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A desarmonia da democracia

The disharmony of democracy

Resumos

A vontade popular pode dar apoio a decisões políticas que estão em contradição com as próprias condições para o governo da maioria. Argumenta-se que há uma forma de conceber o ideal democrático - a "democracia deliberativa" - que resolve esse paradoxo da "democracia populista" sem negar, como faz o "liberalismo negativo", o valor do autogoverno na esfera da política. Mesmo o ideal de democracia deliberativa, entretanto, não tem como escapar da desarmonia entre a autodeterminação na política e a autodeterminação individual.


The popular will may give support to political results that contradict the very conditions for popular rule. It is argued that the democratic ideal may be conceived - as a "deliberative democracy" - in such a way as to solve this paradox without deying , as negative liberalism does, the value of self-government in politics. Even for the ideal of deliberative democracy, however, the disharmony between autonomy in politics and individual autonomy is inescapable.


DEMOCRACIA

A desarmonia da democracia* * - The Disharmony of Democracy. In Chapman, J. & Shapiro, I. Democratic Community (Nomos XXXV). New York, New York University Press, 1993. Tradução de álvaro de Vita.

The disharmony of democracy

Amy Gutmann

Professora de Ciência Política na Universidade de Princeton

RESUMO

A vontade popular pode dar apoio a decisões políticas que estão em contradição com as próprias condições para o governo da maioria. Argumenta-se que há uma forma de conceber o ideal democrático – a "democracia deliberativa" – que resolve esse paradoxo da "democracia populista" sem negar, como faz o "liberalismo negativo", o valor do autogoverno na esfera da política. Mesmo o ideal de democracia deliberativa, entretanto, não tem como escapar da desarmonia entre a autodeterminação na política e a autodeterminação individual.

ABSTRACT

The popular will may give support to political results that contradict the very conditions for popular rule. It is argued that the democratic ideal may be conceived – as a "deliberative democracy" – in such a way as to solve this paradox without deying , as negative liberalism does, the value of self-government in politics. Even for the ideal of deliberative democracy, however, the disharmony between autonomy in politics and individual autonomy is inescapable.

Faz algum sentido desapontar-se com o estado da política democrática nos Estados Unidos e ainda assim entusiasmar-se com os desenvolvimentos democráticos em outras partes do mundo? Eu aplaudo os tchecos e os eslovacos conforme se movem em uma direção democrática. Ao mesmo tempo, critico a política partidária, a educação pública, a televisão comercial e a situação geral de nossa política. O problema não parece estar na privatização, no capitalismo, na tirania da maioria ou da minoria, mas em algo que diz respeito à própria atividade política democrática. As campanhas presidenciais se especializam em chamadas de dez segundos que objetivam evitar a reflexão sobre as questões públicas. Os juízes da Suprema Corte conseguem ter suas nomeações aprovadas distanciando-se de seu próprio passado e recusando-se a discutir até mesmo os princípios gerais que provavelmente nortearão suas decisões futuras. Os governos estaduais exaltam as recompensas do jogo e encorajam o oposto de qualquer ética do trabalho. A loteria estadual da Pennsylvania anuncia que "vale a pena jogar todos os dias". A loteria do Estado de New York propaga os sonhos de pessoas comuns de viverem como aristocratas. Estes são apenas alguns poucos dos muitos desencantos com a democracia norte-americana.

O desencanto pela democracia norte-americana é justificado? Afinal, com todos os seus defeitos, os Estados Unidos são muito mais bem sucedidos do que qualquer país da Europa Central ou do Leste, se julgados pelos critérios democráticos – sufrágio universal, eleições competitivas, liberdades de expressão, de imprensa e de associação – que são invocados para elogiar os desenvolvimentos políticos que lá ocorrem. Neste artigo, quero examinar o ideal de democracia para determinar até que ponto ele justifica esses julgamentos e é, ele próprio, justificado. Na seção 1, inicio pelo ideal de democracia populista, que valoriza o governo da maioria e aquelas condições, tais como o sufrágio universal, eleições competitivas e liberdades de expressão política, de imprensa e de associação, que são necessárias para garantir o governo da maioria ao longo do tempo. A democracia populista é capaz de explicar nosso entusiasmo por mudanças que ocorrem em outros países, e é capaz também de oferecer um fundamento plausível para criticar a política norte-americana sempre que as maiorias ameacem as condições para o poder popular (por exemplo, restringindo a expressão política) ou que minorias restrinjam o poder popular por razões outras que não a preservação da democracia. Mas o ideal de democracia populista não inclui as críticas que são dirigidas à qualidade das decisões e da tomada de decisões democráticas.

Será simplesmente um equívoco esperar que um ideal de democracia propicie uma perspectiva para criticar a qualidade das decisões e da tomada de decisões democráticas? Para responder a esta questão, precisamos olhar para além da democracia populista. Na seção 2, examino uma crítica liberal da democracia populista, porque o liberalismo oferece a plataforma que é usualmente empregada para criticar a qualidade da tomada de decisões e das decisões democráticas. Se a plataforma liberal é apropriada para dar sentido a nossas críticas à democracia nos Estados Unidos, então não precisamos procurar mais nada. O entendimento do liberalismo como protetor da liberdade pessoal (ou "negativa"), a liberdade de não sofrer interferência na própria vida pessoal, não capta nossas críticas à democracia nos Estados Unidos. As críticas levantadas pelo liberalismo, pelo menos nessa interpretação "negativa", aplicam-se com força ainda maior às novas democracias da Europa Central e do Leste. Essas críticas não dão uma explicação adequada aos nossos desencantos com a democracia nos Estados Unidos.

Um ideal de democracia que é mais abrangente e crítico do que tanto a democracia populista quanto o liberalismo negativo, que denomino "democracia deliberativa", é capaz de explicar melhor nossos desencantos. Na seção 3, começo a desenvolver o argumento em favor da democracia deliberativa explicitando o ideal e distinguindo-o da democracia populista e do liberalismo negativo. As críticas à democracia produzidas pela democracia populista e pelo liberalismo negativo são incompletas porque ambos são ideais políticos insuficientes. O governo da maioria e a liberdade pessoal são valiosos, mas o valor de cada um é melhor interpretado, e é qualificado, pela democracia deliberativa.

A tensão entre a democracia populista e o liberalismo negativo, a desarmonia externa da democracia populista, ajuda a entender o projeto da democracia deliberativa. A democracia é valiosa não somente porque expressa a vontade da maioria, mas também porque expressa e apóia a autonomia individual em condições de interdependência. Aliando-se à autonomia, entendida como a autodeterminação por meio da deliberação, a democracia deliberativa percorre um longo caminho no sentido da reconciliação da democracia com o liberalismo. A democracia deliberativa está comprometida com dar expressão e apoio à autonomia de todas as pessoas na tomada de decisões coletivas. Esse compromisso, muito mais do que a democracia populista ou o liberalismo, é o que torna nossas insatisfações com a democracia norte-americana compreensíveis.

Os norte-americanos, como nos lembra Ronald Dworkin, característicamente entenderam a democracia como abarcando mais valores liberais do que a democracia populista admite.1 1 "A principal contribuição dos Estados Unidos à teoria política é uma concepção de democracia segundo a qual a proteção de direitos individuais é uma pré-condição a essa forma de governo, e não um compromisso com ela." "The Reagan Revolution and the Supreme Court". The New York Review of Books, 18/07/1991, p.23. Mas o conteúdo dessa percepção não é claro. Não é evidente qual é a melhor forma de reconciliar democracia e liberalismo, e nem se uma reconciliação completa é possível. A seção 4 avalia o sucesso da democracia deliberativa em reconciliar a democracia com o liberalismo. A reconciliação depende da abrangência da autonomia, isto é, de a autonomia conter em si valores nitidamente liberais e também democráticos. O preço da reconciliação é a desarmonia entre os bens internos à democracia. Pessoas que são bem informadas e razoáveis divergem de julgamentos coletivos que emergem do exercício da liberdade política de todos. Essa desarmonia, diferentemente daquela da democracia populista e da desarmonia que Samuel Huntington associa à democracia norte-americana, é moralmente inevitável.2 2 Ver Samuel Huntington, American Politics: The Promise of Disharmony (Cambridge, Harvard University Press, 1981).

1

A comoção em prol da democracia na Europa do Leste oferece apoio à visão de que a democracia é valorizada primeiramente, e acima de tudo, em oposição à dominação política imposta por uma minoria auto-nomeada, não-sujeita à prestação de contas e tirânica. Os movimentos em prol da democracia lá e no mundo todo exigem políticas e instituições que garantam as liberdades de expressão, de imprensa, de associação, de não sofrer prisão arbitrária e os direitos de organizar partidos oposicionistas e de votar em eleições genuinamente competitivas. Essas demandas constituem o núcleo de um ideal comum de democracia, da "democracia populista" ou simplesmente "democracia". A democracia populista é um sistema de governo da maioria que não impõe restrições à substância dos resultados sancionados pelo eleitorado, com exceção daquelas que são exigidas pelo próprio procedimento democrático de governo popular.3 3 Ibid.,p. 156-57. Tais exceções, por exemplo as liberdades políticas, são tão essenciais ao ideal teórico de democracia populista quanto o são para a prática democrática.

Que resultados são exigidos pelo próprio ideal de governo da maioria? Poucos, se a democracia é entendida, à maneira schumpeteriana, como um procedimento minimalista que tem pouco ou nenhum valor substantivo – como "o arranjo institucional para chegar a decisões coletivas em que certos indivíduos adquirem, por meio de uma disputa competitiva pelo voto popular, o poder de decidir"4 4 Schumpeter, Joseph. Capitalism, Socialism, and Democracy. London, George Allen & Unwin, 1943,p.269. . Pelos critérios de Schumpeter, a Rússia de 1990 seria democrática e a Rússia stalinista teria sido democrática se os membros do Partido Comunista votassem. A insistência no minimalismo procedimental implica o abandono da democracia como um ideal.5 5 Como observa Robert Dahl, a interpretação de Schumpeter "deixa-nos sem nenhuma razão para querer saber se um sistema é 'democrático' ou não. De fato, se um demos pode ser um minúsculo grupo que exerce um brutal despotismo sobre uma vasta população subjugada, então 'democracia' torna-se conceituai, moral e empiricamente indistinguível de autocracia." Robert A. Dahl, Democracy and Its Critics (New Haven, Yale University Press, 1989), pp. 121-22. A demanda por reformas democráticas na ex-União soviética hoje seria desprovida de sentido. Nosso entusiasmo pela democratização da (ex)Tchecoslováquia não seria muito mais razoável. Entre a definição de Schumpeter e a conclusão de que somente um tolo ou um fanático sacrificariam qualquer coisa de importante pela democracia a distância é pequena. Mas a conclusão diz respeito menos ao restrito valor da democracia do que à insuficiência de uma interpretação minimalista da democracia como apenas um procedimento político. O valor da democracia é restrito, mas seus limites somente podem ser percebidos à luz de uma interpretação mais robusta e substantiva.

Os teóricos políticos contemporâneos que vêem a democracia como um procedimento político estão a léguas de distância do minimalismo, movendo-se em direção a um ideal de democracia como governo democrático. Insistindo em que a democracia deve ser entendida como um procedimento de governo da maioria, Brian Barry explicitamente embute as seguintes exigências na noção de democracia:

(1) as liberdades de expressão, de imprensa e de associação, "necessárias à formação, expressão e agregação de preferências políticas"; 6 6 Bany, Brian. Is Democracy Special?" In Laslett, Peter & Fishkin, James (orgs.). Philosophy, Politics & Society. New Haven, Yale University Press, 1979, pp. 156-57.

(2) o império da lei, em oposição à vontade arbitrária das autoridades públicas;

(3) a igualdade formal de voto, mas não a igualdade de influência sobre os resultados. "Se há dois distritos eleitorais, cada qual elegendo um representante, o valor de cada voto é evidentemente desigual se um distrito contém mais votos do que o outro."7 7 Ibid, p. 158.

Barry não inclui a titularidade ampla de direitos de cidadania nessa lista de condições, argumentando que o ideal de governo da maioria não tem como determinar por si próprio que território, ou quem, deveria constituir uma comunidade política nos casos em que as fronteiras políticas são contestadas.8 8 Ibid., p. 167-72. Mesmo aceitando essa importante limitação, ainda assim podemos incluir, seguindo Robert Dahl, uma quarta restrição aos resultados que é presumida pela democracia populista naquelas circunstâncias em que as fronteiras não são contestadas:

(4) a extensão da cidadania "a todos os membros adultos da associação, com exceção das pessoas que estão em trânsito e das que são comprovadamente deficientes mentais".9 9 Dahl, op. cit., p. 129. Ver pp. 126-30 para uma defesa dessa restrição.

Essa quarta exigência evita o absurdo de considerar democráticas a Rússia stalinista ou a União Soviética de 1990. Ao mesmo tempo, esse padrão de cidadania inclusiva não pretende predeterminar como devem ser as fronteiras de qualquer democracia que seja no caso de haver pretensões rivais de soberania.

Essas quatro exigências são resultados demandados pela democracia entendida como um ideal de governo da maioria, mas não são garantidas por qualquer procedimento de governo da maioria.10 10 O mesmo poderia ser dito a respeito de variações dessas exigências. A análise que vem a seguir não depende de se aceitar essa interpretação procedimental específica da democracia. Existe uma inevitável tensão, em termos práticos, entre qualquer procedimento de governo da maioria e o correspondente ideal de democracia populista. O ideal requer resultados – preferências políticas não-manipuladas, império da lei, igualdade formal de voto e cidadania inclusiva – que podem conflitar, e conflitam, com a vontade popular efetiva tal como revelada por qualquer procedimento que se conceba como meio do governo da maioria. Nos casos de conflito, alguns democratas dizem que nesse caso a vontade popular, mesmo para os padrões populistas, não é uma vontade democrática. Eles enfatizam a substância do ideal democrático, e, estritamente falando, estão certos nisso. Mas essa forma de se exprimir também pode ser enganosa. Qualquer que seja a forma pela qual os democratas solucionem o conflito entre o governo da maioria e suas condições, não deixam de haver perdas de democracia. Os democratas valorizam o governo da maioria. Seu ideal é o de uma comunidade política na qual todos os adultos têm um status público igual em termos políticos para tomar parte da determinação do futuro de sua sociedade. Quaisquer limitações ao governo da maioria constituem perdas ainda que, levando-se tudo em conta, as perdas sejam necessárias. Em vista do conflito, os democratas têm de admitir que, ou bem alguma medida de governo não-popular, tal como a revisão judicial** ** Sobre a revisão judicial, ver de Samuel Freeman, "Democracia e controle jurídico da constitucionalidade", em Lua Nova 32 (1994). , justifica-se em nome da realização de resultados que não encontram apoio na vontade popular, ou bem que uma vontade verdadeiramente democrática, uma vontade que dá apoio aos resultados que a tornam democrática, dificilmente será plenamente realizada, ou então as duas coisas.

A democracia populista não é paradoxal no sentido que Richard Wollheim celebrizou, mas de todo modo é paradoxal.11 11 Wollheim, Richard. "A Paradox in the Theory of Democracy", in Laslett, Peter e Runciman, W.G. (orgs.). Philosophy, Politics, and Society, 2d Series. Oxford, Oxford University Press, 1984, pp. 153-67. Não há nenhum paradoxo em eu votar contra a caça de veados por acreditar que proibi-la é a melhor alternativa disponível, e apesar disso aceitar que a liberação da caça deva ser a política implementada uma vez que uma maioria votou por ela valendo-se de procedimentos democráticos legítimos. Ao fim e ao cabo, posso continuar acreditando que a maioria está errada, tendo todavia o direito, desde que isso não viole as condições da democracia acima mencionadas, que são necessárias à preservação do governo da maioria, de implementar a política que prefere. Aqui não há paradoxo algum, somente a diferença existente entre o que acredito ser uma política correta em si mesma e o que acredito ser legítimo a uma comunidade democrática implementar em vista dos resultados dos procedimentos democráticos. paradoxo da democracia populista está em outro ponto: na tensão entre a vontade popular e as condições para a preservação da vontade popular ao longo do tempo. Quando uma maioria escolhe restringir a liberdade de expressão política mediante a punição à expressão simbólica (o ato de queimar a bandeira, por exemplo), os democratas populistas se vêem em dificuldades. De uma parte, deveriam se opor às restrições à liberdade de expressão porque nesse caso a vontade popular é antidemocrática. Ela se mostra inconsistente com sua própria preservação. De outra parte, eles deveriam também apoiar essas mesmas restrições à liberdade de expressão exatamente por serem antidemocráticas no primeiro sentido; qualquer tentativa por parte de uma minoria de derrubá-las constitui uma real restrição à vontade popular, sendo por isso antidemocrática.

Alguns teóricos democratas, que em tudo o mais aceitam a definição populista de democracia, relutam em aceitar esse paradoxo apontando duas estratégias inspiradas em Rousseau que supostamente transcendem a tensão entre o governo da maioria e suas pré-condições. Uma estratégia é teórica e a outra é prática. A primeira consiste em distinguir a vontade popular da vontade da maioria, distinção em que uma e outra correspondem de forma aproximada, respectivamente, à Vontade Geral e à vontade de todos de Rousseau. Nos casos em que a vontade da maioria se opõe aos resultados prescritos pelos critérios democráticos, o rousseauniano conclui que o povo está se fazendo a pergunta errada. Ao invés de considerar o bem comum, as pessoas estão pensando em seu próprio interesse. Os rousseaunianos concluem que a vontade coletiva revelada dessa forma não é, propriamente falando, nem popular nem democrática.

As questões que as pessoas se colocam ao votar devem influenciar a forma como interpretamos os resultados. Mas não podemos supor, sempre que uma maioria apóia um resultado democraticamente proibido, que a origem do problema está em se fazer a pergunta errada. As maiorias podem às vezes dar uma resposta errada à questão certa, por acreditarem que restrições à liberdades de expressão, de imprensa e de associação, restrições essas que violam as condições da democracia, são necessárias ao bem comum.

Sempre que a vontade popular dá apoio a um resultado que viola os critérios democráticos, a democracia populista torna-se paradoxal. Os democratas que negam o paradoxo muitas vezes tiram uma falsa inferência de uma definição verdadeira: porque a vontade popular não é necessáriamente uma vontade democrática, nada se sacrifica em termos de valor democrático quando a vontade popular é limitada para que se produzam os resultados que são democraticamente exigidos. Mas qualquer sacrifício de poder popular constitui uma significativa perda democrática, ainda que seja uma perda justificada, ou pelo menos desculpada, pelo próprio ideal democrático. A justificação não elimina a perda. Os democratas populistas adeptos da revisão judicial não têm como, e nem deveriam, defendê-la sem qualquer hesitação. Pelos critérios da democracia populista, nossa sociedade seria melhor se a revisão judicial não fosse necessária.

A segunda estratégia para evitar o paradoxo põe em questão a necessidade prática da revisão judicial e de outras restrições ao governo da maioria. Essa estratégia não ocorre naturalmente aos norte-americanos, mas ela deve ser levada a sério. Avaliando-se por padrões democráticos, o desempenho de muitos países em que não há a revisão judicial foi tão bom quanto, ou quase tão bom quanto, o dos Estados Unidos com a revisão judicial. Jeremy Waldron observa que as alternativas à revisão judicial – checks and balances, separação de poderes – são proeminentes mesmo na tradição norte-americana.12 12 Waldron, Jeremy. "Rights and Majorities: Rousseau Revisited." In Chapman, John W. e Wertheimer (orgs.). Majorities and Minorities. NOMOS XXXII. New York, New York University Press, 1990, pp. 44-75. O capítulo de Waldron oferece uma excelente análise das possibilidades democráticas de defesa dos direitos individuais. Ao invés de evitar o paradoxo da democracia populista, no entanto, essas instituições madisonianas constituem-se elas próprias em formas de limitação do governo da maioria, limitações essas justificadas com base em outros valores, tais como a liberdade pessoal, que não são adequadamente protegidos pela democracia populista.

E o que dizer da alternativa não-institucional, enfatizada por John Stuart Mill, de educar a opinião pública para o respeito à liberdade individual?13 13 Ibid., p.56. Waldron observa que o sucesso do projeto de Mill permitiria à democracia dispensar as restrições ao governo da maioria. De fato. Mas até agora nem Mill nem nenhum outro foi bem-sucedido em educar a opinião pública para respeitar permanentemente as condições da democracia, e é difícil imaginar algo assim no futuro próximo. A desarmonia interna da democracia populista, que está na origem do paradoxo, permanece.

Reconhecer essa desarmonia interna não significa recomendar outra forma de governo. Isso não implica nem mesmo recomendar limitações institucionais à vontade popular, a não ser que seja provável que a minoria que controlará as instituições limitantes será mais confiável do que a maioria. A desarmonia interna da democracia ajuda a explicar porque os democratas, ainda que relutem em restringir a vontade popular, apóiam ambiguamente as restrições quando elas parecem necessárias, por exemplo, para proteger a expressão política. A ambivalência surge não só do paradoxo mas também da aspiração substantiva do ideal democrático, apesar deste não oferecer quaisquer garantias de que o povo seja capaz de se autogovernar como uma comunidade política "auto-determinante" isenta de limitações. O governo da maioria, e não a liberdade de expressão, é o valor fundamental da democracia populista. A democracia dispõe de inúmeras defesas. Nos casos em que a regra da maioria não respeite a liberdade de expressão, por exemplo, os democratas podem consistentemente apoiar a revisão judicial ou outras restrições institucionais. Mas ninguém escapa do paradoxo tão logo qualquer restrição à vontade popular torne-se necessária à preservação da vontade popular ao longo do tempo.

É mais fácil apontar formas razoáveis de defender a democracia populista do que decidir simplesmente como defender o ideal de democracia populista. Na maior parte das situações de conflito entre a vontade popular e suas condições, os democratas divergem sobre o valor da revisão judicial, de outros freios institucionais, da educação pública, de reformas procedimentais ou da vontade popular prevalecente no que se refere à melhor forma de fazer valer o ideal democrático. Em determinadas controvérsias, alguns democratas se aliam aos liberais e outros aos conservadores. As divergências entre os democratas e as alianças conflitantes que eles fazem com respeito ao problema da regulação da pornografia explícita, por exemplo, refletem o paradoxo da democracia populista. Se o governo pelo povo é o ideal, e os requisitos de tal governo vão na linha do que consideramos anteriormente, então a democracia tanto defende quanto critica o governo da maioria quando a maioria escolhe violar as condições de sua própria legitimidade. A democracia populista não dispõe de um critério segundo o qual superar essa contradição entre seus próprios valores. A democracia deliberativa, argumentarei mais adiante, evita esse paradoxo.

2

O liberalismo, segundo uma interpretação corrente, também evita esse paradoxo, e por razões óbvias. Assim como a democracia populista, o liberalismo negativo é uma doutrina política e não uma filosofia completa de vida. Ao passo que o valor dominante da democracia é o governo da maioria, o valor dominante do liberalismo é o de "garantir as condições políticas que são necessárias ao exercício da liberdade pessoal"14 14 Shklar, Judith N. The Liberalismo of Fear. In Rosenblum, Nancy L. (org.). Liberalism and the Moral Life. Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.21. . Denomino essa concepção "liberalismo negativo" porque ela enfatiza o valor de se estar livre de interferências. (O liberalismo positivo, em contraste, valoriza também a liberdade dos indivíduos de se autogovernarem na sociedade, o que estritamente falando não é de modo algum uma liberdade negativa.) Sempre que falo simplesmente de "liberalismo", refiro-me ao liberalismo negativo tal como caracterizado por Judith Shklar: "à parte da proibição à interferência na liberdade de outros, o liberalismo não tem quaisquer doutrinas específicas sobre como as pessoas devem conduzir suas vidas ou sobre que escolhas pessoais elas devem fazer"15 15 Ibid. . E tampouco o liberalismo negativo dispõe de uma doutrina positiva específica a respeito de como as pessoas devem tomar decisões coletivas.

O liberalismo proíbe as escolhas coletivas de interferirem na liberdade pessoal. A promessa da democracia é a de que essas escolhas reflitam a vontade popular. Dois fins conflitantes não podem ser maximizados simultaneamente. A democracia e o liberalismo separam-se quando as escolhas coletivas ameaçam interferir na liberdade pessoal, ou quando a liberdade pessoal ameaça interferir na escolha coletiva.16 16 E o que dizer da liberdade pessoal de participar de decisões coletivas? Na medida em que o liberalismo tem de reconhecê-la como uma entre as várias liberdades valorizadas pelos indivíduos, também ele (o liberalismo) está sujeito à desarmonia interna. Sua desarmonia é similar à da democracia deliberativa, que é discutida por mim na seção 3.

Negligencia-se facilmente a tensão porque ela é intermitente, por duas razões que explicam a convergência dos ideais democrático e liberal. O liberalismo não tem um compromisso com a proteção de todas as liberdades, mas sim com a liberdade pessoal. Por isso ele está em paz com as restrições aprovadas por voto popular às liberdades não-pessoais. A liberdade das empresas, por exemplo, não é protegida de forma absoluta pelo liberalismo. A proteção dessa liberdade é uma questão de política pública, não de princípio moral, e por essa razão cabe à democracia decidir sobre ela.17 17 Para a distinção entre questões de política (policy) e de princípio, e uma importante interpretação distinta do liberalismo com base na idéia de tratar as pessoas como iguais, ver Ronald Dworkin, "Liberalism", em seu A Matter of Principle (Cambridge, Cambridge University Press, 1985), pp. 183-204. Em segundo lugar, a democracia tem um compromisso não só com processos que exprimam a vontade popular mas também com resultados que garantam a vontade popular. Esses resultados – incluindo as liberdades de expressão, de imprensa, de associação necessárias à formação, expressão e agregação de preferências políticas, daqui para frente denominadas "liberdades políticas" – também estão entre as liberdades pessoais com cuja proteção o liberalismo está comprometido. Dessa forma, a democracia defende a liberdade política de expressão, de imprensa e de associação, que são condições necessárias ao governo da maioria. Mas o liberalismo dá prioridade à liberdade de expressão, de imprensa e de associação estejam ou não essas liberdades entre as condições para o governo da maioria. O liberalismo negativo evita o paradoxo da democracia populista subordinando o valor do governo da maioria ao da liberdade pessoal. As liberdades pessoais têm prioridade para o liberalismo porque são liberdades pessoais, e não porque se encontrem entre as condições da democracia. Na política, em que os resultados contam mais do que as razões, o liberalismo negativo e a democracia populista muitas vezes se aliam para dar apoio às liberdades que estão entre as condições necessárias do governo da maioria.

Quando se defrontam com um conflito entre o governo da maioria e as liberdades pessoais que não são parte da liberdade política, o liberalismo negativo e a democracia populista divergem nos resultados assim como nas razões que defendem.18 18 é possível vincular de alguma forma todas as liberdades pessoais à formação de preferências políticas. Mas a teoria democrática tem de distinguir entre os elos próximos e os distantes da formação de preferências políticas. De outra forma, as restrições aos resultados tornam-se tão severas a ponto de seqüestrar o valor e a prática do governo da maioria. A democracia populista cede às comunidades a autoridade de determinar se e como a liberdade pessoal será regulada para que se implementem as políticas aprovadas por voto popular. Um caso paradigmático é o da pornografia explícita desprovida de qualquer mensagem política. Parece plausível dizer que a liberdade pessoal em questão é desnecessária à formação, expressão ou agregação de preferências políticas. Os democratas têm uma razão de princípio para defender restrições popularmente sancionadas à pornografia explícita que os liberais, por sua vez, têm uma razão de princípio para combater. é claro que os democratas podem se opor a tais restrições alegando que a legislação restritiva dá ao governo a oportunidade de limitar também a expressão pornográfica que tem relação com a liberdade política. Mas esse argumento de declive escorregadio nem sempre será aplicável, ou nem sempre será suficiente, para restringir a vontade popular. Nos casos em que se pode confiar que o governo respeitará o limite democraticamente autorizado, os democratas e os liberais se verão em confronto, jogando-se o valor da comunidade contra o da liberdade de expressão, sendo os critérios da comunidade definidos por uma decisão democrática que considera a expressão em tela danosa aos interesses dos membros da comunidade.

Os casos mais esclarecedores são aqueles em que é plausível o julgamento de que a expressão pode ferir os interesses dos membros de uma comunidade, em que a restringi-la não interfere claramente na liberdade política e em que as evidências e argumentos disponíveis são insuficientes para resolver o desacordo entre democratas e liberais. Considere-se um legislativo estadual que aprova uma lei contra o "assédio por insulto pessoal", seguindo o modelo de uma norma recentemente adotada pela Universidade de Stanford. A lei restringe a expressão que (1) "tem o propósito de insultar ou estigmatizar um indivíduo ou um pequeno número de indivíduos devido a sexo, raça, cor, deficiência, opção sexual ou religiosa, ou origem étnica ou nacional"; (2) dirige-se "diretamente ao indivíduo ou indivíduos a quem ela insulta ou estigmatiza"; e (3) "se vale de 'termos agressivos' ou de símbolos não-verbais", definidos como palavras ou representações que "usalmente entende-se que transmitem um claro e visceral ódio ou desprezo por seres humanos".19 19 Este exemplo é tirado de Cass Sunstein, "Ideas, Yes; Assaults, No", The American Prospect 6 (Summer 1991), pp. 35-39. Neste artigo Sunstein defende uma regulamentação desse tipo com argumentos democráticos. Dever-se-ia dar apoio a isso?

Cass Sunstein argumentou energicamente que sim, comparando a lei com a proibição de telefonemas obscenos, que restringe a liberdade pessoal mas claramente não restringe a liberdade política.20 20 Ibid., p. 38. Suponhamos que as evidências e argumentos sejam suficientes para sustentar uma defesa democrática plausível da legislação relativa ao assédio, mas que não sejam suficientes para responder a todas as dúvidas razoáveis. Colocar o ônus da prova na limitação à vontade popular levará um democrata em dúvida a defender a legislação, ao passo que é provável que um liberal em dúvida se oponha a ela porque o liberalismo coloca o ônus da prova na restrição à liberdade pessoal. Democratas e liberais podem se por de acordo sobre o que está em questão, divergindo em princípio e na prática, no entanto, sobre a forma adequada de resolução.

Por isso, a instabilidade da aliança da democracia populista com o liberalismo negativo, não deriva de a primeira adotar a interpretação corrupta da liberdade individual que Isaiah Berlin elaborou e tornou célebre.21 21 Berlin, Isaiah. "Two Concepts of Liberty". Four Essays on Liberty. Londres, Oxford University Press, 1969, pp. 118-72. Segundo essa interpretação, que Berlin associa à defesa da democracia, a liberdade positiva identifica-se a ser senhor de si próprio, e é utilizada para justificar uma autoridade que exerça controle sobre os indivíduos em nome de seu eu "superior" ou "verdadeiro". A democracia populista não pretende que a vontade popular constitua um eu mais elevado ou mais verdadeiro que define os melhores interesses das pessoas. O que ela sustenta é que a forma mais legítima de governar a vida coletiva é aquela mediante o governo da maioria, admitindo que o resultado será às vezes equivocado, desde que não viole as condições para o próprio governo popular. Este é a forma mais legítima de governar uma sociedade porque as demais formas, além de também produzirem equívocos, negam aos adultos um status político igual na elaboração das leis, ou na escolha e controle dos representantes que fazem as leis que governam a vida coletiva.22 22 Para uma discussão da distinção entre legitimidade e justificação no contexto de uma defesa do majoritarismo, ver Waldron, op. cit., pp. 45-6.

Sem pretender que ela se constitua em uma forma superior de liberdade ou que eleve os indivíduos a algum nível superior de existência, a democracia pode rejeitar a prioridade absoluta que o liberalismo concede à liberdade pessoal sobre o governo da maioria. Diante do desacordo razoável acerca do valor da liberdade pessoal em comparação ao de outros bens, os democratas dizem que são as maiorias, e não as minorias, que devem decidir. Em situações de desacordo razoável, os democratas dão mais peso à legitimidade das decisões políticas, isto é, à questão moral de quem deve decidir e como, do que à justificação dessas decisões, isto é, à questão moral concernente ao mérito do que deve ser decidido.23 23 Ibid., p.45.

Os liberais se perguntam porque os democratas valorizam tanto o governo da maioria, considerando-se que na prática cada um de nós tem tão pouca oportunidade de influenciar o resultado de qualquer decisão. Não deveriam pessoas razoáveis preferir um âmbito mais extenso de liberdade pessoal a ser somente uma voz ou um só voto entre tantos outros na tomada de decisões? No melhor dos casos, somente uma pequena minoria das pessoas entusiasma-se pela atividade política; muitas pessoas preferem nem sequer votar. Na prática, a escolha democrática, para a maioria das pessoas, representa uma perda de liberdade pessoal sem nenhum ganho correspondente – de fato, talvez represente uma outra perda mais na forma de uma inoportuna pressão para se engajar na política com o objetivo de proteger a própria liberdade pessoal.

Os democratas populistas dispõem de duas respostas intimamente relacionadas. Primeiro, argumentam que os liberais interpretam erroneamente o trade-off como sendo entre liberdade pessoal e voz política. No âmbito da política pública, o trade-off é entre liberdade pessoal e outros bens sociais que muitas vezes são mais importantes para os indivíduos, tais como, por exemplo, o valor de ser protegido por cintos de segurança ou por remédios receitados. A democracia populista não oferece uma solução teórica para a questão substantiva de política pública atinente a se a liberdade pessoal é mais ou é menos valiosa do que tais proteções, e está bem que não o faça. O que ela oferece, e esta é a segunda resposta dos democratas, é um procedimento para decidir questões que por sua própria natureza precisam ser decididas coletivamente. Nos casos controversos em que as liberdades essenciais à dignidade pessoal não estão em discussão, a maioria das pessoas têm boas razões para contar com o governo da maioria. A alternativa liberal no nível procedimental, argumentam os democratas, é pior; ela envolve alienar a autoridade para decidir questões controversas de uma maioria de adultos capazes para uma minoria. Se o resultado correto é incerto, se a competência moral encontra-se amplamente distribuída, e se a maioria dos cidadãos são afetados pela decisão, por que a opinião de uma minoria deveria imperar?

Os liberais podem replicar que algumas minorias, tais como os juízes, têm uma probabilidade maior, devido a seus papéis institucionais, de tomar decisões com base em princípios e não em preferências.24 24 Dworkin, "The Forum of Principle", em seu A Matter of Principle, sobretudo pp. 70-1. Mesmo concordando com a afirmação de que os princípios constituem o fundamento adequado, pelo menos quando a liberdade pessoal está em questão, os democratas questionam a suposição de que os juízes tomam decisões de princípio melhores do que os legisladores democraticamente eleitos.25 25 Para uma contestação direta ao argumento de Dworkin, ver Waldron, op. cit., pp. 66-71. O retrospecto histórico da revisão judicial nos Estados Unidos está sujeito a esse tipo de repto democrático.

Os democratas populistas não podem por em dúvida, no entanto, que a tomada de decisões pela regra da maioria legitima o sacrifício da liberdade pessoal à vontade popular, um sacrifício a que o liberalismo opõe-se por princípio. Os democratas não podem contar com a ausência de um procedimento geral alternativo à regra da maioria, no liberalismo, para justificar, ou mesmo legitimar, o sacrifício da liberdade pessoal ao governo da maioria. O fato de que pessoas razoáveis discordem sobre os méritos de uma decisão pode ser o motivo para submeter a questão à regra da maioria, mas isso somente na medida em que os méritos da decisão tenham sido minuciosa e inteligentemente considerados pelo público e seus representantes. Se o processo democrático, ou de modo mais geral a sociedade democrática, não é conducente à deliberação, então é discutível que o governo da maioria tenha tanto a recomendá-lo como supõem os democratas populistas. Admitindo-se que a competência moral, ou pelo menos a capacidade para a competência moral, é amplamente distribuída, torna-se razoável perguntar: o que há de tão fantástico no governo da maioria se o povo não delibera? Talvez o governo da minoria seja uma alternativa pior, mas são essas nossas únicas opções? Os liberais não estão comprometidos com o governo da minoria. Eles têm um compromisso com a defesa da liberdade pessoal perante a tirania seja da minoria ou da maioria. Os liberais não dispõem de um outro procedimento. Mas em face das restrições à liberdade pessoal, eles colocam um desafio importante à democracia populista: por que devemos dar uma prioridade absoluta ao governo da maioria sem quaisquer garantias de que a democracia satisfaça um critério que torne esse governo algo mais do que uma mera afirmação da vontade?

O liberalismo, argumenta Shklar, está "monogamica, fiel e eternamente casado com a democracia – mas é um casamento de conveniência".26 26 Shklar, op. cit., p. 37. O casamento é de conveniência porque o liberalismo valoriza a democracia populista somente na medida em que ela protege a liberdade pessoal, em particular a liberdade de não estar sujeito a um Estado opressivo. O casamento dura porque nem o liberalismo nem a democracia são capazes de encontrar um parceiro político mais compatível.

O que essa metáfora, em tudo o mais apropriada, omite são os conflitos matrimoniais sobre os termos do contrato. A política liberal-democrática diz respeito à proteção da liberdade pessoal e à realização da vontade popular. Quando os dois fins conflitam, os parceiros brigam devido aos termos do contrato, fazendo com que o casamento se pareça mais com um caso tempestuoso. Ou então, com o passar do tempo, adaptando-se à falta de parceiros mais aceitáveis, eles podem colocar de lado suas diferenças e procurar uma identidade mais plenamente compatível. Deixando para trás a metáfora conjugal, proponho-me agora a avaliar uma tentativa de reconciliação vinda da parte da democracia: o desenvolvimento de um ideal de democracia deliberativa.

3

A democracia populista não dispõe de recursos para resolver a tensão entre o governo da maioria e suas condições. O compromisso de princípio com o governo da maioria acarreta o paradoxo de restringir a vontade popular para defendê-la. O liberalismo negativo injustificadamente resolve a tensão negando o valor do governo da maioria, exceto como um instrumento para garantir a liberdade negativa. A democracia populista admite qualificações de menos ao valor do governo da maioria; o liberalismo negativo as impõe em demasia. A democracia deliberativa, um ideal mais abrangente e mais exigente, oferece uma forma de resolver a tensão tanto internamente à própria democracia populista quanto entre esta e o liberalismo negativo. A democracia deliberativa não o faz evitando as escolhas difíceis ou supondo que a democracia inclui tudo o que é digno de ser valorizado, mas sim levando a defesa da democracia um passo adiante e oferecendo uma resposta à questão que não é feita pelo populismo, "por que devemos valorizar a vontade popular?", e à questão que não é feita pelo liberalismo negativo, "por que devemos valorizar a liberdade pessoal?".

A democracia deliberativa propõe a resposta de que valorizamos a vontade popular e a liberdade pessoal na medida em que o exercício de uma e outra reflitam ou exprimam a autonomia das pessoas, entendendo-se autonomia como autodeterminação, isto é, a disposição e a capacidade de determinar os rumos da própria vida privada ou pública por meio da deliberação, da reflexão informada, do julgamento e da persuasão que alia a retórica à razão. A democracia deliberativa se vale do governo da maioria para exprimir e dar apoio à autonomia de todos. O governo da maioria é valorizado como um meio de exprimir e garantir a autonomia das pessoas: sua capacidade de deliberar em conjunto sobre questões de interesse público e de se submeter aos resultados dessas deliberações.

Uma pessoa autônoma governa a si própria, a autodeterminação exigindo que as pessoas pratiquem a deliberação e se envolvam na conformação das várias dimensões de suas vidas, pessoais e políticas. Ao passo que a democracia populista supõe que a expressão da vontade popular constitui o bem supremo, a democracia deliberativa sustenta que o valor fundamental do governo da maioria encontra-se no encorajamento à expressão do maior grau possível de deliberação pública, e não na mera expressão da vontade popular. O governo da maioria torna-se menos valioso à medida em que deixa de ser acompanhado pela deliberação. Enquanto o liberalismo negativo supõe que a liberdade de não sofrer interferências constitui o bem público supremo, a democracia deliberativa defende que a liberdade pessoal, assim como a liberdade política, aumenta de valor à medida em que seu exercício exprima ou encoraje a autonomia, nossa capacidade de determinar nossas vidas de acordo com julgamentos bem refletidos.

Diversamente do populismo e do liberalismo negativo, a democracia deliberativa articula uma concepção persuasiva das pessoas como seres independentes, que refletem, julgam e decidem as questões com base em um amplo leque de considerações pertinentes disponíveis a sua consideração em uma sociedade em que todo adulto é tratado como uma pessoa autônoma, sendo por isso assegurado a cada um o status político de cidadão igual. Junto com essa concepção vem um ideal de política em que as pessoas normalmente relacionam-se, não somente afirmando a própria vontade ou lutando por seus interesses predeterminados, mas também influenciando umas às outras por meio do uso publicamente valorizado de argumentos, evidências e julgamentos fundamentados, e da persuasão que recruta razões para sua causa. Em uma democracia deliberativa, as pessoas decidem coletivamente sua própria vida política por meio da argumentação persuasiva. é claro que a persuasão é uma forma de poder; mas é a forma mais defensável de poder político porque é a mais consistente com o respeito à autonomia das pessoas, à capacidade que elas têm de autodeterminação.27 27 Apesar de Michael Walzer não mencioná-la explicitamente, a concepção de pessoas autônomas pode contribuir para esclarecer sua defesa da democracia: "é preciso que os cidadãos governem a si próprios ... O que conta é a discussão entre os cidadãos. A democracia premia o discurso, a persuasão e a habilidade retórica. Idealmente, o cidadão que articula o argumento mais persuasivo – isto é, o argumento que de fato convence o maior número de cidadãos – consegue se impor. Mas ele não pode se valer da força ou posição hierárquica, ou distribuir dinheiro: ele precisa falar das questões em pauta. E todos os demais cidadãos precisam falar também, ou pelo menos ter a oportunidade de falar. Não é somente a inclusão, entretanto, que contribui para um governo democrático. Igualmente importante é o que podemos denominar o império das razões." Spheres of Justice (New York, Basic Books, 1983), p. 304.

Autonomia não é o mesmo que auto-suficiência. A autonomia, como observa Arthur Kuflik, "é perfeitamente compatível com uma 'divisão moral do trabalho'... De fato, em um mundo complexo é difícil acreditar que qualquer um seja sempre o melhor juiz de todo e qualquer problema".28 28 Kuflik,Arthur. "The Inalienability of Autonomy". Philosophy and Public Affairs 13, 4, 1984, p. 272. A autonomia é compatível com delegar autoridade sobre a própria vida, mas não com aliená-la. Cidadãos democráticos podem delegar muitas decisões de política pública a políticos e outras autoridades. A autonomia não é somente consistente com a delegação muitas decisões importantes a pessoas que, por uma variedade de razões, estão em melhor posição de julgar seus méritos; a autonomia pode mesmo exigir a delegação de algumas dessas decisões a essas pessoas. é preciso, entretanto, que sejamos sempre capazes de justificar nossa decisão de delegar ou não. E igualmente importante, devemos estar preparados para manter sob controle aqueles a quem delegamos. A incapacidade de fazer com que as autoridades prestem contas das decisões que tomam em nosso nome, ou a recusa dessas autoridades de se sujeitarem à prestação de contas, violam uma demanda política primária da autonomia, e, por extensão, da democracia deliberativa. Omissões recorrentes de prestação de contas devem nos levar a inquirir se nossas instituições políticas e sociais são adequadas para dar apoio à autonomia.

Uma pessoa autônoma deseja julgar as escolhas que se lhe apresentam na vida, incluindo a escolha de delegar decisões, e viver de acordo com esses julgamentos. O desejo de viver uma vida assim é uma questão de autonomia de caráter; a capacidade de vivê-la é também uma questão de informação, de educação, de força de vontade e de fortuna. Por sua própria natureza, a autonomia não pode ser concedida às pessoas; é preciso que ela seja exigida. Mas as instituições e práticas políticas podem encorajar ou desencorajar a autonomia, torná-la impossível ou colocá-la dentro de nossos horizontes. Uma democracia deliberativa promove as instituições e práticas políticas que encorajam a autonomia e a colocam ao alcance de todo adulto educado.

A objeção à democracia deliberativa, proveniente das posições políticas mais usuais que antes examinamos, pode se apresentar da seguinte forma. é bastante claro que a democracia pode exprimir a vontade popular ou suprimir a liberdade individual. Mas como é possível a qualquer forma de democracia exprimir e dar apoio à autonomia das pessoas? é compreensível que os críticos suspeitem que denominar a democracia "deliberativa" não passa de uma cortina de fumaça para limitar a liberdade individual. A democracia limita a oportunidade de todos nós de viver sob leis que sejam de nossa própria escolha individual. Nesse sentido, a democracia parece minar e não exprimir ou sustentar a autonomia. Se a autonomia é entendida na acepção individualista de todos os indivíduos legislando por si próprios e para si próprios, então a relação da democracia com a autonomia é no melhor dos casos instrumental. A forma mais limitada de governo, a que maximizasse o número de decisões deixadas à escolha individual, seria preferível.

A autonomia, entretanto, tem uma dimensão mais ampla, de natureza política, que se perde quando se toma o contexto social da escolha individual como dado, e quando se enfatiza somente o controle que os indivíduos têm sobre as escolhas de vida que eles podem realizar por si próprios e para si próprios sem sofrer interferências. Muitas de nossas escolhas de vida mais importantes, assim como muitas das mais triviais, sofrem influência e são limitadas pelo contexto social, sobre o qual a autoridade política detém um grau mais elevado de controle. Se somos excluídos dessa autoridade, então não dispomos de autonomia em uma dimensão importante de nossas vidas. Uma parte da liberdade, percebida como tal sobretudo por pessoas que são privadas dela, é a liberdade de participar da determinação do próprio contexto político. Em uma democracia representativa, esse aspecto da autonomia envolve as liberdade políticas necessárias para tomar parte como um igual na eleição dos próprios representantes e na responsabilização destes e de outras autoridades por suas ações. Limitar essas liberdades políticas equivale a limitar o escopo da autonomia moral.29 29 Dahl, Democracy and Its Critics, p.91. Emprego os termos "autonomia" e "autonomia moral" de forma intercambiável, ainda que se possa distingui-los. A autonomia moral é a autodeterminação no âmbito das escolhas moralmente significativas. A autonomia é a autodeterminação em todo o leque de escolhas que afetam a própria vida. A distinção não é importante para os nossos propósitos. E equivale também a privar as pessoas da dignidade de seres que governam a si próprios.

A dimensão política da autonomia exige que as autoridades que tomam decisões que influenciam e restringem as escolhas dos cidadãos prestem contas a nós. Porque minhas escolhas individuais são influenciadas e limitadas por escolhas políticas, a autonomia no âmbito da escolha individual pressupõe a autonomia na esfera política, que, por sua vez, pressupõe a democracia. A democracia propicia a todos os adultos uma participação na autoridade política, encorajando-nos, dessa forma, a exercer nossa autonomia mantendo as autoridades sob a obrigação de prestar contas, e também expressa nossa autonomia pelo reconhecimento público de nosso status político.

Porque a autonomia requer que deliberemos, ela pressupõe um tipo específico de democracia, um sistema de governo da maioria que incentiva os cidadãos a refletir sobre as decisões políticas. A exigência de prestação de contas (accountability), e não a participação direta, é a chave da democracia deliberativa. Ao passo que a democracia participativa aponta para uma comunidade política em que todos participam ativamente da tomada de decisões, a democracia deliberativa leva em conta o ônus da ação política e os benefícios de uma divisão do trabalho. A democracia deliberativa insiste na exigência de uma contínua prestação de contas, e não na participação direta na política. Aqueles que agem em nosso nome devem nos prestar contas, e nós devemos sujeitá-los a isso. O desafio que a democracia deliberativa lança à democracia norte-americana diz respeito à criação de instituições e ao cultivo de uma cultura política que promova o entendimento, a discussão e o envolvimento políticos que são exigidos pela prestação pública de contas.

Apesar de não ser preciso que um cidadão autônomo participe ativamente da política, ele deve estar preparado para obrigar aqueles que o fazem a prestar contas das decisões que tomam em seu nome.30 30 Inúmeros teóricos contemporâneos – incluindo S.L. Hurley, James Fishkin, Robert Dahl, Joshua Cohen e Joel Rogers – defendem versões de democracia deliberativa. Ver, por exemplo, S.L. Hurley, Natural Reasons: Personality and Polity (New York, Oxford University Press, 1989), cap. 15; James Fishkin, Deliberative Democracy (New Haven, Yale University Press, 1991); Robert Dahl, Democracy and Its Critics; e Joshua Cohen e Joel Rogers, On Democracy: Toward a Transformation of American Society (New York, Penguin Books, 1983). A democracia deliberativa ressalta a importância de instituições políticas que facilitem a prestação de conta a um público adequadamente informado, instituições essas que vão desde escolas públicas radicalmente melhoradas, que ensinem as pessoas a deliberar, até debates entre candidatos a cargos políticos que sejam radicalmente modificados de forma a desencorajar a evasão das questões públicas. Instituições que protegem as autoridades do escrutínio público e cidadãos deficientemente educados e mal informados são anátemas para a autonomia. Assim como o são as práticas, que reformas institucionais não têm como abolir, do logro e da evasão por parte de autoridades públicas. A democracia deliberativa tem que se apoiar em parte no comprometimento público, fortalecido por instituições que exigem, recompensam ou pelo menos abrem espaço para uma discussão política aberta e informada.

A deliberação oferece a perspectiva de uma democracia mais defensável. A democracia deliberativa valoriza o governo da maioria na medida em que este manifeste ou dê apoio à autonomia na política, e não simplesmente por ser a expressão da vontade de uma maioria ou de uma pluralidade dos eleitores. Se as pessoas têm pouca educação ou são mal informadas, se os políticos fogem das questões públicas, se as instituições políticas ou culturais desencorajam a deliberação, e por isso os cidadãos não deliberam, então o governo da maioria perde uma boa parte de seu valor. O objetivo da democracia deliberativa não é o governo da maioria e sim a autonomia, razão pela qual não há nenhuma tensão inerente entre o governo da maioria e as condições necessárias para a promoção da autonomia desde que seja possível forjar instituições reconhecidamente democráticas que promovam a autonomia. O teste de uma instituição democrática não é a participação direta de todos e sim a responsabilização efetiva de todos os que tomam decisões perante todos os que não as tomam.

A democracia deliberativa, por essa razão, propõe uma perspectiva da revisão judicial que difere significativamente da que é oferecida pela democracia populista, uma perspectiva que não é internamente paradoxal. As instituições políticas democráticas podem incluir um sistema judicial, com juízes nomeados, que tenha a autoridade para reverter decisões majoritárias legislativas, desde que a revisão judicial (1) seja uma delegação, e não uma alienação da autoridade popular, e (2) contribua para a deliberação pública baseada em princípios sobre as questões que envolvem direitos individuais. é claro que os juízes devem prestar contas ao público pelas decisões que tomam; um elemento decisivo à justificação democrática da revisão judicial é a disposição e a capacidade dos juízes de oferecer uma explicação pública das razões de que se valem para decidir os processos judiciais. Sem que uma explicação desse tipo se ofereça à avaliação dos cidadãos, a revisão judicial seria de fato uma alienação, e não uma delegação, de autoridade democrática. Os juízes recentemente nomeados para a Suprema Corte dos Estados Unidos merecem ser criticados por se recusarem a debater sua filosofia judicial, quaisquer que sejam suas motivações para isso, porque essa recusa exige dos cidadãos e de seus representantes eleitos não que deleguem e sim que alienem sua autoridade.

A autonomia exercida no domínio político, assim como a autonomia exercida no âmbito da escolha individual, é compatível com a delegação de autoridade. Se a autonomia recomenda a delegação, ela também requer que os cidadãos estejam dispostos a, e sejam capazes de, justificar essa delegação. Se os cidadãos não estão dispostos a justificar a revisão judicial, ou não são capazes de fazê-lo, e a revisão judicial é um requisito à autonomia, então a democracia deliberativa é inadequada de acordo com seus próprios critérios, alertando-nos para a tensão que pode surgir entre o efetivo exercício da autonomia pelos indivíduos e as condições políticas para a autonomia, tais como as que propiciam a deliberação cuidadosa sobre questões complexas.

Essa tensão entre a autonomia e suas condições capta a desarmonia central da democracia tal como se manifesta nas críticas cada vez mais freqüentes à democracia norte-americana, incluindo as que serviram de abertura a este artigo. Porque a autonomia depende da deliberação, as condições necessárias à autonomia podem exigir que critiquemos as características do processo político que são compatíveis com o governo da maioria mas não com a democracia deliberativa. A democracia deliberativa nos alerta para a forma pela qual os processos eleitorais norte-americanos desencorajam a deliberação. Ela se opõe a práticas, exemplificadas pela defesa que o Almirante Poindexter fez da não-responsabilização presidencial no caso Irã-Contras e pela recusa do juiz Clarence Thomas adebater sua filosofia judicial, que protegem do escrutínio público as ações políticas e os pontos de vista das autoridades. A democracia deliberativa critica as escolas e a televisão pelo malogro em motivar as crianças a se tornarem educandos ativos, a refletirem criticamente sobre suas vidas e a conhecerem o bastante sobre política, e a se importarem o bastante com a política, para serem capazes de exigir que as autoridades respondam por seus atos. A democracia deliberativa vai além da questão da popularidade das loterias estaduais para colocar sob questão a qualidade da tomada de decisões e a legitimidade da propaganda enganosa. Nesses e em outros casos, a democracia deliberativa exige mais do que o consentimento popular a práticas políticas. Uma prática plenamente democrática só pode ser deliberativa.

A ausência de deliberação fornece a chave para interpretar a enfermidade da democracia norte-americana. E também ajuda a explicar como é possível que nos entusiasmemos com os avanços democráticos de thecos e eslovacos e apesar disso, sem que nossos padrões se alterem radicalmente, mantenhamo-nos críticos das tendências políticas domésticas. Os recentes processos de democratização na (ex)Tchecolosváquia encorajaram notavelmente os cidadãos a desenvolver suas capacidades de auto-governo. Muitas das transições do autoritarismo para o regime democrático têm o efeito de elevar temporariamente o nível de deliberação sobre as questões públicas.

Em contraste, muitos aspectos da política democrática nos Estados Unidos levam a que se negligencie, quando não se desencoraje de todo, o exercício da autonomia. A ausência de financiamento público para a maior parte das campanhas eleitorais tem a implicação de que os políticos precisam despender uma parte considerável de seu tempo levantando recursos e não refletindo e falando sobre as políticas públicas. Os meios de comunicação de massa mostram um flagrante desrespeito pela qualidade da discussão pública e incentivam os políticos a falarem por chamadas cada vez mais breves. Os debates presidenciais dos últimos anos foram organizados pelos próprios candidatos de forma a evitar uma discussão mais extensa de questões controversas.

O sentido da democracia deliberativa não é o de converter a política democrática em uma sucessão de modorrentos seminários acadêmicos. A deliberação pública pode ao mesmo tempo entreter e esclarecer, ainda que, como os acadêmicos deveriam ser os primeiros a reconhecer, essa combinação não emerja naturalmente. Contudo, os debates presidenciais seriam menos aborrecidos se fossem organizados de forma a questionar e a esclarecer as posições dos candidatos sobre os assuntos públicos. O público norte-americano mostrou-se extremamente crítico da campanha presidencial de 1988 pelas táticas enganosas e pela evasão intencional dos problemas que nela prevaleceram. A democracia deliberativa não recomenda substituir a política pela educação, mas deveras exige que se fale a verdade ao invés de se induzir ao engano, que se enfrentem os problemas de frente ao invés de se esquivar deles, e que se revelem, e não que se ocultem, os mecanismos internos do exercício do governo.

Qualquer solução democrática aceitável para o caráter não-deliberativo da política norte-americana deve ser consistente com a representação pública dos adultos como membros autônomos de uma sociedade que governa a si própria. Mas a democracia deliberativa não pode se apoiar somente nessa relação constitutiva ou expressiva da democracia com a autonomia. As condições necessárias para dar sustentação à autonomia na política norte-americana incluem o aprimoramento das instituições de educação e de responsabilização públicas e a emergência de práticas políticas que, diversamente do atual sistema eleitoral, encorajem as pessoas, tanto de dentro como de fora do governo, a deliberar sobre a política.

Em que medida a democracia deliberativa é capaz de efetivar sua promessa de combinar as condições necessárias para a autonomia com uma política reconhecidamente democrática – uma política em que as delegações de autoridade democrática tanto favoreçam a autonomia quanto sejam autonomamente aprovadas pelo público? Uma resposta, acredito, depende de até que ponto a probabilidade de que instituições democráticas, sobretudo as que exigem que as autoridades prestem contas publicamente por suas ações, protejam a autonomia é maior do que a de que instituições não-democráticas, que permitem que as autoridades ajam em nome do povo sem prestar contas, façam o mesmo. Todos os teóricos da democracia deliberativa, dentre os quais John Stuart Mill31 31 Mill, John Stuart. Considerations on Representative Government. In Robson, J.J. (org.). Collected Works. Toronto, University of Toronto Press, 1977, vol. XIX, pp. 371-577; e On Liberty in Collected Works, vol. XVIII, pp. 213-310. Para uma defesa contemporânea dessa suposição, ver Hurley, Natural Reasons, pp. 348-51. é o mais célebre, dão crédito à suposição substantiva crucial de que a accountability pública, que no mínimo oferece aos cidadãos a oportunidade ou de punir ou de tirar do governo os velhacos, encoraja a deliberação sobre as questões públicas que afetam a vida das pessoas. Se essa suposição é falsa, não temos nenhuma perspectiva de que a democracia deliberativa possa realizar sua promessa de promover a autonomia mediante a democracia. Se a suposição é verdadeira, então a justificação da democracia deliberativa é mais robusta e sua coerência interna é maior do que as da democracia populista ou do liberalismo negativo. Apesar de eu não ter como explorar a credibilidade dessa suposição de forma mais aprofundada neste artigo, vale a pena observar que muitas das condições para a autonomia, diversamente das que são necessárias ao governo da maioria, podem ser realizadas aperfeiçoando-se, e não restringindo, os procedimentos do governo da maioria. A democracia deliberativa não recorre ao governo não-popular, e sim a reformas institucionais que fortaleçam a prestação pública de contas e as capacidades deliberativas dos cidadãos. Na medida em que reformas desse tipo possam ser implementadas em um sistema reconhecidamente democrático, a tensão que hoje há na democracia deliberativa, entre a autonomia e as condições a ela necessárias, pode um dia ser superada, mesmo que esse dia ainda não esteja à vista.

A democracia deliberativa chama nossa atenção para a desarmonia que tanto a democracia populista quanto o liberalismo negativo obscurecem, a desarmonia que acompanha a vida de uma pessoa autônoma e que talvez explique o ceticismo que algumas pessoas sérias nutrem pelo ideal de autonomia. Na política, assim como na vida pessoal, a autonomia exige que se façam escolhas meditadas entre valores conflitantes e incomensuráveis. Essas escolhas, como muitas pessoas sabem de experiência própria, podem às vezes ser agônicas. Apesar de a democracia deliberativa evitar o paradoxo da democracia populista, ela não dissolve todos os conflitos entre valores. As instituições e práticas políticas da democracia deliberativa são estruturadas para ajudar os cidadãos a tomar decisões bem informadas sobre sua vida coletiva, engajando suas capacidades críticas na realização de escolhas coletivas. Mas a deliberação não assegura que qualquer deliberante ou comunidade de deliberantes convergirão para uma única solução correta para problemas controversos, sobretudo nos casos em que várias alternativas atrativas se apresentam, cada uma das quais implicando o sacrifício de algum valor importante.

Apesar de a democracia deliberativa ser uma teoria política e moral substantiva, comprometida com a promoção da autonomia, ela não oferece um cálculo de escolha. Ela é compatível com a crença de que a deliberação racional pode, pelo menos em teoria, proporcionar respostas únicas corretas para todas as questões políticas, mas não pressupõe essa crença. Na prática, em condições de informação e entendimento imperfeitos, a deliberação muitas vezes não gera um conhecimento sobre soluções únicas corretas para as controvérsias políticas. A democracia deliberativa está por isso condenada à desarmonia, tanto porque os cidadãos individuais se defrontam com escolhas políticas difíceis sem quaisquer garantias de que encontrarão soluções indisputadas, quanto porque as conclusões de uma comunidade de deliberantes provavelmente divergirão ao se defrontar com um problema controverso como o do aborto. Quanto mais a vida política encoraja a autonomia, tanto mais agônicas as decisões podem se tornar. Mas o nível de acrimonia e violência políticas provavelmente diminuirá conforme os cidadãos aprendam a respeitar uns aos outros como seres, não somente voluntariosos ou egoístas, mas também deliberantes.32 32 Para uma argumentação sobre a natureza e o fundamento do respeito mútuo na política liberal-democrática, ver Amy Gutmann e Dennis Thompson, "Moral Conflict and Political Consensus", Ethics (Outubro de 1990), pp. 64-68.

A democracia deliberativa legitima o julgamento coletivo resultante de procedimentos de deliberação, mesmo que a deliberação não produza uma única resposta correta para uma controvérsia política (e que procedimento poderia fazê-lo?), e mesmo que, supondo-se que todos os cidadãos tenham uma posição igual nas deliberações, o julgamento coletivo discrepe do julgamento de alguns cidadãos. Nossa autonomia é violada quando uma elite que a ninguém presta contas nos poupa do ônus de decidir entre valores conflitantes, e não quando a decisão contraria nosso julgamento mais ponderado, desde que os que tomam a decisão ofereçam boas razões em favor de sua posição contrária a nossa oposição.

A autodeterminação envolve angústias pessoais e requer argumentos políticos sobre a melhor forma de conviver com conflitos acerca de fundamentos, constituindo-se a deliberação coletiva na única base para tomar decisões que a todos vinculem. Mas nossas deliberações nunca encerram a controvérsia sobre qual é a política mais justificada. A democracia deliberativa defende a autonomia, ou a autodeterminação, como o ideal que deve guiar a forma pela qual lidamos com o conflito fundamental de valores e com a indeterminação do julgamento sob condições de informação imperfeita e de imperfeição humana. A autonomia faz da necessidade dessa desarmonia uma virtude.

4

É possível à democracia reconciliar-se com o liberalismo? A democracia deliberativa propõe a possibilidade de uma forma de democracia mais liberal do que a democracia populista e de uma forma de liberalismo mais democrático do que o liberalismo negativo. Ao fazê-lo, ela enfrenta a objeção de críticos liberais de que a soberania de uma cidadania egoísta e de horizontes estreitos "poderia facilmente destruir a soberania dos indivíduos".33 33 Berlin, op. cit., p. 165. Adequadamente entendida, a autonomia não ameaça com a tirania sobre os indivíduos, mas sim salvaguarda as liberdades pessoais e políticas que mais prezamos.

Uma estória singela sugere que o casamento do liberalismo com a democracia não é meramente de conveniência – que a democracia tem uma relação com o liberalismo que é mais do que instrumental e que o liberalismo envolve mais do que uma defesa da liberdade negativa. A estória começa com uma charge publicada pelo The New Yorker quase na mesma época em que a Europa Central e do Leste entrava em erupção. Um ditador qualquer enfrenta um mar de pessoas descontentes que tomaram as ruas para protestar contra seu (do ditador) regime autoritário. "Se eu soubesse o quanto vocês queriam a democracia", declara, "eu já a teria dado a vocês há muito tempo".

Um ditador benevolente pode conceder às pessoas toda a liberdade pessoal que elas queiram. Ele pode lhes conceder as liberdades de expressão, de imprensa, de religião e de associação não-política, a liberdade de não sofrer prisão arbitrária, pode garantir a vigência de normas processuais apropriadas e o direito a um julgamento justo, e até mesmo o direito de portar armas. Obviamente, este é um cenário dos mais implausíveis. Mas é concebido somente como um experimento mental para sugerir que algo legitimamente denominado "liberdade individual" ainda estaria ausente de um Estado liberal não-democrático, algo que a democracia deliberativa supre. O que estaria faltando não é a proteção da liberdade pessoal nem o poder popular em si mesmo, e sim a liberdade das pessoas adultas de participar, diretamente ou por meio de instituições de accountability, da discussão e da determinação das políticas públicas de sua sociedade, em todos aqueles casos em que o critério da liberdade individual não especifica um conjunto único de políticas. Sem instituições que promovam a deliberação pública e a prestação de contas com respeito a questões de importância política, os membros de uma sociedade não são politicamente livres, e a falta de liberdade política diminui sua liberdade pessoal de uma forma direta e palpável.

Esse argumento democrático se aplica a uma multiplicidade de escolhas de política pública, incluindo a taxação, política comercial, proteção ambiental, zoneamento, segurança no trabalho, educação, defesa nacional e atendimento médico. As decisões políticas nessas e em inúmeras outras áreas têm um efeito direto sobre o leque e a natureza das escolhas pessoais, abrangendo coisas tais como: a renda disponível para as pessoas, os preços que pagam pelos produtos, a qualidade do ar que respiram e da água que bebem, a segurança de seus locais de trabalho, a localização de suas casas, a qualidade da educação de seus filhos, a atração exercida pelo serviço militar, o acesso a tratamentos médicos. A lista poderia ser muito maior.

Igualmente importante para perceber a convergência entre a democracia e o liberalismo é o fato de que as decisões políticas nessas áreas também influenciam diretamente a forma pela qual as pessoas identificam, compreendem e avaliam suas escolhas. Consideremos a decisão com a qual muitos norte-americanos se defrontam, a de decidir gastar ou não parte da própria renda no jogo, antes e depois da instituição das loterias estaduais. Estas loterias não só oferecem novas escolhas às pessoas mas também sugerem, por meio de anúncios publicitários, fantasias que elas talvez nunca tenham tido antes. Um anúncio típico da Loteria do Estado de New York, por exemplo, relata o sonho de uma secretária de contratar um motorista, ao invés de utilizar o transporte público. A democracia deliberativa não pergunta somente se as decisões políticas resultam de procedimentos e instituições que são formalmente democráticos, mas também se esses procedimentos e instituições promovem o entendimento e o debate públicos de alternativas de política e das formas pelas quais é provável que essas alternativas influenciem a vida das pessoas.

A democracia deliberativa dá conta da preocupação primeira e suprema do liberalismo com a proteção da liberdade pessoal demonstrando que, no vasto âmbito em que a escolha coletiva é inevitável, a democracia não é apenas instrumental, ela é constitutiva da liberdade individual. O liberalismo positivo também tem de reconhecer esse valor não-instrumental da democracia. Nesse campo, os liberais positivos e os democratas deliberativos convergem porque o valor da liberdade pessoal depende do controle que ela permite às pessoas exercerem sobre suas próprias vidas. Sem as instituições da democracia deliberativa, a liberdade pessoal seria injustificadamente restringida naquelas áreas em que a tomada de decisões coletivas é inevitável.

E o que dizer das áreas em que é possível evitar a tomada de decisões coletivas, aquelas em que a sociedade pode colocar as liberdades pessoais efetivamente fora do controle popular, por meio de limitações constitucionais e institucionais ao governo da maioria? A autonomia também qualifica o valor do governo da maioria, e por isso "liberaliza" a democracia. O governo da maioria é ilegítimo se ele limita as liberdades pessoais que são essenciais a uma pessoa deliberativa e capaz de se autodeterminar. Ele é legítimo quando defende as liberdades pessoais melhor do que qualquer outra forma de governo ou nos casos em que as liberdades pessoais não são essenciais à autonomia individual. Estes últimos, que são os casos em que a autonomia autoriza restrições à liberdade negativa, provavelmente são os casos mais controversos, tanto na teoria quanto na prática. Uma legislatura que presta contas de seus atos aos cidadãos delibera, dispondo de informação suficiente para isso, proibir a venda de drogas que causam dependência e risco de vida e tornar obrigatório o uso de capacete por motociclistas. A justificação dessas políticas, que certamente limitam a liberdade pessoal mas não, pode-se sustentar, a autonomia, depende de que se diferenciem as liberdades que podem ser separadas das que são inseparáveis da autonomia. é certo que pessoas razoáveis, bem informadas e de bom nível educacional podem divergir sobre que liberdades são essenciais à autonomia. Mas uma vez que todas as liberdades pessoais necessárias à deliberação livre estejam protegidas, pode ocorrer que procedimentos deliberativos levem à restrição de certas liberdade pessoais com a finalidade de realizar outros bens valiosos, um resultado que deve ser aceitável tanto a democratas quanto a liberais que aceitam o ideal de autonomia.

Dessa ótica, o casamento do liberalismo com a democracia não é meramente de conveniência. A democracia deliberativa relaciona-se constitutivamente, assim como instrumentalmente, com a liberdade pessoal. E a liberdade pessoal, para a concepção positiva de liberalismo, não é somente a liberdade de não sofrer interferências. A maior de todas as liberdades que uma pessoa possui, em relação a um vasto domínio de escolhas, é a liberdade de deliberar e decidir as questões políticas de forma consistente com uma liberdade igual de cada um dos membros adultos da sociedade de que se é membro. O liberalismo não pode negar a importância dessa liberdade sem corroer seu próprio compromisso com o respeito à liberdade dos indivíduos de viver uma vida que eles identifiquem como sua.

Desaparece, então, a tensão entre o liberalismo e a democracia? Talvez não de todo, não pelo menos em teoria. Os processos deliberativos legitimados pela autonomia podem resultar na subordinação de certas liberdades pessoais, as que não são essenciais à autonomia, à democracia e à deliberação, a outros bens sociais. Por exemplo, a liberdade de gastar a própria renda da forma como se prefere pode se subordinar à decisão democrática de subsidiar as artes. A mais importante concepção contemporânea de liberalismo positivo, Uma teoria da justiça de John Rawls, rejeita explicitamente a justiça de tal decisão com uma linguagem que parece questionar também sua legitimidade. Rawls argumenta, referindo-se aos subsídios públicos às universidades, à ópera e ao teatro, que "é tão injustificado utilizar o aparato estatal para obrigar alguns cidadãos a pagar por benefícios que não pediram, e que outros querem ter, quanto o é obrigar os primeiros a reembolsar outros por seus gastos particulares"34 34 Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 332. .

Em Democratic Education, critiquei essa afirmação de Rawls, valendo-me de critérios da democracia deliberativa.35 35 Democratic Education. Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 256-63. Os critérios liberais confirmam a conclusão de que o financiamento público das artes é tão injustificado quanto o seria forçar-me a pagar pelo seu iate? Por que o liberalismo rawlsiano deveria se opor à decisão democrática de taxar os cidadãos para subsidiar as artes, em prol do amparo à perfeição humana, no caso em que essa decisão é tomada mediante processos adequadamente deliberativos? A taxação restringe a liberdade pessoal, e a questão do subsídio às artes não necessita ser inserida na agenda política. é uma questão que pode ser constitucionalmente vedada à tomada de decisão democrática. Mas o liberalismo rawlsiano não concede prioridade a todas as liberdades pessoais, e certamente não a concede à liberdade de não sofrer taxação. Muito pelo contrário, Rawls inclui as liberdades políticas entre as liberdades que têm prioridade sobre a igualdade eqüitativa de oportunidades e sobre o princípio de diferença. Como lhe é possível, então, concluir que uma decisão democrática de subsidiar as artes é tão ilegítima ou injustificada quanto forçar as pessoas a pagar pelo consumo privado de outros?

Talvez Rawls tenha em mente, não que os subsídios democraticamente sancionados às artes são ilegítimos, ou tão ilegítimos quanto uma política que nos forçasse a subsidiar as despesas puramente privadas de outros, e sim que os subsídios à arte são injustificados segundo sua teoria ideal. Como cidadãos, podemos nos opor a tais subsídios, e ainda assim reconhecer a legitimidade de uma política democraticamente sancionada. Essa posição implica uma divisão de trabalho entre as tarefas da democracia deliberativa e as do liberalismo rawlsiano ou outra concepção de liberalismo positivo. O liberalismo rawlsiano é uma teoria da justificação, e não da legitimidade. Enquanto as teorias da legitimidade, como a democracia deliberativa, especificam as condições fundadas em princípios para a deliberação que torna as decisões políticas legítimas, as teorias da justificação, como a de Rawls, especificam os princípios que deveriam guiar as deliberações democráticas e a definição das políticas públicas, pelo menos sob condições ideais.

Essa divisão de trabalho fundada em princípios torna o liberalismo rawlsiano compatível com a democracia deliberativa, mas não idêntico a ela. Os democratas deliberativos não precisam aceitar os princípios rawlsianos de justiça, mas aqueles que o fazem podem invocá-los para criticar a justiça dos resultados das deliberações democráticas, sem colocar em questão a legitimidade desses resultados. Não há nada de ilegítimo em uma decisão legislativa publicamente debatida e bem informada de subvencionar as artes com o objetivo de promover uma sociedade caracterizada pela excelência artística, cabendo aos cidadãos a liberdade de apreciar ou não a excelência artística que caracteriza sua sociedade. Uma decisão como essa é consistente com, e pode até mesmo exprimir, a autonomia dos cidadãos.

A objeção usual de que alguns cidadãos, aqueles que estão em minoria, serão forçados a pagar impostos para apoiar algo que eles não apreciam (a arte), não constitui uma crítica, ainda que revele uma tensão que é própria da democracia deliberativa. A decisão sobre se você e seus filhos poderão viver em uma sociedade caracterizada pela excelência artística não pode ser uma escolha individual; essa escolha só pode ser coletiva. E trata-se de uma escolha que pessoas que compartilham uma sociedade típica e razoavelmente querem fazer juntas, debatendo os méritos relativos de diferentes políticas públicas. Seria equivocado sustentar que elas seriam mais livres ou autônomas em uma sociedade que tornasse o apoio público às artes inconstitucional, com base na suposição de que o financiamento público violaria a liberdade ou a autonomia dos indivíduos. A autonomia exige que os cidadãos tenham uma oportunidade de deliberar coletivamente e de decidir se querem ou não viver em uma sociedade de excelência artística, que será mais propícia à apreciação artística, e mais cara para aqueles que prefeririam não financiar as artes, do que uma sociedade que deixe o apoio à arte por conta de decisões privadas. A decisão democrática de subvencionar a arte é razoável, mesmo que não possa ser justificada por princípios rawlsianos. Duvido muito de que seja uma decisão injusta, desde que a taxação não seja regressiva e nem prive ninguém de uma vida decente. Mas aqui só quero estabelecer a compatibilidade entre a democracia deliberativa e as concepções de liberalismo positivo que reconhecem o valor da autonomia e por isso não dão uma prioridade absoluta à liberdade negativa.

O valor da autonomia é abrangente. De modo prototípico, ele inclui as liberdades liberais de expressão, de pensamento, de religião e de associação, e também as várias formas de privacidade que são necessárias para se dirigir a própria vida. Também inclui os valores tipicamente democráticos da deliberação e da tomada de decisão coletivas que nos permite a autodeterminação sob condições de interdependência social, a partilha inteligente e responsável da governação de nossa sociedade e a responsabilização de nossos representantes pelas decisões que tomam em nosso nome.

As liberdades pessoais que nos possibilitam agir de acordo com nosso próprio julgamento podem ser limitadas pelos resultados de liberdades que nos possibilitam tomar parte na determinação do futuro (de nossa sociedade). Esta é uma tensão da democracia deliberativa que é interna ao próprio ideal de autonomia. Uma sociedade democrática que regula o acesso a drogas nocivas restringe a liberdade dos cidadãos que têm boas razões para preferir uma outra política, de tipo mais permissivo. Mas essa tensão não constitui uma contradição ou um paradoxo, análogos ao paradoxo da democracia populista. Nas questões que exigem uma decisão no âmbito da política pública, a autonomia prescreve a deliberação e a tomada de decisão públicas, e a prestação de contas por parte dos que tomam as decisões. Os resultados dessas decisões talvez limitem a liberdade pessoal, mas as exigências da autonomia não são violadas desde que as limitações não privem os cidadãos da participação na tomada de decisões que demandam deliberação, e desde que essas limitações não os impeçam de exercer o controle, em termos de prestação de contas, sobre seus representantes legítimos.

Porque a democracia deliberativa concebe a autonomia como um valor abrangente, ela não sucumbe à crítica de Berlin à autonomia como uma forma de liberdade positiva que justifica a tirania em nome do ideal de ser senhor de si mesmo.36 36 Para uma resposta instrutiva à crítica de Berlin, da perspectiva da democracia deliberativa, ver Hurley, Natural Reasons, pp. 351-56. A democracia deliberativa procura maximizar o escopo da autodeterminação para indivíduos interdependentes37 37 Dahl, op. cit.,p.91. e sustentar os processos políticos que ampliam a capacidade dos indivíduos de tomar decisões informadas sobre suas vidas. A autonomia qualifica o valor tanto da liberdade pessoal quanto do governo da maioria para torná-los compatíveis entre si, tendo essa acomodação o objetivo de capacitar as pessoas a governar suas vidas de forma deliberativa, e não de acordo com algum plano superior ou segundo o julgamento de um intelecto filosófico superior ou da autoridade política. A acomodação, entretanto, não é perfeita porque as decisões políticas bem informadas raramente são unânimes, e alguns, indivíduos que estão entre a minoria podem ter fortes razões para dissentir da maioria. é de se esperar que dissensões razoáveis, conscienciosas e bem informadas surjam em uma democracia com respeito a decisões coletivas, e às vezes deve-se até mesmo encorajar isso em nome da autonomia. A dissensão não enfraquece a justificação do processo democrático de tomada de decisões. Essa desarmonia da democracia deliberativa é a prova que ela oferece da incomensurabilidade e seu tributo à autonomia. Pelo fato de que não se pode supor que pessoas autônomas estejam de acordo sobre tudo que é legitimamente submetido à tomada de decisão coletiva, essa desarmonia é um traço inexorável de qualquer sociedade que mereça ser considerada livre e democrática.

A desarmonia que é mais freqüentemente associada à democracia norte-americana, a distância que há entre as práticas vigentes e os princípios liberal-democráticos, tem solução.38 38 Huntington, American Politics. Os princípios liberal-democráticos, corretamente interpretados, não entram em choque com as exigências institucionais de um governo moderno. Na medida em que o governo moderno realmente pressuponha, como supõe Huntington, "a hierarquia, a desigualdade, o poder arbitrário, o segredo, a fraude, e formas estabelecidas de controle hierárquico e de subordinação", os princípios liberais terão de acomodar essas exigências.39 39 Ibid., p. 39. Mas não há nenhuma evidência de que os níveis existentes de desigualdade econômica, fraude política, segredo, hierarquia, controle autoritário e subordinação sejam necessários ao funcionamento de um governo moderno, exceto em sua forma atual corrupta e injusta. é claro que "as imperfeições da natureza humana têm o significado de que a lacuna [entre princípios e práticas] não poderá jamais ser eliminada".40 40 Ibid., p. 261. Mas isso não precisa moderar nossa crítica à democracia norte-americana, ou a qualquer outra comunidade política.41 41 A forma pela qual os norte-americanos se definem como uma nação, por seu credo ou valores políticos, todavia, pode fazer dos Estados Unidos um caso único. Como nos lembra Huntington: "se não fosse pelo Credo Americano, o que os norte-americanos teriam em comum?" (Huntington, op. cit., pp. 24-5). Nossa especificidade nesse aspecto pode fazer com que as desarmonias da democracia norte-americana, o conflito entre nossos ideais e instituições e o conflito entre os nossos ideais, sejam mais agudamente sentidas do que em outras sociedades, em virtude de serem menos moderadas por forças não-ideativas de unidade social. Não posso discutir essa suposição aqui. Ver Huntington, op. cit., cap. 2. Os princípios políticos são instrumentos da crítica construtiva; eles nos ajudam a conceber instituições e práticas alternativas que significariam um avanço moral em ralação às existentes, considerando-se nosso conhecimento da natureza humana e as exigências do governo moderno.42 42 Muitas teorias da justiça dependem da força crítica gerada pela distância entre o ideal de uma sociedade e suas instituições. Tanto Uma teoria da justiça, de Rawls, quanto Spheres of Justice, de Michael Walzer, retiram sua força crítica de uma lacuna desse tipo, ainda que suas interpretações teóricas da lacuna divirjam. Os exemplos de Walzer da forma pela qual a lacuna, tal como percebida por diferentes sociedades em diferentes períodos históricos, deu origem à crítica social qualifica a suposição de Huntington sobre a excepcionalidade norte-americana. Ver também de Walzer, Interpretation and Social Criticism (Cambridge, Harvard University Press, 1987). Ideais não-igualitários não garantem, e nem mesmo facilitam, a harmonia social. Dependendo de seu conteúdo, os ideais hierárquicos podem entrar, como de fato entram, em conflito com as instituições existentes, igualmente gerando uma lacuna entre os princípios e as instituições sociais.

Para encontrar a lacuna entre nossos ideais e nossas instituições, primeiro é preciso que compreendamos nossos ideais. Sugeri que a democracia deliberativa é um ideal político mais abrangente e mais coerente do que a democracia populista e do que o liberalismo negativo. A redução da distância entre o ideal de democracia deliberativa e nossas práticas políticas diminuiria a desarmonia da democracia norte-americana que alimenta nossa crítica a ela. Mas mesmo que a lacuna fosse fechada, a desarmonia interna ao próprio ideal de democracia deliberativa ainda permaneceria. Mesmo um povo perfeito com instituições ideais não poderia eliminar a desarmonia da democracia que tem sua raiz na tensão que há entre viver a própria vida como se acha melhor, e a circunstância de que, para se viver a vida como se acha melhor, é preciso partilhar o poder político com muitas outras pessoas, e, por isso, pode não ser possível a cada um viver cada porção da própria vida da forma como se acha melhor. Algumas das controvérsias que mais divisão causam nos Estados Unidos de hoje, incluindo as batalhas sobre o aborto, pena de morte, drogas e pornografia envolvem conflitos fundamentais entre valores. As resoluções legítimas desses conflitos dependem criticamente da deliberação pública, cuja inexistência está entre os traços mais inquietantes da política norte-americana contemporânea.

Mesmo à luz dessa desarmonia, a democracia tem um valor para os indivíduos à parte de ser instrumental à satisfação de interesses, ainda que esse valor diminua na medida em que as decisões não são deliberativas e os que as tomam não prestam contas de seus atos. Ser um cidadão democrático é parte, uma parte importante (ainda que de forma alguma tudo), do que para nós, e para um número cada vez maior de povos do mundo, significa ser um indivíduo autônomo. A autonomia é exigente, mais exigente do que tanto a democracia populista quanto o liberalismo negativo. Ela também pode ser uma experiência agônica, mas o sofrimento vale a pena. As alternativas são piores.

  • * - The Disharmony of Democracy. In Chapman, J. & Shapiro, I. Democratic Community (Nomos XXXV). New York, New York University Press, 1993.
  • ** Sobre a revisão judicial, ver de Samuel Freeman, "Democracia e controle jurídico da constitucionalidade", em Lua Nova 32 (1994).
  • 1 "A principal contribuição dos Estados Unidos à teoria política é uma concepção de democracia segundo a qual a proteção de direitos individuais é uma pré-condição a essa forma de governo, e não um compromisso com ela." "The Reagan Revolution and the Supreme Court". The New York Review of Books, 18/07/1991, p.23.
  • 2 Ver Samuel Huntington, American Politics: The Promise of Disharmony (Cambridge, Harvard University Press, 1981).
  • 4 Schumpeter, Joseph. Capitalism, Socialism, and Democracy. London, George Allen & Unwin, 1943,p.269.
  • 5 Como observa Robert Dahl, a interpretação de Schumpeter "deixa-nos sem nenhuma razão para querer saber se um sistema é 'democrático' ou não. De fato, se um demos pode ser um minúsculo grupo que exerce um brutal despotismo sobre uma vasta população subjugada, então 'democracia' torna-se conceituai, moral e empiricamente indistinguível de autocracia." Robert A. Dahl, Democracy and Its Critics (New Haven, Yale University Press, 1989), pp. 121-22.
  • 6 Bany, Brian. Is Democracy Special?" In Laslett, Peter & Fishkin, James (orgs.). Philosophy, Politics & Society. New Haven, Yale University Press, 1979, pp. 156-57.
  • 11 Wollheim, Richard. "A Paradox in the Theory of Democracy", in Laslett, Peter e Runciman, W.G. (orgs.). Philosophy, Politics, and Society, 2d Series. Oxford, Oxford University Press, 1984, pp. 153-67.
  • 12 Waldron, Jeremy. "Rights and Majorities: Rousseau Revisited." In Chapman, John W. e Wertheimer (orgs.). Majorities and Minorities. NOMOS XXXII. New York, New York University Press, 1990, pp. 44-75.
  • 14 Shklar, Judith N. The Liberalismo of Fear. In Rosenblum, Nancy L. (org.). Liberalism and the Moral Life. Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.21.
  • 17 Para a distinção entre questões de política (policy) e de princípio, e uma importante interpretação distinta do liberalismo com base na idéia de tratar as pessoas como iguais, ver Ronald Dworkin, "Liberalism", em seu A Matter of Principle (Cambridge, Cambridge University Press, 1985), pp. 183-204.
  • 19 Este exemplo é tirado de Cass Sunstein, "Ideas, Yes; Assaults, No", The American Prospect 6 (Summer 1991), pp. 35-39.
  • 21 Berlin, Isaiah. "Two Concepts of Liberty". Four Essays on Liberty. Londres, Oxford University Press, 1969, pp. 118-72.
  • 24 Dworkin, "The Forum of Principle", em seu A Matter of Principle, sobretudo pp. 70-1.
  • 27 Apesar de Michael Walzer não mencioná-la explicitamente, a concepção de pessoas autônomas pode contribuir para esclarecer sua defesa da democracia: "é preciso que os cidadãos governem a si próprios ... O que conta é a discussão entre os cidadãos. A democracia premia o discurso, a persuasão e a habilidade retórica. Idealmente, o cidadão que articula o argumento mais persuasivo – isto é, o argumento que de fato convence o maior número de cidadãos – consegue se impor. Mas ele não pode se valer da força ou posição hierárquica, ou distribuir dinheiro: ele precisa falar das questões em pauta. E todos os demais cidadãos precisam falar também, ou pelo menos ter a oportunidade de falar. Não é somente a inclusão, entretanto, que contribui para um governo democrático. Igualmente importante é o que podemos denominar o império das razões." Spheres of Justice (New York, Basic Books, 1983), p. 304.
  • 28 Kuflik,Arthur. "The Inalienability of Autonomy". Philosophy and Public Affairs 13, 4, 1984, p. 272.
  • 29 Dahl, Democracy and Its Critics, p.91.
  • 30 Inúmeros teóricos contemporâneos incluindo S.L. Hurley, James Fishkin, Robert Dahl, Joshua Cohen e Joel Rogers defendem versões de democracia deliberativa. Ver, por exemplo, S.L. Hurley, Natural Reasons: Personality and Polity (New York, Oxford University Press, 1989), cap. 15;
  • James Fishkin, Deliberative Democracy (New Haven, Yale University Press, 1991);
  • Robert Dahl, Democracy and Its Critics;
  • e Joshua Cohen e Joel Rogers, On Democracy: Toward a Transformation of American Society (New York, Penguin Books, 1983).
  • 31 Mill, John Stuart. Considerations on Representative Government. In Robson, J.J. (org.). Collected Works. Toronto, University of Toronto Press, 1977, vol. XIX, pp. 371-577;
  • e On Liberty in Collected Works, vol. XVIII, pp. 213-310.
  • Para uma defesa contemporânea dessa suposição, ver Hurley, Natural Reasons, pp. 348-51.
  • 32 Para uma argumentação sobre a natureza e o fundamento do respeito mútuo na política liberal-democrática, ver Amy Gutmann e Dennis Thompson, "Moral Conflict and Political Consensus", Ethics (Outubro de 1990), pp. 64-68.
  • 34 Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 332.
  • 35Democratic Education. Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 256-63.
  • 36 Para uma resposta instrutiva à crítica de Berlin, da perspectiva da democracia deliberativa, ver Hurley, Natural Reasons, pp. 351-56.
  • 38 Huntington, American Politics.
  • 42 Muitas teorias da justiça dependem da força crítica gerada pela distância entre o ideal de uma sociedade e suas instituições. Tanto Uma teoria da justiça, de Rawls, quanto Spheres of Justice, de Michael Walzer, retiram sua força crítica de uma lacuna desse tipo, ainda que suas interpretações teóricas da lacuna divirjam. Os exemplos de Walzer da forma pela qual a lacuna, tal como percebida por diferentes sociedades em diferentes períodos históricos, deu origem à crítica social qualifica a suposição de Huntington sobre a excepcionalidade norte-americana. Ver também de Walzer, Interpretation and Social Criticism (Cambridge, Harvard University Press, 1987).
  • *
    - The Disharmony of Democracy.
    In Chapman, J. & Shapiro, I.
    Democratic Community (Nomos XXXV). New York, New York University Press, 1993. Tradução de álvaro de Vita.
  • **
    Sobre a revisão judicial, ver de Samuel Freeman, "Democracia e controle jurídico da constitucionalidade", em
    Lua Nova 32 (1994).
  • 1
    "A principal contribuição dos Estados Unidos à teoria política é uma concepção de democracia segundo a qual a proteção de direitos individuais é uma pré-condição a essa forma de governo, e não um compromisso com ela." "The Reagan Revolution and the Supreme Court".
    The New York Review of Books, 18/07/1991, p.23.
  • 2
    Ver Samuel Huntington,
    American Politics: The Promise of Disharmony (Cambridge, Harvard University Press, 1981).
  • 3
    Ibid.,p. 156-57.
  • 4
    Schumpeter, Joseph.
    Capitalism, Socialism, and Democracy. London, George Allen & Unwin, 1943,p.269.
  • 5
    Como observa Robert Dahl, a interpretação de Schumpeter "deixa-nos sem nenhuma razão para querer saber se um sistema é 'democrático' ou não. De fato, se um demos pode ser um minúsculo grupo que exerce um brutal despotismo sobre uma vasta população subjugada, então 'democracia' torna-se conceituai, moral e empiricamente indistinguível de autocracia." Robert A. Dahl,
    Democracy and Its Critics (New Haven, Yale University Press, 1989), pp. 121-22.
  • 6
    Bany, Brian. Is Democracy Special?" In Laslett, Peter & Fishkin, James (orgs.).
    Philosophy,
    Politics & Society. New Haven, Yale University Press, 1979, pp. 156-57.
  • 7
    Ibid, p. 158.
  • 8
    Ibid., p. 167-72.
  • 9
    Dahl,
    op. cit., p. 129. Ver pp. 126-30 para uma defesa dessa restrição.
  • 10
    O mesmo poderia ser dito a respeito de variações dessas exigências. A análise que vem a seguir não depende de se aceitar essa interpretação procedimental específica da democracia.
  • 11
    Wollheim, Richard. "A Paradox in the Theory of Democracy", in Laslett, Peter e Runciman, W.G. (orgs.).
    Philosophy, Politics, and Society, 2d Series. Oxford, Oxford University Press, 1984, pp. 153-67.
  • 12
    Waldron, Jeremy. "Rights and Majorities: Rousseau Revisited." In Chapman, John W. e Wertheimer (orgs.).
    Majorities and Minorities. NOMOS XXXII. New York, New York University Press, 1990, pp. 44-75. O capítulo de Waldron oferece uma excelente análise das possibilidades democráticas de defesa dos direitos individuais.
  • 13
    Ibid., p.56.
  • 14
    Shklar, Judith N. The Liberalismo of Fear. In Rosenblum, Nancy L. (org.).
    Liberalism and the Moral Life. Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.21.
  • 15
    Ibid.
  • 16
    E o que dizer da liberdade pessoal de participar de decisões coletivas? Na medida em que o liberalismo tem de reconhecê-la como uma entre as várias liberdades valorizadas pelos indivíduos, também ele (o liberalismo) está sujeito à desarmonia interna. Sua desarmonia é similar à da democracia deliberativa, que é discutida por mim na seção 3.
  • 17
    Para a distinção entre questões de política
    (policy) e de princípio, e uma importante interpretação distinta do liberalismo com base na idéia de tratar as pessoas como iguais, ver Ronald Dworkin, "Liberalism", em seu
    A Matter of Principle (Cambridge, Cambridge University Press, 1985), pp. 183-204.
  • 18
    é possível vincular de alguma forma todas as liberdades pessoais à formação de preferências políticas. Mas a teoria democrática tem de distinguir entre os elos próximos e os distantes da formação de preferências políticas. De outra forma, as restrições aos resultados tornam-se tão severas a ponto de seqüestrar o valor e a prática do governo da maioria.
  • 19
    Este exemplo é tirado de Cass Sunstein, "Ideas, Yes; Assaults, No",
    The American Prospect 6 (Summer 1991), pp. 35-39. Neste artigo Sunstein defende uma regulamentação desse tipo com argumentos democráticos.
  • 20
    Ibid., p. 38.
  • 21
    Berlin, Isaiah. "Two Concepts of Liberty". Four
    Essays on Liberty. Londres, Oxford University Press, 1969, pp. 118-72.
  • 22
    Para uma discussão da distinção entre legitimidade e justificação no contexto de uma defesa do majoritarismo, ver Waldron,
    op. cit., pp. 45-6.
  • 23
    Ibid., p.45.
  • 24
    Dworkin, "The Forum of Principle", em seu
    A Matter of Principle, sobretudo pp. 70-1.
  • 25
    Para uma contestação direta ao argumento de Dworkin, ver Waldron, op. cit., pp. 66-71.
  • 26
    Shklar,
    op. cit., p. 37.
  • 27
    Apesar de Michael Walzer não mencioná-la explicitamente, a concepção de pessoas autônomas pode contribuir para esclarecer sua defesa da democracia: "é preciso que os cidadãos governem a si próprios ... O que conta é a discussão entre os cidadãos. A democracia premia o discurso, a persuasão e a habilidade retórica. Idealmente, o cidadão que articula o argumento mais persuasivo – isto é, o argumento que de fato convence o maior número de cidadãos – consegue se impor. Mas ele não pode se valer da força ou posição hierárquica, ou distribuir dinheiro: ele precisa falar das questões em pauta. E todos os demais cidadãos precisam falar também, ou pelo menos ter a oportunidade de falar. Não é somente a inclusão, entretanto, que contribui para um governo democrático. Igualmente importante é o que podemos denominar o império das razões."
    Spheres of Justice (New York, Basic Books, 1983), p. 304.
  • 28
    Kuflik,Arthur. "The Inalienability of Autonomy".
    Philosophy and Public Affairs 13, 4, 1984, p. 272.
  • 29
    Dahl,
    Democracy and Its Critics, p.91. Emprego os termos "autonomia" e "autonomia moral" de forma intercambiável, ainda que se possa distingui-los. A autonomia moral é a autodeterminação no âmbito das escolhas moralmente significativas. A autonomia é a autodeterminação em todo o leque de escolhas que afetam a própria vida. A distinção não é importante para os nossos propósitos.
  • 30
    Inúmeros teóricos contemporâneos – incluindo S.L. Hurley, James Fishkin, Robert Dahl, Joshua Cohen e Joel Rogers – defendem versões de democracia deliberativa. Ver, por exemplo, S.L. Hurley,
    Natural Reasons: Personality and Polity (New York, Oxford University Press, 1989), cap. 15; James Fishkin,
    Deliberative Democracy (New Haven, Yale University Press, 1991); Robert Dahl,
    Democracy and Its Critics; e Joshua Cohen e Joel Rogers,
    On Democracy: Toward a Transformation of American Society (New York, Penguin Books, 1983).
  • 31
    Mill, John Stuart. Considerations on Representative Government.
    In Robson, J.J. (org.).
    Collected Works. Toronto, University of Toronto Press, 1977, vol. XIX, pp. 371-577; e On Liberty
    in Collected Works, vol. XVIII, pp. 213-310. Para uma defesa contemporânea dessa suposição, ver Hurley,
    Natural Reasons, pp. 348-51.
  • 32
    Para uma argumentação sobre a natureza e o fundamento do respeito mútuo na política liberal-democrática, ver Amy Gutmann e Dennis Thompson, "Moral Conflict and Political Consensus",
    Ethics (Outubro de 1990), pp. 64-68.
  • 33
    Berlin,
    op. cit., p. 165.
  • 34
    Rawls, John.
    A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 332.
  • 35
    Democratic Education. Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 256-63.
  • 36
    Para uma resposta instrutiva à crítica de Berlin, da perspectiva da democracia deliberativa, ver Hurley,
    Natural Reasons, pp. 351-56.
  • 37
    Dahl,
    op.
    cit.,p.91.
  • 38
    Huntington, American Politics.
  • 39
    Ibid., p. 39.
  • 40
    Ibid., p. 261.
  • 41
    A forma pela qual os norte-americanos se definem como uma nação, por seu credo ou valores políticos, todavia, pode fazer dos Estados Unidos um caso único. Como nos lembra Huntington: "se não fosse pelo Credo Americano, o que os norte-americanos teriam em comum?" (Huntington,
    op. cit., pp. 24-5). Nossa especificidade nesse aspecto pode fazer com que as desarmonias da democracia norte-americana, o conflito entre nossos ideais e instituições e o conflito entre os nossos ideais, sejam mais agudamente sentidas do que em outras sociedades, em virtude de serem menos moderadas por forças não-ideativas de unidade social. Não posso discutir essa suposição aqui. Ver Huntington,
    op. cit., cap. 2.
  • 42
    Muitas teorias da justiça dependem da força crítica gerada pela distância entre o ideal de uma sociedade e suas instituições. Tanto
    Uma teoria da justiça, de Rawls, quanto
    Spheres of Justice, de Michael Walzer, retiram sua força crítica de uma lacuna desse tipo, ainda que suas interpretações teóricas da lacuna divirjam. Os exemplos de Walzer da forma pela qual a lacuna, tal como percebida por diferentes sociedades em diferentes períodos históricos, deu origem à crítica social qualifica a suposição de Huntington sobre a excepcionalidade norte-americana. Ver também de Walzer,
    Interpretation and Social Criticism (Cambridge, Harvard University Press, 1987). Ideais não-igualitários não garantem, e nem mesmo facilitam, a harmonia social. Dependendo de seu conteúdo, os ideais hierárquicos podem entrar, como de fato entram, em conflito com as instituições existentes, igualmente gerando uma lacuna entre os princípios e as instituições sociais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1995
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