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O universalismo ético: Kohlberg e Habermas

The etical universalism: Kohlberg and Habermas

Resumos

Examina-se a concepção de universalismo ético a que Lawrence Kohlberg chegou em suas pesquisas sobre o desenvolvimento do pensamento moral, sobretudo a idéia de que esse desenvolvimento, em todos os seres humanos, culmina em uma moralidade "pós-convencional" concebida em termos de princípios de justiça. Discutem-se algumas das tentativas que foram feitas de submeter essa concepção à verificação empírica e a apreciação crítica que dela fez Jürgen Habermas.


The concept of ethical universalim at which Kohlberg arrived in his researches on the development of moral reasoning is examined chiefly regarding the idea that this development culminates , in all human beings, in a "post-conventional" morality conceived in terms of principles of justice. Some attempts to submit this conception to empirical verification as well as Haberma 's reactions to it are discussed.


DEMOCRACIA

O universalismo ético: Kohlberg e Habermas* * O texto que segue corresponde a um resumo do capítulo 2 e, com pequenas alterações, à íntegra da primeira seção do capítulo 3 (intitulada "Universalismo versus relativismo ético") da dissertação de mestrado Autonomia e heteronomia em moral sexual – meio social, idade e gênero no desenvolvimento moral, defendida em 17 de abril de 1995, no programa de pós-graduação em Sociologia, da FFLCH-USP.

The etical universalism: Kohlberg and Habermas

Gustavo Venturi

Mestre em Sociologia pela USP e Diretor Operacional do Instituto Datafolha

RESUMO

Examina-se a concepção de universalismo ético a que Lawrence Kohlberg chegou em suas pesquisas sobre o desenvolvimento do pensamento moral, sobretudo a idéia de que esse desenvolvimento, em todos os seres humanos, culmina em uma moralidade "pós-convencional" concebida em termos de princípios de justiça. Discutem-se algumas das tentativas que foram feitas de submeter essa concepção à verificação empírica e a apreciação crítica que dela fez Jürgen Habermas.

ABSTRACT

The concept of ethical universalim at which Kohlberg arrived in his researches on the development of moral reasoning is examined chiefly regarding the idea that this development culminates , in all human beings, in a "post-conventional" morality conceived in terms of principles of justice. Some attempts to submit this conception to empirical verification as well as Haberma 's reactions to it are discussed.

Em continuidade a investigações no campo da moralidade iniciadas pelo epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-1980)1 1 De Piaget ver, basicamente, O julgamento moral na criança (1977), Seis estudos de psicologia (1982) e Estudos Sociológicos (1973). , o psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg (1927-1987) dedicou os últimos trinta anos de sua vida de pesquisador à elaboração de uma teoria do desenvolvimento moral, vista e revista à luz de dezenas de estudos empíricos. Mantendo-se nos marcos do estruturalismo genético e de uma psicologia construtivista centrada na interação entre experiência e pensamento, Kohlberg2 2 De Kohlberg e equipe ver Essays on Moral Development (1981 e 1984), Moral Stages: a Current Formulation and a Response to Critics (1983) e The Measurement of Moral Development (1987). defenderá uma teoria da psicogênese do desenvolvimento moral em estágios rigidamente estruturados, a qual tem um de seus traços básicos, talvez o mais polêmico, na reivindicação de sua universalidade. Antes de discuti-lo, porém, convém um breve resumo das conclusões e fundamentos dahard structure stage theory.

A TEORIA DE KOHLBERG

Piaget (1977) havia distinguido quatro fases no processo de formação da moralidade: amoralidade, heteronomia, semi-autonomia e autonomia. Kohlberg desdobra as três últimas fases em seis estágios de raciocínio moral, agrupando-os dois a dois em três níveis de moralidade: os estágios 1 (orientação da punição e obediência) e 2 (relativista instrumental) correspondem ao nível pré-convencional; os estágios 3 (concordância interpessoal) e 4 (manutenção social) ao nível convencional; e os estágios 5 (contrato social) e 6 (princípio ético universal) ao nível pós-convencional. A cada estágio corresponde uma "filosofia" moral, um modo distinto de conceber e resolver os conflitos morais, e de operacionalizar a noção de justiça. Os estágios de número ímpar constituem as variantes heterônomas dos níveis de julgamento, no sentido em que neles "predomina a percepção da regra ou convenção como imposta" (Freitag, 1989, p.33). Os estágios pares constituem as variantes autônomas, porque neles prevalece "a dimensão de independência do indivíduo face à norma ou regra estabelecida" (idem).

Os três níveis de julgamento moral referem-se a distinções do nível de perspectiva sócio-moral, o qual constitui "o conceito desenvolvimental básico que subjaz à seqüência de estágios" (Colby e Kohlberg, 1987, vol.l, pp. 15-16). O nível pré-convencional corresponde à perspectiva sócio-moral individual concreta, na qual ainda não há a percepção do caráter convencional das regras, que são, assim, externas ao eu, tidas como naturais ou como caprichos de autoridades. O nível convencional corresponde à perspectiva membro-da-sociedade, em que o eu se identifica com as expectativas dos outros, e na qual há consciência quanto, e respeito, à convencionalidade das regras, já internalizadas, vistas como necessárias e decorrentes das relações de cooperação. Por fim, o nível pós-convencional corresponde à perspectiva precedente-à-sociedade (prior-to-society), em que o eu se diferencia das expectativas dos outros e, fazendo abstração do caráter convencional das regras, pode pensá-las em seu ideal, gerando princípios éticos próprios.

Baseado em pesquisas longitudinais, intergrupais e transculturais realizadas entre 1958 e 1978, Kohlberg (1981) sustenta, como fatos psicológicos, as seguintes conclusões a respeito dos estágios: (1) o desenvolvimento cognitivo (pensamento lógico) é condição necessária, ainda que não suficiente, para o desenvolvimento moral; (2) a seqüência dos estágios morais, tal como a dos cognitivos, é hierárquica e invariante; (3) pode-se parar em qualquer estágio moral, em qualquer idade, ou excepcionalmente regredir, mas se se retoma o desenvolvimento, será necessariamente a partir do estágio então atual, e sem pular ou inverter a ordem dos seguintes; (4) todo ser humano parte do estágio 1 e tem o potencial de atingir o estágio 6, desde que as condições sociais o permitam e não interrompam seu desenvolvimento cognitivo-moral; (5) a ampla variedade de condições sociais, culturais e religiosas não interfere na natureza seqüencial dos estágios, apenas na velocidade com que se progride e no ponto máximo que se atinge.

Além de contar com evidências empíricas abundantes, a tese kohlberguiana de que a seqüência dos estágios de desenvolvimento moral é necessariamente hierárquica e invariante, assenta-se no pressuposto construtivista de sua teoria desenvolvimental, herdado, mais uma vez, de Piaget, para quem, "o desenvolvimento mental é uma construção contínua", em que "cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue das estágios anteriores. O essencial dessas construções sucessivas permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como sub-estruturas, sobre as quais se edificam as novas características. (...) Cada estágio constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa" (1982, pp. 12-14).

Para Kohlberg, portanto, a seqüência dos estágios morais é hierárquica enquanto sucessão de estruturas de complexidade crescente, e invariante na medida em que cada estágio constitui o alicerce para o estágio seguinte, impossibilitando o salto ou a inversão na ordem dos estágios. E articulados em uma seqüência invariante, enquanto totalidades estruturadas que expressam "filosofias" e perspectivas sócio-morais distintas, os estágios de moralidade também são definidos, em princípio, independentemente dos conteúdos específicos (acidentais ou culturalmente determinados) de decisões e ações morais particulares.

Isto decorre do pressuposto estruturalista do cognitivismo: "nós acreditamos que os conceitos não são aprendidos ou usados independentemente uns dos outros, e sim que estão amarrados por traços estruturais comuns. Nossa ênfase é na forma de pensamento em vez do conteúdo, porque é a forma que exibe regularidade e generabilidade desenvolvimental internamente e através dos indivíduos. Mais ainda, no caso dos comportamentos morais, o significado da crença moral específica de um indivíduo não pode ser entendido sem que se compreenda a concepção de mundo moral mais geral ou o quadro conceituai no qual aquela crença está inserida e do qual ela emerge" (Colby e Kohlberg, 1987, vol.l, p.2).

No entanto, se esta independência de conteúdos específicos é evidente nos julgamentos morais dos níveis pré-convencional e convencional, isto já não ocorre nos estágios do nível pós-convencional, em que os valores e julgamentos do indivíduo convergiriam para princípios morais básicos. Neste nível, sustenta Kohlberg, diante de um dilema que envolve, por exemplo, o valor da vida humana, o sujeito já distinguiu e desvencilhou seus julgamentos, sucessivamente, dos valores de status, isto é, da autoridade de quem os enuncia (estágio 1), da sua instrumentalização e uso para outros (estágio 2), de afetos interpessoais (estágio 3) e de formalismos legais (estágio 4), desembocando na defesa da vida e dignidade humanas como valores intrínsecos, e em considerações com o bem-estar geral e outros princípios éticos que, para Kohlberg, estão melhor condensados no princípio de justiça (que seria o mais abrangente e integrado dos princípios).

É por isto que a teoria desenvolvimental dos estágios morais caracteriza-se, ainda, por um pressuposto universalista que se manifesta em dois momentos articulados: primeiro, quando Kohlberg postula a existência da seqüência hierárquica e invariante dos estágios, enquanto trajetória necessária da ontogênese da moralidade por meio de estruturas formais de raciocínio: "há uma forma universalmente válida do processo de pensamento moral racional, à qual todas as pessoas poderiam se articular, supondo-se condições sociais e culturais apropriadas para o desenvolvimento dos estágios cognitivo-morais"; segundo, quando sustenta que esta trajetória tem como ponto culminante uma moralidade pós-convencional substantiva, cuja expressão mais acabada seria a moralidade do princípio ético universal, concebido enquanto justiça: "O desenvolvimento das estruturas do raciocínio de justiça é um desenvolvimento universal", sintetiza Kohlberg, na última formulação do universalismo que reivindica (1983, p.75).

O caráter universalmente necessário do desenvolvimento cognitivo-moral e o alcance do padrão formal de raciocínio pós-convencional a que todos os seres humanos, em qualquer cultura, estariam, neste sentido, predestinados – desde que as condições sociais não se oponham a essa trajetória, retardando-a ou interrompendo-a –, decorrem dos pressupostos anteriores, construtivista e estruturalista, do cognitivismo piagetiano: "toda ação – todo movimento, pensamento ou sentimento – corresponde a uma necessidade. (...) Uma necessidade é sempre a manifestação de um desequilíbrio. (...) A ação se finda desde que haja satisfação das necessidades, isto é, tão que o equilíbrio – entre o fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa organização mental, tal como se apresentava anteriormente– é restabelecido", diz Piaget (1982, p.14). E conclui: "a tendência mais profunda de toda atividade humana é a marcha para o equilíbrio. E a razão – que exprime as formas superiores deste equilíbrio – reúne nela a inteligência e a afetividade" (idem, p.70).

Observa-se que diferentes culturas produzem crenças e valores particulares – fumar ou beber é errado, comer carne na Semana Santa ou porco em qualquer época é errado, ou é errado a mulher não casar virgem, o homem e a mulher serem polígamos, etc. –, mas os princípios morais subjacentes a estes valores, produzidos em todas as culturas, seriam sempre os mesmos, sustenta Kohlberg. O fato de ser comum o conflito de princípios éticos entre pessoas de uma mesma cultura, grupo ou família, isto é, em situações em que a diferença cultural está experimentalmente controlada, demonstra que a questão da moralidade independe da diversidade cultural, repousando, na verdade, em diferenças de estágios e níveis de moralidade. Ou seja, trata-se, antes, de uma questão de maturidade, de desenvolvimento das estruturas de raciocínio e julgamento. As especificidades culturais irão interferir, de resto como as condições sociais em geral, apenas no ritmo da progressão através dos estágios e no ponto máximo de desenvolvimento moral que cada indivíduo atinge.

Enfim, para Kohlberg, a universalidade dos princípios prescritivos pós-convencionais – em especial a da moralidade da justiça – não está, naturalmente, em serem eles universalmente observados no conjunto das ações humanas, ou mesmo reconhecidos em discurso; mas em serem universalizáveis, em função da trajetória universal da psicogênese da moralidade, que teria na razão e na justiça seus pontos ideais de equilíbrio. Para Kohlberg, o princípio de justiça, enquanto defesa da vida, dos direitos individuais e do bem comum, é universal, em suma, não como fato social, apenas como possibilidade de ideal moral. Orientar-se por ele seria uma faculdade potencial de todo ser humano, faculdade, em princípio, tão universal quanto a razão.

UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO

Ao afirmar o caráter duplamente universalista de sua teoria da moralidade – por um lado uma seqüência invariante de estágios formais hierárquicos, por outro a identificação do ponto final do desenvolvimento moral com a internalização de princípios universais substantivos –, Kohlberg se opõe frontalmente aos defensores do relativismo ético. A estes atribui o exercício de ao menos uma, entre três, das seguintes falácias: a derivação da crença na relatividade ética a partir da correta preocupação com a defesa dos direitos de grupos e culturas minoritários; a falácia naturalista, que confunde problemas de fato (não há padrões ou critérios de julgamento moral aceitos por todas as pessoas ou povos) com problemas de valor (não há padrões ou critérios que todos devam aceitar); e, finalmente, a falácia que consiste em confundir relativismo ético com imparcialidade científica ou neutralidade de valores (Kohlberg, 1981, pp.106-114).

No primeiro caso, o da defesa das minorias, trata-se de uma falácia lógica, diz Kohlberg, porquanto recorre a uma preocupação que na verdade nega o relativismo que pretende sustentar, na medida em que traz implícito, justamente, um princípio universal: é preciso garantir a liberdade e o respeito à dignidade a todos os seres humanos, independentemente de suas crenças religiosas, valores morais, preferências sexuais, etc. Já o caráter falacioso que Kohlberg atribui tanto à confusão entre problemas de fato e problemas de valor, quanto entre, de um lado, relativismo ético e, de outro, a necessária busca de imparcialidade, ou ainda a impossibilidade última da neutralidade axiológica nas investigações científicas, exige clarificação.

Em um primeiro momento, Kohlberg (1981, pp. 131-146, 168-182) considerou expressões distintas de uma mesma teoria, a explicação psicológica de por que uma criança passa de um estágio moral a outro e a justificação filosófica de por que um estágio mais alto é mais adequado que um estágio inferior. Com base nas observações de que um novo estágio moral requer operações lógicas ausentes no estágio anterior, e de que, analogamente, há uma correspondência entre, de um lado, os critérios psicológicos de diferenciação e integração, presentes no processo de equilíbrio estrutural, e, de outro, os critérios filosóficos formais da prescritividade e universalidade, que caracterizam as teorias éticas normativas, Kohlberg sustentará, inicialmente, a existência de um isomorfismo entre a psicologia e a filosofia morais. Esta tese da identidade – como Habermas (1989) irá denominá-la – é derivada do pressuposto construtivista do cognitivismo piagetiano: Kohlberg deixa implícito que a complexidade crescente das estruturas de julgamento moral, aliada à racionalidade do princípio da justiça, garantiriam, de modo quase inexorável, que a ontogênese da moralidade atingisse, na justiça, seu ponto eticamente ótimo e final, enquanto padrão ético para o equilíbrio ou harmonia social, enquanto base racional possível para o diálogo e a convivência em sociedade, entre grupos e entre nações.

A constatação empírica, revista só mais tarde, de que havia plena convergência entre alto nível de raciocínio moral formal e a adoção do princípio de justiça, reforça a convicção de Kohlberg, de que uma teoria da moralidade é incompleta se suas implicações filosóficas não são explicitadas: em complementação à abordagem psicológica interacionista, a questão da moralidade deve ser tratada filosoficamente, ainda que na perspectiva de uma filosofia 'experimental', isto é, uma filosofia que, por sua vez, leve em conta os fatos que caracterizam o processo de desenvolvimento psicológico, tanto cognitivo como moral. "Ainda que a teoria psicológica e a teoria ética normativa não sejam redutíveis uma à outra, as duas constituem empreendimentos isomórficos ou paralelos", sintetiza Kohlberg (idem, p. 180).

Ocorre que no princípio dos anos 80, a revisão dos métodos de codificação, quase que desaparecendo com o estágio 6 enquanto fenômeno empírico, bem como os resultados de novas pesquisas realizadas com o próprio instrumental kohlberguiano, colocaram em xeque a inexorabilidade desta confluência entre estruturas complexas de raciocínio e a emergência da moralidade como justiça.3 3 Como "as duas questões inter-relacionadas que estiveram no centro da evolução do modelo de Kohlberg são a diferenciação entre conteúdo e estrutura, e a definição da unidade de análise" (Colby e Kohlberg, 1987, vol.l, p.37), é possível compreender a extensão das reformulações ocorridas observando a sucessão dos diferentes métodos de codificação, responsáveis pela captação (e construção) dos estágios morais. Kohlberg destaca três sistemas principais de codificação, utilizados no período: Sentence and Story Rating (1958-70), Structural Issue Scoring (70-80/81) e Standart Issue Scoring (81 em diante). Isto levará Kohlberg a reformular sua teoria quanto à relação entre psicologia e filosofia moral, sem que ele abra mão, no entanto, do postulado universalista. Para que se compreenda melhor os termos em que Kohlberg recoloca a questão, vejamos, antes, o balanço realizado por alguns autores, a respeito desta polêmica.

Para John Snarey (1985), as conclusões de Kohlberg a respeito da universalidade das categorias, conceitos e princípios morais básicos, e da seqüência invariante de estágios hierárquicos, implicam cinco suposições empíricas, as quais ele se dispõe a testar: (1) a pesquisa de desenvolvimento moral foi feita num espectro suficientemente amplo de ambientes sócio-culturais; (2) todas as pessoas em todas as culturas colocam-se problemas relativos ao domínio moral, afluindo necessariamente para as mesmas questões básicas, sendo que (3) qualquer instância de raciocínio moral genuíno corresponde a um dos estágios, ainda que de transição, definidos por Kohlberg; (4) a seqüência dos estágios morais é estritamente invariante em todas as culturas, (5) encontrando-se em qualquer uma delas o espectro completo de estágios.

Kohlberg havia sustentado a tese da universalidade do desenvolvimento moral originalmente com base no resultado de pesquisas empíricas realizadas junto a crianças e adolescentes de cinco grupos culturais: norte-americanos, chineses de Taiwan e mexicanos, tanto de classe média como de famílias de trabalhadores urbanos; filhos de camponeses e operários turcos, e filhos de indígenas da península de Yucatán (México). Para verificar a validade das hipóteses acima, além das cinco investigações iniciais de Kohlberg, Snarey compilou outras 40 pesquisas realizadas até 1985, dentro dos parâmetros kohlberguianos. Totalizou assim, 45 estudos em 27 culturas diferentes, sendo 22% com populações originárias da Europa Ocidental, 44% com populações não-européias, mas urbanas e ocidentalizadas, e 33% com populações tribais ou de vilas rurais. Dos 45 estudos, 30% incluíram crianças, adolescentes e adultos, 18% crianças e adolescentes ou adolescentes e adultos e 52% apenas um dos grupos de idade; 56% foram feitos com indivíduos de ambos os sexos.

Para comparar os estudos compilados, Snarey fez quatro tipos de padronização: (1) graduou-os quanto à confiabilidade dos resultados, segundo o sistema de pontuação e classificação em estágios utilizado, isto é, do mais antigo e menos confiável Sentence and Story Rating, ao último e mais confiável Standart Issue Scoring; (2) reestimou os resultados dos estudos que não haviam trabalhado com a pontuação algorítmica mais recente, que exige ao menos 25% do raciocínio de um indivíduo em um estágio para considerar este estágio em sua pontuação final; (3) recodificou os antigos estágios 6 no estágio 5, já que o manual mais recente não distingue os dois últimos estágios; e (4) recalculou escalas antigas de 5 e 13 estágios e sub-estágios na escala atual que contém 9, isto é, os 5 estágios propriamente ditos, intercalados por 4 'estágios' de transição.

Snarey não encontrou problemas em relação a três das cinco suposições verificadas. Primeiro, quanto à amplitude das pesquisas, conclui que o número de grupos e a diversidade de culturas em que o modelo kohlberguiano foi aplicado são suficientes para testar a validade universal da teoria cognitiva-desenvolvimental dos estágios morais, contando ainda a favor de Kohlberg o fato de que nenhuma outra teoria psicológica do desenvolvimento dispôs de tantos estudos transculturais. Segundo, quanto à identidade universal das questões, normas e valores básicos, Snarey observa que a escolha de um tópico em detrimento de outro, operada na resolução dos dilemas propostos, está sujeita a variações culturais, o que indica que a entrevista de Kohlberg não é culturalmente neutra, mesmo quando devidamente traduzida e adaptada a referências de cada cultura, como ocorreu na maioria dos estudos compilados. No entanto, Snarey conclui que este viés metodológico não chega a comprometer a tese da universalidade, visto que as pesquisas que trabalharam com dilemas completamente novos, com temas e conteúdos derivados da própria cultura sob investigação, chegaram a resultados semelhantes aos obtidos com os dilemas padrões. E terceiro, quanto ao caráter invariante e hierárquico da seqüência de estágios, Snarey considera que os dados disponíveis apontam para sua validação: nos sete estudos longitudinais realizados (três deles com duração de nove a vinte anos) não se reportou nenhum caso de salto de estágio, e as poucas regressões observadas são percentualmente inferiores à variação de até 19%, encontrada por Kohlberg e seus auxiliares, através da aplicação seguida de entrevistas com os mesmos indivíduos (test-retest error).

Em relação às duas outras hipóteses, Snarey identifica os seguintes problemas: quanto à abrangência do modelo kohlberguiano, no sentido de dar conta de qualquer instância de raciocínio moral, observa que alguns estudos indicam que há julgamentos morais singulares não contemplados na teoria e no manual de pontuação de Kohlberg, particularmente raciocínios assentados em princípios coletivos e comunais. E, finalmente, no que tange à existência do espectro completo de estágios em todas as culturas, Snarey encontra o que considera a área mais claramente problemática, em termos de suporte empírico para a universalidade do desenvolvimento moral pretendida pelo modelo de Kohlberg. De fato, enquanto os estágios de 2 a 4 apareceram nas 27 áreas culturais estudadas, os estágios 1 e 5 surgiram em apenas 67% das amostras. Controlando-se as amostras por idade, pode-se presumir que os estágios 1 e 1-2 provavelmente teriam aparecido onde não foram encontrados, se nesses locais fossem entrevistadas crianças mais novas. Já os estágios 4-5 e 5, presentes em 100% das amostras urbano-ocidentais e em 91% das urbano-não-ocidentais, desaparecem por completo das sociedades tribais ou rurais, sejam ocidentais ou não.

Para explicar estes resultados, Snarey descarta a hipótese de que as definições dos estágios mais altos sejam culturalmente enviesadas e etnocêntricas, já que se o raciocínio pós-convencional não foi encontrado em todos os estudos, foi encontrado em muitos, inclusive em sociedades não-ocidentais. Para Snarey os estágios pós-convencionais não foram encontrados em todas as sociedades investigadas por um problema metodológico da teoria de Kohlberg: lacunas nas definições de estágios e do manual de classificação. Snarey acredita que os estágios pós-convencionais podem se tornar fenômenos empíricos mais comuns se novos estudos interculturais buscarem exemplos de outros princípios formais, presentes em diversas culturas, contribuindo para uma compreensão pluralista da universalidade e variação do desenvolvimento sócio-moral.

Michael Boyes e Lawrence Walker (1988) detectam problemas semelhantes no balanço que fazem entre a teoria e as pesquisas empíricas kohlberguianas, embora cheguem a conclusões diferentes. Estes autores distinguem três critérios em que se assentaria a tese da universalidade do modelo de Kohlberg: o da estrutura, o da seqüência e o da hierarquia. Relembrando, enquanto estrutura o estágio é uma totalidade, o que implica que os indivíduos sejam consistentes em seu pensamento moral, estando a cada vez em um ou no máximo em dois estágios adjacentes; o critério da seqüência significa que não se regride nem se pulam estágios, e o da hierarquia implica a diferenciação e preferência pelos estágios posteriores. Para Boyes e Walker, os estudos transculturais disponíveis sustentam os dois primeiros critérios, enquanto que o da hierarquia, demonstrado em pesquisas junto a norte-americanos, ainda demandaria provas adicionais.

Como Snarey, Boyes e Walker observam lacunas no Standart Issue Scoring, que se mostrou inapropriado para codificar, por exemplo, a busca de harmonia e unidade dentro da comunidade, a solidariedade social e a piedade filial, valores que surgiram com freqüência, respectivamente, nas pesquisas realizadas entre comunidades tribais do Quênia e da Nova Guiné, entre adolescentes dos kibutzim israelenses e entre chineses de Taiwan. Por um lado, Boyes e Walker também minimizam este problema sob o argumento de que a sustentação empírica dos critérios de seqüência e estrutura relativizam a insuficiência conceituai do manual de codificação: do contrário, as lacunas existentes no manual teriam levado a maiores inconsistências – critério da estrutura – e a violações da seqüência de estágios entre as amostras não norte-americanas. Por outro lado, no entanto, especulam sobre as raízes desta insuficiência, sustentando que é no plano filosófico que a universalidade do desenvolvimento moral, reivindicada por Kohlberg, demanda maiores questionamentos.

Distinguindo três níveis de discurso no domínio moral – o empírico-descritivo (em que são coletadas as declarações sobre o que é certo e errado), o ético-normativo (que envolve considerações sobre a natureza do bom e do certo) e o meta-ético (que inclui considerações sobre a natureza e o escopo da esfera ou domínio moral) –, Boyes e Walker apontam três pressupostos em que Kohlberg basearia sua tese da universalidade, no nível meta-ético do discurso: a existência de uma única estrutura moral, capaz de explicar os julgamentos de todos os indivíduos em todas as culturas; o formalismo, já que a universalidade está nas formas subjacentes de raciocínio moral, não no conteúdo aparente dos assuntos considerados; e a primazia da justiça, que seria a essência dos problemas genuinamente morais.

Boyes e Walker concluem que as evidências transculturais disponíveis sugerem que a teoria de Kohlberg é internamente adequada, ou seja, satisfaz os critérios de adequação para uma teoria dos estágios no que diz respeito às questões da estrutura, da seqüência e da hierarquia, o que valida os pressupostos meta-éticos estruturalista e formalista. Mas Kohlberg teria fracassado em demonstrar que sua teoria cobre adequada e exaustivamente a esfera da moralidade, o que deixa dúvidas sobre o pressuposto da primazia da justiça. Se a tese da universalidade se sustenta, dizem Boyes e Walker, é apenas enquanto decorrência de uma circularidade entre os pressupostos teóricos e a orientação para a análise dos dados, derivada dos mesmos pressupostos – circularidade a que Kohlberg, ao contrário do que imagina, não teria escapado: "se se aceita a natureza interpretativa, carregada de valores, da condução e codificação das entrevistas morais, torna-se muito difícil entender como qualquer posição teórica avaliada usando-se tal abordagem poderia ter uma aplicabilidade que não fosse universal, ou como a afirmação de sua universalidade poderia ser empíricamente refutada. Se as respostas dos sujeitos são necessariamente vistas através de uma instância interpretativa fundamentada em uma ética baseada na justiça, então os critérios pelos quais a adequação daquela abordagem e a racionalidade dos resultados podem ser avaliados não são honestos" (Boyes e Walker, 1988, p.54).

Não é o que pensa o sociólogo e filósofo alemão Jürgen Habermas. Ao discutir o problema da interpretação versus a pretensão de objetividade nas ciências sociais, Habermas coloca-se entre duas posições extremas: de um lado, o hermeneuticismo radical – "cientistas sociais que renunciam tanto à pretensão de objetividade quanto à pretensão de um saber explicativo"; de outro, o reconstrucionismo hermenêutico – "cientistas sociais (que) minimizam as conseqüências mais dramáticas do problema da interpretação retornando a uma espécie de teoria da compreensão fundada na empatia", isto é, "na suposição de que poderíamos nos transportar para dentro da consciência de uma outra pessoa". Entre um e outro, Habermas defende a possibilidade de um objetivismo hermenêutico, exercido pelos que "estão prontos, diante do problema da interpretação, a deixar cair o postulado convencional da neutralidade axiológica", e que,, "além disso, deixam de assimilar as ciências sociais ao modelo de uma ciência rigorosamente nomológica, embora sejam favoráveis ao desiderato e à possibilidade de abordagens teóricas que prometem gerar um saber tanto objetivo quanto teórico" (1989, pp.45-46). E "a fim de abonar a afirmação de que as ciências sociais podem se tornar conscientes de sua dimensão hermenêutica, permanecendo fiéis no entanto, à tarefa de produzir um saber teórico", Habermas toma "como exemplo", justamente, "a teria de Lawrence Kohlberg" (idem, p.49). Mas para compreender esta escolha, convém explicitar alguns conceitos.

Habermas distingue dois modos de uso da linguagem: "ou bem dizemos o que se dá ou o que não se dá ou bem dizemos algo para outrem, de tal modo que ele compreenda o que é dito. (...) Dizer como as coisas se comportam não depende necessariamente de uma espécie de comunicação realmente efetuada ou pelo menos imaginada; não é preciso fazer nenhum enunciado, isto é, realizar um ato de fala. (...) Ao contrário, compreender o que é dito a alguém exige a participação no agir comunicativo. (...) Portanto, ao passo que o uso cognitivo, não-comunicativo, da linguagem exige (apenas) o aclaramento da relação entre a frase e o estado-de-coisas, ... o uso comunicativo da linguagem coloca-nos diante do problema de como essa relação está vinculada às duas outras relações, que consistem em 'ser expressão de alguma coisa' e em 'compartir alguma coisa com alguém'". Ao primeiro destes usos da linguagem, corresponde uma atitude objetivante de quem fala ou pensa; ao segundo corresponde uma atitude performativa, a qual "permite uma orientação mútua por pretensões de validade (verdade, correção normativa, sinceridade) que o falante ergue na expectativa de uma tomada de posição por sim/não da parte do ouvinte" (idem, pp. 40-42).

A epistemologia, diz Habermas,"só se ocupa desta última relação entre e realidade e a linguagem, ao passo que a hermenêutica tem de se ocupar, ao mesmo tempo, da tríplice relação de um enunciado que serve (a) como expressão da intenção de um falante, (b) como expressão para o estabelecimento de uma relação interpessoal entre falante e ouvinte e (c) como expressão sobre algo no mundo. (...) A hermenêutica considera a linguagem, por assim dizer, em ação, a saber, da maneira como é empregada pelos participantes com o objetivo de chegar à compreensão conjunta de uma coisa ou a uma maneira de ver comum" (idem, pp.40-41). E acrescenta: "toda ciência que admite as objetivações de significado como parte de seu domínio de objetos tem de se ocupar das conseqüências metodológicas do papel de participante assumido pelo intérprete... Essas conseqüências ameaçam justamente aquela independência do contexto e aquela neutralidade axiológica que parecem ser necessárias para a objetividade do saber teórico" (idem, p.44). No entanto, argumenta Habermas, se de um lado "os intérpretes perdem, é verdade, em virtude de seu engajamento inevitável no processo do entendimento mútuo, o privilégio do observador não-participante ou da terceira pessoa, (de outro lado) pela mesma razão, dispõem dos meios para manter de pé, desde dentro, uma posição de imparcialidade negociada", enquanto participantes de uma ação comunicativa, que, no processo de averiguação das razões implícitas aos enunciados, busca compreender por que o interlocutor "se sentia com direito a avançar determinadas asserções (como verdadeiras), a reconhecer determinados valores e normas (como corretos) e a exprimir determinadas vivências (como sinceras)" (idem, p.46).

Isto esclarecido, Habermas afirma que, diferentemente das ciências empíricas, "disciplinas como a lógica e a meta-matemática, a teoria do conhecimento e a epistemologia, a lingüística e a filosofia da linguagem, a ética e a teoria da ação, a estética, a teoria da argumentação, etc. ...têm em comum o objetivo de dar conta do saber pré-teórico e do domínio intuitivo de sistemas de regras que estão na base da geração e avaliação de enunciados e operações simbólicos", constituindo-se, assim, em reconstruções racionais. Mas "é importante ver que todas as reconstruções racionais, assim como os demais tipos de saber só têm um status hipotético", alerta Habermas, "pois sempre é possível que elas se apóiem numa escolha errônea de exemplos; elas podem obscurecer e distorcer intuições corretas e, o que é mais freqüente ainda, generalizar excessivamente casos particulares. Por isso, precisam de confirmações adicionais"; é preciso "testá-las indiretamente, utilizando-as como inputs em teorias empíricas". E é aqui onde entra a teoria kohlberguiana dos estágios: "a teoria de Kohlberg é um exemplo para uma divisão de trabalho bem peculiar entre a reconstrução racional de intuições morais (filosofia) e a análise empírica do desenvolvimento moral (psicologia)" (idem, pp.48-49).

Para Habermas, "o ponto de partida de Kohlberg difere do ponto de partida de Piaget", porque para defender o universalismo moral e a superioridade de sua "ética formalista, ligada a Kant", "as reconstruções racionais em que Kohlberg tem que se apoiar pertencem a um tipo de teoria normativa que se pode chamar 'normativa' sob dois pontos de vista: uma teoria moral cognitivista é, de início, normativa no sentido de explicar as condições de uma determinada espécie de pretensões de validez – nesse respeito, as teorias do juízo moral não se distinguem das reconstruções daquilo que Piaget denomina 'pensamento formal-operacional'. Mas toda teoria moral também é 'normativa', visto que não se esgota em considerações meta-éticas, no sentido de apelar, no que concerne à validade de seus próprios enunciados, a critérios de correção normativa e não de verdade proposicional" (idem, pp.52-53).

Habermas acredita que Piaget resvala para uma falácia naturalista quando "tende a assimilar sua abordagem à teoria dos sistemas", em Biologia e conhecimento (publicado em 1967): "pode-se tentar combinar o modelo estruturalista e o modelo da teoria dos sistemas..., mas combiná-los não significa assimilar um modelo ao outro. Toda tentativa de interpretar de uma maneira exclusivamente funcional a superioridade das operações de um estágio superior, as quais se medem pela validade das tentativas de solução de problemas, põe em risco a operação característica da teoria cognitivista do desenvolvimento. Pois não precisaríamos de nenhuma reconstrução racional se fosse certo que o verdadeiro ou o moralmente correto pudessem ser suficientemente analisados no quadro daquilo que é exigido para a manutenção dos limites do sistema" (idem, pp.50-51).

A tese kohlberguiana do isomorfismo entre a psicologia do desenvolvimento moral e a filosofia normativa padece da mesma ambigüidade, sustenta Habermas, correndo também o risco de cair na falácia naturalista–no que Kohlberg se igualaria a parte dos relativistas que critica. é apenas quando defende a superioridade de sua ética formalista apelando para critérios de racionalidade procedimental, como o véu da ignorância de Rawls e afins, que Kohlberg afasta esse perigo, acredita Habermas, abrindo mão de validar a universalidade de sua teoria com base em verdades proposicionais, sustentadas em evidências empíricas.

Com efeito, diante das críticas e polêmicas acima, entre outras, e das evidências empíricas de estudos que apontaram a insuficiência conceituai de seu sistema de classificação, Kohlberg (1983) revê sua teoria em dois pontos: de um lado, volta atrás na afirmação de que o princípio de justiça é suficiente para ordenar uma explicação universal do desenvolvimento moral, admitindo a possibilidade de que existam outros princípios básicos; de outro, abandona a tese da identidade entre o ser (teoria psicológica cognitivista) e o deve ser (filosofia moral), reforçando, em contrapartida, a tese da complementaridade entre ambas as esferas, já esboçada antes. As evidências empíricas não podem provar a validade de princípios universais, admite Kohlberg, apenas podem se mostrar consistentes com eles. Uma teoria psicológica adequada do desenvolvimento moral dá suporte empírico à teoria normativa, que por sua vez é necessária à teoria psicológica para explicar o desenvolvimento dos estágios, no que concerne à construção das razões filosóficas de por que um estágio é melhor que seu precedente.

Desde logo, esta também é a posição de Rawls, de cuja filosofia política (conforme mencionado na primeira seção do capítulo anterior), Kohlberg empresta sua concepção ética deontológica, organizada em torno do princípio da justiça como equidade: "6 verdade que argumento pela superioridade da teoria da justiça, e elaboro a teoria psicológica nesta hipótese; mas essa superioridade é uma questão filosófica e não pode, acredito, ser demonstrada só pela teoria psicológica do desenvolvimento" (Rawls, 1973, pp.461-462, nota 8).

Mas se o abandono da premissa do isomorfismo, por parte de Kohlberg, evita a falácia naturalista, a adoção da tese da complementaridade não é isenta de conseqüências: "Muito embora todas as ciências devam, naturalmente, se ocupar no plano metateórico de problemas de interpretação..., só aquelas que mostram uma dimensão de pesquisa hermenêutica têm que enfrentar problemas de interpretação já ao nível da produção de dados", observa Habermas (1989, nota 8, p.59). Isto significa que é preciso reconhecer que "a utilização de uma teoria normativa também tem, por sua vez, um impacto sobre a dimensão hermenêutica da pesquisa. A geração de dados está mais fortemente 'dirigida pela teoria' do que as interpretações normais", adverte Habermas. E comentando a adaptação do dilema de Heinz para outras culturas, conclui: "o fato de que as histórias relevantes para a teoria podem ser traduzidas de um contexto para o outro é algo que resulta da própria teoria– e é a teoria que dá uma orientação de como fazê-lo. Se essa tarefa não puder ser levada a cabo sem violência e sem distorções, então o fracasso da aplicação hermenêutica é justamente um indício de que as dimensões postuladas foram impostas desde fora - e não o resultado de uma reconstrução desde dentro" (idem, pp.56-57).

Nem por isto deve-se concluir, acredita Habermas (idem, p.53), que a teoria de Kohlberg "é de certa maneira envenenada pelo status normativo da espécie particular de reconstruções racionais nela contidas", constituindo-se, desta forma, numa teoria pseudo-empírica – ou comprometida em sua validade, enquanto produção de saber, como parecem sugerir Boyes e Walker (1988) –, em função de sua relativa circularidade. "A teoria empírica pressupõe a validade da teoria moral que ela utiliza; não obstante, sua validade torna-se duvidosa tão pronto as reconstruções filosóficas se revelem imprestáveis no contexto da utilização da teoria empírica", observa Habermas (1989, p.56, sem se referir ao texto de Boyes e Walker, que é posterior). Ou seja, psicologia e filosofia, neste caso, influenciam-se mutuamente, sem, no entanto, garantias prévias de sua validade. A afirmação de que os indivíduos preferem os estágios mais altos de raciocínio moral que eles compreendem, diz Kohlberg, "deriva da afirmação filosófica de que um estágio posterior é 'objetivamente' preferível ou mais adequado segundo certos critérios morais. Esta afirmação filosófica, porém, seria questionada por nós se os fatos da progressão moral fossem inconsistentes com suas implicações psicológicas" (1981, p.194).

Em suma, "a relação de ajuste recíproco" entre a psicologia moral kohlberguiana e as intuições morais a que se remete, apenas indica os limites, digamos, da objetividade da teoria de Kohlberg, enquanto reconstrução racional – limites conscientes, que resultam dos problemas interpretativos que enfrenta, por conta da abordagem hermenêutica que assume. Certamente, diz Habermas, "a confirmação empírica de uma teoria Te que pressupõe a validade de suposições básicas de uma teoria normativa Tn não pode ser considerada como uma confirmação independente de Tn. Mas... as teorias Te1, Te2 tampouco podem ser avaliadas independentemente dos paradigmas de que provêm seus conceitos básicos. (...) As ciências reconstrutivas que visam entender competências universais rompem, é verdade, o círculo hermenêutico em que ficam presas as ciências do espírito bem como as ciências sociais baseadas na compreensão do sentido; mas até mesmo para um estruturalismo genético que persegue ambiciosas problemáticas universalistas, ...o círculo hermenêutico se fecha no plano metateórico. Aqui, a busca de 'evidências independentes' revela-se como desprovida de sentido; trata-se apenas de saber se as descrições, que se podem reunir à luz de vários faróis teóricos, podem ser compiladas de modo a compor um mapa mais ou menos confiável" (1989, pp. 144-145).

Isto posto, pode-se retomar a discussão das falácias que Kohlberg, esgrimindo o universalismo de sua teoria, atribui aos relativistas. Ainda que não possa demonstrar empíricamente a superioridade da moralidade da justiça, como as descobertas psicológicas relativas aos estágios de desenvolvimento moral não contradizem os fundamentos normativos subjacentes a sua formulação, Kohlberg mantém o postulado de que a inexistência de uma moralidade universal, enquanto fato psicológico, não impede que se possa (ou até se deva) perseguir, teórica e praticamente, uma moralidade universalizável–respondendo, assim, à confusão entre problemas de fato e problemas de valor, que considera uma falácia naturalista.

Em relação à confusão entre relativismo ético, imparcialidade científica e neutralidade axiológica, a crítica de Kohlberg é diretamente dirigida a Max Weber, que trabalharia com uma separação rígida das esferas científica e moral, admitindo critérios de adequação para os princípios científicos mas não para os princípios morais. Com efeito, de um lado, Weber critica a crença do positivismo clássico na objetividade científica, descartando a possibilidade de se captar o real tal e qual, em função de que nas ciências sociais a elaboração de conhecimento sobre qualquer objeto carrega, necessariamente, (1) o interesse do pesquisador no recorte desse objeto, em meio ao fluxo de um "devir incomensurável" e, em si, caótico; (2) um significado que é atribuído a esse objeto, ao localizá-lo em uma seqüência de relações causais, que não está em sua natureza, (3) e um sentido que só se explica no marco de uma cultura que reconhece na ciência um valor. Como diz Weber, "a validade objetiva de todo saber empírico baseia-se única e exclusivamente na ordenação da realidade dada segundo categorias que são subjetivas no sentido específico de representarem o pressuposto do nosso conhecimento e de se ligarem ao pressuposto de que á valiosa aquela verdade que só o conhecimento empírico nos pode proporcionar" (1982, pp. 125-126).

Ao mesmo tempo, no entanto, entre os objetos que podem ser estudados com esta objetividade possível, Weber não inclui as questões morais, pois considera que "as diversas esferas de valor do mundo encontram-se em conflito irreconciliável" (1972, p.182), descartando não só a possibilidade de se estabelecer critérios válidos de hierarquização dos valores, tarefa que caberia exclusivamente à filosofia, como também de justificação dos valores, o que caberia à política. E, para Weber, o espaço da política "é um espaço dessacralizado, secularizado, em que domina o politeísmo dos valores", como diz Freitag, onde "não há nenhum critério racional, nenhum princípio moral ou ético capaz de legitimar a escolha de um valor" (1992, p.103).

Kohlberg, como foi visto, considera refutável este postulado de que não há critérios racionais possíveis para a hierarquização e justificação de valores. Isto estaria demonstrado tanto empiricamente, pelos estágios morais, quanto teoricamente, pelos filósofos da moralidade: "os filósofos morais podem definir critérios metodológicos de julgamento e argumentação moral aproximadamente com o mesmo grau de concordância e clareza com que os filósofos da ciência podem definir critérios metodológicos de julgamento e argumentação científica" (1981, p.114).

Em suma, se por um lado, contra Weber, admite-se a possibilidade de estabelecer critérios racionais para o estudo da moralidade, por outro lado, com Weber, é preciso levar em conta que os "conceitos e juízos" a que se pode chegar, neste campo como em qualquer outro das ciências sociais, "não constituem a realidade empírica nem podem reproduzi-la", apenas "permitem ordená-la pelo pensamento de modo válido" (Weber, 1982, p.126). é o que admitem Kohlberg e colaboradores, entre outras conclusões, ao finalizarem sua réplica às críticas de autores (Schweder, 1982; Simpson, 1974; Sullivan; 1977) que consideram sua teoria etnocêntrica, cultural ou ideologicamente enviesada: "Nós não acreditamos que eles [os críticos] tenham descoberto que o trabalho de Kohlberg é enviesado no sentido forte da palavra, mas que seu trabalho e qualquer outra investigação social científica pode e estará enviesada se os pesquisadores não tomarem conhecimento dos pressupostos normativos e meta-éticos que empregam. Ademais, acreditamos, junto com Weber, Habermas e outros, que a objetividade é um momento da pesquisa científica; que a essência ou valor 'verdadeiro' da objetividade não reside em uma qualidade reificada, permanente ou factual, inerente ao objeto da pesquisa, mas deve, antes, ser encontrado em, e entendido como, um processo de compreensão do relacionamento cambiante entre o investigador e o que ele observa" (1983, p.166).

Pode-se dizer, enfim, parafraseando Habermas ao referir-se a sua ética do discurso, que em relação à validade universal que reivindica para sua teoria, Kohlberg defende uma tese muito forte, mas reivindica para essa tese um status relativamente fraco. Para a hermenêutica, "no plano metateórico ou interteórico, o único princípio que rege é o princípio da coerência", diz Habermas; "as coisas se passam como na composição de um quebra-cabeça – temos que procurar ver quais os elementos que se ajustam" (1989, pp.144-145). Diante do encaixe do cognitivismo piagetiano e da teoria dos estágios de Kohlberg com os princípios normativos formalistas de Kant e Rawls, e com a teoria discursiva da ética, de Habermas, é imperativo que se reconheça, na disputa contra os relativistas, os pontos que têm sido obtidos pelos defensores do universalismo.

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  • Piaget, Jean. (1977), O julgamento moral na criança. São Paulo, Mestre Jou (ed. orig. 1932).
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  • Sullivan, E. V. (1977), "A Study Of Kohlberg's Structure Theory Of Moral Development. A Critique Of Liberal Social Science Ideology". Human Development, No.20/353-376, Apud Kohlberg, Levine, Hewer (1983).
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  • _____ (1982), "A 'objetividade' do conhecimento nas Ciências Sociais" (Ed. Or. 1904), In G. Cohn (Org.), Weber, São Paulo, Ática.
  • *
    O texto que segue corresponde a um resumo do capítulo 2 e, com pequenas alterações, à íntegra da primeira seção do capítulo 3 (intitulada "Universalismo
    versus relativismo ético") da dissertação de mestrado
    Autonomia e heteronomia em moral sexual –
    meio social, idade e gênero no desenvolvimento moral, defendida em 17 de abril de 1995, no programa de pós-graduação em Sociologia, da FFLCH-USP.
  • 1
    De Piaget ver, basicamente,
    O julgamento moral na criança (1977),
    Seis estudos de psicologia (1982) e
    Estudos Sociológicos (1973).
  • 2
    De Kohlberg e equipe ver
    Essays on Moral Development (1981 e 1984),
    Moral Stages: a Current Formulation and a Response to Critics (1983) e
    The Measurement of Moral Development (1987).
  • 3
    Como "as duas questões inter-relacionadas que estiveram no centro da evolução do modelo de Kohlberg são a diferenciação entre conteúdo e estrutura, e a definição da unidade de análise" (Colby e Kohlberg, 1987, vol.l, p.37), é possível compreender a extensão das reformulações ocorridas observando a sucessão dos diferentes métodos de codificação, responsáveis pela captação (e construção) dos estágios morais. Kohlberg destaca três sistemas principais de codificação, utilizados no período:
    Sentence and Story Rating (1958-70),
    Structural Issue Scoring (70-80/81) e
    Standart Issue Scoring (81 em diante).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1995
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