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Três modelos normativos de democracia

Three normative models of democracy

Resumos

Os modelos de democracia propostos pelo liberalismo e pelo republicanismo comunitarista são criticados a partir da perspectiva da política deliberativa tal como concebida pela teoria do discurso. Associando ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, a teoria do discurso articula elementos de ambas numa forma nova.


The liberal and republican models of democracy are criticized from the standpoint of deliberative politics as conceived by the discourse theory. The normative implications of this model of deliberative politics are stronger than in the liberal model but weaker than in the republican one. Elements of both are articulated by it into a new form.


DEMOCRACIA

Três modelos normativos de democracia

Three normative models of democracy

Jürgen Habermas

RESUMO

Os modelos de democracia propostos pelo liberalismo e pelo republicanismo comunitarista são criticados a partir da perspectiva da política deliberativa tal como concebida pela teoria do discurso. Associando ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, a teoria do discurso articula elementos de ambas numa forma nova.

ABSTRACT

The liberal and republican models of democracy are criticized from the standpoint of deliberative politics as conceived by the discourse theory. The normative implications of this model of deliberative politics are stronger than in the liberal model but weaker than in the republican one. Elements of both are articulated by it into a new form.

Reportando-me aos trabalhos de Frank Michelman, professor de teoria do Estado da Universidade de Harvard (do qual são todas as citações no texto) vou comparar duas concepções de política. Trata-se da concepção liberal e da concepção republicana, na terminologia simplificadora consagrada no debate norte-americano. E, partindo de urna crítica ao tipo de renovação do "republicanismo" que Michelman representa, desenvolverei uma concepção procedimental de política deliberativa.

REPUBLICANISMO E LIBERALISMO

A diferença decisiva entre essas duas concepções consiste no papel do processo democrático. Segundo a concepção liberal o processo democrático cumpre a tarefa de programar o Estado no interesse da sociedade, entendendo-se o Estado como o aparato de administração pública e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu trabalho social. A política (no sentido da formação política da vontade dos cidadãos) tem a função de agregar e impor os interesses sociais privados perante um aparato estatal especializado no emprego administrativo do poder político para garantir fins coletivos. Segundo a concepção republicana a política não se esgota nessa função de mediação. Ela é um elemento constitutivo do processo de formação da sociedade como um todo. A política é entendida como urna forma de reflexão de um complexo de vida ético (no sentido de Hegel). Ela constitui o meio em que os membros de comunidades solidárias, de caráter mais ou menos natural, se dão conta de sua dependência recíproca, e, com vontade e consciência, levam adiante essas relações de reconhecimento recíproco em que se encontram, transformando-as em uma associação de portadores de direitos livres e iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudança importante: junto à instância de regulação hierárquica representada pela jurisdição do Estado, e junto à instância de regulação descentralizada representada pelo mercado (junto, portanto, ao poder administrativo e ao interesse próprio individual) surge a solidariedade e a orientação pelo bem comum como uma terceira fonte de integração social. Essa formação horizontal da vontade política, orientada para o entendimento ou para um consenso alcançado argumentativamente, deve mesmo gozar de primazia, seja geneticamente, seja de um ponto de vista normativo. Para a prática da autodeterminação cidadã supõe-se uma base de sociedade civil autônoma, independente tanto da administração pública como do intercâmbio privado, que protegeria a comunicação política da absorção pelo aparato estatal ou da assimilação à estrutura do mercado. Na concepção republicana o espaço público e político e a sociedade civil como sua infraestrutura assumem um significado estratégico. Eles têm a função de garantir a força integradora e a autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos. A esse desacoplamento entre comunicação política e sociedade econômica corresponde um reacoplamento entre o poder administrativo e o poder comunicativo que emana da formação da opinião e da vontade política.

Assinalarei, tendo em vista a avaliação do processo político, algumas das conseqüências desses enfoques rivais.

a) Conceito de cidadão

Em primeiro lugar, distinguem-se os respectivos conceitos de cidadão. De acordo com a concepção liberal, o status dos cidadãos define-se pelos direitos subjetivos que eles têm diante do Estado e dos demais cidadãos. Na condição de portadores de direitos subjetivos os cidadãos gozam da proteção do Estado na medida em que se empenham em prol de seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos pelas leis. Os direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um âmbito de escolha) dentro do qual os cidadãos estão livres de coações externas. Os direitos políticos têm a mesma estrutura. Eles dão aos cidadãos a possibilidade de fazer valer seus interesses privados, ao permitir que esses interesses possam agregar-se (por meio de eleições e da composição do parlamento e do governo) com outros interesses privados até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efetiva influência sobre a administração. Dessa forma os cidadãos, em seu papel de integrantes da vida política, podem controlar em que medida o poder do Estado se exerce no interesse deles próprios como pessoas privadas.

Conforme a concepção republicana, o status de cidadão não é definido por esse critério de liberdades negativas das quais só se pode fazer uso como pessoa privada. Os direitos de cidadania, entre os quais se sobressaem os direitos de participação e de comunicação políticas, são melhor entendidos como liberdades positivas, Eles não garantem a liberdade de coações externas, mas sim a participação em uma prática comum, cujo exercício é o que permite aos cidadãos se converterem no que querem ser: autores políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Nessa medida o processo político não serve somente para o controle da atividade do Estado por cidadãos que, no exercício de seus direitos privados e de suas liberdades pré-políticas, já alcançaram uma prévia autonomia. Também não cumpre uma função de articulação entre o Estado e a sociedade, já que o poder administrativo não representa poder originário algum, não é um poder autóctone ou um dado. Esse poder na realidade provém do poder comunicativamente gerado na prática da autodeterminação dos cidadãos e se legitima na medida em que protege essa prática por meio da institucionalização da liberdade pública. A justificação da existência do Estado não se encontra primariamente na proteção de direitos subjetivos privados iguais, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade políticas em que cidadãos livres e iguais se entendem acerca de que fins e normas correspondem ao interesse comum de todos. Dessa forma espera-se dos cidadãos republicanos muito mais do que meramente orientarem-se por seus interesses privados.

b) Conceito de direito

A polêmica que tem por objeto o conceito clássico de personalidade jurídica como portadora de direitos subjetivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre o próprio conceito de direito. Ao passo que para a concepção liberal o sentido de uma ordem jurídica está em que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos indivíduos, esses direitos subjetivos, de acordo com a concepção republicana, devem-se a uma ordem jurídica objetiva que ao mesmo tempo possibilita e garante a integridade de uma convivência com igualdade de direitos e autonomia, fundada no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica se constrói a partir dos direitos subjetivos; no segundo, concede-se o primado ao conteúdo objetivo que essa ordem jurídica tem. é verdade que esses conceitos dicotomizados não dão conta do conteúdo intersubjetivo de direitos que exigem.o respeito recíproco de direitos e deveres mediante relações de reconhecimento de caráter simétrico. Mas é a concepção republicana que revela afinidade com um conceito de direito que outorga à integridade do indivíduo e às suas liberdades subjetivas o mesmo peso atribuído à integridade da comunidade cujos membros singulares têm como reconhecer-se reciprocamente, tanto como indivíduos quanto como integrantes dessa comunidade. Pois a concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao procedimento democrático da gênese dessa lei, estabelecendo assim uma conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos não passam em última instância de determinações da vontade política prevalecente, enquanto que para os liberais certos direitos estão sempre fundados numa 'lei superior' de uma razão ou revelação transpolítica... De um ponto de vista republicano, o objetivo de uma comunidade, o bem comum, substancialmente consiste no sucesso de seu empenho político por definir, estabelecer, efetivar e sustentar o conjunto de direitos (ou, menos tendenciosamente, leis) melhor ajustados às condições e costumes daquela comunidade, ao passo que num ponto de vista contrastantemente liberal os direitos baseados na lei superior ministram as estruturas transcendentais e os limites ao poder indispensáveis para a operação mais satisfatória possível da busca pluralista de interesses diferentes e conflitantes".

Na tradição republicana, o direito de voto interpretado como liberdade positiva converte-se em paradigma dos direitos em geral, não somente porque esse direito é condição indispensável da autodeterminação política mas também porque nele torna-se explícito como a inclusão em uma comunidade de portadores de direitos iguais, vincula-se à capacidade dos indivíduos de realizar contribuições autônomas e de assumir posições próprias.

c) Processo político

Essas conceituações distintas do papel do cidadão e do direito exprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do processo político. De acordo com o ponto de vista liberal a política é essencialmente uma luta por posições que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo. O processo de formação da opinião e da vontade políticas na esfera pública e no parlamento é determinado pela concorrência entre atores coletivos, que agem estrategicamente com o objetivo de conservar ou adquirir posições de poder. O êxito é medido pelo assentimento dos cidadãos a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições. Por meio de seus votos os eleitores expressam suas preferências. Suas decisões de voto têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes de um mercado. Esses votos permitem a busca de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adotando uma atitude semelhante de orientação para o êxito. O input de votos e o output de poder respondem ao mesmo modelo de ação estratégica: "Diversamente da deliberação, a interação estratégica tem por fim a coordenação mais do que a cooperação. Em última análise, o que se exige das pessoas é que não levem em conta nada que não seja o interesse próprio. Seu meio é a barganha, não o argumento. Seus instrumentos de persuasão não são reivindicações ou razões mas ofertas condicionais de serviços e abstenção. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente efetivado de modo informal em condutas sociais, um resultado estratégico não representa um juízo coletivo da razão mas uma soma vetorial num campo de forças".

Conforme a concepção republicana a formação da opinião e da vontade políticas no espaço publico e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado mas tem suas estruturas específicas. São elas as estruturas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. O paradigma da política no sentido de uma autodeterminação cidadã não é o do mercado e sim o do diálogo: "Uma concepção dialógica vê – ou talvez fosse o caso de dizer que idealiza – a política como uma atividade normativa. Ela concebe a política como uma contestação sobre questões de valores e não meramente questões de preferências. Ela entende a política como um processo de argumentação racional e não exclusivamente de vontade, de persuasão e não exclusivamente de poder, orientado para a consecução de um acordo acerca de uma forma boa e justa, ou pelo menos aceitável, de ordenar aqueles aspectos da vida que se referem às relações sociais e à natureza social das pessoas". Desse ponto de vista estabelece-se uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que surge da comunicação política na forma de opiniões majoritárias discursivamente formadas, e o poder administrativo, próprio do aparato estatal. Também os partidos, que lutam por conquistas as posições estatais de poder, se vêem obrigados a submeter-se ao estilo deliberativo e ao sentido específico dos discursos políticos. Precisamente por isso o embate de opiniões sustentado no terreno da política tem uma força legitimadora, não somente no sentido de uma autorização para perseguir posições de poder mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso político tem força vinculatória sobre a forma de exercer o poder político. O poder administrativo somente pode ser empregado com base nas políticas e nos limites das leis que surgem do processo democrático.

UMA ALTERNATIVA

Até aqui a comparação restringiu-se aos dois modelos de democracia que hoje, sobretudo nos Estados Unidos, dominam o debate entre os chamados "comunitaristas" e os "liberais". O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. A vantagem, vejo-a em que se atem ao sentido democrata radical de uma auto-organização da sociedade por cidadãos unidos comunicativamente, e em não fazer com que os fins coletivos sejam derivados somente de um arranjo entre interesses privados conflitantes. Vejo sua desvantagem no idealismo excessivo que há em tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum. Mas a política não se constitui somente, e nem mesmo primariamente, de questões relativas à autocompreensão ética dos grupos sociais. O erro consiste em um estreitamento ético dos discursos políticos.

Certamente os discursos de autocompreensão , aqueles em que seus participantes tentam esclarecer-se acerca de como devem entender a si mesmos como membros de uma determinada nação, como membros de um município ou de um Estado ou como habitantes de uma determinada região, acerca de que tradições devem ter continuidade, acerca de como devem tratar-se mutuamente, de como tratar as minorias e os grupos marginais, acerca do tipo de sociedade em que querem viver, também constituem uma parte importante da política. Mas, em situações de pluralismo cultural e social, por trás das metas politicamente relevantes muitas vezes escondem-se interesses e orientações valorativas que de modo algum podem-se considerar constitutivos da identidade da comunidade em seu conjunto, isto é, de uma inteira forma de vida compartilhada intersubjetivamente. Esses interesses e orientações valorativas, que entram em conflito sem perspectiva de consenso, necessitam de um equilíbrio ou de um compromisso que não é possível alcançar-se mediante discursos éticos, ainda que os resultados se sujeitassem à condição de não transgredir os valores básicos consensuais de uma cultura.

Esse equilíbrio de interesses se efetua em forma de compromissos entre partidos estribados em potenciais de poder e em potenciais de sanção. As negociações desse tipo pressupõem, certamente, a disponibilidade para a cooperação; a saber, a disposição de, respeitando as regras do jogo, chegar a resultados que possam ser aceitos por todas as partes, ainda que por razões distintas. Mas essa obtenção de compromissos não se efetua na forma de um discursos racional que neutralize o poder e exclua a ação estratégica. A despeito disso, a equidade dos compromissos é medida por condições e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justificação racional (normativa) com respeito a se são justos ou não. Diferentemente das questões éticas, as questões de justiça não estão por si mesmas referidas a uma determinada coletividade. Pois, para ser legítimo, o direito politicamente estabelecido tem pelo menos de guardar conformidade com princípios morais que pretendem ter validade geral para além de uma comunidade jurídica concreta.

O conceito de política deliberativa somente exige uma referência empírica quando levamos em conta a pluralidade de formas de comunicação nas quais uma vontade comum pode se formar, não somente pela via de uma autocompreensão ética mas também mediante o equilíbrio de interesses e compromissos, mediante a escolha racional de meios com respeito a um fim, mediante justificações morais e exames de coerência jurídicos. Assim, esses dois tipos de política que Michelman contrapõe em termos típico-ideais podem entrelaçar-se de forma racional. A política dialógica e a política instrumental podem entrelaçar-se no campo das deliberações, quando as correspondentes formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas. Portanto, tudo gira em torno das condições de comunicação e dos procedimentos que outorgam à formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas sua força legitimadora.

O terceiro modelo de democracia, que eu gostaria de defender, apóia-se precisamente nas condições de comunicação sob as quais o processo político pode ter a seu favor a presunção de gerar resultados racionais, porque nele o modo e o estilo da política deliberativa realizam-se em toda a sua amplitude.

OS MODELOS COMPARADOS

Se convertemos o modelo procedimental de política deliberativa no núcleo normativo de uma teoria da democracia produzem-se diferenças tanto com respeito à concepção republicana do Estado como uma comunidade ética quanto com respeito à concepção liberal do Estado como protetor de uma sociedade centrada na economia. Inicio a comparação dos três modelos pela dimensão da política de que nos ocupamos até agora, a saber: o processo de formação democrática da opinião e da vontade comum, que se traduz em eleições gerais e em decisões parlamentares.

Conforme a concepção liberal esse processo se dá na forma de compromissos entre interesses. De acordo com a concepção republicana, a formação democrática da vontade comum realiza-se na forma de uma autocompreensão ética. Conforme esse modelo a deliberação, no que se refere ao seu conteúdo, pode apoiar-se num consenso de fundo baseado no fato de que os cidadãos partilham de uma mesma cultura. Esse consenso renova-se na rememoração ritual do ato de fundação republicana. A teoria do discurso toma elementos de ambas as partes e os integra no conceito de um procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões. Esse procedimento democrático estabelece uma conexão interna entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de autocompreensão e discursos relativos a questões de justiça, e fundamenta a suposição de que sob tais condições obtêm-se resultados racionais e eqüitativos. Conforme essa concepção a razão prática se afastaria dos direitos universais do homem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de argumentação que retiram seu conteúdo normativo do fundamento de validade da ação orientada para o entendimento, e, em última instância, portanto, da própria estrutura da comunicação lingüística.

Com essas descrições do processo democrático estabelecem-se os marcos de uma concepção normativa do Estado e da sociedade. Pressupõe-se tão-somente uma administração pública, do tipo que se formou nos inícios do mundo moderno com o sistema de Estados europeu e que se desenvolveu mediante um entrelaçamento funcional com a economia capitalista.

Segundo a concepção republicana, a formação da opinião e da vontade políticas dos cidadãos consiste no meio pelo qual se constitui a sociedade como um todo politicamente organizado. A sociedade centra-se no Estado; pois na prática da autodeterminação política dos cidadãos a comunidade torna-se consciente de si como totalidade e, mediante a vontade coletiva dos cidadãos, age sobre si mesma. A democracia é sinônimo de auto-organização política da sociedade. Disso resulta uma compreensão da política que se volta polemicamente contra o aparato estatal Nos escritos políticos de Hannah Arendt pode-se ver bem a investida da argumentação republicana contra a cidadania privatista de uma população despolitizada e contra a criação de legitimação por parte de partidos cuja referência primária é o Estado. Seria preciso revitalizar a esfera da opinião pública até o ponto em que uma cidadania regenerada pudesse (re)apropriar-se, na forma da autogestão descentralizada, do poder burocraticamente autonomizado do Estado.

Segundo a concepção liberal, essa separação do aparato estatal com respeito à sociedade não pode ser eliminada, mas no máximo transposta pelo processo democrático. As débeis conotações normativas comportadas pela idéia de um equilíbrio de poder e de interesses necessitam, em todo caso, do, complemento representado pelo Estado de direito. A formação democrática da vontade comum doe cidadão s preocupados somente com seu próprio interesse, que o modelo liberal concebe em termos minimalistas, somente pode ser um elemento dentro de uma constituição que deve disciplinar o poder do Estado mediante dispositivos normativos como os direitos fundamentais, a separação de poderes e a vinculação da administração à lei. Por meio da competição entre os partidos políticos, de uma parte, e entre o governo e a oposição, de outra, essa constituição deve fazer o Estado levar adequadamente em conta os interesses sociais e as orientações valorativas da sociedade. Essa visão da política centrada no Estado pode dispensar uma suposição pouco realista, a saber: a de que os cidadãos em conjunto são capazes de ação coletiva. Ela não se orienta por um input de uma formação racional da vontade política mas sim por um output favorável no balanço da atividade estatal. A ênfase da argumentação liberal tem por alvo o potencial perturbador de um poder do Estado que pode estorvar e desarticular o intercâmbio social autônomo entre pessoas privadas. O eixo do modelo liberal não é a autodeterminação democrática dos cidadãos deliberantes mas sim a normatização (em termos de Estado de Direito) de uma sociedade centrada na economia que, mediante a satisfação das expectativas de felicidade de pessoas privadas empreendedoras, deve garantir um bem comum entendido, no fundo, de modo apolítico.

A teoria do discurso, que associa ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, toma elementos de ambos e os articula de uma forma nova e distinta. Coincidindo com o modelo republicano, ela concede um lugar central ao processo político de formação da opinião e da vontade comum, mas sem entender como algo secundário a estruturação em termos de Estado de Direito. Em vez disso, a teoria do discurso entende os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito como uma resposta conseqüente à questão de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democrático. A teoria do discurso não faz a realização de uma política deliberativa depender de uma cidadania coletivamente capaz de ação, mas sim da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos. Essa teoria já não opera com o conceito de um todo social centrado no Estado, que pudéssemos representar como um sujeito em grande escala com ação voltada para metas. Ela tampouco localiza esse todo em um sistema de normas constitucionais que regulem o equilíbrio de poder e o compromisso de interesses de modo inconsciente e mais ou menos automático, conforme o modelo da troca mercantil. Ela dispensa inteiramente as figuras de pensamento da filosofia da consciência, inclinadas a atribuir a prática da autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social global ou então a referir o império impessoal das leis a sujeitos particulares competidores entre si. No primeiro caso a cidadania é considerada como um ator coletivo, que reflete o todo e age por ele; no segundo caso, os atores privados agem como variáveis independentes em processos de poder que se desenvolvem de forma cega, porque para além dos atos de escolha individual não podem existir decisões coletivas tomadas de forma consciente, exceto em um sentido meramente metafórico.

A teoria do discurso, diferentemente, conta com a intersubjetividade de ordem superior de processos de entendimento que se realizam na forma institucionalizada das deliberações, nas instituições parlamentares ou na rede de comunicação dos espaços públicos políticos. Essas comunicações desprovidas de sujeito, ou que não cabe atribuir a nenhum sujeito global, constituem âmbitos nos quais pode dar-se uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes para a sociedade como um todo e acerca das matérias que precisam de regulação. A geração informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em decisões legislativas por meio das quais o poder gerado comunicativamente se transforma em poder passível de ser empregado em termos administrativos. Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso os limites entre o Estado e a sociedade são respeitados; mas aqui a sociedade civil, como a base social de espaços públicos autônomos, distingue-se tanto do sistema de ação econômica quanto da administração pública. E dessa visão da democracia segue-se normativamente a exigência de um deslocamento do centro de gravidade da relação entre os recursos representados pelo dinheiro, pelo poder administrativo e pela solidariedade, dos quais as sociedades modernas se valem para satisfazer sua necessidade de integração e de regulação. As implicações normativas saltam à vista: a força da integração social que tem a solidariedade social, não obstante não mais poder ser extraída somente das fontes da ação comunicativa, deve poder desenvolver-se com base em amplamente diversificados espaços públicos autônomos e em procedimentos de formação democrática da opinião e da vontade políticas, institucionalizadas em termos de Estado de Direito; e, com base no meio do Direito, deve ser capaz de afirmar-se também contra os outros dois poderes –o dinheiro e o poder administrativo.

ADENDO EDITORIAL

Ao publicar o texto da conferência feita por Habermas em 1991 em seminário sobre a teoria da democracia na Espanha (que traduzimos da excelente revista venezuelana El Ojo del Huracán, com revisão e pequenas adaptações no confronto com as passagens em que o texto foi incorporado no livro Faktizitàt und Geltung) trazemos ao debate uma peça importante da fase mais recente do programa de pesquisa habermasiano.

Esta fase mais recente tem como expressão mais acabada o seu livro de 1992 sobre a efetividade e a validade (ou a positividade e a normatividade) do Direito. Trata-se de Faktizität und Geltung, que se apresenta no subtítulo como "contribuições à teoria do discurso aplicada ao Direito e ao Estado de direito democrático". Demonstrando a profunda consistência de seu programa, Habermas enlaça nesse livro a questão que o levou a produzir a teoria da ação comunicativa – a da constituição e, sobretudo, das condições de desempenho de agentes comunicativamente competentes – com a do seu primeiro tema de pesquisa, em que, bem vistas as coisas, tudo já estava contido – o da constituição e das condições de operação da esfera pública. Isso o leva, para além dos agentes comunicativamente competentes, a tratar dos agentes portadores de direitos e capazes de acioná-los no espaço público, como cidadãos – politicamente, portanto. A reflexão sobre a fundamentação discursiva de quaisquer reivindicações de validade concentra-se agora no que realmente importa a Habermas: a articulação entre a autonomia privada, baseada em direitos racionalmente fundados, e portanto universalizáveis, e a autonomia pública, apoiada em procedimentos democráticos. Sobre a democracia, sustenta Habermas, repousa toda a carga da legitimação. é ela que se volta ao mesmo tempo para as garantias das liberdades dos cidadãos privados e para as condições nas quais eles se associam nos processos discursivos orientadores de ações do sistema político e legitimadores dos seus resultados, sempre que racionais (ou seja, sustentáveis no debate público). Para além dos seus temas centrais da racionalização e da legitimação, Habermas é levado nesta sua fase a enfrentar, pela via do exame da tensão entre efetividade e validade no Direito, a questão da institucionalização. Para ele a instância geradora de poder legítimo é a esfera pública, a dimensão da sociedade onde se dá o intercâmbio discursivo. E esse poder comunicativamente gerado tem primazia sobre o poder administrativamente gerado do Estado, não só normativamente mas também porque o segundo deriva do primeiro (difícil não lembrar, aqui, a relação do mesmo tipo entre a ação comunicativa, voltada para o entendimento, e a ação estratégica, voltada para o êxito). Vê-se, assim, o difícil problema que ele enfrenta. Primeiro, porque o poder administrativo no sistema político, ainda que em condições democráticas derive do poder comunicativo na sociedade civil, é o único capaz de se traduzir em ações efetivas; o poder comunicativo não pode ir além de detectar problemas, influir, estabelecer diretrizes (daí a necessidade de vincular ambos si). Depois, porque se trata de arraigar as leis em procedimentos de validação racional e, ao mesmo tempo, considerá-las como suportes institucionais (e portanto já disponíveis) das liberdades sem as quais essa validação, que depende da comunicação aberta entre cidadãos livres e iguais, não tem como se efetivar. Ao enfrentar o complexo de questões assim suscitados Habermas tem oportunidade de evidenciar dois traços do seu enfoque centrado na ação comunicativa que no seu entender nem sempre foram adequadamente percebidos: a sua capacidade de dar conta da dimensão institucional e a sua impregnação pluralista.

Estão em jogo as condições de garantia das liberdades em sociedades em que um subsistema especializado – o sistema político – produz decisões com poder obrigatório para todos. A questão passa a ser, portanto, a da validação racional dos atos do sistema político. Pois a operação do sistema político, centrado no Estado, traduz-se em atos com efeitos de fato, mediante decisões, enquanto a esfera pública da sociedade civil produz opiniões com efeitos normativos (vontades) mediante argumentos (mais precisamente, discursos). De acordo com a teoria do discurso que propõe, escreve Habermas (em Faktizitàt und Geltung, p. 364) "os procedimentos e pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade política funcionam como reservatórios importantes para a racionalização discursiva de decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei. Racionalização significa mais que mera legitimação, porém menos do que constituição do poder. O poder administrativamente disponível modifica sua configuração na medida em que se mantenha interativamente vinculado à formação democrática da opinião e da vontade, que não somente controla retrospectivamente o desempenho do poder político como em certa medida também o programa. Não obstante isso, só o sistema político pode 'agir'. Trata-se de um subsistema especializado em decisões coletivamente obrigatórias, enquanto as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma extensa rede de sensores, que reagem a pressões na sociedade global e estimulam opiniões influentes. A opinião pública convertida em poder comunicativo por procedimentos democráticos não pode 'reinar' ela própria, mas apenas dirigir o uso do poder administrativo em certas direções". Para que a positividade não se autonomize em face da norma, nem o Estado da sociedade, o elo a ser procurado é o do Direito, como esfera institucional singular, a meio caminho entra a moral e a política, que produz a síntese das garantias e das obrigações na forma das leis. é este portanto o objeto que naturalmente se apresenta ao exame de Habermas, na seqüência do seu programa de pesquisa.

Quando da segunda edição de Faktizitàt und Geltung Habermas aduziu um posfácio, no qual busca esclarecer melhor alguns pontos capitais da obra. Algumas passagens desse texto podem ser de valia para a leitura da conferência que estamos publicando (especialmente se considerarmos que ela se compõe de material que seria incorporado ao livro, na terceira seção do capítulo 6). A seguir, portanto, excertos desse escrito mais recente de Habermas. (G.C.)

EFETIVIDADE E VALIDADE

"O argumento desenvolvido em Faktizität und Geltung visa essencialmente demonstrar que há uma relação conceituai intrínseca e não simplesmente uma associação historicamente contingente entre o império da lei e a democracia. (...) Essa relação é também evidente na dialética entre a igualdade legal e de fato, dialética essa que primeiro suscitou o paradigma do bem-estar social em resposta à concepção liberal da lei e que hoje recomenda uma autoconcepção procedimental da democracia constitucional. Sobre o processo democrático pesa toda a carga da legitimação. Cabe a ele assegurar simultaneamente a autonomia privada e pública dos sujeitos jurídicos. Pois direitos privados individuais não podem nem mesmo ser formulados adequadamente, e muito menos implementados politicamente, quando aqueles por eles afetados não se envolveram previamente em discussões públicas para esclarecer quais traços são relevantes para tratar casos típicos como semelhantes ou diferentes, e em seguida tenham mobilizado o poder comunicativo para a consideração da suas necessidades recém-interpretadas. Dessa forma a autoconcepção procedimental da lei privilegia os pressupostos comunicativos e as condições procedimentais da formação democrática da opinião e da vontade como a única fonte de legitimação. A concepção procedimental é tão incompatível com a idéia platônica de que a lei positiva pode retirar sua legitimidade de uma lei mais elevada quanto com a negação positivista de qualquer legitimidade para além da contingência das decisões legislativas".(...)

"Uma prática fundadora de constituição requer mais do que um princípio discursivo pelo qual os cidadãos possam julgar se a lei que produzem é legítima. As formas de comunicação das quais se espera que ensejem a formação de uma vontade política racional mediante o discurso precisam elas próprias ser legalmente institucionalizadas. Ao assumir uma forma legal o princípio do discurso transforma-se numa princípio de democracia. Para tanto, contudo, o código legal como tal precisa estar disponível, e o estabelecimento desse código requer a criação do status de possíveis personalidades jurídicas, isto é, de pessoas pertencentes a uma associação voluntária de portadores de direitos individuais acionáveis. Sem essa garantia de autonomia privada algo como a lei positiva não tem como existir. Conseqüentemente, sem os direitos clássicos de liberdade que asseguram a autonomia privada das personalidades jurídicas tampouco existe o meio para institucionalizar legalmente aquelas condições sob as quais os cidadãos primeiro podem fazer uso da sua autonomia cívica". (...)

"Fazer justiça tanto à autodeterminação democrática quanto ao império da lei requer uma reconstrução em duas etapas. Começa-se com a sociabilidade horizontal de cidadãos que, reconhecendo-se uns aos outros como iguais, concedem-se mutuamente direitos. Somente nesse ponto chega-se ao disciplinamento constitucional do poder pressuposto pelo meio da lei. Ao proceder em dois passos vê-se que os direitos liberais que protegem o indivíduo contra o aparato do Estado com o seu monopólio da violência não são de modo algum originários, mas emergem de uma transformação de liberdades individuais que de início eram reciprocamente concedidas" .(...)

"O direito positivo não mais pode derivar sua legimidade de uma lei moral mais elevada, mas apenas de uma procedimento presumivelmente racional de formação de opinião e vontade. Usando um enfoque baseado na teoria do discurso, analisei mais de perto esse procedimento democrático que confere força legitimadora à produção de leis sob condições de pluralismo social e ideológico. Ao fazê-lo parti de um princípio (...) segundo o qual as únicas regulações e modos de agir que podem reivindicar legitimidade são aquelas às quais todos aqueles suscetíveis de ser afetados poderiam assentir como participantes de discursos racionais. à luz desse Princípio do Discurso' os cidadãos testam quais direitos deveriam conceder-se mutuamente. Enquanto sujeitos legais eles têm que basear essa prática de autolegislação no próprio meio da lei; eles precisam institucionalizar legalmente aqueles pressupostos e procedimentos comunicativos de formação de opinião e vontade políticas nos quais se aplica o princípio do discurso. Assim o estabelecimento do código legal, que se dá amparado no direito universal a liberdades individuais iguais, tem que ser completado mediante direitos comunicativos e participativos que garantam oportunidades iguais para o uso público de liberdades comunicativas. Dessa forma o Princípio do Discurso adquire a forma legal de um princípio democrático". (...)

"A meu juízo o Princípio do Discurso deve ser situado num nível de abstração que é neutro relativamente à distinção entre moralidade e direito. Por um lado supõe-se que ele tenha suficiente conteúdo normativo para avaliar imparcialmente normas de ação como tais; por outro lado, ele não pode coincidir com o princípio moral, porque só subseqüentemente se dá sua diferenciação no princípio moral e no princípio democrático. é importante notar que os dois conceitos-chave na fórmula proposta para o Princípio do Discurso permanecem indeterminados: 'São válidas somente aquelas normas de ação às quais todas as pessoas possivelmente afetadas poderiam assentir como participantes de discursos racionais'. O princípio moral não especifica o tipo de norma, enquanto o princípio democrático não especifica as formas de argumentação (e de negociação). Isso explica duas assimetrias. Ao passo que os discursos morais são especializados para um único tipo de razão, e as normas morais são dotadas de um correspondente modo de normatividade que é nitidamente focalizado, a legitimidade de normas legais estriba numa ampla gama de razões, incluindo razões morais. Em segundo lugar, enquanto o princípio moral, como uma regra de argumentação, serve exclusivamente à formação de juízos, o princípio da democracia estrutura não apenas o conhecimento mas, ao mesmo tempo, a prática institucional dos cidadãos." (...)

"O direito não é um sistema narcisisticamente fechado sobre si próprio, mas é alimentado pela vida ética democrática de cidadãos emancipados e por uma cultura política liberal que lhe é afim. Isso torna-se claro quando tentamos explicar o fato paradoxal de que o direito legítimo pode provir da mera legalidade. O procedimento democrático de elaboração legal apoia-se no uso por cidadãos de seus direitos comunicativos e participativos também com vistas ao bem comum – uma atitude que pode ser reclamada politicamente mas não pode ser compelida legalmente. Como todos os direitos individuais, a forma dos direitos políticos também é de tal ordem é que eles meramente propiciam esferas de livre escolha e apenas fazem do comportamento legal um dever. A despeito dessa estrutura, contudo, eles somente podem dar acesso às fontes de legitimação na formação discursiva da opinião e da vontade quando os cidadãos não usam suas liberdades comunicativas exclusivamente como liberdades individuais na busca de interesses pessoais mas, ao invés, as usam como liberdades comunicativas para a propósito de um 'uso público da razão'." (...)

"A paradoxal conquista do direito consiste então no fato de que ele reduz o conflito potencial entre liberdades individuais mediante normas que apenas são coercitivas na medida em que sejam reconhecidas como legítimas sobre a frágil base de liberdades comunicativas. Urna força que quanto ao mais se opõe à força da comunicação, com seu caráter socialmente integrador, converte-se assim no próprio meio da integração social. Desse modo a integração social assume uma feição peculiarmente reflexiva: ao enfrentar sua necessidade de legitimação com a ajuda da força produtiva da comunicação, o direito tira vantagem de um risco permanente de dissenso para fomentar discursos públicos legalmente institucionalizados." (...)

  • * "Três modelos de democracia. Sobre el concepto de una política deliberativa". El ojo del Huracan 4, 14/15, 1993. Texto da apresentação de Habermas no seminário "Teoria da democracia", na Universidade de Valência, 15/10/1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    1995
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