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Trabalho: dois modelos de flexibilização

Work: two models of flexibilization

Resumos

Discute-se as novas formas de organização do trabalho, do ponto de vista das perpectivas de uma reforma democrática das relações trabalho/capital.


The new forms of work organizarion are discussed from the point of view of a democratic reform of labour/capital relations.


REFORMAS

Trabalho: dois modelos de flexibilização

Work: two models of flexibilization

Glauco Arbix

Professor do Departamento de Ciência Política da UNICAMP e pesquisador do CNPq

RESUMO

Discute-se as novas formas de organização do trabalho, do ponto de vista das perpectivas de uma reforma democrática das relações trabalho/capital.

ABSTRACT

The new forms of work organizarion are discussed from the point of view of a democratic reform of labour/capital relations.

O debate sobre a reforma das relações de trabalho neste final de século tem na desagregação do poder sindical sua pedra de toque. Supostamente, profundas alterações nos processos produtivos e na estrutura das empresas estariam definindo, quase que de modo natural, novas relações de trabalho, marcadas pela fragmentação das negociações coletivas1 1 Ver: Richard Hyman, "Trade Unions and the Disaggregation of the Working Class", in Marino Regini (org.), The Future of Labour Movements, Londres, Sage, 1992. , símbolo de um sindicalismo visto e entendido como inadequado aos novos tempos.

Apontando a deterioração das condições objetivas que sustentaram a ação coletiva assim como o esvaziamento da solidariedade que cimentou durante décadas as organizações dos assalariados, não foram poucos os pesquisadores que passaram a desenhar perspectivas sombrias para os sindicatos em praticamente todo o mundo.

No Brasil dos anos 80 os traços deterministas dessa abordagem tiveram que ceder lugar à política, uma vez que o movimento sindical exibiu rara vitalidade, com destacada atuação no terreno reivindicativo e com forte presença na definição dos rumos que o país passava a trilhar com a redemocratização. O caso brasileiro contrastou efetivamente com a maior parte dos países avançados, onde os sindicatos deram claros sinais de cansaço, alimentando uma crise que seria amplamente interpretada em pelo menos três de suas dimensões: (i) crescente dificuldade em agregar interesses; (ii) perda de representatividade; (iii) esclerose organizacional. O debilitamento generalizado dos sindicatos europeus durante a década de 80 e início dos 90 expôs também uma estrutura interna permeada por conflitos de interesse, cujas rotinas e rituais, construídas durante décadas, resistia às transformações exigidas pelas circunstâncias2 2 N.Milward, M.Stevens, P.Smart e W.Hawes, Workplace Industrial Relations in Transition, Aldershot, Dartmouth, 1992. .

A tendência declinante seria tão rápida e intensa que levaria consistentes pesquisadores a pontuar que o movimento sindical também não escaparia a seu destino: "movimentos como o sindical tem um ciclo de vida: infância, juventude, maturidade, velhice e morte"3 3 A. Touraine, "Unionism as a Social Movement", in S. M. Lipset (org.), Unions in Transition, São Francisco, Institute for Contemporary Studies, 1986. .

A hora dos sindicatos parecia estar se aproximando. E as dimensões de sua queda, somada às transformações inexoráveis em curso na estrutura da economia, estariam produzindo um terremoto institucional, com profundas conseqüências para as relações de trabalho:

"O traço novo da situação é o fim da relativa autonomia do sistema de relações industriais e sua incorporação ao sistema produtivo (...) através de uma nova 'cultura empresarial' que situa a empresa no centro de todo o sistema. Nesse sentido, serão desperdiçados cinqüenta anos de esforços voltados para a construção das instituições capazes de fazer funcionar o sistema europeu de Welfare"4 4 B. Amoroso, 'Industrial Relations in Europe in the 1990s: New Business Strategies and the Chalenge to Organised Labour', in International Journal of Human Resource Management, nº 3, Londres, 1992, pp. 180-190.

Os pressupostos da análise indicam que as empresas — seus entornos e prioridades — vêm se constituindo nos últimos anos como os pólos mais dinâmicos das transformações econômicas, organizacionais e tecnológicas, desequilibrando velhos mecanismos reguladores, sustentados por acordos entre representantes do Estado, do Capital e Trabalho. Isso significa que a empresa moderna estaria se consolidando como o locus gerador de novas relações de trabalho, baseadas, de um lado, na pulverização do poder sindical e, de outro, no afastamento do Estado de suas atribuições reguladoras.

Nesta virada do século, mais do que os sindicatos, todo um período de amplas negociações e contratos, típicos do chamado "ciclo virtuoso" do pós-guerra, estaria vivendo o seu ocaso.

Em nosso país, esse abalo vem sendo discutido, não raras vezes, a partir de generalizações apressadas e algumas mimetizações, difundidas com aura de rigor, principalmente por lideranças empresariais e membros do atual governo.

É certo que o sindicalismo corporativo brasileiro vive uma profunda crise. E que as relações de trabalho precisam ser amplamente reformadas. Mas também é certo que muitas alterações propostas estão se baseando em pressupostos de superfície, ofuscando precisamente a necessária discussão sobre a natureza da crise e o horizonte estratégico das reformas.

Neste trabalho procuraremos discutir: (i) quais as características básicas das recentes negociações sobre a reestruturação produtiva, a partir da prática do sindicato dos metalúrgicos do ABC; (ii) como os recentes acordos firmados nas principais montadoras da indústria automobilística dessa região contribuem para uma reforma da estrutura sindical e das relações entre Estado, Capital e Trabalho; e (iii) de que modo o governo restringe seu poder de articulação, deixando ao sabor das empresas as principais definições da reestruturação industrial e das mudanças nas relações trabalhistas; os resultados dessa política desreguladora e predatória do emprego estaria facilitando a retomada dos conflitos.

Os elementos coletados pela pesquisa que estamos realizando nas quatro grandes montadoras de São Bernardo5 5 Pesquisa em andamento, de Iram Jácome Rodrigues e Glauco Arbix. — Ford, Volkswagen, Scania e Mercedes — e, especialmente, os acordos por empresa celebrados em 1995, que vêm demonstrando relativa eficácia como escudo protetor contra o desemprego, estão indicando o desenvolvimento de uma ação sindical flexível e disposta a discutir temas até recentemente proscritos no sindicalismo cutista.

A inflexão política do principal sindicato ligado à CUT, iniciada no final dos anos 80, vem sendo lenta e repleta de obstáculos, provocando, freqüentemente, ácido debate no interior da central. Não poderia ser diferente, uma vez que são os fundamentos da solidariedade entre os trabalhadores que estão sendo sistematicamente questionados, seja pela ação empresarial, pelo governo ou até mesmo por uma parcela dos próprios trabalhadores.

A FLEXIBILIZAÇÃO DO GOVERNO E DAS EMPRESAS

As transformações porque vêm passando as montadoras do ABC inspiram-se diretamente em métodos e processos utilizados — com sucesso — pelas corporações japonesas na guerra contra o poderio americano e europeu no setor automobilístico. São adaptações que, para funcionar, devem obedecer aos constrangimentos estruturais da nossa economia e ao lugar ocupado pelo Brasil no rol das preocupações das empresas transnacionais.

No entanto, mesmo que a reestruturação industrial atualmente em curso não tenha o corpo e a qualidade da que ocorre nos centros mais avançados, é possível constatar que as mudanças vêm se intensificando em ritmo e volume de investimentos. O horizonte do novo ambiente industrial pode ser visualizado pelo número de novas montadoras6 6 Marcas de automóveis que já divulgaram seus planos: a francesa Renault, as coreanas Kia, Asia e Hyundai, a alemã Mercedes Benz, as japonesas Toyota, Mitsubishi e Honda. que anunciaram seus planos de investimento no Brasil e no Cone Sul. No ABC, porém, que abriga as mais antigas plantas do setor, o movimento que se assiste é o da reoxigenação das montadoras já instaladas, com modernização gradual de suas estruturas, como a ampliação da Scania e da Ford e a forte reorganização da Mercedes apontam. Tudo indica que as novas plantas estão preferindo outras regiões, que oferecem mais benefícios no "leilão" dos estados e guardam razoável distância de um sindicalismo estruturado7 7 A Volkswagen constrói atualmente uma unidade de caminhões em Resende (RJ), anunciada como revolucionária, e já se definiu por São Carlos (SP) para instalar sua nova fábrica de motores. As demais montadoras ainda não apresentaram oficialmente suas decisões. .

Esse novo panorama de reorganização do setor automotivo, em que novos conceitos de produção vêm sendo testados, já está promovendo uma diferenciação muito grande da força de trabalho, e conseqüente diversificação de interesses e de demandas entre os próprios trabalhadores.

Nessas condições, a "flexibilização" que as empresas desejam não tem no seu horizonte uma padronização das relações trabalhistas, que seriam baseadas em amplos coletivos de trabalhadores.

Com apoio governamental, as empresas procuram desenvolver suas iniciativas, entendendo a "flexibilização" da força de trabalho como uma vantagem competitiva. Na medida em que agem sem qualquer balizamento de inexistentes políticas de emprego, de qualificação, de capacitação e de difusão tecnológica, as grandes empresas tendem a deslocar o centro de gravidade das relações industriais para o nível micro, da fábrica, inclusive, como forma de reguardar-se do sindicato.

É a partir dessa política empresarial que se pode melhor entender a deliberada retração da atuação governamental, que deixa livre o caminho para as empresas. Evidentemente, essa postura nada tem de inevitável. Trata-se, na verdade, de uma escolha política, que traz em seu coração uma sólida aliança entre o governo e o empresariado "modernizador".

No Brasil, essa aliança tem perdurado em que pese a inexistência e funcionamento de mecanismos de proteção da sociedade, que são ativos na maior parte dos países avançados. É o que torna a versão tropical da globalização mais dramática. Ainda mais quando se sabe que a literatura sobre a reestruturação industrial é tão farta em diagnósticos e tão pobre em equacionamento de problemas vitais como o desemprego crescente, a exclusão e a diminuição acentuada dos padrões de vida. Para trabalhadores e sindicatos, as imagens de um mundo desregulamentado só conseguem aumentar suas incertezas, ampliando as dificuldades para a construção de uma efetiva política de geração de empregos de qualidade.

Pretextando a inexorabilidade da desregulamentação — apresentada como o único caminho para dotar a economia brasileira de padrões internacionais de competitividade -, as autoridades governamentais vêm elaborando planos de flexibilização de direitos sociais, pretendendo, a um só tempo, aumentar a qualificação das empresas, gerar mais empregos e construir um novo relacionamento com os trabalhadores.

As medidas avançadas neste início de 1996 sugerem que a redução dos custos da força de trabalho no Brasil — apresentados pelo governo como sendo altos — seria um meio eficiente de gerar empregos. A experiência que a Força Sindical, através do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo8 8 O sindicato dos metalúrgicos de São Paulo negociou com oito sindicatos da Fiesp um contrato especial de trabalho, permitindo as empresas contratarem sem registro em carteira, provisoriamente, sem FGTS, sem multas nas demissões por justa causa e sem recolhimento da cota da Previdência. Firmou também com a empresa Aliança Metalúrgica (SP) um contrato coletivo de trabalho temporário com redução de encargos sociais. Ambos estão sendo contestados pela Justiça do Trabalho. , vem procurando implementar pode ser vista como um balão de ensaio dessa política, saudada, inclusive, pelo presidente da República9 9 "Não sou advogado para falar da parte legal, mas a parte social é muito positiva", declarou o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de afirmar que considera o acordo de São Paulo "um passo positivo", in Folha de S.Paulo, 16.02.1996, p. 2.1 .

Trabalhando um pouco à vontade com os indicadores do custo da força de trabalho no Brasil, utilizando uma polêmica classificação de encargos sociais10 10 O governo iniciou a discussão propondo cortes em encargos como o Sebrae, Sesi, Senai, Incra e acidentes de trabalho; em seguida, propôs a discussão de itens que retornam aos trabalhadores, como o 13º, licenças, abonos, férias, FGTS, INSS e outros. , o governo, de fato, expõe ao questionamento vários direitos sociais, indicando os caminhos de uma precarização ainda maior do emprego e da situação já suficientemente dramática dos trabalhadores "informais".

O caráter pontual dos últimos lances governamentais, embora não apareçam vinculados a uma diretriz de conjunto, integram de fato o repertório governamental sobre a "flexibilização" das relações de trabalho, que pode ser descrito da seguinte forma:

(i) a recusa de uma política de relações industriais baseada na discussão com os sindicatos e no compromisso;

(ii) a construção de barreiras restritivas à ação sindical, em particular no que tange ao direito de greve;

(iii) a afirmação da empresa — principalmente da grande — como o nível mais adequado para a definição de novas relações de trabalho, distante do sindicato e distinto do nível setorial, categorial, estadual ou nacional;

(iv) mudança da legislação trabalhista de modo a permitir rearranjos nas empresas, particularmente no que se refere ao pagamento — ou não — de encargos, como as férias, abonos, licenças, 13º, FGTS, INSS e outros;

(v) formalização de empregos temporários ou a legalização dos informais;

(vi) diminuição do poder normativo da Justiça do Trabalho;

(vii) diminuição da proteção estatal aos sindicatos.

Se somarmos a essas propostas a atuação governamental no sentido de buscar a diminuição sensível do poder sindical, teremos todos os ingredientes de uma receita explosiva: questionamento de direitos; maior precarização no mercado de trabalho; maquiagem da estrutura sindical, que permanecerá corporativa; "flexibilização" de acordo com o figurino empresarial; pulverização dos sindicatos. O que nos permite concluir que as reformas dessa natureza somente serão realizadas em situação de forte agravamento dos conflitos.

OS ACORDOS DO ABC

Os acordos celebrados durante o ano de 1995, especialmente os que flexibilizaram a jornada de trabalho, assinados pelas comissões de fábrica e pelas grandes montadoras de São Bernardo, abrem um novo momento na discussão das mudanças nas relações de trabalho no país.

No final de 1995, a primeira montadora a aceitar a proposta de flexibilização foi a Ford, que estabeleceu uma jornada semanal de 42 horas, a partir de janeiro de 1996 e estabeleceu uma banda de flexibilização cujos limites foram fixados em 38 a 44 horas. Ou seja, de acordo com a demanda, a jornada pode variar, mas os trabalhadores deverão receber por 42 horas.

Na Volkswagen a flexibilização da jornada apresentou uma variação de 36 a 44 horas; as demissões planejadas foram sustadas e há uma estimativa da comissão de fábrica de que 470 novos empregos podem ser criados nas unidades Anchieta e Taubaté. Finalmente veio a Scania, que reduziu a jornada para 40 horas semanais — a partir de fevereiro -, com flexibilização entre 32 e 44 horas e com garantia de emprego até 30 de junho de 1996.

A regulamentação desses acordos ainda está sendo discutida nas várias empresas, assim como as características do banco de horas, criado como instrumento de compensação das horas trabalhadas, e a jornada referência fixada. Porém, mesmo assim, é possível registrar que a partir dos acordos de flexibilização da jornada o ABC pode ser visto como o mais avançado laboratório em que se experimenta alternativas às pressões pela rotatividade, demissões e redução de postos de trabalho.

Para assumir essas características, a ação política do sindicato dos metalúrgicos continua sendo fundamental. Os encaminhamentos mais recentes que levaram à flexibilização da jornada, executados pelas comissões de fábrica, basearam-se, de fato, em um acordo de abril de 1995, selado pelo sindicato do ABC com todas as montadoras da região; acordo este que buscava garantir uma redução progressiva da jornada de trabalho, sem redução salarial, prevendo 43 horas semanais em janeiro de 96 e 42 horas semanais em outubro do mesmo ano.

A surpresa foi que as negociações, quando se colocaram no nível das empresas, avançaram muito mais do que o previsto: nas quatro montadoras os acordos estancaram a anunciada onda de demissões do final do ano, e conseguiram manter mais de mil postos de trabalho, além de acarretar um aumento real de 10% na média anual, em termos de salário-hora11 11 As estimativas são do Sindicato dos Metalúrgicos e da subseção do Dieese do ABC. .

Por quanto tempo os acordos mostrarão essa eficácia ninguém pode prever. A previsão possível, contudo, é que se essas discussões não ganharem uma arena mais ampla, tenderão a definhar, aumentando a já enorme taxa de desperdício político e institucional que vive o país.

O elo especial mantido entre o sindicato do ABC e as comissões de fábrica está na raiz da gestação de novas formas de desenvolvimento da política sindical. Na realidade, os trabalhadores vêem essas comissões internas como o próprio sindicato. Ao mesmo tempo, porém, em todas as montadoras pesquisadas, a comissão de fábrica apareceu como o representante "número um" dos trabalhadores, já que são elas que negociam os benefícios próprios da empresa, os problemas internos, os atritos nas seções, enfim, a vida cotidiana de milhares de funcionários.

Essa tensão entre dois sistemas de representação dos trabalhadores pode ser visualizada no depoimento de um destacado membro de uma comissão de fábrica:

"Nós não somos um sindicato, pois estamos contentes com o nosso. Temos com o sindicato uma grande identidade política. Mas, no dia em que, por acaso, outra diretoria assumir, e nós ficarmos na oposição, nós vamos trabalhar como se fôssemos um outro sindicato".

O conflito é minimizado a partir da manifestação de uma identidade política entre esses organismos, que fazem da sintonia atual entre as comissões de fábrica e o sindicato uma fonte de elaboração de novas propostas para o reordenamento mais geral de reestruturação produtiva.

Do levantamento que fizemos, podemos pontuar que:

(i) os acordos são firmados por fábrica; mas só a atuação do sindicato é capaz de explicar sua disseminação para outras unidades e, em alguns casos, para o conjunto dos metalúrgicos e mesmo outras categorias;

(ii) as negociações são efetivadas pelas comissões internas, que representam o conjunto dos funcionários de cada fábrica; mas os trabalhadores não conseguem diferenciar precisamente essas comissões do sindicato, em função da grande afinidade política existente;

(iii) as relações entre empresas e trabalhadores tendem efetivamente a se deslocar para o nível micro, da fábrica; mas, ao mesmo tempo, começam a se intensificar vínculos inter e intra-empresas, projetando uma rede de intercâmbios e novas articulações. Ainda que incipientes, têm seu valor registrado por sinalizarem a busca de outras variantes de organização sindical, distintas — e não previstas — pela atual estrutura corporativa;

(iv) em todos os casos estudados, as negociações por fábrica não harmonizaram as relações entre Capital e Trabalho. As modificações organizacionais na produção — ilhas, grupos, manufatura celular e outros -, continuam prevalecendo sobre os programas de instalação de novos equipamentos e tecnologias — ainda localizados setorialmente. Dessa forma, os ganhos de produtividade, ainda estão se dando, basicamente, a partir da diminuição do contingente fabril e da intensificação do ritmo de trabalho, tornando-se uma fonte constante de reposição de conflitos;

(v) os acordos firmados revestem-se de um caráter exploratório, estimulando em vários segmentos de trabalhadores uma dose de desconfiança — provocando também um aumento de vigilância — sobre a efetividade de seus resultados. Essa incerteza, porém, só diminui com o estabelecimento de relações mais duradouras, difíceis de serem alcançadas se ficarem restritas apenas ao âmbito sindical.

É exatamente nessa esfera que as articulações do governo se fazem necessárias, pois somente um balizamento institucional pode ensejar a transformação das experiências do ABC em uma estratégia produtiva — vale dizer, não-predatória — para a indústria e para os trabalhadores.

Os recentes acordos do ABC são produto de uma longa procura em meio a um quase permanente braço de ferro entre empresas e sindicato. Se o conflito é permanente, a sua forma de expressão vem mudando no tempo, abrindo novas possibilidades institucionais, raramente potencializadas pelo governo.

No Brasil, em que pesem as mudanças em curso, a indústria automobilística continua sendo organizada em moldes fordistas, com exceções de alguns poucos setores e nichos localizados. Como ocorreu classicamente nos países em que predominou a produção em massa, os metalúrgicos, concentrados em enormes plantas, tornaram-se o elemento dinâmico do sindicalismo, assumindo freqüentemente a liderança nacional de movimentos reivindicativos e políticos.

As novas realidades moldadas pela ação dos trabalhadores nos anos 80 e 90, a "estrutura sindical híbrida"12 12 Caracterização emprestada de: Leôncio Martins Rodrigues, O declínio do sindicalismo corporativo, Rio de Janeiro, Ibase, 1991. criada pela Constituição de 1988 e as transformações políticas vividas pelo país têm constantemente atualizado as inadequações da atual legislação trabalhista e das relações industriais.

O Estado ainda continua sendo um fator central de proteção dos sindicatos, de manutenção da unicidade sindical e sustentação do papel normativo e mediador da Justiça do Trabalho. A unicidade serve de biombo para os sindicatos beneficiarem-se do Estado, assim como para os empresários cultivarem sua própria clientela. E a livre negociação, ironicamente, é dificultada pela Justiça do Trabalho que, diga-se de passagem, tem sobrevivido apenas como um instrumento burocrático-político, que freqüentemente estimula os conflitos.

Diante da flagrante rigidez das relações de trabalho, os empresários têm apontado repetidamente para a sua "flexibilização" como a grande alternativa para modernização do parque produtivo brasileiro. Mas, em sua grande maioria, não incluem na "sua" flexibilização o direito à organização por local de trabalho e aceitam, quando muito, a liberdade sindical, desde que seja do portão da fábrica para fora.

Os metalúrgicos do ABC têm demonstrado que entendem a "flexibilização" de um modo diferente. Procurando interferir praticamente no curso da reestruturação industrial o sindicato e as comissões de fábrica vêm alterando pacientemente seu estilo de atuação, dando origem a novos ambientes no interior das grandes plantas da região.

"Não é mais possível se contentar com o lema do Lula — 'O sindicato deve estar na porta da fábrica' — , pois o sindicato hoje, para sobreviver, tem que estar dentro de cada fábrica" disse um dirigente sindical dos metalúrgicos do ABC, comentando a ampliação gradativa do poder das comissões de fábrica.

A partir de uma dinâmica que vem se disseminando nas fábricas e das discussões travadas no interior dos sindicatos, podemos destacar que: (i) continuam ganhando corpo os movimentos de participação direta dos representantes dos trabalhadores na elaboração e alteração dos processos produtivos e da organização do trabalho; (ii) essa tendência vem se desenvolvendo rapidamente no interior do movimento sindical ligado à CUT, reafirmando a linha de inflexão que esta central vem executando nos anos 90; (iii) as negociações e seus resultados distanciam-se de qualquer visão mecanicista, que procura estabelecer uma correspondência entre medidas de flexibilização da produção e o estabelecimento automático de (pré) determinadas relações de trabalho.

Esses elementos, ainda que circunscritos a uma das categorias profissionais mais organizadas do país, apontam insistentemente para a construção negociada de novas relações de trabalho, inspiradas diretamente no desempenho prático dos agentes envolvidos.

NOVOS RUMOS

Para a configuração desse novo estilo de atuação sindical, foi significativa a contribuição da comissão de fábrica da Mercedes Benz. Nos anos 80, a montadora foi a última13 13 O processo é de 1984 e a primeira comissão eleita pelos trabalhadores da fábrica tomou posse em 1985. a reconhecer a comissão de fábrica no ABC. Conflitos profundos marcaram o relacionamento entre a empresa e seus trabalhadores. Afinal, a comissão interna só foi reconhecida após inúmeras manifestações e greves. Esse relacionamento tensionado desde seu início, e que atravessou toda a década de 80, conseguiu estabelecer uma pauta bastante restrita de discussão, que abrangia, basicamente, questões como: (i) disciplina; (ii) faltas; (iii) salários; (iv) promoções; e (v) demissões.

As alterações na organização do trabalho e da produção realizadas nesse período raramente foram discutidas, uma vez que o interesse demonstrado era pequeno, tanto da parte dos sindicatos quanto da empresa.

De forma contrastante, a agenda dos anos 90 foi ampliada significativamente de modo a abranger: (i) salários; (ii) mobilidade do pessoal; (iii) condições de trabalho; (iv) desverticalização; (v) terceirização; (vi) manufatura celular; (vii) trabalho em grupo; (viii) kaizen; (ix) participação nos resultados; e, o mais importante, a (x) flexibilização da jornada de trabalho.

Como resultado das negociações, foram firmados os seguintes acordos depois de 1992:

  • Logística: dezembro/93;

  • Desverticalização/ Terceirização: abril/94;

  • Manufatura Celular: julho/94;

  • Kaizen: fevereiro/95;

  • Trabalho em Grupo: março/95;

  • Participação nos Resultados: julho/95;

  • Flexibilização da jornada de trabalho: dezembro/95.

Se houve evolução nas negociações, não houve, obviamente, uma liquidação dos conflitos. Isso porque, de um lado, há um contraste entre interesses distintos. E de outro, porque a montadora alemã, levada pela concorrência a efetivar uma modernização a toque de caixa, executa um ajuste estrutural que não é pequeno: a empresa no ABC, que já teve mais de quinze mil funcionários, trabalha hoje com cerca de dez mil e não esconde seus planos de reduzir esse contingente pela metade o mais rápido possível.

Em outras palavras, é da natureza desse tipo de reestruturação o encolhimento significativo de postos de trabalho. Sem nenhum constrangimento de cunho governamental, o enxugamento é tido como um assunto de exclusiva competência da empresa. Um fruto — mal digerido — dessa atuação pôde ser observado na sua brusca alteração administrativa, em setembro passado, quando a empresa demitiu cerca de 1.200 metalúrgicos, sem aviso prévio e sem negociação, negando, praticamente, o bom relacionamento que vinha sendo cultivado desde o início dos anos 90 com a comissão de fábrica e o sindicato.

Ações abruptas como a da Mercedes, que tendem a se repetir, apenas reafirmam a necessidade de um quadro institucional mais amplo do que a unidade fabril para equacionar os produtos e subprodutos da reconversão industrial em curso no país. As orientações do governo, peça-chave nessa discussão, vêm deixando as iniciativas nesse terreno nas mãos das empresas, o que, evidentemente, contribui para ampliar os conflitos e tornar o futuro incerto para milhares de trabalhadores, com impacto negativo sobre a própria modernização desejada.

Dessa forma, a atuação dos trabalhadores assume contornos nitidamente defensivos resultando em perda de confiança entre as partes envolvidas, dificultando a interlocução e a consolidação de um relacionamento de longo prazo. Mesmo assim, depois das experiências da câmara automotiva, os acordos firmados neste ano de 95 indicaram novos caminhos para o movimento sindical neste ano de 1996.

O desenlace desse processo de acordos por empresa ainda não está decidido. Se permanecerem ilhados terão seu futuro mutilado. Para vicejarem, precisam de uma agenda clara e de longo prazo, de um ambiente democrático, de um relacionamento respeitoso e de determinação política. Como as câmaras setoriais em seu período virtuoso.

O GOVERNO E O DESPERDÍCIO INSTITUCIONAL

A recuperação da experiência da câmara automotiva é fundamental para os debates de hoje. A sua proscrição do cenário político configurou-se como uma verdadeira dilapidação institucional executada pelo governo. Grave equívoco para quem dirige um Estado que vem sendo corroído ao longo dos últimos anos exatamente em seu poder estruturante.

Ao indicar o livre-mercado como o grande estimulador da competitividade, Collor explicitou a natureza liberal do ajuste proposto, provocando um verdadeiro frisson em vários setores industriais, acostumados ao guarda-chuva estatal.

A liberação das importações decidida em março de 1990, eliminava as barreiras não-tarifárias, representadas pela relação de produtos cuja importação estava suspensa, pelos programas de importação das empresas e pelos regimes especiais de importação. No seu rastro, suspendia-se ou eliminava-se a maioria dos incentivos fiscais e subsídios. Em junho do mesmo ano, o governo divulgava um documento intitulado "Diretrizes Gerais da Política Industrial e de Comércio Exterior", que procurava nortear as mudanças para o novo modelo. Rapidamente, a indústria brasileira era exposta à concorrência internacional.

Segundo as novas normas do governo, o Estado deveria deixar de interferir nas questões referentes ao desenvolvimento industrial, fosse através de controles administrativos, distribuição de incentivos fiscais e benefícios ou da definição de regulamentos especiais para a produção e o comércio. O documento recomendava explicitamente a formação de "mecanismos de articulação e coordenação que viabilizassem o planejamento consensual entre governo e iniciativa privada", definida então como o "principal agente do processo produtivo"14 14 Introdução ao documento "Diretrizes Gerais da Política Industrial e do Comércio Exterior", de junho de 1990. .

Esse pressuposto governamental, assim como a tradição de sintonia fina entre o Estado e o setor empresarial seriam quebrados com a decisão do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo de participar da câmara setorial. Na época, a luta sindical no ABC mostrava sinais de cansaço, principalmente depois da greve que havia paralisado a Ford15 15 Pelo grau de enfrentamento alcançado, as greves da Ford e a dos estaleiros Ishibrás foram percebidas por vários entrevistados como um ponto de inflexão na trajetória de conflitos. Os dois movimentos prenunciaram a instalação da câmara automotiva da indústria naval. , com demonstrações explícitas de violência e rigidez das partes envolvidas.

Socialmente, o grande centro produtor da indústria automobilística estava sendo diretamente atingido pelo desemprego, que tendia a desagregar o seu tecido social com sucessivas diminuições da jornada de trabalho, demissões semanais e fechamento de empresas. A perspectiva da desindustrialização deixava de ser uma hipótese longínqua para bater nas portas dos sindicatos da região.

O relatório da ONU sobre as corporações transnacionais no Brasil afirmava que "1990 e 1991 haviam sido especialmente ruins para o setor brasileiro de manufaturas" e indicava que o ajuste deveria "envolver demissões em ampla escala, tanto do pessoal administrativo quanto dos operários". Segundo o mesmo relatório, "o índice de demissões estava em 20,1%" no período16 16 Ricardo Bielschowsky, "Transnational Corporations and Manufacturing Sector in Brazil", Paper, Santiago do Chile, Eclac-United Nations, 1992, p. 19. .

Segundo dados do Dieese, o mês de fevereiro de 1991 contabilizou um total de 129.998 trabalhadores empregados na base metalúrgica do ABC, contra 150.072 antes do Plano Collor I. Isto é, de fevereiro de 1990 a fevereiro de 1991, o nível de emprego havia registrado uma queda de 14%, ou seja, 20.074 postos de trabalho, correspondente a uma média mensal de 1.700 demissões17 17 Boletim Dieese, maio de 1991. .

Sem dúvida, essa sombria realidade econômica e a progressiva degradação das condições de vida entre os metalúrgicos, ajudaram a moldar os novos comportamentos do sindicato cutista. No entanto, a participação na câmara setorial e o início do processo de concertação foi fruto de uma escolha política, que exigiu, na prática, um rompimento dos metalúrgicos de São Bernardo com a política até então majoritária na CUT18 18 Em setembro de 1991, o Congresso Nacional da CUT havia se posicionado contra a participação de seus filiados nas câmaras setoriais. Em dezembro, o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, através de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, iniciou sua participação na câmara automotiva contrariando as posições da central. .

Pela primeira vez na história do país, durante os anos de 1992 e 1993, um sindicato de trabalhadores começaria a elaborar e implementar políticas industriais de porte nacional, através da câmara setorial da indústria automobilística.

A câmara assumiu claros contornos de um arranjo neo-corporatista19 19 Glauco Arbix, Uma aposta no futuro, São Paulo, Scritta, 1996. , em um nível intermediário, em que a concertação social foi desenvolvida com relativo sucesso. Os resultados positivos para a indústria — com a recuperação flagrante do setor —, para o governo — com o aumento da arrecadação fiscal e afirmação da sua capacidade de articulação política — e para os trabalhadores — ganhos salariais com estancamento das demissões — tornaram palpáveis para o movimento sindical o desenvolvimento de uma estratégia de entendimento.

A concertação social manifestou-se na câmara automotiva: (i) como uma negociação politizada, não somente pela participação tripartite, mas, fundamentalmente, porque suas decisões eram baseadas em um intercâmbio de legitimações, que fortalecia as três partes do arranjo: trabalhadores, empresários e o Estado; (ii) as negociações envolveram trocas políticas, com diminuição dos índices de conflito, com repercussão em todo o setor industrial, afetando as relações de trabalho e alterando o relacionamento no interior das grandes unidades fabris.

O importante a realçar é que o funcionamento e as decisões da câmara equacionaram velhos problemas de uma forma nova, pelo menos no Brasil. As experiências da câmara indicavam que era possível o funcionamento de um sistema tripartite de compensações, cuja eficácia econômica e política permitia a celebração duradoura de acordos, diminuindo as incertezas para todas as partes, com impacto positivo sobre o conjunto do ambiente econômico.

Esse movimento de setores da sociedade, que se articulou com o Estado para dar origem a um mecanismo de elaboração e de implementação de políticas industriais — viabilizando trocas políticas — não somente atribuiu legitimidade aos participantes, como ajudou a reaparelhar institucionalmente a sociedade.

Quando Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, aceitou a participação na câmara automotiva, o sindicato, de fato, estava dando sinal verde para a concertação, entendida como um modo de elaboração conjunta de políticas no qual diferentes interesses — até há pouco vistos como contraditórios e irredutíveis — participam de um mesmo processo decisório.

Essa decisão não parecia ocasional, principalmente porque os metalúrgicos só conseguiram ser reconhecidos como interlocutores graças à sua história — e não contra ela. A participação inicial dos metalúrgicos no processo de entendimento pode ser interpretada como uma atuação marcadamente defensiva. No entanto, se o sindicato não tivesse procurado ampliar a agenda de discussão e, sistematicamente, convidado os participantes a abordarem os temas estratégicos, correria um sério risco de tornar-se prisioneiro da câmara. E, como tal, tenderia a separar-se dos demais trabalhadores, fechando-se, como setor, na defesa exclusiva do corpo metalúrgico.

Não foi o que ocorreu. As pressões para que a câmara automotiva se definisse estrategicamente desenvolveu-se em oposição ao "natural" corporativismo da câmara. Foi essa ação política, sustentada pelo impacto positivo das decisões da câmara sobre a vida dos metalúrgicos e sobre o conjunto da economia, demonstrando o valor estratégico da negociação, que conseguiria acalmar as pesadas críticas contra o sindicato do ABC desfechadas, simultaneamente, por setores neoliberais e marxistas ortodoxos20 20 Uma das mais ardorosas oposições às câmaras setoriais vinha do interior do próprio governo, através do debate público realizado então por Gustavo Franco. .

A câmara beneficiou empresários, trabalhadores e o Estado, ainda que os ganhos tenham sido assimétricos, correspondendo às desigualdades estruturais da sociedade. Além de impulsionar decisivamente a recuperação da indústria, de proteger salários e estancar o desemprego, a câmara fez crescer também a massa de impostos recolhidos, mostrando sua viabilidade econômica e política ao ser capaz de sustentar um processo diferente dos de soma-zero. Esse resultado não era inevitável, muito menos pré-determinado pelas condições objetivas. Estas, aliás, sugeriam a recusa da concertação, que só se realiza a partir de concessões reais, difíceis de serem alcançadas em ambiente recessivo, como nos ensinaram várias experiências européias.

A questão de fundo era de disposição política, antes de mais nada, do Estado, para defender o setor automobilístico, responsável por cerca de 10% do PIB industrial do país. O Estado, principal emulador da câmara, tornou-se a partir de 1994, o principal obstáculo ao seu desenvolvimento. O seu futuro começou a mostrar-se ameaçado, coincidentemente, com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da Fazenda. A partir desse momento, as orientações da política econômica passaram a comandar as elaborações sobre a política industrial e as negociações com setores da sociedade, particularmente os trabalhadores21 21 Ver: Glauco Arbix, "Social-democracia sem concertação?", in Novos Estudos Cebrap, nº 43, novembro de 1995. .

A câmara, que existe formalmente até hoje, foi de fato drenada em suas atribuições e transformada em uma espécie de apêndice do Ministério da Fazenda. Desfez-se como arranjo democrático, de concertação social e de definição tripartite de políticas estratégicas. Cedeu lugar, de fato, para o retorno do velho namoro em câmara escura, do corporativismo "bifronte"22 22 Guillermo O'Donnell, "Acerca del Corporativismo y la Question del Estado", in Documentos Cedes/GE, Clacso, 1975. , entre as corporações da indústria e as agências estatais.

Mesmo com esse toque de melancolia, a repercussão política dessa experiência ainda está longe de se esgotar. Para os trabalhadores, a câmara automotiva abriu um período novo não só para os metalúrgicos do ABC como para todo o movimento sindical cutista, como expressou um diretor do sindicato:

"Então para nós a mudança foi por aí, a partir de 88, o momento preciso eu não sei, mas foi se construindo e ela se configura, se materializa a partir das câmaras setoriais, a partir de uma proposta de política industrial para o setor automotivo."

As alterações no relacionamento dentro das empresas, as novas competências que o sindicato e as comissões nos locais de trabalho vêm assumindo, as novas pautas e acordos selados mantêm com a política desenvolvida pela câmara automotiva ligações explícitas que, mesmo na ausência de um ambiente institucional propício, manifestaram-se com força dentro das fábricas no ABC durante o ano de 1995.

A PROCURA DE UMA ESTRATÉGIA

Desde os anos 70 que os sindicatos, em praticamente todo o mundo vêm se posicionando pela redução da jornada de trabalho, na tentativa de erguer uma barreira contra o desemprego crescente. E, em vários países avançados, com as mais diferentes estruturas econômicas e sistemas de relações industriais, a jornada de trabalho sofreu reduções significativas.

Nos anos 90, uma nova e mais forte tendência começou a tomar corpo. A partir das transformações no ambiente econômico mundial, da constituição de blocos econômicos e da ação mais agressiva das corporações transnacionais, vários governos, em sintonia com o empresariado, passaram a buscar a elevação dos padrões de competitividade de suas economias. Para tanto, vêm concentrando seus esforços na desregulamentação da economia e na flexibilização de direitos trabalhistas como um meio para aumentar a produtividade das empresas.

Segundo estudos da OIT23 23 G. Bosch, P. Dawkins e F. Michon (orgs.), Times Are Changing. Working Time in 14 Industrialised Countries, Genebra, International Institute for Labour Studies, 1993. , os acordos de flexibilização da jornada de trabalho vêm crescendo nos últimos anos em vários países. Porém, essa flexibilização vem se dando de diferentes maneiras. Dependendo da força do movimento sindical e da eficiência das estruturas de relações trabalho, os acordos selados podem levar a uma maior — ou menor — volatilização do emprego e a precarização do mercado de trabalho. Os levantamentos da OIT estão indicando que: "nos segmentos primários do mercado de trabalho, pode-se encontrar a flexibilidade combinada a estabilidade no emprego e a qualificação do trabalhador"24 24 Idem, p.26 . Ou seja, para muitos empregadores e empregados, a flexibilização surge como uma maneira de mesclar quantidade e qualidade, tendo como base a manutenção e a melhoria do emprego. Mas, ao mesmo tempo, para setores mais desprotegidos, a flexibilização pode levar a uma diminuição salarial, ao aumento do trabalho noturno e à rotatividade.

Esse processo de flexibilização, que aumenta o fosso entre o centro e a periferia dos trabalhadores, solicitado pelas empresa e aceito pela maioria dos governos da OECD, tem na sua essência uma política desreguladora, que aumenta seus traços mais perversos em ambientes de retração econômica.

Nos países em que essas negociações adquirem um formato tripartite, entre Estado, sindicatos e empresas, os acordos são mais facilmente generalizados e configuram-se mais protetores dos segmentos desorganizados. Áustria, Alemanha e Suécia, por exemplo, desenvolvem essas negociações e concluem acordos coletivos que, muitas vezes, circunscrevem-se a setores da economia ou ramos da produção. Em outros países, como na Espanha de Felipe Gonzales, a precarização do mercado de trabalho através dos contratos temporais têm provocado sérios danos à coesão da sociedade, atingindo especialmente os sindicatos.

Porém, a literatura internacional, há já algum tempo vem registrando cenários que apresentam elementos de contraste com as projeções mais pessimistas sobre o futuro dos sindicatos. Pesquisas sobre a descentralização na indústria, como as de Locke25 25 R. M. Locke, "The Demise of the National Union in Italy: Lessons for Comparative Industrial Relations Theory", in Industrial and Labour Relations Review, nº 45, 1992. , Horowitz26 26 F. Horowitz, "An Ideological Perspective", in International Journal of Manpower, nº 6, 1991. , Lucio e Weston27 27 M. Lucio e S. Weston, "The Politics and Complexity of Trade Union Responses to New Management Practices", in Human Resource Management Journal, nº 4, 1992. e Beaumont28 28 P. B. Beaumont, "Trade Unions and Human Resource Management", in Industrial Relations Journal, nº 22, 1992. , têm revelado novas formas de atuação de sindicatos europeus que estão reabrindo a discussão sobre a capacidade de rearticulação e recuperação do movimento sindical. Não é pouco para sindicatos que tiveram sua morte anunciada mais de uma vez, como os ingleses e franceses, por exemplo.

No Brasil, mesmo com a ação governamental contrária às negociações tripartite, encontramos no ABC mais do que o início de desenvolvimento de respostas específicas às estratégias empresariais e à questão do desemprego. Detectamos também, ao lado do fortalecimento das organizações por local de trabalho, o surgimento de uma malha de relações entre trabalhadores de empresas distintas, pertencentes ou não ao mesmo grupo empresarial, estabelecidas em regiões que extrapolam a base jurídica do sindicato dos metalúrgicos do ABC.

Paradoxalmente, essas novas relações inter e intra-empresas vêm se construindo com mais força nos últimos dois ou três anos, mais precisamente quando as comissões de fábrica começaram a ter aumentada a sua autonomia, credenciando-se como o principal instrumento de negociação no nível de cada unidade produtiva. Esse embrionário intercâmbio de informações e de experiências pode vir a configurar uma resposta inovadora à fragmentação implementada pelas empresas. Ainda que incipientemente discutida pelos membros das comissões de fábrica, essa rede de relacionamentos, se vier a se consolidar, recolocará, praticamente, a discussão sobre as competências das organizações nos locais de trabalho, dos sindicatos e das centrais.

OS MITOS DA MODA

Em praticamente todo o mundo, o setor automobilístico deu forma a um complexo de interesses diversos, que têm no seu epicentro, quase que invariavelmente, a definição dos mecanismos de regulação do seu funcionamento.

As dificuldades de associação, de negociação e de entendimento são enormes, explicáveis diante da alta capacidade de movimentação econômica, financeira, social e política que esse segmento tem. Não é à toa que a maior parte dos países que planejam se desenvolver a partir da industrialização, aspiram à instalação de um setor automotivo. O que significa, em outras palavras, que a quase totalidade dos países que sonham em superar o seu modesto estágio de desenvolvimento, atribuem à indústria automobilística um lugar determinante em seus dispositivos estratégicos.

O Brasil conta com essa indústria, diversificada nacionalmente, mas com seu coração batendo no ABC. Há praticamente vinte anos, o movimento sindical que nela teve origem vem modificando seus prazos, ritmos e vontades, em função da força acumulada. Esse poder de negociação concentrado nas mãos do sindicato e das comissões de fábrica não só não é contraditório com a reestruturação produtiva e a recapacitação da indústria, como a câmara setorial e os acordos selados já mostraram sua viabilidade. Exigem, porém, uma vontade de entendimento sobre os temas estratégicos para a indústria e para os trabalhadores, não só do ABC. Exatamente o avesso do aconselhado pelo atual governo e que só aumenta a responsabilidade das comissões de fábrica, dos sindicatos e das centrais, uma vez que as pressões desse processo tendem a dividir ainda mais os trabalhadores e suas organizações.

Offe nos lembrou que os trabalhadores, como regra geral, sempre foram atomizados e divididos pela competição. E que uma atuação desencontrada — ou egoísta — dos sindicatos pode aumentar ainda mais a segmentação dos trabalhadores. Os sindicatos, como organizações coletivas, sempre estiveram no cruzamento de uma heterogeneidade imediata, de experiências localizadas e de múltiplas aspirações. A construção da solidariedade entre os trabalhadores sempre exigiu um deliberado esforço político, de suas lideranças e dos ativistas sindicais. E, mesmo assim, quando essa solidariedade foi alcançada, jamais deixou de mostrar-se temporária e parcial.

A discussão dos acordos selados no ABC repõem o debate sobre o fortalecimento — ou a erosão — da solidariedade sindical. Até que ponto a política do sindicato e das comissões de fábrica está sendo guiada por interesses mesquinhos?

O trabalho desbravador do sindicato, seu peso no interior da CUT, seu apoio às atividades intersindicais e o processo de fusão efetivado com o sindicato de Santo André, têm sinalizado um movimento contrário. Mas a pressão das empresas e do desemprego criam cada mais dificuldades para o desenvolvimento da ação política de conjunto. Esse é o principal desafio sindical neste final de década.

Nessas condições, quais são as perspectivas de uma efetiva reforma democrática nas relações entre Capital e Trabalho?

Se as iniciativas da reorganização industrial dependerem apenas do humor das empresas dificilmente a indústria automobilística deixará de seguir as receitas da moda: severo ajuste estrutural, demissões, corte de custos generalizado, flexibilização do trabalho e precarização do emprego. As entidades associativas dos trabalhadores, fragmentadas e fragilizadas, podem e devem ser afastadas das discussões dos planos empresariais. Isso significa que a sua representatividade e legitimidade, como regra, não devem ser reconhecidas para evitar o seu fortalecimento.

Esses pressupostos definem os contornos de uma política cindida: de um lado, as empresas, que necessitam melhorar a qualidade de seus produtos, diminuir custos e tornarem-se mais competitivas; e, de outro, o sindicato e as comissões de fábrica que desejam manter os postos de trabalho, gerar novos empregos e melhorar as condições de vida de seus representados.

A razão de Estado, porém, não torna a reflexão impossível, apenas mais difícil. A reestruturação produtiva pode ser negociada a partir de parâmetros sociais claros, que permitam a construção de um ponto de equilíbrio, fundamental para a democratização das relações de trabalho em nosso país. Para essa difícil tarefa é que as funções reguladoras do Estado estariam sendo requisitadas e que o governo Fernando Henrique tem se recusado a assumir.

  • 1 Ver: Richard Hyman, "Trade Unions and the Disaggregation of the Working Class", in Marino Regini (org.), The Future of Labour Movements, Londres, Sage, 1992.
  • 2 N.Milward, M.Stevens, P.Smart e W.Hawes, Workplace Industrial Relations in Transition, Aldershot, Dartmouth, 1992.
  • 3 A. Touraine, "Unionism as a Social Movement", in S. M. Lipset (org.), Unions in Transition, São Francisco, Institute for Contemporary Studies, 1986.
  • 4 B. Amoroso, 'Industrial Relations in Europe in the 1990s: New Business Strategies and the Chalenge to Organised Labour', in International Journal of Human Resource Management, nş 3, Londres, 1992, pp. 180-190.
  • 9 "Não sou advogado para falar da parte legal, mas a parte social é muito positiva", declarou o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de afirmar que considera o acordo de São Paulo "um passo positivo", in Folha de S.Paulo, 16.02.1996, p. 2.1
  • 12 Caracterização emprestada de: Leôncio Martins Rodrigues, O declínio do sindicalismo corporativo, Rio de Janeiro, Ibase, 1991.
  • 16 Ricardo Bielschowsky, "Transnational Corporations and Manufacturing Sector in Brazil", Paper, Santiago do Chile, Eclac-United Nations, 1992, p. 19.
  • 19 Glauco Arbix, Uma aposta no futuro, São Paulo, Scritta, 1996.
  • 21 Ver: Glauco Arbix, "Social-democracia sem concertação?", in Novos Estudos Cebrap, nş 43, novembro de 1995.
  • 22 Guillermo O'Donnell, "Acerca del Corporativismo y la Question del Estado", in Documentos Cedes/GE, Clacso, 1975.
  • 23 G. Bosch, P. Dawkins e F. Michon (orgs.), Times Are Changing. Working Time in 14 Industrialised Countries, Genebra, International Institute for Labour Studies, 1993.
  • 25 R. M. Locke, "The Demise of the National Union in Italy: Lessons for Comparative Industrial Relations Theory", in Industrial and Labour Relations Review, nş 45, 1992.
  • 26 F. Horowitz, "An Ideological Perspective", in International Journal of Manpower, nş 6, 1991.
  • 27 M. Lucio e S. Weston, "The Politics and Complexity of Trade Union Responses to New Management Practices", in Human Resource Management Journal, nş 4, 1992.
  • 28 P. B. Beaumont, "Trade Unions and Human Resource Management", in Industrial Relations Journal, nş 22, 1992.
  • 1
    Ver: Richard Hyman, "Trade Unions and the Disaggregation of the Working Class",
    in Marino Regini (org.),
    The Future of Labour Movements, Londres, Sage, 1992.
  • 2
    N.Milward, M.Stevens, P.Smart e W.Hawes,
    Workplace Industrial Relations in Transition, Aldershot, Dartmouth, 1992.
  • 3
    A. Touraine, "Unionism as a Social Movement",
    in S. M. Lipset (org.),
    Unions in Transition, São Francisco, Institute for Contemporary Studies, 1986.
  • 4
    B. Amoroso, 'Industrial Relations in Europe in the 1990s: New Business Strategies and the Chalenge to Organised Labour',
    in International Journal of Human Resource Management, nº 3, Londres, 1992, pp. 180-190.
  • 5
    Pesquisa em andamento, de Iram Jácome Rodrigues e Glauco Arbix.
  • 6
    Marcas de automóveis que já divulgaram seus planos: a francesa Renault, as coreanas Kia, Asia e Hyundai, a alemã Mercedes Benz, as japonesas Toyota, Mitsubishi e Honda.
  • 7
    A Volkswagen constrói atualmente uma unidade de caminhões em Resende (RJ), anunciada como revolucionária, e já se definiu por São Carlos (SP) para instalar sua nova fábrica de motores. As demais montadoras ainda não apresentaram oficialmente suas decisões.
  • 8
    O sindicato dos metalúrgicos de São Paulo negociou com oito sindicatos da Fiesp um contrato especial de trabalho, permitindo as empresas contratarem sem registro em carteira, provisoriamente, sem FGTS, sem multas nas demissões por justa causa e sem recolhimento da cota da Previdência. Firmou também com a empresa Aliança Metalúrgica (SP) um contrato coletivo de trabalho temporário com redução de encargos sociais. Ambos estão sendo contestados pela Justiça do Trabalho.
  • 9
    "Não sou advogado para falar da parte legal, mas a parte social é muito positiva", declarou o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de afirmar que considera o acordo de São Paulo "um passo positivo",
    in Folha de S.Paulo, 16.02.1996, p. 2.1
  • 10
    O governo iniciou a discussão propondo cortes em encargos como o Sebrae, Sesi, Senai, Incra e acidentes de trabalho; em seguida, propôs a discussão de itens que retornam aos trabalhadores, como o 13º, licenças, abonos, férias, FGTS, INSS e outros.
  • 11
    As estimativas são do Sindicato dos Metalúrgicos e da subseção do Dieese do ABC.
  • 12
    Caracterização emprestada de: Leôncio Martins Rodrigues,
    O declínio do sindicalismo corporativo, Rio de Janeiro, Ibase, 1991.
  • 13
    O processo é de 1984 e a primeira comissão eleita pelos trabalhadores da fábrica tomou posse em 1985.
  • 14
    Introdução ao documento "Diretrizes Gerais da Política Industrial e do Comércio Exterior", de junho de 1990.
  • 15
    Pelo grau de enfrentamento alcançado, as greves da Ford e a dos estaleiros Ishibrás foram percebidas por vários entrevistados como um ponto de inflexão na trajetória de conflitos. Os dois movimentos prenunciaram a instalação da câmara automotiva da indústria naval.
  • 16
    Ricardo Bielschowsky, "Transnational Corporations and Manufacturing Sector
    in Brazil",
    Paper, Santiago do Chile, Eclac-United Nations, 1992, p. 19.
  • 17
    Boletim Dieese, maio de 1991.
  • 18
    Em setembro de 1991, o Congresso Nacional da CUT havia se posicionado contra a participação de seus filiados nas câmaras setoriais. Em dezembro, o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, através de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, iniciou sua participação na câmara automotiva contrariando as posições da central.
  • 19
    Glauco Arbix,
    Uma aposta no futuro, São Paulo, Scritta, 1996.
  • 20
    Uma das mais ardorosas oposições às câmaras setoriais vinha do interior do próprio governo, através do debate público realizado então por Gustavo Franco.
  • 21
    Ver: Glauco Arbix, "Social-democracia sem concertação?",
    in Novos Estudos Cebrap, nº 43, novembro de 1995.
  • 22
    Guillermo O'Donnell, "Acerca del Corporativismo y la Question del Estado",
    in Documentos Cedes/GE, Clacso, 1975.
  • 23
    G. Bosch, P. Dawkins e F. Michon (orgs.),
    Times Are Changing. Working Time in 14 Industrialised Countries, Genebra, International Institute for Labour Studies, 1993.
  • 24
    Idem, p.26
  • 25
    R. M. Locke, "The Demise of the National Union in Italy: Lessons for Comparative Industrial Relations Theory",
    in Industrial and Labour Relations Review, nº 45, 1992.
  • 26
    F. Horowitz, "An Ideological Perspective",
    in International Journal of Manpower, nº 6, 1991.
  • 27
    M. Lucio e S. Weston, "The Politics and Complexity of Trade Union Responses to New Management Practices",
    in Human Resource Management Journal, nº 4, 1992.
  • 28
    P. B. Beaumont, "Trade Unions and Human Resource Management",
    in Industrial Relations Journal, nº 22, 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1996
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