, o fator da imprevisibilidade, ou da imponderabilidade — e por isto mesmo a dose de realismo que sempre conservam as relações internacionais — tem pouco espaço num regime internacional.

Trabalhada segundo o conceito de sociedade internacional ou mundial de Aron, a análise do objeto Antártida ganha em conteúdo. Isto é, dessa forma é possível determinar, com mais clareza, as relações de poder interestatal; e é possível apreender como os atores transnacionais (as empresas multinacionais e as ONGs ecológicas) e os supranacionais (o Parlamento Europeu) influenciaram essas relações e como foram influenciados pelas mesmas. O caso das organizações transnacionais ecológicas ilustra bem essa constatação. Uma decisão, denúncia ou pesquisa da Associação de Organizações para Oceano Ártico e Antártico (ASOC) transpassa as fronteiras, e, transmitida a suas filiais no mundo todo, dificilmente deixará de gerar uma reação dos governos interessados no assunto. De igual forma, as decisões geradas pelo sistema interestatal serão levadas em consideração pelos grupos ambientalistas na definição de políticas e ações diretas.

Resulta natural, então, que as pesquisas que enquadram diferentes atores apontem para uma adequação teórica no conceito de sociedade internacional ou mundial. De um lado, isso permite visualizar a forma como os atores estatais reagem às propostas, ações e pesquisas dos atores não-estatais. De outro, o conceito permite a passagem analítica para diferentes planos: do estatal para o transnacional; do estatal para o intergovern-amental; e do transnacional para o intergovernamental. Isso é possível sem que esses planos sejam analisados de forma isolada, e sim sempre percebendo as relações de poder — o interesse nacional, a soberania, a internacionalização, etc. — e jogo de influências entre a totalidade dos atores. Por fim, o conceito contempla uma tipologia nominal de atores internacionais — estatais, supranacionais e transnacionais — que permite operacionalizar a análise do objeto.

O caso da Antártida, do ponto de vista acerca das relações internacionais que coloca ênfase nos aspectos relacionados com o meio ambiente, permite detectar a existência de duas tendências, embora não consolidadas. Primeiro, novos atores internacionais estão emergindo. Deve ficar claro, entretanto, que esses atores não tentam estabelecer novas relações internacionais de poder e sim influenciar os processos de tomada de decisão. Essa influência é maior na medida em que a agenda das relações internacionais seja ampliada com temas de teor global. Segundo, uma nova noção de segurança internacional começa a tomar uma forma mais definida. Não se trata do surgimento de uma nova esfera autônoma de segurança — uma "segurança ecológica", por exemplo —, mas de incorporar a componente ambiental no conceito de segurança, definida como risco real ou potencial. Ora, a inovação que a questão ambiental acrescenta para a segurança internacional é a de mudar sua natureza predominantemente estratégico-militar para uma noção de risco que não depende mais somente dos arranjos dos centros hegemônicos. Não basta que o Estado controle as emissões de dióxido de carbono, se não se leva em conta que as mesmas são processadas pelos sistemas naturais da Terra ou que se necessita da cooperação das multinacionais da indústria e da tecnologia.

É dessas constatações que advém a discussão de novos paradigmas teóricos, que tentam dar conta da realidade recente, mas que não inviabilizam conservar a teoria clássica das relações internacionais, enquanto modelo histórico simplificado do mundo internacional. Isto é, o conceito clássico das relações internacionais não só conservará vigência, no futuro, para o estudo das relações estritamente interestatais, mas também continuará sendo o principal interlocutor com as quais as novas vertentes teóricas terão que debater para demonstrar a coerência e a solidez de seus premissas, na tentativa de se mostrararem adequados à compreensão dos signifcados dos novos processos. No fundo, subsiste a idéia de que as abordagens metodológicas das novas realidades são tributárias da interdisciplinaridade científica de nossos dias. Com isso não se quer dizer que essas realidades devam ser abordadas a partir de um ecleticismo metodológico que obscu-rece as diferenças conceituais existentes, e sim que existe uma tendência a relativizar os modelos teóricos, deixando aberta a possibilidade de procurar subsídios em perspectivas que partem de pressupostos diferentes.

  • 1 Morgenthau, Hans. Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace. New York, A.A. Knopf, 1950.
  • 2 Colacrai de Trevisán, Mirian. In: Carlos Moneta (org..). La Antártida en el sistema internacional del futuro. Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano/Centro Lartinoamericano de Estudios Estratégicos, 1988. p. 163.
  • 3 Aron, Raymond. Os últimos anos do século. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987. p. 27.
  • 5 Ver, para estes dados históricos: Castro de, Terezinha. Rumo à Antártida. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1976. pp. 16-17;
  • Sullivan, Walter. En busca de un continente. México, Editaria Roble, 1965. p.27.
  • 8 Leis, Héctor. "Ecologia vs. soberania - notas sobre a questão antártica" In: Separata Brasil Perspectivas jul.-dez., 1989.
  • 10 O ponto de vista da ASOC está contido nos seguintes documentos: "Protección permanente para a Antártida: se requiere con caracter urgente una convención para la reglamentación de las actividades minerales", (s/d), (s/l);
  • "Análisis de la Convención para la Reglamentación de Actividades de Recursos Minerales Antárticos", Buenos Aires, 1988. Ambos impressos pelo Greenpeace.
  • 13 "Documento de Declaração Conjunta Franco-Australiana sobre a Antártida", Paris, 1989.
  • 15Folha de S. Paulo, 5 de julho de 1991.
  • 16 Held, David. "A democracia, o Estado-Nação e o sistema global". Lua Nova 23, março de 1991.
  • 17 Nesse sentido, refiro-me aqui à questão ambiental como um outro elemento que se incorpora ao conceito de segurança. Não acredito, como Clóvis Brigagão em "Segurança ecológica: Amazônia e Antártica, 1990" (mimeo),
  • 19 Rowland, Ian. "The Security Challenges of Global Environmental Change". The Washington Quarterly, Winter, 1991, p. 135.
  • 20 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1988.
  • 22 Mathews, Jessica. "Segurança nacional redefinida". Diálogo XIII, 2, 1990, p.3.
  • 23 Mercado Jarrín, Edgardo. "Seguridad y ecologia: reformulación de concepto". Nueva Sociedad 107, mayo/junio, 1990, p. 23.
  • 24 Myers, Norman. "Environment security". Foreign Policy 74, 1989.
  • 25 Jabor Canízio, Márcia. "Ecologia e ordem internacional uma discussão sobre os paradigmas de análise". Contexto Internacional 12,
  • 26 Deve-se Lembrar que Jessica Mathews, defensora da eco-segurança é uma assessora do Conselho Nacional de Segurança norte-americano. Também é muito significativo que Albert Gore, o vice do presidente Clinton, tenha incluído entre seus pontos do programa de governo, um Programa de Iniciativa Ambiental Estratégica, similar à Iniciativa Estratégica de Defesa. Seu argumento é, precisamente, que o meio ambiente tornou-se uma questão de segurança nacional. Uma outra proposta de Gore é a de reeditar uma espácie de Plano Marshall para recuperar o meio ambiente nos países pobres mediante um fundo de financiamento de US$ 100 bilhões. Para esta última informação ver: Jornal do Brasil de 2/11/92. "Clinton quer EUA na vanguarda ambiental".
  • 27 Krasner, Stephen. "Structural causes and regime consequences: regimes as intervening variables". In: Krasner, Stephen (org..). International Regimes. Itaca, Cornell University Press, 1983. p. 2
  • 1
    Morgenthau, Hans.
    Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace. New York, A.A. Knopf, 1950.
  • 2
    Colacrai de Trevisán, Mirian. In: Carlos Moneta (org..).
    La Antártida en el sistema internacional del futuro. Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano/Centro Lartinoamericano de Estudios Estratégicos, 1988. p. 163.
  • 3
    Aron, Raymond.
    Os últimos anos do século. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987. p. 27.
  • 4
    Colacrai de Trevisán, Mirian, op. cit.
  • 5
    Ver, para estes dados históricos: Castro de, Terezinha.
    Rumo à Antártida. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1976. pp. 16-17; Sullivan, Walter.
    En busca de un continente. México, Editaria Roble, 1965. p.27.
  • 6
    Os países assinantes originais do tratado foram: Austrália, Argentina, Chile, Noruega, Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Japão, África do Sul, Bélgica e URSS. Os membros dividem-se em Partes Consultivas (com plenos direitos) e Não-Consultivas (só direito a voz). Estes últimos podem virar Partes Consultivas desde que realizem significativa pesquisa e instalem uma base científica.
  • 7
    Nos anos anos 87-88 o Greenpeace produziu detalhado relatório sobre a Antártida, que mostrava os crescentes impactos ambientais originados pelas bases científicas dos países presentes na Antártida.
  • 8
    Leis, Héctor. "Ecologia vs. soberania - notas sobre a questão antártica" In: Separata
    Brasil Perspectivas jul.-dez., 1989.
  • 9
    Ibid., p. 14.
  • 10
    O ponto de vista da ASOC está contido nos seguintes documentos: "Protección permanente para a Antártida: se requiere con caracter urgente una convención para la reglamentación de las actividades minerales", (s/d), (s/l); "Análisis de la Convención para la Reglamentación de Actividades de Recursos Minerales Antárticos", Buenos Aires, 1988. Ambos impressos pelo Greenpeace.
  • 11
    Leis, Héctor, op. cit., p. 15.
  • 12
    Juntos, esses dois países reivindicam quase 45% do território antártico, sendo que só a Austrália reivindica 43%.
  • 13
    "Documento de Declaração Conjunta Franco-Australiana sobre a Antártida", Paris, 1989. No caso da França, a mudança foi influenciada pelo fortalecimento interno da
    green politics e por uma resolução do Parlamento Europeu, avaliando que "convinha renunciar à exploração das riquezas minerais da Antártida". Ver, para esta declaração: Parlamento Europeu. Doc. A2-57/87.
  • 14
    É preciso ter em mente a superposição de reivindicações teritoriais antárticas da Inglaterra, Argentina e Chile entre os meridianos 20 e 90 de longitude oeste, e as projeções do impasse anglo-argentino pela disputa das Malvinas, assim como as projeções do impasse chileno-argentino pelo Canal dos Beagle. Estas considerações são levadas em conta para a definição da política antártica destes três países.
  • 15
    Folha de S. Paulo, 5 de julho de 1991.
  • 16
    Held, David. "A democracia, o Estado-Nação e o sistema global".
    Lua Nova 23, março de 1991.
  • 17
    Nesse sentido, refiro-me aqui à questão ambiental como um outro elemento que se incorpora ao conceito de segurança. Não acredito, como Clóvis Brigagão em "Segurança ecológica: Amazônia e Antártica, 1990" (mimeo), que a problemática ambiental defina ura novo tipo de segurança. Prefiro acreditar que a questão ecológica é um elemento a mais que se integra no conceito de segurança internacional.
  • 18
    Os acordos sobre os CFCs seriam poucos efetivos sem a participação da Dupont, a maior na área.
  • 19
    Rowland, Ian. "The Security Challenges of Global Environmental Change".
    The Washington Quarterly, Winter, 1991, p. 135.
  • 20
    Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
    Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1988.
  • 21
    Jessica Mathews trabalhou de 1977 a 1979 no Conselho de Segurança Nacional do governo norte-americano, como diretora do Escritório de Questões Globais, enquanto Edgardo Mercado Jarrín foi ministro peruano de Relações Exteriores no governo militar-nacionalista de Velazco Alvarado. Aliás Mercado Jarrín pode ser considerado, junto a Cavagnari no Brasil, como um dos poucos militares latino-americanos que nas décadas de 60-70 discordaram da visão norte-americana da segurança Leste-Oeste para a América Latina, propondo uma visão regional de segurança que se inseria mais no debate Norte-Sul.
  • 22
    Mathews, Jessica. "Segurança nacional redefinida".
    Diálogo XIII, 2, 1990, p.3.
  • 23
    Mercado Jarrín, Edgardo. "Seguridad y ecologia: reformulación de concepto".
    Nueva Sociedad 107, mayo/junio, 1990, p. 23.
  • 24
    Myers, Norman. "Environment security".
    Foreign Policy 74, 1989.
  • 25
    Jabor Canízio, Márcia. "Ecologia e ordem internacional — uma discussão sobre os paradigmas de análise".
    Contexto Internacional 12,
  • 26
    Deve-se Lembrar que Jessica Mathews, defensora da eco-segurança é uma assessora do Conselho Nacional de Segurança norte-americano. Também é muito significativo que Albert Gore, o vice do presidente Clinton, tenha incluído entre seus pontos do programa de governo, um Programa de Iniciativa Ambiental Estratégica, similar à Iniciativa Estratégica de Defesa. Seu argumento é, precisamente, que o meio ambiente tornou-se uma questão de segurança nacional. Uma outra proposta de Gore é a de reeditar uma espácie de Plano Marshall para recuperar o meio ambiente nos países pobres mediante um fundo de financiamento de US$ 100 bilhões. Para esta última informação ver:
    Jornal do Brasil de 2/11/92. "Clinton quer EUA na vanguarda ambiental".
  • 27
    Krasner, Stephen. "Structural causes and regime consequences: regimes as intervening variables". In: Krasner, Stephen (org..).
    International Regimes. Itaca, Cornell University Press, 1983. p. 2
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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