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Pluralismo moral e acordo razoável

Moral pluralism and reasonable agreement

Resumos

Como podemos conceber a validade e o alcance universal de princípios liberal-igualitários de justiça? O artigo propõe uma resposta de espírito rawlsiano para essa questão. Argumenta-se que esses princípios podem ser justificados a todos porque somente eles podem fornecer os termos de um acordo razoável entre pessoas que divergem sobre qual é a melhor forma de vida.


How can we conceive the validity and the universal scope of liberal-equalitarian principles of justice? An answer in a rawlsian vein is proposed for this question. It is argued that these principles can be justified for all and sundry because only they are able do provide the terms of a reasonable agreement between persons which diverge on which is the best form of life.


GOVERNO & DIREITOS

Pluralismo moral e acordo razoável* * Esta é uma versão ampliada do texto que foi apresentado no Coloquio "Teoría de la Justicia: 25 años después", realizado pelo Centro Latinoamericano de Economía Humana (Claeh) em 21 de outubro de 1996 em Montevidéu. Agradeço aos participantes do Colóquio, em especial a Philippe Van Parijs e a Pablo da Silveira pelas observações que fizeram à versão inicial deste trabalho. Este texto é parte da tese de doutorado que o autor prepara no momento, contando para isso com o apoio de uma bolsa de estudos do CNPq.

Moral pluralism and reasonable agreement

Álvaro de Vita

Professor do Departamento de Política da PUC-SP e Editor-Assistente de Lua Nova

RESUMO

Como podemos conceber a validade e o alcance universal de princípios liberal-igualitários de justiça? O artigo propõe uma resposta de espírito rawlsiano para essa questão. Argumenta-se que esses princípios podem ser justificados a todos porque somente eles podem fornecer os termos de um acordo razoável entre pessoas que divergem sobre qual é a melhor forma de vida.

ABSTRACT

How can we conceive the validity and the universal scope of liberal-equalitarian principles of justice? An answer in a rawlsian vein is proposed for this question. It is argued that these principles can be justified for all and sundry because only they are able do provide the terms of a reasonable agreement between persons which diverge on which is the best form of life.

Meu propósito, neste texto, é o de esclarecer aquela que me parece ser a forma mais vigorosa de argumentar em favor de princípios liberal-igualitários de justiça. Antes de mais nada, aponto o problema que torna um acordo em torno de princípios comuns de justiça tão urgente quanto difícil de ser alcançado. As comunidades políticas modernas caracterizam-se não só por um pluralismo de interesses e de grupos e organizações mas também por um pluralismo muito mais intratável de "concepções do bem". Nisso se incluem as concepções que os indivíduos têm sobre o que é melhor para suas próprias vidas e, sobretudo, as concepções sobre o que é valioso para a vida de todos nós, membros de uma mesma comunidade política. Nós divergimos sobre em que consiste nosso bem (individual e coletivo) porque divergimos a respeito das doutrinas morais, religiosas, filosóficas ou políticas que consideramos — às vezes de ponta a ponta1 1 Nessa categoria encontram-se os que acreditam que uma determinada doutrina pode fornecer desde princípios para a estrutura institucional até normas para a conduta individual. Esse tipo de visão é o que John Rawls denomina "concepção abrangente do bem". , mais freqüentemente de uma forma menos englobante e estruturada — como verdadeiras. Não é preciso muito esforço para caracterizar a relevância prática do problema. Só para mencionar os casos mais extremos, basta pensarmos no que se passou ex-Iugoslávia e em Ruanda, ou no que se passa no Afeganistão e na Argélia, países devastados por guerras civis originadas de manifestações desse tipo de pluralismo — e no que pode vir a ocorrer em um país como a índia.

A resposta liberal-igualitária ao problema do pluralismo tem por referência central a perspectiva normativa que foi proposta por John Rawls — e ainda encontra neste livro sua melhor formulação — em Uma teoria da justiça. Vamos denominá-la "contratualismo rawlsiano". Nem é preciso dizer que a forma que julgo ser mais promissora de interpretar esse tipo de contratualismo se propõe a ser fiel muito mais àquilo que me parece ser o espírito do empreendimento rawlsiano do que à letra dos textos de Rawls. Em mais de um momento, como se verá, essa interpretação se afasta de formulações propostas pelo próprio Rawls em Uma teoria da justiça e, sobretudo, em seus textos mais recentes.

Começo explicitando os aspectos mais importantes dessa modalidade de contratualismo, comparando-a brevemente com duas perspectivas normativas distintas — o contratualismo hobbesiano e o utilitarismo de John Harsanyi. O debate com essas duas perspectivas rivais — tratarei aqui de forma um pouco mais detalhada do utilitarismo de Harsanyi — polariza-se em torno da justificação de um princípio de justiça distributiva strictu senso, isto é, de um princípio que tem desigualdades sócio-econômicas por objeto. Depois, faço um esforço para aplicar o contratualismo rawlsiano a duas questões que estão sujeitas às injunções de um ideal de tolerância liberal, do qual deriva uma das proposições normativas centrais do contratualismo rawlsiano. Trata-se da idéia de que um Estado liberal justo deve ser neutro em relação às diferentes concepções do bem que seus cidadãos empenham-se em realizar. A forma como devemos entender essa neutralidade é essencial para avaliar os méritos da resposta liberal-igualitária ao problema do pluralismo moral. Uma das questões que examinarei diz respeito a como justificar um princípio de justiça que histórica e teoricamente ocupa uma posição fundante em uma moralidade política liberal: a tolerância religiosa. A outra questão tem por objeto um tema que pertence à agenda e ao debate políticos brasileiros do momento em que escrevo este texto: a legalização da união civil entre homossexuais.

A discussão dessas duas ordens de questões — as que caem no âmbito da justiça distributiva e as que caem no âmbito da tolerância — tem o objetivo de examinar até que ponto a noção de acordo razoável, que argumentarei ser central ao contratualismo rawlsiano, é capaz de produzir respostas específicas, e de aceitabilidade universal, para pelo menos uma categoria (sobre a qual falarei adiante) dos conflitos de valor que afligem as sociedades modernas.

I

Em Uma teoria da justiça, Rawls realizou um esforço intelectual quase sobre-humano para responder à questão: é possível justificar princípios comuns de justiça, e suas correspondentes configurações institucionais, a cidadãos que vivem em sociedades caracterizadas pela forma de pluralismo a que antes fiz menção? A resposta é positiva, mas não se trata de uma justificação qualquer. Rawls descreve assim seu empreendimento: "o que tentei fazer foi generalizar e conduzir para um nível mais elevado de abstração a teoria tradicional do contrato social tal como representada por Locke, Rousseau e Kant"2 2 Rawls, J. A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1971, p. viii. . Trata-se, portanto, de uma justificação de tipo contratualista. Mas o que se deveria entender por isso? Afirma-se, por vezes, que estão ausentes da teoria que Rawls apresentou em seu livro as características distintivas de uma teoria genuinamente contratualista. Na construção proposta por Rawls (1) não é especificado um ponto de ausência de acordo, ou "estado de natureza", em relação ao qual as partes contratantes teriam de estimar os benefícios que obteriam aceitando os termos de um acordo e (2) as partes contratantes não avaliam os termos do acordo motivadas unicamente pela maximização do próprio benefício. As condições (1) e (2) caracterizam um empreendimento teórico bastante distinto que vem sendo denominado, na teoria política contemporânea, "contratualismo hobbesiano".3 3 Seu expoente mais articulado é David Gauthier, em Morals by Agreement (Oxford, Clarendon Press, 1986). Para esta versão de contratualismo, só são legítimos aqueles princípios de justiça sobre os quais se pode afirmar que seriam aqueles convencionados em uma negociação hipotética em que cada uma das partes busca maximizar sua própria utilidade, cada qual tomando por referência a utilidade com que teria de se contentar caso a negociação fracassasse — isto é, caso não fosse possível passar do estado de natureza para um esquema cooperativo fundado em princípios acordados de justiça. Como nos contratos privados usuais, ninguém racionalmente consentiria a termos de acordo que rebaixassem sua posição relativa na distribuição de benefícios (estimados pela utilidade que cada contratante obtém) em comparação à posição inicial de barganha. Se é possível afirmar que as instituições básicas de uma sociedade implementam princípios de justiça que podem ser justificadas dessa forma, um contratualista hobbesiano diria a um membro qualquer dessa sociedade: "você (e da mesma forma todos os demais) deve dar seu assentimento aos princípios implementados pelas instituições básicas de sua sociedade porque isso é o melhor da ótica do seu interesse próprio. É isso o que um indivíduo racional (isto é, um indivíduo motivado unicamente pela maximização da própria utilidade) faria".

Não é a hora de examinar esse argumento. Pelo momento, quero ressaltar o quanto a construção sugerida por Rawls está distante disso. Podemos interpretar o contratualismo rawlsiano da seguinte forma. Qualquer estrutura institucional, na medida em que restringe o leque de escolhas e de oportunidades disponíveis para os agentes, e na medida em que estabelece normas que são de cumprimento obrigatório por todos, inevitavelmente envolve algum grau de limitação e mesmo de coerção sobre aqueles que a ela estão submetidos4 4 Como Rawls admite, mesmo uma "sociedade bem ordenada" — isto é, uma sociedade cuja estrutura institucional realiza de forma aproximada os princípios de justiça que são publicamente reconhecidos e cujos cidadãos, em sua maioria, aceitam regular sua conduta por esses princípios — não tem como dispensar o emprego da coerção coletiva: "é racional autorizar as medidas necessárias à preservação de instituições justas, supondo-se que as exigências da liberdade igual e do império da lei sejam adequadamente reconhecidas". Rawls, op. cit., p. 576. . O que estamos supondo, quando nos valemos da linguagem da justiça, é que temos como oferecer àqueles a quem a decisão política se aplica uma razão para aceitá-la que é independente do recurso à coerção. Idealmente, para a versão de liberalismo político que estou considerando, deveríamos ser capazes de justificar dessa forma as instituições básicas da sociedade e as decisões políticas fundamentais a cada um dos cidadãos, sobretudo àqueles que se encontram em pior situação sob essa estrutura institucional. Se uma justificação desse tipo pudesse em boa fé ser oferecida, então estaríamos em condições de afirmar que os direitos e deveres distribuídos pelas instituições básicas da sociedade são tão voluntariamente assumidos pelos cidadãos quanto isso é possível em uma forma de associação humana — a comunidade política — que, de fato, quase nunca é voluntariamente constituída. A questão, evidentemente, não é a da gênese histórica da estrutura institucional vigente em uma dada sociedade — se ela emergiu de algum tipo de contrato, de uma ruptura revolucionária, ou se constituiu ao longo de um lento processo evolucionário — que está em questão. A questão é outra: essas instituições, seja lá qual tenha sido o modo pelo qual se constituíram, podem ser justificadas a cada uma das pessoas a quem elas impõem restrições por razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar? Se não podem, haveria alguma outra estrutura institucional praticável que passaria por esse teste de universalização?

É dessa forma que Thomas Scanlon interpreta a idéia central da modalidade de contratualismo que encontrou na construção proposta por Rawls em Uma teoria da justiça — apesar das hesitações do próprio Rawls sobre isso neste e em seus textos posteriores — sua mais notável formulação na teoria política contemporânea5 5 Ver Scanlon, T. "Contractualism and Utilitarianism". In Sen, A. & Williams, B. (orgs.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982. É evidente que nessa formulação muito peso recai sobre a palavra "razoavelmente", ponto do qual tratarei logo a seguir. Essa interpretação "scanloniana" da teoria de Rawls é desenvolvida em detalhe e defendida energicamente por Brian Barry. Ver Barry, B. Theories of Justice (London, Harvester-Wheatsheaf, 1989), pp. 283-84, p. 346; e sobretudo Justice as Impartiality (Oxford, Clarendon Press, 1995). . É sobretudo nesse ponto, e não por adotar uma mentalidade racionalista segundo a qual seria preciso reordenar as instituições políticas e sociais de modo a que viessem manifestar a mesma articulação coerente de princípios abstratos que só é possível a uma idéia da Razão, que o contratualismo proposto por Rawls pode ser visto como "iluminista"6 6 A teoria de Rawls é, como não poderia deixar de ser, fundada em ideais, mas não tem nenhuma obsessão pela realização plena dos ideais que articula em uma concepção coerente de justiça social. Não é preciso esperar pela realização de uma estrutura institucional plenamente justa (de acordo com os critérios propostos pela teoria) para que qualquer coisa possa ser afirmada, em termos normativos, sobre determinados arranjos institucionais e práticas vigentes em uma dada sociedade. Alguns dos exemplos que serão considerados adiante, como o da institucionalização da liberdade de consciência, servem para ilustrar este ponto. . A exigência iluminista em questão é a de que deve ser possível oferecer justificações inteligíveis para os arranjos sociais básicos (e às formas de autoridade que constituem) a cada pessoa que sob eles têm de viver. Se isso for possível (repetindo algo que já foi dito acima), estaremos em condições de sustentar que a aceitação de formas institucionalizadas e coletivas de conduta se funda na vontade livre dos indivíduos, e não na obediência costumeira, ou em um sentido de comunidade, ou, pior ainda, no temor de sofrer punições.

Trata-se de um padrão extremamente exigente de legitimidade política. O contratualismo rawlsiano não pode justificar os princípios de justiça que recomenda argumentando — como fazem os adeptos da perspectiva hobbesiana — que cada um dos membros da sociedade seria racionalmente levado a aceitá-los consultando seu interesse próprio e nada mais. Ao invés de nos perguntarmos pelo que cada um pode aceitar tendo em vista somente seu interesse próprio, perguntamo-nos pelo que cada um não tem como rejeitar se considerar eqüitativamente os interesses de todos aqueles (incluindo si próprio) que deverão conduzir suas vidas sob uma mesma estrutura institucional. A justificação deve ser conduzida, agora, de um ponto de vista adequadamente construído de imparcialidade moral7 7 Ao passo que o contratualismo hobbesiano é uma teoria puramente "relativa ao agente", isto é, as razões que ela invoca somente são razões que cada um dos agentes pode reconhecer de seu ponto de vista individual, o contrarualismo rawlsiano (e formulações similares) é basicamente uma teoria "neutra em relação ao agente", isto é, as razões que invoca são razões que todos os agentes podem reconhecer desde que se coloquem de uma perspectiva apropriadamente imparcial. Para a distinção entre "relatividade ao agente" e "neutralidade em relação ao agente", ver Thomas Nagel, The View from Nowhere (Oxford, Oxford University Press, 1986), cap. VIII e IX e Equality and Partiality (Oxford, Oxford University Press, 1991), p. 40 e pp. 45-6 e 85-6; e Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford, Oxford University Press, 1984), p. 27, cap. 4 e p. 143. . Estamos nos aproximando, como não é difícil de perceber, do dispositivo concebido por Rawls para testar as justificações oferecidas a diferentes princípios substantivos de justiça.

Aliás, diga-se de passagem que uma das razões para a influência exercida pelo livro de Rawls ao longo destes 25 anos está justamente no esforço de articular duas proposições normativas distintas: uma que diz respeito aos procedimentos de justificação que deveríamos adotar se o que queremos é chegar a um acordo razoável sobre princípios comuns de justiça; e outra concernente a que princípios substantivos deveríamos esperar que resultassem da adoção desses procedimentos.

II

O procedimento de construção proposto por Rawls em Uma teoria da justiça, entretanto, acabou induzindo a mais equívocos do que acertos. Rawls sugeriu que deveríamos considerar mais justificados os princípios de justiça que surgissem da escolha de pessoas motivadas unicamente por seu interesse próprio deliberando por trás de um "véu de ignorância" que não lhes permitisse levar em conta suas concepções do bem, posição social, talentos e capacidades e preferências individuais. E sugeriu que o problema de decisão nessa situação — a célebre "posição original" — teria uma solução definida, a saber a escolha dos dois princípios de justiça por ele propostos8 8 Um princípio de liberdade igual para todos e um princípio estabelecendo que desigualdades os cidadãos de uma sociedade justa poderiam aceitar, em particular o principio "maximin" (ou "princípio de diferença") segundo o qual só são aceitáveis as desigualdades socioeconômicas que maximizarem os benefícios para os membros mais destituídos da sociedade. (O princípio maximin de justiça social não deve ser confundido com a norma maximin de decisão em condições de incerteza, mencionada na nota 10 adiante.) .

O problema central do procedimento da posição original é o de que ele mascara as premissas morais das quais um contratualismo como o de Rawls não tem como se afastar. É claro que Rawls está cônscio das premissas morais substantivas sem as quais seu procedimento não faz sentido: "dadas as circunstâncias da posição original, a simetria das relações de cada qual para com os demais, essa situação inicial é eqüitativa entre indivíduos considerados como pessoas morais, isto é, como seres racionais com seus próprios fins e capazes, pelo menos é isso o que vou supor, de um senso de justiça". Nesta passagem estão mencionadas as duas premissas cruciais: uma noção forte de igualdade moral e uma suposição motivacional, isto é, a de que as pessoas são capazes de agir a partir de um "senso de justiça"9 9 Rawls, op. cit.y p. 12. . São estas duas premissas morais substantivas que distinguem um contratualismo como o de Rawls daquele que considerei anteriormente. (Voltarei a elas logo adiante.) O problema é que Rawls, em Uma teoria da justiça, não deixou de flertar com o contratualismo hobbesiano. A impressão que temos, em muitos momentos, é a de que Rawls gostaria de limitar o papel dessas duas premissas morais à caracterização do status quo adequado à deliberação sobre princípios de justiça; a partir daí, a argumentação poderia se desenvolver de uma forma consistente com os padrões de justificação próprios da perspectiva hobbesiana. Não creio que essa tentativa tenha sido bem-sucedida. Entre outros críticos, John Harsanyi argumentou que, empregando-se uma regra de decisão distinta daquela empregada por Rawls para solucionar o problema de escolha racional sob a incerteza na posição original, a preferência das partes deliberando sob o véu de ignorância deveria recair em um princípio de maximização da utilidade média (e não no princípio de diferença defendido por Rawls)10 10 Harsanyi argumentou que a melhor regra de decisão racional em condições de incerteza não é a adotada por Rawls (a norma "maximin" de decisão, que recomenda que se escolha a alternativa cujo pior resultado possível é superior aos piores resultados possíveis das demais opções) e sim o princípio da maximização da utilidade esperada. Harsanyi, J. "Can the Maximin Principle Serve as a Base for Morality? A Critique of John Rawls's Theory". American Political Science Review 69,1975, pp. 594-606. .

Rawls tem um argumento para rejeitar a objeção de Harsanyi, mas ele envolve apelar novamente às premissas morais que determinaram o desenho da posição original. É hora de explicitá-las um pouco mais (depois disso, esclareço com base em que considerações as conclusões de Harsanyi podem ser refutadas). Podemos interpretar as restrições à deliberação moral impostas pelo véu de ignorância da seguinte forma. Tenhamos em mente que o que se quer é especificar os princípios de justiça que possam ser justificados a todos, em particular aos que viessem a se encontrar em pior situação sob o arranjo institucional que colocaria esses princípios em prática. Se essa exigência (de legitimidade) é levada em conta, não é razoável argumentar-se que um determinado princípio deveria ser adotado simplesmente porque isso é o que seria melhor para as pessoas que controlam determinados recursos materiais ou se encontram em determinada posição social, dispõem de determinados talentos e capacidades ou são adeptas de uma visão abrangente específica do bem. Em contraste com o contratualismo hobbesiano, que é concebido precisamente para permitir que as desigualdades existentes no ponto de não-acordo se transmitam para os resultados do contrato social hipotético, o contratualismo rawlsiano requer que os julgamentos de justiça política sejam proferidos de um contexto inicial de igualdade.

Esse contexto inicial de igualdade não deve ser entendido como uma mera característica formal do procedimento de construção proposto. A plausibilidade desse "ponto arquimediano"11 11 Na reflexão normativa, o "ponto arquimediano", como diz David Gauthier, "é aquela posição que é preciso ocupar se o que se quer é que as próprias decisões se invistam da força moral necessária para governar o mundo moral". Gauthier, D., op. cit., p.233. Para o contratualismo de Rawls (mas não para o de Gauthier) esse ponto é especificado pela baseline de igualdade. a partir do qual os julgamentos de justiça devem ser proferidos deriva, como já sugeri antes, de uma premissa moral substantiva. Trata-se da idéia de que as oportunidades de vida e o bem-estar dos cidadãos de uma sociedade justa não podem depender do acaso genético ou social, isto é, de uma loteria na distribuição de posições sociais, renda e riqueza, talentos naturais e mesmo de concepções do bem; e que, portanto, as instituições básicas da sociedade devem ser concebidas para funcionar de forma a tanto quanto possível neutralizar a influência desses fatores — que via de regra encontram-se ou inteiramente ou em grande medida fora do alcance de escolhas individuais12 12 Há mecanismos sociais de causação de preferências individuais (tais como o nível de escolaridade dos pais ou as oportunidades que cada um encontra para cultivar seus próprios talentos) que estão fora do alcance dos indivíduos. E, no que se refere a visões abrangentes do bem, uma pessoa pertencer, digamos, à comunidade muçulmana da índia, e não à maioria adepta do hinduísmo, certamente não é algo que possa ser interpretado como uma escolha individual. — sobre a vida que cada pessoa é capaz de levar13 13 Rawls, op. cit., parag. 17. . Rawls quer dizer que os fatores que em geral respondem pela capacidade produtiva desigual dos indivíduos, e pelo acesso desigual aos recursos escassos da sociedade, são arbitrários de um ponto de vista moral e que, portanto, não podem ter nenhum peso no acordo sobre princípios de justiça. Esse argumento moral substantivo nos dá a chave para entender porque o ponto arquimediano desse contratualismo deve exprimir uma concepção de igualdade moral.

Intimamente associada a essa premissa de igualdade está a segunda premissa, que diz respeito ao tipo de motivação à qual recorrer para tornar possível o acordo e, em seguida, para conferir estabilidade às instituições que colocariam em prática os princípios acordados. Um contratualismo como o de Rawls só tem apelo para pessoas que são capazes de agir a partir de uma motivação moral (ou de um "senso de justiça", como está dito na passagem que citei acima e em inúmeras outras de Uma teoria da justiça). Como deveríamos entender essa motivação moral? A melhor interpretação, acredito, foi proposta por Thomas Scanlon: a motivação moral consiste no "desejo de ser capaz de justificar as próprias ações a outros por razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar"14 14 Scanlon, op. cit., p. 116. . O simples fato dessa motivação estar presente na conduta humana já implica o reconhecimento da forma de igualdade que mencionei acima. Somente nos sentimos obrigados a oferecer justificativas a nossas ações, quando elas afetam outros, para pessoas que consideramos nossos iguais moralmente falando. Antes de prosseguir nessa discussão, retorno a um ponto que deixei pendente atrás.

III

Disse antes que Rawls tem um argumento para rebater a objeção de Harsanyi de que a escolha das partes na posição original deveria recair, não em um princípio maximin de justiça, e sim em um princípio de maximização da utilidade média. Estamos agora em condições de precisar a natureza desse argumento. Vamos admitir que a escolha mais racional para as partes na posição original fosse realmente um princípio de maximização da utilidade média. O problema é que as instituições voltadas para dar substância a esse princípio não seriam consistentes em termos da motivação necessária para lhes conferir estabilidade. É isso que Rawls está dizendo na seguinte passagem:

"os princípios de justiça se aplicam à estrutura básica do sistema social e à determinação das perspectivas de vida. O que o princípio de utilidade exige é precisamente o sacrifício dessas perspectivas. Supõe-se que devemos aceitar as vantagens maiores de outros como uma razão suficiente para as expectativas mais baixas ao longo de todo o curso de nossa vida. Isso é certamente uma exigência extrema. Quando a sociedade é concebida como um sistema de cooperação estruturado para promover o bem de seus membros, parece demasiado inverossímil que se possa esperar, com base em princípios políticos, que alguns cidadãos aceitem expectativas de vida mais baixas em benefício de outros."15 15 Rawls, A Theory of Justice, p. 178.

A "exigência extrema" em questão não é a de que os mais talentosos e os mais abastados tenham de contribuir para o bem-estar dos mais destituídos. Pois isso é precisamente o que uma estrutura institucional concebida para implementar o princípio de diferença exigiria deles. Suas expectativas de vida não se tornariam por isso mais baixas do que as de outros, porque a eles (aos mais privilegiados) ainda caberiam os quinhões maiores dos recursos sociais escassos. A exigência extrema está na suposição de que os mais destituídos deveriam aceitar a redução de suas expectativas de vida, e os benefícios maiores garantidos aos mais abastados e aos mais talentosos, se isso se mostrasse ser, como muitas vezes é o caso, uma condição para a maximização da utilidade agregada. O princípio de utilidade admite não só o sacrifício de cima para baixo, como o princípio de diferença, mas também o sacrifício de baixo para cima16 16 Nagel, Equality and Partiality, pp. 78-80. . Isso está longe de se constituir somente em uma hipótese teórica, como Nagel argumenta: "quando esses dois princípios implicam resultados diferentes, como no caso em que uma minoria destituída só poderia ser ajudada à custa de um sacrifício agregado quantitativamente maior por parte de uma classe média numerosa, o ônus motivacional menor imposto pelo igualitarismo [isto é, pelo princípio de diferença] será sentido por mais pessoas do que o ônus motivacional mais pesado imposto por um utilitarismo estrito. Esta é uma entre inúmeras outras razões pelas quais a igualdade enfrenta tempos tão difíceis nas democracias modernas"17 17 Ibid .p. 80. .

As partes deliberando na posição original de Harsanyi, não sendo avessas ao risco, seriam racionalmente levadas a escolher o princípio de maximização da utilidade média porque este é o princípio de justiça distributiva que permitiria maximizar o número de posições em que os benefícios que lhes seriam assegurados seriam maiores — maiores, no caso, do que os benefícios que o princípio de diferença garantiria aos que se encontrassem na posição mínima. Mas, uma vez que o "véu de ignorância" fosse levantado, os que se encontrassem na pior posição sob a estrutura institucional concebida para colocar o princípio escolhido em prática, poderiam razoavelmente rejeitar o princípio da utilidade média. Os pior situados poderiam razoavelmente rejeitar um princípio de justiça política que lhe exige (como argumenta Rawls no trecho citado acima) considerar os benefícios maiores colhidos pelos mais privilegiados como uma razão suficiente para se contentar com suas próprias expectativas mais baixas ao longo da vida inteira. Uma sociedade utilitarista bem ordenada seria inconsistente do ponto de vista motivacional. Este é o argumento decisivo de Rawls contra o utilitarismo. Mas não se trata, como Rawls parece supor, de um argumento do ponto de vista da posição original e sim de um argumento sobre a motivação para cada um fazer o que é exigido de si pelas instituições sociais e políticas depois que o contrato hipotético foi realizado18 18 Se formulássemos a questão na linguagem da teoria dos jogos — mal comparando, uma vez que as premissas adotadas são outras — diríamos que a lógica que leva ao acordo deve ser distinguida da lógica que leva os participantes a respeitar os termos do acordo. Depois que um acordo é alcançado, ainda resta o problema da motivação que os participantes têm para honrar seus termos. . Pode-se defender o princípio de diferença contra o princípio de utilidade argumentando-se que o ônus motivacional imposto pelo primeiro é mais aceitável do que o do segundo. Mas esse argumento não tem como deixar de apelar à motivação moral tal como a estou entendendo.19 19 Brian Barry sustenta que o argumento de Rawls sobre a maior estabilidade motivacional dos dois princípios de justiça de sua teoria deve ser entendido como um argumento independente (do argumento da posição original) em favor desses princípios. E esse argumento não tem como não recorrer ao padrão scanloniano de justificação. Barry, Justice as Impartiality, pp. 61 -7.

IV

A definição proposta por Scanlon para a motivação moral necessita ser qualificada. A questão que imediatamente se apresenta é a seguinte: esse ideal de legitimidade política que estou considerando central ao contratualismo rawlsiano exige imparcialidade demais da conduta dos indivíduos? Uma das qualificações a fazer à definição proposta por Scanlon é a seguinte. O contratualismo rawlsiano preocupa-se com os princípios que devem reger a "estrutura básica da sociedade" e não com os princípios que podem ser invocados para justificar as escolhas em um âmbito da conduta individual que deveríamos ver como puramente privado. A modalidade de liberalismo que estou considerando não faz julgamentos de valor sobre os objetivos, escolhas e atividades que os indivíduos empenham-se em realizar em suas vidas. O liberalismo político nada tem a dizer sobre como os indivíduos devem viver suas vidas e não fornece preceitos para a conduta individual, a não ser no que se refere à injunções que decorrem daquilo que Rawls denominou "dever natural de justiça"20 20 Rawls, op. cit/., pp. 333-37. . Podemos interpretar isso como a exigência de que cada um faça o que se espera de si em instituições cujos princípios e normas constitutivos poderiam receber o assentimento de todas as pessoas que se dispusessem a chegar a um acordo em termos razoáveis. As exigências da imparcialidade, portanto, recaem diretamente sobre a justificação de princípios para a estrutura básica da sociedade e só de uma forma indireta sobre a conduta individual, na medida em que "a existência de instituições envolve certos padrões de conduta individual em conformidade com normas publicamente reconhecidas"21 21 Ibid., p. 335. . À parte isso, cada um deve ser livre para viver sua própria vida de acordo com sua própria concepção do bem.

Uma segunda qualificação importante a ser feita é a seguinte. Há inúmeros conflitos de valor com respeito aos quais uma deliberação coletiva terá de ser tomada sem que seja preciso justificar as decisões tomadas pelo critério de Scanlon de não-rejeição razoável. A motivação moral, tal como a estou entendendo, só entra em cena quando é preciso solucionar os conflitos que dizem respeito àquilo que Rawls, em seus textos mais recentes, denomina "fundamentos constitucionais" e "questões de justiça básica". Essa formulação envolve reinterpretar ou mesmo abandonar algumas posições defendidas em Uma teoria da justiça, já que nem todas (e nem sequer a maior parte) das decisões políticas dizem respeito a essas "questões de justiça básica".22 22 Rawls, J. Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 214. Entre as questões desse tipo, Rawls menciona as seguintes: "quem tem o direito de voto, ou que religiões devem ser toleradas, ou a quem se deve garantir a igualdade eqüitativa de oportunidade ou o direito de possuir propriedade". Ibid. Em conexão com esse ponto, limito-me a mencionar uma mudança bastante significativa na forma como Rawls entende sua própria teoria. Em Uma teoria da justiça, se neste texto Rawls tivesse feito a distinção a que estou me referindo, tudo aquilo que dissesse respeito à distribuição de "bens primários" de acordo com os dois princípios de justiça23 23 Ver nota 8 acima. deveria fazer parte dos "fundamentos constitucionais" e das "questões de justiça básica". Em Liberalismo político, entretanto, Rawls explicitamente exclui seu "princípio de diferença" dos fundamentos constitucionais — que são as questões, é bom lembrar, sobre as quais o problema de chegar a justificações mutuamente aceitáveis para as normas e instituições comuns se apresenta.24 24 Ibid., pp. 227-230. Em outros termos, Rawls parece ter desistido de justificar o princípio de diferença apelando à idéia de acordo razoável. Acredito que faz sentido avaliar da seguinte forma essas mudanças na forma como Rawls interpreta sua própria teoria: podemos aceitar que é importante circunscrever as questões com respeito às quais devemos perseguir uma unanimidade razoável, sem por isso aceitar a exclusão da justiça distributiva strictu senso do âmbito das "questões de justiça básica". A interpretação que estou propondo do contratualismo rawlsiano aceita a primeira mudança e rejeita a segunda. Não tenho como levar essa discussão adiante no momento. Limito-me a dizer algo mais sobre a especificação dos conflitos de valor em relação aos quais o liberalismo político (tal como o estou entendendo) nada propõe, exceto que sejam solucionados por uma estrutura legal que, esta sim, possa ser justificada por razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar.25 25 Um argumento semelhante a este é proposto por Peter de Marneffe em "Liberalism, Liberty, and Neutrality" (Philosophy and Public Affairs 19, 1990, pp. 253-74).

Para se valer de uma distinção proposta por Dworkin, há inúmeras decisões coletivas que não envolvem questões de princípio e sim somente de política (no sentido de policy).26 26 Dworkin, Ronald. Law's Empire. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1986, pp. 221-24. Não necessitamos de uma concepção de justiça social guiada pelo ideal de unanimidade razoável para avaliar os resultados de processos decisórios (de legistativos ou governos) que tratam de questões de policy. Com respeito a estas questões, a justiça nada tem a dizer sobre os resultados das decisões tomadas, exceto que os resultados alcançados tenham sido produzidos por procedimentos decisórios eqüitativos. É uma questão de policy, por exemplo, determinar que setores da economia deverão se beneficiar de renúncias fiscais; e é uma questão de princípio negar às escolas públicas ou privadas, e às associações privadas de forma geral, o direito de selecionar seus membros de acordo com critérios de segregação racial, étnica ou por região de origem.

Por decisões de policy, que devem ser tomadas por procedimentos democráticos eqüitativos, Dworkin tem em mente sobretudo aquelas que objetivam elevar a utilidade geral. Mas podemos estender o argumento e incluir nisso todas as decisões políticas que só podem ser justificadas da ótica de determinadas concepções do bem. O argumento contratualista que desenvolvi até aqui só é pertinente, para repetir algo que já foi dito acima, aos fundamentos constitucionais e às questões de justiça básica.27 27 Ver nota 22 acima. É somente com respeito a esse âmbito circunscrito de questões que somos impelidos a procurar um terreno neutro de justificações mutuamente aceitáveis para as decisões políticas pertinentes. O ideal de unanimidade razoável nos conduz a uma norma de neutralidade de justificação de princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade. Esperamos ser capazes de justificar esses princípios e suas configurações institucionais de uma forma que não pressuponha o valor intrínseco superior de nenhuma concepção específica do bem. Mas não há porque supor que essa norma de neutralidade deva incidir sobre um sem-número de decisões que não colocam em questão a distribuição básica de direitos e deveres da sociedade.

Podemos incluir entre as decisões que caem fora do escopo da justiça e, portanto, da norma de justificação neutra, as que têm por objeto — além daquelas que se justificam pela utilidade geral — medidas tais como as de proteção ao meio ambiente e ao patrimônio histórico ou a subvenção pública às artes. Faz sentido se considerar "justo" ou "injusto" o emprego de recursos obtidos por meio de taxação compulsória para subvencionar, digamos, pesquisas sobre filosofia medieval — um bem que um número reduzido de pessoas reconheceria como tal e do qual um número ainda mais reduzido é capaz de usufruir? Estou sugerindo que a resposta é "não". Neste ponto estou discordando da forma como Rawls tratou da questão (do fomento público às artes e à ciência) em Urna teoria da justiça. Neste texto, Rawls argumentou que a taxação compulsória para subvencionar estas atividades só seria justificada se fosse possível demonstrar que isso era o melhor a ser feito do ponto de vista dos interesses de longo prazo dos mais desafortunados28 28 Rawls, A Theory of Justice, p. 332. . Caso contrário, a questão teria que ser tratada no âmbito da liberdade de associação: "As pessoas se associam para fomentar seus interesses culturais e artísticos da mesma forma como constituem comunidades religiosas. Elas não se valem do aparato coercitivo do Estado para conquistar para si próprias uma liberdade maior, ou quinhões distributivos maiores, sob a alegação de que suas atividades têm um valor intrínseco superior".29 29 Ibid., pp. 328-29. Esse tratamento dado à questão foi pertinentemente criticado por inúmeros scholars.30 30 Ver, por exemplo, Nagel, Equality and Partiality, pp. 133-38; Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia". Lua Nova 36, 1995, pp. 32-3; e Da Silveira, Pablo. "Pode um liberal apoiar a subvenção à arte?" Lua Nova 36, 1995, pp. 159-179.

A consideração de ordem mais geral a ser feita aqui é a seguinte: a norma de neutralidade que deriva do ideal de unanimidade razoável não exclui que um grande número de decisões políticas sejam tomadas com base em razões que só são razões da ótica de concepções específicas e mais "cheias" da boa vida. Uma sociedade pode decidir, por meio de seus procedimentos de deliberação coletiva, que formas de excelência artística, cultural ou científica ela quer e está a seu alcance promover. Vale a pena enfatizar este ponto pela seguinte razão. As decisões políticas de qualquer tipo, e não somente aquelas que contribuem para a configuração institucional básica da sociedade, inevitavelmente impõem restrições à conduta e a autonomia individuais.

Vamos supor que por uma decisão majoritária se decida que o Estado subvencionará determinadas companhias de dança. E digamos também que se eu tivesse de decidir sozinho, e sem sofrer nenhuma interferência política, em que atividade investir meus recursos, eu escolheria contribuir — supondo-se que eu estivesse disposto a contribuir para algum empreendimento que julgo ser valioso — para a criação de escolinhas de futebol (não vejo nenhum valor em companhias de dança). Nesse sentido pode-se dizer que a decisão coletiva, na medida em que me obriga a fazer algo que voluntariamente eu não faria (contribuir para a subvenção a companhias de dança), restringe minha autonomia individual. Mas do ponto de vista do liberalismo político que estou considerando, nada tenho a objetar a isso desde que a decisão política que limita minha autonomia tenha sido tomada por procedimentos decisórios que todos podem aceitar. Em decisões desse tipo, não posso apelar diretamente ao ideal de unanimidade razoável ou à norma de neutralidade estatal — como poderia no caso de uma decisão coletiva que, digamos, restringisse arbitrariamente minha liberdade de consciência. Diversamente de um liberalismo que Amy Gutmann denomina "negativo", o contratualismo rawlsiano (se o interpreto corretamente) não é obcecado pelo valor da não-interferência na autonomia individual e, com respeito à maior parte das questões que normalmente constituem o estofo do processo democrático de tomada de decisões, não vê com desconfiança as deliberações coletivas.31 31 Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia". Lua Nova 36, 1995, pp. 5-37.

V

As duas premissas morais substantivas que estou considerando inseparáveis de um empreendimento contratualista como o de Rawls se conectam da seguinte forma. Não é razoável eu pretender que você aceite, para regular a distribuição básica de direitos e de deveres sob a qual ambos teremos de viver, princípios que conferem uma posição privilegiada ao meu poder superior de barganha ou, alternativamente, à minha visão abrangente do bem (que é distinta da sua). Você poderia razoavelmente rejeitar um acordo nesses termos sob a alegação de estar recebendo um tratamento desigual. Você corretamente argumentaria que eu e você só podemos esperar alcançar um acordo se os termos propostos garantirem um tratamento igual a ambos, isto é, se não exprimirem desigualdades que são arbitrárias de um ponto de vista moral. Para o acordo ser alcançado, há uma condição prévia, portanto, a ser satisfeita: a de que ambos concordemos em deixar de lado as pretensões que têm por base desigualdades arbitrárias. Mas somente pessoas para quem a motivação moral for suficientemente forte aceitarão deixar de lado, ao argumentar com outros sobre questões fundamentais de justiça, os fatores que normalmente considerariam importantes de seu ponto de vista individual. Em suma, a motivação moral é aquilo que faz com que um acordo sobre princípios comuns de justiça possa ser alcançado. É com base na suposição de que essa motivação encontra-se presente em um grau suficiente na conduta humana que podemos afirmar que as partes contratantes aceitarão as restrições que esses princípios impõem às formas pelas quais cada um poderá empenhar-se em realizar seus fins, quer se trate do interesse próprio de indivíduos ou de grupos, quer se trate de uma determinada visão abrangente do bem.

Consideremos uma questão freqüentemente examinada nesse contexto. Suponhamos que temos de justificar um princípio de tolerância religiosa32 32 Trata-se de um princípio de justiça que, na teoria de Rawls, entra como um componente importante do primeiro princípio de justiça. , e as correspondentes instituições e normas que tipicamente lhe dão substância em um Estado liberal-democrático (tais como as garantias legais às liberdades de consciência e de culto, a norma de igual proteção das leis a todos e a separação Estado-Igreja), aos partidários de diferentes doutrinas religiosas. Se minha interpretação de um contratualismo como o de Rawls é correta, o que não deveríamos dizer a cada um deles é o seguinte: "você deveria aceitar um princípio de tolerância religiosa (e todas as suas implicações institucionais) porque isso é consistente com uma interpretação razoável de sua própria visão da verdade religiosa".33 33 Não tenho como examinar melhor a questão no momento, mas essa é a forma como o próprio Rawls concebe a congruência entre a justiça e o bem em seus textos mais recentes. Cedendo demasiadamente à crítica comunitarista dos anos 80, em Political Liberalism Rawls sustenta que a justificação e a estabilidade de sua concepção de "justiça como eqüidade" ficam na dependência da possibilidade dessa concepção (sem o princípio de diferença) se eregir em um overlapping consensus entre as concepções abrangentes do bem "razoáveis" existentes em uma sociedade democrática. De momento, somente enfatizo que esta não é a interpretação do contratualismo rawlsiano que estou defendendo neste texto. Essa congruência entre a justiça e o bem — algo que o contratualismo hobbesiano, à sua maneira, tenta reter, com a ressalva de que o bem, no caso, é concebido em termos do interesse próprio —, entretanto, pode não se verificar. O problema não diz respeito somente às visões abrangentes do bem que, tais como os fundamentalismos religiosos de vários matizes, rejeitam frontalmente a tolerância religiosa. Como afirma Brian Barry, "as concepções inerentemente injustas do bem são importantes mas muito menos freqüentes do que as concepções do bem que, ao se tentar realizá-las além de um determinado ponto, tornam-se contingentemente injustas".34 34 Barry, Brian. "Rawls's Search for Stability". In: Principles of Justice (vol. 3 de A Treatise on Social Justice), no prelo. Há inúmeros exemplos disso na agenda política brasileira de hoje. Um deles, que discutirei logo adiante, diz respeito à resistência à legalização da união entre homossexuais por parte daqueles que consideram essa forma de união incompatível com o ideal de família cristã que julgam ser correto. Um outro exemplo é um projeto de emenda à Constituição (apoiado por católicos de esquerda tais como o deputado federal Hélio Bicudo) que tem o propósito de estabelecer que o direito à vida é garantido "desde o momento da concepção". Se aprovada, a emenda excluiria as únicas possibilidades em que o aborto pode ser hoje legalmente praticado no Brasil: no caso de a gravidez resultar de estupro e no caso de haver risco de vida para a mãe. Semelhante proposta de emenda constitucional baseia-se na crença eminentemente controversa, e portanto passível de rejeição razoável por parte daqueles que dela não compartilham, de que o óvulo fecundado já está investido do status moral que atribuímos a um ser humano.

O que teríamos de dizer é algo do gênero: "considerando-se que não há e nem pode haver uma única doutrina da verdade religiosa que seja consensualmente considerada correta, a aceitação mútua de um princípio de tolerância religiosa (e seus desdobramentos institucionais) é a única forma de assegurar que a estrutura básica da sociedade dispensará um tratamento igual aos adeptos de diferentes visões religiosas (e aos agnósticos). Qualquer coisa diferente disso poderá ser razoavelmente rejeitada por uma parte das pessoas que terá de viver sob essa estrutura institucional". Esse argumento, como afirmei anteriormente, só terá apelo àqueles que julgam que chegar a um acordo sobre princípios de justiça constitui uma razão suficiente para aceitar limites às formas pelas quais cada um empenha-se em realizar sua própria visão do bem.

Menciono um outro exemplo, este tirado da experiência brasileira recente, do qual me ocuparei no restante desta seção. Um argumento do tipo que rejeitei acima foi utilizado pelo presidente da Anistia Internacional do Brasil, Ricardo Bressola, para justificar a legalização da união entre homossexuais, em um depoimento à comissão especial da Câmara Federal que examina um projeto de lei que trata da questão. O projeto concede aos homossexuais o direito de receber a herança do(a) companheiro (a) e lhes dá acesso aos benefícios previdenciários aos quais uma pessoa é elegível na condição de cônjuge. Bressola sustentou, suponho que por razões de eficácia retórica mais do que por qualquer outro motivo, que "a proposta da união entre homossexuais é coerente com a Dele [Jesus Cristo] pois é 'includente', não exclui pessoas ou categorias". E foi imediatamente contestado por um deputado evangélico que, aos gritos, dizia que essa interpretação (de Bressola) não encontrava apoio na Bíblia.35 35 Folha de S. Paulo, 9/10/96.

O que pode ser dito sobre isso da ótica do contratualismo que estou discutindo?36 36 Poucos discordariam de que a sociedade brasileira está entre as mais injustas do planeta. Isso não nos impede, entretanto, de empregar o dispositivo de construção que estamos examinando para avaliar normativamente instituições específicas, existentes ou propostas, dessa sociedade. Ver nota 6 acima. O exame de uma questão substantiva como essa é proveitoso para esclarecer melhor e submeter à prova a perspectiva contratualista que estou defendendo. É esse o sentido do exercício que faço a seguir. Em primeiro lugar, parece-me claro que o problema deve ser localizado entre as questões de justiça básica com respeito às quais o ideal de unanimidade razoável se aplica. Com certeza trata-se de uma questão de princípio — para novamente fazer referência à distinção de Dworkin — e não de uma questão de policy. Os homossexuais podem razoavelmente rejeitar uma distribuição de direitos e deveres que os trata desigualmente por conta da concepção que têm de seu próprio bem sexual e matrimonial. Parece-me claro que a estrutura institucional da sociedade brasileira se tornaria um pouco menos injusta se essa forma de tratamento desigual fosse eliminada.

Note-se que não estou dizendo que ninguém pode razoavelmente rejeitar a legalização da união civil entre homossexuais porque o direito de herança, por exemplo, é tão importante que ninguém deveria ser excluído dele. A idéia de acordo razoável desempenha o seu papel na justificação de princípios primeiros de justiça; por essa razão, ela não pode retirar sua plausibilidade de direitos que terão de ser derivados dos princípios que se mostrarem ser mais justificados precisamente por serem aqueles que são capazes de fornecer os termos de um acordo razoável. Substanciar a idéia de acordo razoável apelando diretamente a determinados direitos tornaria o argumento circular. É até mesmo possível que, da ótica de um hipotético contrato social rawlsiano, a melhor estrutura institucional fosse aquela em que inexistisse o direito de herança. Mas as partes contratantes poderiam acordar de antemão que, qualquer que seja a estrutura institucional específica que se julgue mais adequada à implementação dos princípios escolhidos, ninguém deve ser excluído dos seus benefícios e encargos por razões moralmente arbitrárias. Não vejo circularidade alguma nessa argumentação. Um critério de não-exclusão arbitrária do acesso a quaisquer recursos e direitos que sejam considerados importantes pode ser objeto de um acordo unânime antes que se examinem direitos específicos.

Passemos, pois, para uma outra linha de objeção. Pode-se sustentar que a delimitação entre o que é e o que não é razoável rejeitar, no caso em exame (e em muitos outros similares), está longe de ser nítida. Uma maioria dos cidadãos, prosseguiria a objeção, pode razoavelmente rejeitar a união homossexual, não sob o argumento de que a heterossexualidade é uma forma intrinsecamente superior de prática sexual, e sim sob o argumento de que, se essa forma de união for admitida, criar-se-á um ambiente menos hospitaleiro aos valores familiares que essa maioria julga verdadeiros.37 37 Esta objeção me foi feita por Philippe Van Parijs no Coloquio em que uma versão preliminar deste texto foi apresentada. Pode-se sustentar, nessa linha, que a legalização de uniões homossexuais teria efeitos — sobre a posição da família e sobre o ambiente social em que as crianças são educadas — que não estão circunscritos somente à vida das pessoas envolvidas nesses relacionamentos. Não estou pretendendo que a aplicação do critério de não-rejeição razoável nos leve sempre a uma única solução correta para os conflitos de valor — também por isso, aliás, é importante restringir sua aplicação às questões de justiça básica. Mas acredito que a pertinência do critério para o caso que estamos considerando pode ser defendida com base em várias considerações.

Um primeiro ponto é o seguinte. Nenhuma das partes dessa controvérsia tem o direito de defender sua posição alegando estar simplesmente traduzindo com fidelidade um consenso moral vigente na sociedade — consenso esse que as instituições políticas não deveriam afrontar. São pertinentes, nesse contexto, as críticas que Ronald Dworkin dirigiu à posição de Lord Devlin sobre o Relatório Wolfenden, publicado na Inglaterra em 1957.38 38 Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge-Mass., Harvard University Press, pp. 240-258. O Relatório propôs a descriminalização dos atos homossexuais entre adultos consencientes com base em argumentos fundamentados no harm principle de John Stuart Mill. Uma das objeções de Lord Devlin ao Relatório consistiu precisamente na linha de objeção à legalização da união entre homossexuais que sumarizei no parágrafo anterior. Lord Devlin foi levado a crer que o compromisso com princípios democráticos exigia dos legisladores o respeito pelo consenso moral vigente na sociedade, mesmo naqueles casos em que esse consenso viesse de encontro ao princípio de liberdade de Mill. Conclusão (de Devlin): se uma grande maioria dos cidadãos comuns acha que a homossexualidade é moralmente abominável, então nada há de errado em vê-la como uma prática imoral da ótica da lei e para aquilo que diz respeito à lei. Essa maioria tem o direito, em uma democracia, de preservar o ambiente moral e social que prefere.

Muitos democratas recuariam diante dessa conclusão. O que há de errado com ela? Um dos problemas consiste em exagerar o grau de homogeneidade que é legítimo enxergar no consenso moral passível de traduzir-se em decisões políticas. A forma de levar em conta um consenso de fato pode entrar em choque com outras convicções às quais poucos democratas negariam um lugar central em uma moralidade política liberal-democrática. A existência de uma atitude majoritária, e mesmo amplamente majoritária, favorável à criminalização da homossexualidade ou, no caso que estamos considerando, contrária à extensão de determinados direitos aos homossexuais, pode não ter quaisquer outras justificativas que não o preconceito, a aversão pessoal ou uma crença religiosa ("a homossexualidade é pecado"). "Se isso é assim", diz Dworkin, "os princípios democráticos que seguimos não exige que esse consenso seja legalmente imposto, pois a crença de que os preconceitos, as aversões pessoais e as racionalizações não servem de justificativa para restringir a liberdade de outro ocupa ela própria uma posição decisiva e fundamental em nossa moralidade comum.(...) O que é chocante e errado não é a suposição de Lord Devlin de que a moralidade da comunidade conta, e sim sua idéia sobre o que se deve contar como a moralidade da comunidade".39 39 Ibid.,,p.254.

Em segundo lugar, manter os homossexuais excluídos de direitos que são garantidos aos cônjuges em casamentos heterossexuais implica impor um ônus pessoal aos primeiros que a alternativa contrária — a legalização da união civil entre homossexuais — não impõe aos partidários dos valores familiares dominantes. Estes últimos não terão de se sujeitar a nenhum ônus extra em decorrência de se garantir o direito de herança aos parceiros de uniões homossexuais. Apesar de Dworkin ter posteriormente abandonado a idéia, creio que aqui temos um exemplo nítido do que ele tentou captar com a noção de "preferências externas".40 40 Ibid., pp. 234-38. Estas são as preferências de uma pessoa que têm por objeto, não os recursos e oportunidades que serão propiciados a sua própria vida (que Dworkin denominou "preferências pessoais"), e sim à vida de outros. Dworkin argumentou que a igualdade de respeito e de consideração pelo bem-estar de todos — para ele, o conceito normativo central do liberalismo igualitário — seria corrompida caso se permitisse que as decisões majoritárias sempre contassem da mesma forma os dois tipos de preferências. A distinção é problemática, uma vez que a própria preferência pela justiça social pode ser considerada "externa". Mas a noção de Dworkin mantêm sua pertinência para pelo menos uma categoria de preferências: aquelas que envolvem um sentimento de desprezo ou de aversão por um determinado grupo de pessoas ou por seu modo de vida. As instituições que criamos para viver juntos não serão igualitárias caso permitam que os sentimentos e atitudes dessa natureza de uma maioria tenham livre curso para determinar que direitos, recursos e oportunidades serão garantidos à vida das pessoas que pertencem à minoria (ou minorias) desprezada(s). No que diz respeito à questão substantiva que estamos discutindo, não consigo imaginar a que convicções morais justificadas se poderia recorrer para nos persuadir que aquilo que os partidários da não-legalização da união homossexual estão fazendo é alguma outra coisa que não fazer prevalecer suas preferências externas em relação aos adeptos de um modo de vida que consideram inferior.

Há ainda uma terceira consideração a ser feita, que é também indispensável à compreensão correta do contratualismo rawlsiano como um todo. A neutralidade que deriva do ideal de unanimidade razoável é a neutralidade de justificação e não a neutralidade de resultados. Essa distinção já está implícita na discussão desenvolvida na seção anterior sobre o escopo limitado do ideal de acordo razoável. É hora de explicitá-la. Se a concepção de neutralidade de resultados é adotada, só seriam justificadas, da ótica de uma concepção de justiça imparcial, as políticas de um Estado liberal das quais se pudesse afirmar que não privilegiam nenhuma concepção do bem em particular. Nessa linha, quaisquer limitações à liberdade individual impostas por decisões políticas que se justificam em nome de uma concepção específica da boa vida deveriam ser consideradas ilegítimas (pois aumentariam os custos de oportunidade da realização de valores e ideais distintos). Um Estado liberal só poderia ser neutro nesse sentido se excluísse do alcance das decisões coletivas boa parte das questões controversas — inclusive aquela da qual estou tratando nesta seção — que dão sentido à existência de procedimentos equitativos de tomada de decisões políticas.

Não é essa, entretanto, a forma de neutralidade que decorre do ideal liberal de legitimidade política. A norma de neutralidade liberal é de segunda ordem, isto é, ela não se aplica diretamente à escolha de políticas e aos resultados do processo político e sim somente às justificações que são invocadas para os fundamentos constitucionais. O que se espera é que as divergências com respeito aos fundamentos constitucionais e às questões de justiça básica possam ser resolvidos com base em valores que pessoas razoáveis, independentemente da concepção do bem que cada uma julgue ser verdadeira, reconheceriam como o fundamento de pretensões morais.41 41 De Marneffe, op. cit. As liberdades de consciência e de expressão, por exemplo, são candidatas fortes a valores neutros nesse sentido. Elas não são valores neutros no sentido de que todas as pessoas, de todas as culturas e tradições morais, as reconhecerão como tais. Mas elas são neutras no único sentido que importa ao ideal liberal de legitimidade política: se divergimos sobre qual é a religião verdadeira, e sobre os ideais morais e políticos que julgamos importante exprimir a outros, essas duas formas de liberdade (entre outros valores que também se qualificam como neutros) se constituem na única base possível para um acordo razoável sobre os princípios que devem reger nossa vida em conjunto.

As críticas ao liberalismo político rawlsiano muitas vezes confundem essas duas formas de neutralidade. Afirmar que as instituições e políticas adotadas por um Estado liberal têm efeitos que não são e não podem ser neutros entre as diferentes concepções do bem não constitui uma objeção à justiça igualitária. Não se está dizendo que a liberdade de consciência se qualifica como um valor neutro porque os efeitos de uma política de tolerância religiosa são neutros entre as diferentes concepções da verdade religiosa. Esses efeitos não são neutros. Para os que acham que sua visão religiosa só pode ser adequadamente promovida se os mecanismos de coerção coletiva estiverem sob seu controle, os resultados de uma política de tolerância não são neutros. Mas assim é como deve ser. Tudo o que a norma de neutralidade liberal requer é que seja possível justificar a validade do princípio em questão, no caso de tolerância religiosa, de uma forma que não pressuponha a superioridade intrínseca de nenhuma concepção religiosa específica.42 42 Reencontramos aqui as conclusões a que chegamos na seção anterior: se a neutralidade de justificação é respeitada no que se refere aos fundamentos constitucionais, somente recorrendo à deliberação democrática podemos esperar que as demais questões controversas possam ser solucionadas. E nesse estágio (no estágio legislativo), não há nenhuma razão, da ótica do liberalismo igualitário, para excluir as concepções abrangentes do bem da discussão pública.

E por que essa distinção entre os dois tipos de neutralidade é relevante para a questão substantiva que estávamos examinando acima? É que estou imaginando um argumento em favor da rejeição razoável da legalização da união homossexual com base na norma de neutralidade. Um partidário da não-legalização poderia argumentar na seguinte linha: "se as uniões homossexuais ganham um status legal, o modelo de vida familiar que julgamos ser mais correto encontrará condições institucionais e logo também sociais menos favoráveis para prosperar e prevalecer. A política pública adotada seria enviesada contra nossa concepção da boa vida familiar. Uma vez que isso fere a norma de neutralidade liberal, nossa posição contrária a essa política pode justificadamente apelar ao padrão de rejeição razoável que figura como o componente central do contratualismo que está sendo proposto".

O problema dessa argumentação está em supor, equivocadamente, que do ideal de acordo razoável deveríamos derivar uma norma de neutralidade de resultados. Como já foi dito acima, o fato de que uma decisão política vá de encontro a determinados valores ou ideais morais não representa, por si mesmo, uma violação à neutralidade de justificação. Para saber se a norma de neutralidade liberal é violada por uma decisão política, é preciso deslocar a discussão dos efeitos possíveis dessa decisão para a discussão dos fundamentos constitucionais. E foi nesse plano da justificação dos fundamentos constitucionais que sustentei que a legalização da união homossexual passa pelo teste de não-rejeição razoável. Não argumentei que as decisões políticas devem ser neutras com respeito a valores homo e heterossexuais e que, por isso, se deveria garantir um espaço "eqüitativo" para a concepção homossexual do bem familiar se realizar e encontrar adeptos. O que argumentei é que, do ponto de vista de uma posição original rawlsiana-scanloniana, é arbitrário excluir determinadas pessoas, devido à concepção que tenham de seu próprio bem, de quaisquer direitos distribuídos pela estrutura básica da sociedade.

VI

Os princípios liberal-igualitários de Justiça não têm um alcance universal porque todos, em todas as partes, os vejam como verdades evidentes por si mesmas, algo assim como as leis morais que Deus inscreveu no coração dos homens. A argumentação que desenvolvi acima interpreta a validade universal desses princípios em termos da noção de acordo razoável.

Pensemos um instante no que se passa em país como a Argélia, que há cinco anos vem sendo palco de uma guerra civil de uma indescritível violência. Evidentemente, nesse país é nulo o reconhecimento de princípios liberal-igualitários de justiça. Mas esse fato terrível não nos diz nada sobre a validade universal desses princípios. O que ele nos diz, isso sim, é que as condições desse país são tão desfavoráveis a ponto de nenhum acordo em torno de termos mutuamente aceitáveis de convivência comum ser possível. Vamos supor que, em algum momento, a exaustão das partes envolvidas no conflito e o horror disseminado pelas milhares de vidas inocentes ceifadas façam com que a disposição de chegar a um acordo finalmente prevaleça sobre a disposição de cada uma das partes de fazer valer sua própria concepção do bem a qualquer custo. A motivação moral, tal como a caracterizei acima, começa então a desempenhar o seu papel. E se realmente se dispuserem a chegar a um acordo em termos mutuamente aceitáveis, as partes envolvidas terão de se voltar para princípios liberal-igualitários tais como as liberdades de consciência, de associação, de expressão e o direito de não sofrer punição sem um julgamento justo e sem culpa formada. Esses princípios têm um alcance universal no sentido de que somente eles podem fornecer os termos de um acordo que ninguém pode razoavelmente rejeitar. Isso explica porque esses princípios são, como diz Brian Barry, "idéias contagiosas" e porque sempre há, em todas as sociedades, pessoas que com elas se identificam.43 43 Barry, Justice as Impartiality, p. 6. Não há nada, nessa argumentação, que faça a defesa de princípios liberal-igualitários de justiça, tais como os direitos humanos, depender da interpretação das idéias e valores compartilhados em uma dada sociedade ou em uma dada cultura política.

  • 2 Rawls, J. A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1971, p. viii.
  • 3 Seu expoente mais articulado é David Gauthier, em Morals by Agreement (Oxford, Clarendon Press, 1986).
  • 5 Ver Scanlon, T. "Contractualism and Utilitarianism". In Sen, A. & Williams, B. (orgs.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982.
  • É evidente que nessa formulação muito peso recai sobre a palavra "razoavelmente", ponto do qual tratarei logo a seguir. Essa interpretação "scanloniana" da teoria de Rawls é desenvolvida em detalhe e defendida energicamente por Brian Barry. Ver Barry, B. Theories of Justice (London, Harvester-Wheatsheaf, 1989), pp. 283-84, p. 346;
  • e sobretudo Justice as Impartiality (Oxford, Clarendon Press, 1995).
  • 7 Ao passo que o contratualismo hobbesiano é uma teoria puramente "relativa ao agente", isto é, as razões que ela invoca somente são razões que cada um dos agentes pode reconhecer de seu ponto de vista individual, o contrarualismo rawlsiano (e formulações similares) é basicamente uma teoria "neutra em relação ao agente", isto é, as razões que invoca são razões que todos os agentes podem reconhecer desde que se coloquem de uma perspectiva apropriadamente imparcial. Para a distinção entre "relatividade ao agente" e "neutralidade em relação ao agente", ver Thomas Nagel, The View from Nowhere (Oxford, Oxford University Press, 1986), cap. VIII e IX e Equality and Partiality (Oxford,
  • Oxford University Press, 1991), p. 40 e pp. 45-6 e 85-6;
  • e Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford, Oxford University Press, 1984), p. 27, cap. 4 e p. 143.
  • 10 Harsanyi argumentou que a melhor regra de decisão racional em condições de incerteza não é a adotada por Rawls (a norma "maximin" de decisão, que recomenda que se escolha a alternativa cujo pior resultado possível é superior aos piores resultados possíveis das demais opções) e sim o princípio da maximização da utilidade esperada. Harsanyi, J. "Can the Maximin Principle Serve as a Base for Morality? A Critique of John Rawls's Theory". American Political Science Review 69,1975, pp. 594-606.
  • 15 Rawls, A Theory of Justice, p. 178.
  • 16 Nagel, Equality and Partiality, pp. 78-80.
  • 19 Brian Barry sustenta que o argumento de Rawls sobre a maior estabilidade motivacional dos dois princípios de justiça de sua teoria deve ser entendido como um argumento independente (do argumento da posição original) em favor desses princípios. E esse argumento não tem como não recorrer ao padrão scanloniano de justificação. Barry, Justice as Impartiality, pp. 61 -7.
  • 22 Rawls, J. Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 214.
  • 25 Um argumento semelhante a este é proposto por Peter de Marneffe em "Liberalism, Liberty, and Neutrality" (Philosophy and Public Affairs 19, 1990, pp. 253-74).
  • 26 Dworkin, Ronald. Law's Empire. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1986, pp. 221-24.
  • 28 Rawls, A Theory of Justice, p. 332.
  • 30 Ver, por exemplo, Nagel, Equality and Partiality, pp. 133-38;
  • Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia". Lua Nova 36, 1995, pp. 32-3;
  • e Da Silveira, Pablo. "Pode um liberal apoiar a subvenção à arte?" Lua Nova 36, 1995, pp. 159-179.
  • 31 Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia". Lua Nova 36, 1995, pp. 5-37.
  • 34 Barry, Brian. "Rawls's Search for Stability". In: Principles of Justice (vol. 3 de A Treatise on Social Justice), no prelo.
  • 35Folha de S. Paulo, 9/10/96.
  • 38 Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge-Mass., Harvard University Press, pp. 240-258.
  • 43 Barry, Justice as Impartiality, p. 6.
  • *
    Esta é uma versão ampliada do texto que foi apresentado no Coloquio "Teoría de la Justicia: 25 años después", realizado pelo Centro Latinoamericano de Economía Humana (Claeh) em 21 de outubro de 1996 em Montevidéu. Agradeço aos participantes do Colóquio, em especial a Philippe Van Parijs e a Pablo da Silveira pelas observações que fizeram à versão inicial deste trabalho. Este texto é parte da tese de doutorado que o autor prepara no momento, contando para isso com o apoio de uma bolsa de estudos do CNPq.
  • 1
    Nessa categoria encontram-se os que acreditam que uma determinada doutrina pode fornecer desde princípios para a estrutura institucional até normas para a conduta individual. Esse tipo de visão é o que John Rawls denomina "concepção abrangente do bem".
  • 2
    Rawls, J.
    A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1971, p. viii.
  • 3
    Seu expoente mais articulado é David Gauthier, em
    Morals by Agreement (Oxford, Clarendon Press, 1986).
  • 4
    Como Rawls admite, mesmo uma "sociedade bem ordenada" — isto é, uma sociedade cuja estrutura institucional realiza de forma aproximada os princípios de justiça que são publicamente reconhecidos e cujos cidadãos, em sua maioria, aceitam regular sua conduta por esses princípios — não tem como dispensar o emprego da coerção coletiva: "é racional autorizar as medidas necessárias à preservação de instituições justas, supondo-se que as exigências da liberdade igual e do império da lei sejam adequadamente reconhecidas". Rawls,
    op. cit., p. 576.
  • 5
    Ver Scanlon, T. "Contractualism and Utilitarianism".
    In Sen, A. & Williams, B. (orgs.).
    Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982. É evidente que nessa formulação muito peso recai sobre a palavra "razoavelmente", ponto do qual tratarei logo a seguir. Essa interpretação "scanloniana" da teoria de Rawls é desenvolvida em detalhe e defendida energicamente por Brian Barry. Ver Barry, B.
    Theories of Justice (London, Harvester-Wheatsheaf, 1989), pp. 283-84, p. 346; e sobretudo
    Justice as Impartiality (Oxford, Clarendon Press, 1995).
  • 6
    A teoria de Rawls é, como não poderia deixar de ser, fundada em ideais, mas não tem nenhuma obsessão pela realização plena dos ideais que articula em uma concepção coerente de justiça social. Não é preciso esperar pela realização de uma estrutura institucional plenamente justa (de acordo com os critérios propostos pela teoria) para que qualquer coisa possa ser afirmada, em termos normativos, sobre determinados arranjos institucionais e práticas vigentes em uma dada sociedade. Alguns dos exemplos que serão considerados adiante, como o da institucionalização da liberdade de consciência, servem para ilustrar este ponto.
  • 7
    Ao passo que o contratualismo hobbesiano é uma teoria puramente "relativa ao agente", isto é, as razões que ela invoca somente são razões que cada um dos agentes pode reconhecer de seu ponto de vista individual, o contrarualismo rawlsiano (e formulações similares) é basicamente uma teoria "neutra em relação ao agente", isto é, as razões que invoca são razões que todos os agentes podem reconhecer desde que se coloquem de uma perspectiva apropriadamente imparcial. Para a distinção entre "relatividade ao agente" e "neutralidade em relação ao agente", ver Thomas Nagel,
    The View from Nowhere (Oxford, Oxford University Press, 1986), cap. VIII e IX e
    Equality and Partiality (Oxford, Oxford University Press, 1991), p. 40 e pp. 45-6 e 85-6; e Derek Parfit,
    Reasons and Persons (Oxford, Oxford University Press, 1984), p. 27, cap. 4 e p. 143.
  • 8
    Um princípio de liberdade igual para todos e um princípio estabelecendo que desigualdades os cidadãos de uma sociedade justa poderiam aceitar, em particular o principio "maximin" (ou "princípio de diferença") segundo o qual só são aceitáveis as desigualdades socioeconômicas que maximizarem os benefícios para os membros mais destituídos da sociedade. (O princípio maximin de justiça social não deve ser confundido com a norma maximin de decisão em condições de incerteza, mencionada na nota 10 adiante.)
  • 9
    Rawls,
    op. cit.y p. 12.
  • 10
    Harsanyi argumentou que a melhor regra de decisão racional em condições de incerteza não é a adotada por Rawls (a norma "maximin" de decisão, que recomenda que se escolha a alternativa cujo pior resultado possível é superior aos piores resultados possíveis das demais opções) e sim o princípio da maximização da utilidade esperada. Harsanyi, J. "Can the Maximin Principle Serve as a Base for Morality? A Critique of John Rawls's Theory".
    American Political Science Review 69,1975, pp. 594-606.
  • 11
    Na reflexão normativa, o "ponto arquimediano", como diz David Gauthier, "é aquela posição que é preciso ocupar se o que se quer é que as próprias decisões se invistam da força moral necessária para governar o mundo moral". Gauthier, D.,
    op. cit., p.233. Para o contratualismo de Rawls (mas não para o de Gauthier) esse ponto é especificado pela
    baseline de igualdade.
  • 12
    Há mecanismos sociais de causação de preferências individuais (tais como o nível de escolaridade dos pais ou as oportunidades que cada um encontra para cultivar seus próprios talentos) que estão fora do alcance dos indivíduos. E, no que se refere a visões abrangentes do bem, uma pessoa pertencer, digamos, à comunidade muçulmana da índia, e não à maioria adepta do hinduísmo, certamente não é algo que possa ser interpretado como uma escolha individual.
  • 13
    Rawls,
    op. cit., parag. 17.
  • 14
    Scanlon,
    op. cit., p. 116.
  • 15
    Rawls,
    A Theory of Justice, p. 178.
  • 16
    Nagel,
    Equality and Partiality, pp. 78-80.
  • 17
    Ibid
    .p. 80.
  • 18
    Se formulássemos a questão na linguagem da teoria dos jogos — mal comparando, uma vez que as premissas adotadas são outras — diríamos que a lógica que leva ao acordo deve ser distinguida da lógica que leva os participantes a respeitar os termos do acordo. Depois que um acordo é alcançado, ainda resta o problema da motivação que os participantes têm para honrar seus termos.
  • 19
    Brian Barry sustenta que o argumento de Rawls sobre a maior estabilidade motivacional dos dois princípios de justiça de sua teoria deve ser entendido como um argumento
    independente (do argumento da posição original) em favor desses princípios. E esse argumento não tem como não recorrer ao padrão scanloniano de justificação. Barry,
    Justice as Impartiality, pp. 61 -7.
  • 20
    Rawls,
    op. cit/., pp. 333-37.
  • 21
    Ibid., p. 335.
  • 22
    Rawls, J.
    Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 214. Entre as questões desse tipo, Rawls menciona as seguintes: "quem tem o direito de voto, ou que religiões devem ser toleradas, ou a quem se deve garantir a igualdade eqüitativa de oportunidade ou o direito de possuir propriedade". Ibid.
  • 23
    Ver
    nota 8 8 Um princípio de liberdade igual para todos e um princípio estabelecendo que desigualdades os cidadãos de uma sociedade justa poderiam aceitar, em particular o principio "maximin" (ou "princípio de diferença") segundo o qual só são aceitáveis as desigualdades socioeconômicas que maximizarem os benefícios para os membros mais destituídos da sociedade. (O princípio maximin de justiça social não deve ser confundido com a norma maximin de decisão em condições de incerteza, mencionada na nota 10 adiante.) acima.
  • 24
    Ibid., pp. 227-230.
  • 25
    Um argumento semelhante a este é proposto por Peter de Marneffe em "Liberalism, Liberty, and Neutrality"
    (Philosophy and Public Affairs 19, 1990, pp. 253-74).
  • 26
    Dworkin, Ronald.
    Law's Empire. Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1986, pp. 221-24.
  • 27
    Ver
    nota 22 22 Rawls, J. Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 214. Entre as questões desse tipo, Rawls menciona as seguintes: "quem tem o direito de voto, ou que religiões devem ser toleradas, ou a quem se deve garantir a igualdade eqüitativa de oportunidade ou o direito de possuir propriedade". Ibid. acima.
  • 28
    Rawls, A
    Theory of Justice, p. 332.
  • 29
    Ibid., pp. 328-29.
  • 30
    Ver, por exemplo, Nagel,
    Equality and Partiality, pp. 133-38; Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia".
    Lua Nova 36, 1995, pp. 32-3; e Da Silveira, Pablo. "Pode um liberal apoiar a subvenção à arte?"
    Lua Nova 36, 1995, pp. 159-179.
  • 31
    Gutmann, Amy. "A desarmonia da democracia".
    Lua Nova 36, 1995, pp. 5-37.
  • 32
    Trata-se de um princípio de justiça que, na teoria de Rawls, entra como um componente importante do primeiro princípio de justiça.
  • 33
    Não tenho como examinar melhor a questão no momento, mas essa é a forma como o próprio Rawls concebe a congruência entre a justiça e o bem em seus textos mais recentes. Cedendo demasiadamente à crítica comunitarista dos anos 80, em
    Political Liberalism Rawls sustenta que a justificação e a estabilidade de sua concepção de "justiça como eqüidade" ficam na dependência da possibilidade dessa concepção (sem o princípio de diferença) se eregir em um
    overlapping consensus entre as concepções abrangentes do bem "razoáveis" existentes em uma sociedade democrática. De momento, somente enfatizo que esta
    não é a interpretação do contratualismo rawlsiano que estou defendendo neste texto.
  • 34
    Barry, Brian. "Rawls's Search for Stability".
    In: Principles of Justice (vol. 3 de
    A Treatise on Social Justice), no prelo. Há inúmeros exemplos disso na agenda política brasileira de hoje. Um deles, que discutirei logo adiante, diz respeito à resistência à legalização da união entre homossexuais por parte daqueles que consideram essa forma de união incompatível com o ideal de família cristã que julgam ser correto. Um outro exemplo é um projeto de emenda à Constituição (apoiado por católicos de esquerda tais como o deputado federal Hélio Bicudo) que tem o propósito de estabelecer que o direito à vida é garantido "desde o momento da concepção". Se aprovada, a emenda excluiria as únicas possibilidades em que o aborto pode ser hoje legalmente praticado no Brasil: no caso de a gravidez resultar de estupro e no caso de haver risco de vida para a mãe. Semelhante proposta de emenda constitucional baseia-se na crença eminentemente controversa, e portanto passível de rejeição razoável por parte daqueles que dela não compartilham, de que o óvulo fecundado já está investido do
    status moral que atribuímos a um ser humano.
  • 35
    Folha de S. Paulo, 9/10/96.
  • 36
    Poucos discordariam de que a sociedade brasileira está entre as mais injustas do planeta. Isso não nos impede, entretanto, de empregar o dispositivo de construção que estamos examinando para avaliar normativamente instituições específicas, existentes ou propostas, dessa sociedade. Ver
    nota 6 6 A teoria de Rawls é, como não poderia deixar de ser, fundada em ideais, mas não tem nenhuma obsessão pela realização plena dos ideais que articula em uma concepção coerente de justiça social. Não é preciso esperar pela realização de uma estrutura institucional plenamente justa (de acordo com os critérios propostos pela teoria) para que qualquer coisa possa ser afirmada, em termos normativos, sobre determinados arranjos institucionais e práticas vigentes em uma dada sociedade. Alguns dos exemplos que serão considerados adiante, como o da institucionalização da liberdade de consciência, servem para ilustrar este ponto. acima.
  • 37
    Esta objeção me foi feita por Philippe Van Parijs no Coloquio em que uma versão preliminar deste texto foi apresentada.
  • 38
    Dworkin, Ronald.
    Taking Rights Seriously. Cambridge-Mass., Harvard University Press, pp. 240-258.
  • 39
    Ibid.,,p.254.
  • 40
    Ibid., pp. 234-38.
  • 41
    De Marneffe, op. cit.
  • 42
    Reencontramos aqui as conclusões a que chegamos na seção anterior: se a neutralidade de justificação é respeitada no que se refere aos fundamentos constitucionais, somente recorrendo à deliberação democrática podemos esperar que as demais questões controversas possam ser solucionadas. E nesse estágio (no estágio legislativo), não há nenhuma razão, da ótica do liberalismo igualitário, para excluir as concepções abrangentes do bem da discussão pública.
  • 43
    Barry,
    Justice as Impartiality, p. 6.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      1997
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