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Os direitos humanos como valor universal

Resumos

Comentário crítico do livro Os direitos humanos como tema global, do diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves.


A commentary on Os direitos humanos como tema global (Human Rights as a Global Issue), a book written by the Brazilian diplomat José Augusto Lindgren Alves.


FRONTEIRAS

Os direitos humanos como valor universal

Maria Victoria de Mesquita Benevides

Socióloga, é professora da Faculdade de Educação da USP, conselheira do CEDEC e diretora da Escola de Governo. Na mesma área temática publicou, em Lua Nova (no. 33, 1994), "Cidadania e democracia"

RESUMO

Comentário crítico do livro Os direitos humanos como tema global, do diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves.

ABSTRACT

A commentary on Os direitos humanos como tema global (Human Rights as a Global Issue), a book written by the Brazilian diplomat José Augusto Lindgren Alves.

"A democracia é um valor histórico e universal", declarava suavemente Enrico Berlinguer em Moscou, durante as comemorações do 60º aniversário da Revolução Russa. As palavras do elegante líder do antigo PCI, ao contrário do que se poderia imaginar — e apesar de algum constrangimento nos meios soviéticos — não tiveram maior impacto em seu país, porque os comunistas italianos já se encontravam, à época (1977), em franco processo de aggiornamento, ou de "compromisso histórico".

No Brasil, essa discussão, provocada especialmente pelo filósofo Carlos Nelson Coutinho com o ensaio A democracia como valor universal (publicado em livro em 1980), repercutiu intensamente nos setores da esquerda, marxista e não-marxista, com efeitos não apenas no plano das idéias como também no campo da militância. Coincidiu, aliás, com um período de efervescência política, no qual se destaca a criação do Partido dos Trabalhadores e sua proposta de "socialismo democrático", que rompia com os dogmas da velha esquerda e a "instrumentalização" da democracia, reavivando o debate tradicional entre "liberdades formais e liberdades reais".

Tais considerações vêm a propósito do recente livro do diplomata J.A.Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global. A analogia parece-me pertinente. Ambos os autores, Coutinho e Lindgren, explicitam um tipo de reflexão — específica sobre democracia num caso, sobre direitos humanos, no outro — a partir do reconhecimento de valores historicamente situados, pois herdeiros fiéis da Revolução Francesa, porém entendidos como valores universais. Ou seja, os valores liberdade, igualdade e fraternidade — ou solidariedade — são valores históricos e, ao mesmo tempo, universais. No primeiro caso, trata-se de reconhecer a democracia como um valor em si, através da adesão aos direitos individuais, às liberdades fundamentais e ao pluralismo político, além da exigência da igualdade sócio-econômica e da solidariedade, tão justamente caras à tradição socialista. No segundo caso, trata-se do reconhecimento da indivisibilidade dos direitos humanos, ou seja, da imperiosa complementaridade entre direitos civis e políticos, direitos sócio-econômicos e direitos culturais.

Nos dois casos observa-se uma ruptura expressiva com a reflexão e a prática — política ou diplomática — até então predominantes. No campo das esquerdas, a ruptura é óbvia em relação às opções pelos diversos matizes da via leninista. No campo do debate oficial sobre os direitos humanos (ou seja, aquele que expõe governos, e não as entidades de ativistas ou ONGs), a ruptura é visível na corrosão da idéia, ainda indisputável, da soberania absoluta dos Estados, mesmo em questões consideradas, desde a Declaração de 1948, de "natureza universal". Esta ruptura revela, sem dúvida, o grande significado que encerra a postulação de um valor universal — tanto para a idéia de democracia quanto para a idéia de direitos humanos. E vale a pena enfatizar, seguindo a mesma analogia, o reconhecimento, por consenso da comunidade internacional durante a Conferência de Viena, em 1993, da necessária inter-relação entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento. Não por acaso, a Declaração de Viena é o primeiro documento da ONU que consagra, explicitamente, a democracia como o regime político mais favorável à promoção e à proteção dos direitos humanos.

Lindgren Alves escreve da perspectiva da diplomacia multilateral — o que significa levar obrigatoriamente em conta interesses geo-políticos, posições governamentais e jurídicas, além da precisão nas informações sobre tratados, convenções, alinhamentos e realinhamentos em determinadas conjunturas regionais e mundiais. O acompanhamento dessa exposição exige do leitor um mínimo de conhecimento sobre nossa história diplomática, pelo menos desde a Guerra Fria. Mas o grande mérito deste livro é trazer para o conhecimento e o debate mais amplo a temática, de crescente relevância, sobre a inserção brasileira no plano internacional da promoção e proteção dos direitos humanos. O novo e alvissareiro dado é que tal inserção não se dá apenas com nosso país sendo a parte "cobrado-ra" (frente, por exemplo, à supremacia do Primeiro Mundo), ou, como ocorre com freqüência, sendo réu de graves violações de direitos humanos. Não é seu objetivo fazer um inventário de nossos crimes, já muito conhecidos, mas Lindgren refere-se, por exemplo, às trágicas denúncias sobre trabalho escravo; assassinatos de crianças, de indígenas, de trabalhadores rurais e seus defensores; tortura e massacre de presos; grupos de extermínio; racismo e discriminações diversas; devastação do meio-ambiente etc, que são, desgraçadamente, as principais notícias do país no exterior.

O dado novo e alvissareiro, insisto, é a inserção do Brasil como parte "propositora" (sem deixar de ser cobradora ou ré, em outras ocasiões), na medida em que nossos representantes vêm participando ativamente das reuniões e deliberações da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Participações que contaram, aliás, com a presença lúcida do autor, como na última Conferência de Viena. Nesse sentido, o livro é útil não apenas para os estudiosos de área jurídica ou diplomática e de nossa história contemporânea, mas para políticos — governantes e representantes — e para os membros das várias organizações de defesa dos direitos humanos. Como militante da Comissão Justiça e Paz incluo-me entre estes últimos, os quais, como diz o autor, somos obcecados por uma ética de princípios, "naturalmente maximalistas e imediatistas", atuando "com outras dificuldades, não raro mais dramáticas, mas sem os constrangimentos inerentes ao exercício da diplomacia" (pág. XLII). O que não nos impede, é claro, de perceber a importância da atuação política e diplomática brasileira, quando apoiada nos princípios baseados naqueles valores universais consagrados em Viena. Um lutador da causa, como Paulo Sérgio Pinheiro, tem acompanhado essa atuação e testemunhado seus avanços, embora em nenhum momento esmoreça o grau das denúncias e de seus "escritos indignados".

Considerações pessoais à parte, o que signica discutir direitos humanos como um "tema global"? Significa, no plano das idéias, a adesão a um campo comum de valores que — independentemente de quaisquer variáveis, individuais ou coletivas, decorrentes de sexo, raça, etnia, nacionalidade, religião, nível de instrução, julgamento moral, opção política e classe social — definem a humanidade, a dignidade de todo ser humano. Tais valores transcendem, hoje, o quadro histórico do anticolonialismo e do anti-racismo (embora os incorporem, é evidente), além dos direitos e das liberdades já consagradas no liberalismo clássico, para abranger o direito à paz, ao desenvolvimento, à cultura, à postulação de uma nova ordem política e econômica mais solidária. De certa forma, a dignidade do ser humano está implícita na afirmação singela, porém seminal, de Hannah Arendt, sobre o direito a ter direitos. Creio ter entendido, a partir do texto, que falar em "globalização" dos direitos humanos não é a mesma coisa que situá-los como "um tema global". A globalização (termo tão usado hoje, no campo das relações comerciais) pode significar, por exemplo, a extensão ultra-fronteiras de um determinado interesse — como a defesa do meio ambiente ou o acesso ao patrimônio cultural e científico da humanidade. Direitos Humanos como tema global não significa priorizar determinados interesses internacionais, mesmo os mais nobres, mas colocar em primeiro plano a abrangência — global — de valores éticos enraizados nas noções de justiça e igualdade. Voltamos aos ideais, não concretizados na maior parte do mundo, da Revolução Francesa e da Declaração Universal de 1948 .

No plano da atuação concreta pelas vias diplomáticas, considerar direitos humanos como tema global significa enfatizar a criação e o funcionamento efetivo de mecanismos internacionais de controle ostensivo, para garantir a proteção interna dos direitos humanos, mesmo rompendo a competência reservada de soberanias. Mais ainda, como lembra Celso Lafer, o reconhecimento dos direitos humanos como tema global significa a convergência e a complementaridade entre ética e política, tornando a legitimidade dos governos, no plano mundial, condicionada à vigência de mecanismos e garantias daqueles direitos fundamentais. Em outras palavras, entender direitos humanos como tema global é também entendê-los como ingredientes indispensáveis à governabilidade do sistema mundial — pois a associação positiva entre direitos humanos e democracia é condição para o desenvolvimento e para a paz.

A Conferência de Viena consagrou os direitos humanos como tema global reafirmando, por consenso, a universalidade (a qual "não admite dúvidas"), a indivisibilidade e a onipresença, na medida em que permeiam todas as áreas da atividade humana. Dentre várias questões passíveis de polêmica, destaco três para comentar :

1. o questionamento, no campo doutrinário, sobre as "gerações de direitos humanos", face à afirmação de sua indivisibilidade;

2. a possível oposição entre a universalidade dos direitos humanos e a afirmação do "direito à cultura", decorrente de uma visão eventualmente distorcida do "relativismo cultural";

3. a possível oposição entre a universalidade dos direitos humanos e a soberania de cada Estado, com ênfase no caso brasileiro.

Quanto ao primeiro ponto: é bem conhecida a classificação das três gerações de direitos humanos, historicamente situadas, e que, de certa forma, corresponderiam àqueles ideais de igualdade, liberdade e fraternidade . A primeira geração, englobando os direitos civis e políticos e as liberdades individuais, fruto da longa marcha das idéias liberais, teria sua inserção histórica marcada pelas conquistas da "democracia americana". A segunda geração, correspondente aos direitos econômicos e sociais, basicamente vinculados ao mundo do trabalho, estaria associada às lutas socialistas na Europa, e sempre referidas ao ideal da igualdade. A terceira geração, entendida como o conjunto de direitos decorrentes do ideal da fraternidade e da solidariedade (alguns falam até em "solidariedade planetária", dos "irmãos no planeta Terra"), corresponde ao direito à autodeterminação e passou a incluir, mais recentemente, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz e, como lembra Lindgren, o direito ao meio ambiente saudável, ao usufruto dos bens qualificados como "patrimônio comum da humanidade" — como os fundos oceânicos, por exemplo (pág. 113).

Entendo que a polêmica sobre a doutrina das gerações é de dupla ordem: a primeira diz respeito à pertinência da própria doutrina e a segunda diz respeito ao conteúdo de cada "geração".

Entre outros autores, Cançado Trindade, na apresentação deste livro (e, também, se não me engano, Dalmo Dallari, em outras intervenções) questiona a divisão geracional dos direitos humanos, considerando-a "historicamente incorreta e juridicamente infundada". Isso porque a classificação tenderia a atomizar os direitos, necessariamente complemen-tares e em constante interação. Trindade cita, para argumentar, o direito à vida: este depende tanto de medidas negativas, de abstenção — ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida — mas também de medidas positivas, os meios de subsistência para viver e viver com dignidade, o que depende de obrigações positivas do Estado, a começar pela saúde e pela segurança. Logo, seria insensato distinguir direitos civis dos direitos econômicos e sociais, por exemplo (pág. XVIII). Não há como discordar do professor Trindade em sua defesa da complementaridade e interdependência entre os direitos. Mas tal concordância, a meu ver, não invalida a doutrina das gerações, pois esta não implica uma analogia completa com as gerações biológicas, que nascem, crescem e morrem, dando origem a outro ciclo. As gerações de direitos humanos representam momentos históricos que não são nem estanques nem extintos, mas complementares e incorporados (como na classificação das etapas históricas da cidadania, no ensaio clássico de Marshall: direitos civis, no século 18, direitos políticos no século 19 e direitos sociais no século 20).

Discordo, ainda, de questionar as gerações tomando o direito à vida como exemplo. Ora, o direito à vida não pode ser classificado no mesmo nível dos demais direitos. É um direito primordial, do qual todos os outros derivam, e sem o qual nada, no campo da cidadania ou da diplomacia, faz qualquer sentido. Podemos considerar, isso sim, que os demais direitos são "meios"; acrescentam, ao princípio do direito à vida, que esta "vida" seja garantida com o mínimo de dignidade intrínsica a todo ser humano. A polêmica, portanto, não atinge o cerne da questão, que 6 a indi-visibilidade dos direitos humanos.

Em relação ao conteúdo de cada geração a polêmica é de outra ordem, pois aceita a distinção e, mais do que isso, tende a discutir prioridades ou exclusões. É evidente que, se os liberais apegam-se aos direitos da primeira geração e denunciam sua violação por parte dos regimes autoritários (no que são seguidos por todos os democratas), tiveram sérias dificuldades para aceitar como direitos fundamentais os de segunda geração, os direitos sociais. Até hoje os Estados Unidos, enquanto Estado, recusam tal associação — o que, penso eu, explica, em parte, a ênfase americana na expressão "direitos civis" e não "direitos humanos", pois excluem as prestações positivas no campo social, como saúde e previdência, por exemplo, no conhecido estilo hoje aplaudido, entre nós, como "neoliberal". O conteúdo da terceira geração desperta polêmica maior, pois muitos estudiosos — todos do primeiríssimo mundo, ciosos de sua hegemonia econômica e cultural — apontam para a imprecisão e a heterogeneidade do elenco de direitos, além de dificuldades no plano jurídico para sua efetivação. A principal dificuldade jurídica reside no fato de que tais direitos, de fruição também coletiva, contrariam o entendimento mais corrente sobre o "individualismo" em que se baseia a conceituação tradicional de direitos humanos, na ótica do Ocidente (pág. 114). Lindgren aponta, no entanto, para o avanço conseguido em Viena, no sentido de que o direito ao desenvolvimento, alem de concebido como de titularidade individual e coletiva (ou seja, para todas as pessoas e para todos os povos!) foi reforçado como um direito universal e inalienável e parte integrante dos direitos humanos fundamentais. É fácil perceber o significado, para os países do segundo, do terceiro e do quarto mundo, dessa consagração, embora ainda faltem mecanismos formais para consolidar obrigações concretas.

O segundo tópico que poderia comentar refere-se à possível oposição entre a universalidade e o relativismo cultural. A polêmica é muito mais intensa porque não apenas envolve questões teóricas, muito caras aos antropólogos, por exemplo, como — e sobretudo — envolve delicadas questões de ordem política. Estas, no plano mundial, tendem a opor conceitos de "civilizações" e a fomentar acusações de etnocentrismo, visando especificamente uma possível "dominação cultural do Ocidente"; no plano interno das nações, o reconhecimento do direito dos povos à sua cultura tende a exacerbar reações centralizadoras do Estado frente às "minorias". O tema foi muito discutido em Viena, tendo sido veementemente questionado pelos países asiáticos e africanos e os de religião islâmica. A própria associação entre direitos humanos e desenvolvimento econômico pode ser contestada cm termos do "modelo" de desenvolvimento, quando este significa, também, "progresso" às custas da exploração de mão de obra prole-tarizada. Por outro lado, a extinção de uma determinada cultura, devido ao "progresso" pode ser considerada um atentado às liberdades fundamentais. ' O relativismo cultural representa uma faca de dois gumes: pode significar proteção às minorias como também a complacência com costumes que atentam contra a dignidade do ser humano (mutilações rituais ou castigos degradantes, por exemplo) ou, no outro extremo, a escalada de conflitos étnicos, dos quais a Bosnia é um trágico exemplo contemporâneo. Com outros contornos a questão se coloca também em países do primeiro mundo; a França, por exemplo, não reconhece juridicamente minorias dentro do Estado, como o povo corso — existe um só povo, o francês, e até os movimentos de esquerda tendem a refutar teses sobre o multi-culturalismo, bem como sobre qualquer política pública de "ação afirmativa", como as que existem nos Estados Unidos para negros, mulheres, hispânicos, deficientes. Muitos estudiosos consideram que a oposição universalidade e direito à cultura encerra um dilema. Considero, no entanto, que a única saída é defender, em todas as situações, a hierarquia dos princípios e das normas, o respeito primordial aos direitos humanos e às liberdades fundamentais já universalmente reconhecidos. Além dessa prioridade, o direito à cultura deve estar, sempre, condicionado ao princípio da liberdade individual: cabe ao indivíduo adulto escolher livremente sua identificação cultural — ou não escolher, ou desistir da escolha, em qualquer época. Deve ser lembrado, ademais, que a Conferência de Viena consagrou a unidade do gênero humano — o que lhe confere a dignidade — apesar do respeito e da tolerância à diversidade das nações e das regiões em seus aspectos históricos, culturais e religiosos. Consagrou, ainda, o que é especialmente importante neste quadro, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento, porém lendo o ser humano como o sujeito central do processo.

O terceiro tópico que me propus a comentar diz respeito à oposição entre a universalidade dos direitos humanos — e, portanto, a possibilidade de intervenção e controle externo — e a soberania nacional. Neste tópico, o caso brasileiro reveste-se, naturalmente, de especial relevância. É bem conhecida a reação irada das autoridades brasileiras — e, em caso semelhante, das do Cone Sul — às denúncias de violações de direitos humanos durante o regime militar. A partir da lenta e gradual abertura, temos sido constantemente denunciados — e investigados — sobre nossa "lista de horrores", desde o massacre de Carandirú ao dos ianomâmis, passando pelas crianças de rua e o trabalho escravo em minas e latifúndios, sem falar das devastações em florestas hídricas. A participação das ONGs brasileiras tem sido, ainda, objeto de críticas e hostilidades por parte de certos governos — no plano estadual — e de certas autoridades, no plano diplomático.

Um exemplo histórico parece-me especialmente pertinente para a compreensão da herança brasileira no campo da diplomacia versus direitos humanos: o caso do tráfico negreiro e o Bill Aberdeen (1845). Relata, com finíssima argúcia, Pandiá Calógeras: "o Visconde de Uruguay resumiu, como ministro de estrangeiros, as queixas do Brasil ao enviado britânico no Rio; quase todas versavam sobre desrespeito à soberania do país (...) Pode ser, e assim realmente parece, que o ministro tivesse razão no que dizia respeito às tecnicalidades dos fatos (...) Deixando em sombra densa a vergonhosa violação dos tratados e o amparo concedido ao comércio de carne humana, o Brasil discutia somente detalhes de proces-sualística jurídica. Era desrespeitada a soberania nacional, clamavam (...) No fundo, todos os interessados no tráfico queriam criar uma preamar de sensibilidade patrioteira e mal-entendido ponto de honra para que pudessem continuar ou mesmo incrementar suas ocupações desumanas. E conseguiram o que almejavam! (...) São eloqüentes os algarismos: em 1845 eram 19.453 os escravos contrabandeados; quatro anos mais tarde, eram 54 mil" (Formação História do Brasil, 4º edição, pág. 234).

Esta herança, como a da própria escravidão e sua conseqüências em todo o nosso sistema social e político, explica muito de nossas dificuldades em compreender a extensão dos direitos humanos — sua universalidade, sua indivisibilidade.

Recentemente, por exemplo, o embaixador em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, sentiu-se ofendido e obrigado a responder a um artigo de autoria do jurista Fábio Konder Comparato. Entre outras coisas, Comparato — que sempre associou ao conceito e à prática da democracia o respeito integral aos direitos humanos — lembra que a nossa Constituição em vigor exclui a aplicabilidade, em matéria de direitos humanos, do princípio da não-ingerência internacional em assuntos externos. Além disso, os direitos e garantias fundamentais nela expressos não excluem outros, decorrentes de tratados internacionais em que o Estado brasileiro é parte (art. 5º, # 2). O texto de Comparato foi motivado pela notícia da criação, pelo atual Ministro da Justiça, de uma assessoria especial de assuntos internacionais, encarregada de "abastecer as embaixadas brasileiras com informações positivas sobre o Brasil". Leia-se, esclarece o articulista, "convencer as instituições financeiras internacionais, a começar pelo Banco Mundial, de que o nosso querido país aplica uma vigorosa política de proteção dos direitos humanos". (Folha de S. Paulo, "Para estrangeiro ver", 06.01.95, pág.3) O embaixador respondeu, de maneira totalmente inepta, repetindo o velho refrão do tempo da ditadura, de que as organizações internacionais e as brasileiras, de defesa de direitos humanos, pintam "um retrato falso do país". É especialmente infeliz ao citar exemplos "pinçados" de relatórios como o da Anistia Internacional, que denuncia casos em que "crianças de rua, homossexuais e prostitutas são levados sob custódia e desaparecem, como parte de uma política governamental de faxina social" (Folha de São Paulo, "Responder é preciso", 07.01.95, pág. 3).

O embaixador sentiu atingida a "honra pátria" — da qual se afirma incansável defensor - mas parece tão distante da realidade nacional que sequer tomou conhecimento do programa de governo do presidente eleito, a quem é subordinado. À página 230 do livro Mãos à Obra, Brasil, Fernando Henrique Cardoso confirma: "o assassinato de centenas de jovens nas grandes cidades brasileiras e no meio rural, em muitos casos em circunstâncias que levam a crer no caráter deliberado de extermínio de menores, apresentou, nos últimos anos, uma média anual de 1500 casos". O embaixador desconhece, ainda, a faxina promovida pelo prefeito Paulo Maluf, ao mandar expulsar os mendigos do centro da cidade e queimar seus pertences. Desconhece, enfim, que no mesmo livro o presidente eleito promete "criar o cargo de ombudsman para fiscalizar e assegurar a aplicação das leis, dos acordos e convenções interncionais firmados pelo Brasil, contra a prática de racismo" (pág. 240). Enfim, os exemplos são muitos, mas o que importa reter é a incapacidade de certas autoridades (e destacamos sempre, existem honrosos exemplos de eficiência e dignidade) em conviver com um novo tempo na política e na diplomacia.

Voltando ao livro de Lindgren, aprendemos que há 15 anos o Brasil participa da Comissão de Direitos Humanos da ONU e que o comportamento de seus representantes tem evoluído positivamente. Ou seja, de posições defensivas da soberania absoluta para o reconhecimento da legitimidade do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Alguns exemplos esclarecem essa evolução, da maior importância para nosso país.

Em 1977, o chanceler Azeredo da Silveira abordou o tema dos direitos humanos pela primeira vez, na Assembléia Geral da ONU. Mas, de forma extremamente cautelosa, afirmava a posição do governo brasileiro como refratária a qualquer ingerência em seu território, uma vez que questões de direitos humanos são "tão sérias e tão íntimas da vida nacional" (essa intimidade, como sabemos, causou assassinatos, torturas, se-questros, "desaparecimentos", exílios, banimentos e, com conseqüências funestas até hoje, a degeneração dos órgãos policiais). Essa posição, segundo Lindgren, modificou-se consideravelmente, sobretudo na gestão dos Chanceleres Lafer e Amorim, comprometidos com a temática dos direitos humanos e o respeito aos organismos internacionais. O Brasil, enfim, é signatário das Convenções contra tortura da ONU e da OEA (1989), aderiu aos pactos internacionais de direitos humanos e ao Pacto de San José, contra a pena de morte, em 1992. Neste mesmo ano discursou Celso Lafer na ONU: "a nova sociedade internacional que desejamos construir não pode conviver com a marginalidade de povos inteiros, assim como nossos países não podem conviver com a marginalidade de parte de suas populações".

Ao concluir o prefácio deste livro, Lafer lembra Tocqueville e a necessidade de se encarar o futuro com a preocupação salutar que faz "velar e combater pela preservação dos direitos humanos". Como estudiosa do tema e apaixonada militante da causa, identifico-me com o lema de "velar e combater". E lembro, por minha vez, as sábias palavras do Padre Antonio Vieira, na Bahia, nos idos de 1640, no sermão da visitação de Nossa Senhora: "Comecemos por esta última palavra (infans). Bem sabem, os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade, foi o de tolher-se-lhe a fala: muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre se lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência. E, se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão".

Estou convencida de que só com a efetiva democratização do país, sempre no sentido de democracia como um processo, e de democracia como soberania popular aliada ao repeito integral aos direitos humanos, será dada e ampliada a voz dos que não tem voz: e serão democratizadas tanto as vozes do poder quanto os clamores da razão.

  • 1 Lindgren Alves, J.A. Os direitos humanos como tema global. São Paulo, Fundação Alexandre Gusmão / Perspectiva, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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