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De Goethe a Habermas: auto formação e esfera pública

Between Goethe and Habermas: bildung and the public sphere

Resumos

No contraste entre a tradição alemã de ênfase na Bildung no sentido de auto-formação individual e as concepções contemporâneas de Habermas, que retira do indivíduo a condição de fonte do sentido, o autor encontra o ângulo para submeter a obra deste a uma análise crítica. No trajeto, examina a relevância de clássicos como Freud e Weber para esse debate.


In the contrast between the German tradition of emphasis on Bildung understood as individual self-formation and the contemporary conceptions of Habermas, for whom the individual is no longer the source of meaning, the author finds the standpoint for submiting Habermas' work to a critical analysis. Along the analysis the relevance of classics like Freud and Weber to this debate is examined.


SUJEITO E OBJETO

De Goethe a Habermas: auto formação e esfera pública* * Este artigo tem como base texto apresentado no Grupo de Teoria Política do Instituto de Estudos Avançados/IEA da USP.

Between Goethe and Habermas: bildung and the public sphere

Jessé José Freire De Souza

Professor no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília - UnB

RESUMO

No contraste entre a tradição alemã de ênfase na Bildung no sentido de auto-formação individual e as concepções contemporâneas de Habermas, que retira do indivíduo a condição de fonte do sentido, o autor encontra o ângulo para submeter a obra deste a uma análise crítica. No trajeto, examina a relevância de clássicos como Freud e Weber para esse debate.

ABSTRACT

In the contrast between the German tradition of emphasis on Bildung understood as individual self-formation and the contemporary conceptions of Habermas, for whom the individual is no longer the source of meaning, the author finds the standpoint for submiting Habermas' work to a critical analysis. Along the analysis the relevance of classics like Freud and Weber to this debate is examined.

Para autores tão díspares como Louis Dumont, Norbert Elias ou W. H. Bruford, a especificidade cultural alemã pode ser resumida na noção de Bildung (Bruford, 1975, p. 261). A Bildung, que significa auto-formação e aperfeiçoamento individual, representaria mesmo a forma peculiarmente alemã de assimilação da herança individualista ocidental. Sua peculiaridade seria a concentração do legado individualista, entendendo este último basicamente como a possibilidade de crítica reflexiva, no que chamaríamos em sociologuês moderno de esfera da personalidade.

O tema da Bildung é percebido de maneira quase unânime pelos estudiosos como a tradução laica da enorme influência da reforma luterana protestante na Alemanha. Na noção de privatização da fé Lutero teria privilegiado a vida subjetiva e interior, em contraposição à vida social e política. Afinal, a privatização da fé envolve a relação direta com a divindade, não mediada pela relação com os outros homens, prescindindo mesmo da instituição que cuidava desta mediação: a Igreja. A influência da figura pessoal de Lutero e da reforma social e religiosa do Luteranismo não pode ser desprezada. Lutero é visto por muitos (Bruford, 1975, p. 261) como o alemão na sua expressão superlativa. Nele reúnem-se a introspecção com a musicalidade mística, a cólera com a ternura lírica. Sob o ponto de vista social, a devoção apolítica aos poderosos como pré-condição para a introspecção e a rejeição germânica do mundo prefigura talvez o traço mais marcante da cultura alemã a partir de então: a combinação de vigorosa especulação intelectual com imaturidade política.

A partir desta raiz religiosa podemos ver a herança pietista desaguar nos movimentos literários e filosóficos tipicamente alemães da segunda metade do século XVIII, como o romantismo e o idealismo. Além de Lutero, a demiúrgica figura de Goethe, o qual, juntamente com o próprio Lutero, é talvez a figura mais influente da cultura alemã, contribui para que tenhamos um quadro completo da idéia. Se em Lutero temos a ênfase na introspecção religiosa combinada à indiferença política, em Goethe encontramos, ao mesmo tempo, um aprofundamento da temática da auto-formação e um deslocamento desta do campo religioso para a esfera profana. Com ele, a Bildung é elevada e construída como princípio pedagógico. O auto-aperfeiçoamento individual é visto como produto do cultivo da sensibilidade artística, da liberdade pessoal, dos bens da vida e da civilização. A ênfase no auto-cultivo, apesar de definida segundo bens seculares, irá guardar a mesma sacralidade que o pietismo lhe havia emprestado. Talvez isto explique a afinidade etimológica de Kultur, (ou seja, tanto a cultura pessoal da Bildung quanto o conjunto objetivo de realizações culturais do espírito) e Kultus (com sua conotação religiosa) demonstrando a reverência quase mística do alemão à cultura (Brudorf, p. 261). Podemos interpretar a Bildung como o caminho especificamente alemão de assimilar culturalmente a herança individualista ocidental.

AUTO-CULTIVO E AUTO-SUBORDINAÇÃO

Fundamental para nossa linha de raciocínio é a articulação entre esta ênfase inigualável na liberdade de auto-cultivo pessoal com auto-subordinação na esfera política. Para Ernst Troeltsch, o ideal de liberdade política ocidental anglo-francês vai combinar-se com a tradição germânica da Bildung, produzindo o amálgama cultural especificamente alemão. Neste amálgama, a liberdade é percebida preferencialmente no seu aspecto interno. O cultivo da mente é o que faz o homem livre, sendo a fonte da real liberdade. As convicções são tudo, importando pouco as instituições. É evidente o caráter aristocrático da concepção de mundo por trás desta crença. A Bildung é característica do aristocrata, que possui tempo e meios para dedicar-se ao auto-cultivo. A virtude do povo, ao contrário, é a obediência sem a perda de dignidade. Orgulho, honra e alegria na obediência passam a ser, juntamente com a noção de Bildung uma idiossincrasia germânica. Para Louis Dumont (Dumont, 1994, p. 50), a peculiaridade da Alemanha por oposição aos seus vizinhos europeus consiste exatamente em que o nível da emancipação individual subordina todos os outros. Na França, ao contrário, seria o nível sócio-político que adquire a proeminência Também na mesma linha de raciocínio, poderíamos compreender a fórmula de Thomas Mann de que a Reforma teria imunizado os alemães contra a revolução (Dumont, 1994, p. 54).

O desastre alemão em duas guerras serviu para mitigar ou recalcar enormemente a concepção de mundo fundada na Bildung. Já Ernst Troeltsch e especialmente Thomas Mann tornavam-se, depois do final da primeira grande guerra, cada vez mais conscientes da necessidade de criticar a unilateralidade da concepção clássica da Bildung. Bruford mostra com rara habilidade, na sua análise da trajetória intelectual de Thomas Mann, a transformação do protótipo do intelectual da Bildung, representado pelo autor das "considerações de um apolítico", no defensor ardoroso da politização do espírito. A experiência nazista o estimula à crítica à oposição entre espírito e matéria e entre o aristocrata e o homem do povo. A recusa da política é vista agora como uma atitude de graves conseqüências. Se as massas não forem elevadas pela educação elas serão manipuladas pelos seus instintos através da propaganda (Bruford, 1975, p. 256). Nesta última fase, Mann exorta incansavelmente a consideração simultânea dos dois lados da liberdade: a pessoal e a política.

Dumont critica, a meu ver de forma certeira, a solução de Thomas Mann devido à vagueza e indeterminação da combinação que o literato propõe. Ela termina necessariamente (crítica esta também válida para Troeltsch) na mera menção de uma antítese ou contradição entre a liberdade pessoal e a política. Para Dumont, nenhum conceito de liberdade, seja ele o ocidental em geral ou o alemão em particular, está intenso a excessos, à decadência ou livre das contradições internas que o habitam (Dumont, 1994, pp. 53-65). A simples menção da contradição não a soluciona.

Ao contrário de Thomas Mann, Weber tinha aguda consciência da impossibilidade de conciliação harmônica entre os contrários. Weber estava perfeitamente consciente de que vivia na época do "individualismo ético". O mundo objetivo não tem nenhum significado em si, e a tarefa de conferir significado a esse mundo é uma tarefa individual e solitária. Cada qual está só com o seu Deus ou demônio que rege suas escolhas significativas (Weber, 1988, p. 562). Mais ainda, de forma paralela e reciprocamente independente a essa modificação no "espírito da época", temos uma transformação não menos importante nas condições objetivas do mundo moderno. Uma limitação extremamente importante para a análise da personalidade moderna é a necessidade inevitável da especialização, como conseqüência da progressiva divisão social do trabalho.

A obra tardia de Goethe parece ser o elo de ligação entre o conceito religioso-protestante de personalidade e a concepção moderna e secularizada do mesmo. Nos seus romances sobre os anos de aprendizado e os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, se no Wilhelm Meisters Lehrjahre tínhamos uma linha de continuidade com o conceito clássico da Bildung, no Wilhelm Meisters Wanderjahre ocupou-se Goethe com o tema da educação e desenvolvimento da personalidade a partir da sua relação com as condições objetivas do novo mundo capitalista que via nascer, especialmente com o dado novo da crescente divisão do trabalho. Aqui ação e renúncia condicionam-se reciprocamente, na medida em que o trabalho no mundo moderno exige, necessariamente, uma limitação a uma pequena esfera da atividade produtiva em cada área de atividade. Esta limitação pressupõe à constituição ativa do mundo baseada no trabalho eficaz.

O exposto acima mostra os traços heróicos, tanto da concepção goetheana quanto da weberiana de personalidade. Na modernidade o que importa é a superação das paixões que nos obscurecem e desviam. Renúncia adquire aqui, portanto, o sentido de uma subordinação do sujeito em relação às condições não escolhidas do mundo impessoal. Os valores-guias da condução da vida no mundo moderno devem proporcionar a união entre uma escolha pessoal combinada com a clareza das prioridades exigidas pelo mundo externo, proporcionando uma concepção do trabalho como uma "dedicação à uma causa supra-pessoal". A influência da concepção goetheana de personalidade em Max Weber pode ser, de resto, observada no uso constante de máximas goetheanas, quando se refere a esta questão particular, como "dedicação a urna causa supra-pessoal", reconhecimento das "necessidades do dia" ou "do necessário" e assim por diante. Weber admite a vinculação entre ação e renúncia como pressuposto necessário de qualquer ação de valor enquanto tal e liga a "lição goetheana" com uma noção secularizada de vocação 1 1 Veja Gouldman, Harvey. 1988, p. 165. Gouldman procura demonstrar neste livro, a meu ver com sucesso, a permanência da idéia de vocação ao longo dos textos de Max Weber. .

A limitação do trabalho especializado, com a renúncia à faustiana universalidade do homem por ela subentendida, é uma condição para qualquer trabalho válido no mundo contemporâneo; daí a "ação" e a "renúncia" hoje inevitavelmente se condicionarem uma à outra. Esse traço fundamentalmente ascético do estilo de vida burguês (se ele pretende ser positivamente um estilo e não a falta dele) procurou-nos ensinar Goethe, no auge da sua sabedoria de vida, tanto nos Wanderjahren quanto no término da vida que ele deu ao seu Fausto. Para ele essa consciência significava a despedida cheia de renúncia de uma era de plenitude e beleza da humanidade, a qual, no decorrer do nosso desenvolvimento cultural, tem tão poucas chances de se repetir como a época de florescimento da cultura ateniense da antiguidade. O puritano quis ser um homem de vocação, nós temos de sê-lo.

Essa noção secularizada de vocação é trabalhada por Weber nos seus dois famosos ensaios de 1919 sobre as atividades do político e do cientista. Temos aqui a união da idéia de vocação, no seu sentido secular, com a noção de ética da responsabilidade.

A ética da responsabilidade é visceralmente tensional e conflitiva. A radical atualidade da fragmentária teoria ética weberiana parece residir precisamente na ênfase da dimensão relativizadora, tensional, de um compromisso precário que a ação ética, e política por extensão, tende a assumir no mundo moderno. Por um lado, temos o compromisso entre ética e mundo, entre dever e sucesso, entre moralidade e pragmatismo, de modo a superar o "paradoxo das conseqüências", ou seja, as conseqüências não intencionais da ação prático-moral, de que foi vítima toda ética absoluta de princípios na história. Por outro lado, temos o compromisso entre a afirmação radical da individualidade, da diferença, da heterogeneidade de perspectivas com o princípio dialógico, com uma abertura mínima para a função esclarecedora da discussão racional. Os textos políticos do Weber maduro, penso nos textos do primeiro pós-guerra, já apontam claramente nesta direção.

Não obstante, Weber era sem dúvida filho da sua cultura e do seu tempo. Ele era filho da sua cultura na medida em que a ética da responsabilidade é uma resposta aos dilemas éticos da modernidade ainda nos limites da Bildung clássica. A ênfase na esfera da personalidade como lugar privilegiado do dilema moral aponta claramente para esta herança. Apesar da sua ênfase na ação externa transformadora do mundo, tributária da noção de vocação da ética protestante ascética, o dilema moral moderno consubstanciado na congeminação entre pragmatismo e ética é refletido enquanto dilema da personalidade. O processo de subjetivação da moral, a tese da perda de sentido e da liberdade, fenômenos típicos do Ocidente moderno, são interpretados dentro de um horizonte conforme a tradição da Bildung. Desse modo, o indivíduo passa a ser a instância que deve "suportar os paradoxos", inclusive na política. A consciência dos conflitos morais pode ser interpretada, creio eu, como a virtude moderna e laica por excelência para Weber. A tese da existência de virtuosos modernos, como uma versão laica dos virtuosos religiosos do passado, confere a várias análises weberianas, especialmente na política, aquele caráter ambíguo, a meio caminho entre o realismo e o aristocratismo. Qualquer semelhança com a Bildung não é mera coincidência.

CONTRA A TRADIÇÃO DA BILDUNG

Weber era também um filho da época. Deste modo, a terrível consciência dos melhores alemães contemporâneos de que o nazismo não foi simplesmente o fruto da banda podre da tradição alemã, mas de que esta é uma só e pode gerar tanto o sublime quanto o demoníaco, ainda não podia estar tão claro a Weber. Habermas tinha 16 anos quando a segunda guerra chegou ao fim. As impressões deste período trágico formaram o ambiente mesmo de sua formação como pessoa e como estudioso. Creio ser difícil pensar em um pensador mais anti-Bildung do que Habermas. Ocorre em Habermas praticamente uma inversão dos pressupostos que guiam a reflexão weberiana. Assim, a perspectiva do indivíduo esvanece-se ao limite do esquecimento. Tanto a adoção da perspectiva sistêmica quanto a chamada mudança de paradigma lingüístico apontam para o mesmo fenômeno: o indivíduo não é mais a fonte, a instância produtora de sentido.

Creio ser esta perspectiva a principal responsável tanto pela extraordinária contribuição hebermasiana para as ciências sociais quanto a causa de seus defeitos, que são graves e não são poucos. Concentrando-me na esfera política, creio que a contribuição habermasiana pode ser resumida na construção de um critério de democratização partindo da elaboração de um conceito de solidariedade tradicional. Não consigo pensar em nenhum pensador moderno que tenha se aproximado dele em rigor, profundidade e talento criativo neste particular.

Embora Habermas seja fundamentalmente um pensador da política, ou seja, a ênfase da sua reflexão é posta na questão da justiça, na crítica da dominação injusta e na análise dos pressupostos do espaço público, ele não é um cientista da política na acepção comum do termo. Sua análise não se restringe à esfera da política. Ao contrário, sua atenção se dirige à dinâmica societária como um todo, sendo a política um campo particular dentro de uma reflexão abrangente da sociedade.

Assim, a construção de um critério normativo para a prática democrática contemporânea não é pensado a partir da dinâmica intra-institucional da política moderna. Este critério é ganho a partir de uma análise abrangente da sociedade moderna na sua gênese e desenvolvimento. O que o caracteriza como marcadamente anti-Bildung é sua ênfase na esfera pública por oposição à esfera privada, e a conseqüente centralidade da categoria da solidariedade social na sua reflexão.

Enquanto o movimento do pensamento weberiano vai concentrar os dilemas da modernidade na dimensão da personalidade, Habermas persegue a trilha contrária. Sua preocupação é a construção de um conceito de solidariedade social pós-tradicional. Esta seria a falha de todo o pensamento social tradicional. Não obstante, ele concentra suas energias críticas no que ele chama de "marxismo ocidental" ou teria crítica da sociedade. É isto que faz com que a reconstrução do seu diálogo com Max Weber seja tão fundamental para a compreensão tanto dos aspectos positivos quanto negativos da sua obra. Vale a pena reconstruir este debate. Max Weber ocuparia para Habermas uma posição estratégica dentro da tradição do que ele entende como teoria crítica da sociedade. Weber é visto como influência máxima, para o bem e para o mal, da assim chamada "escola de Frankfurt", com a qual Habermas tem uma relação ambígua de proximidade e distância. Weber é tão fundamental por ter sido o autor chave na mudança, dentro do contexto da teoria crítica, de uma crítica da economia política em favor de uma crítica da razão instrumental. O papel de Georg Lukács é fundamental nesta passagem. Foi Lukács que aproveitou de forma conseqüente algumas afinidades entre Marx e Max Weber que se tornam evidentes a partir tanto de apropriações tópicas, como nas análises weberianas da racionalização formal das relações de dominação tendo como ponto de partida a noção de desapropriação dos meios de administração, seguindo as investigações marxianas na esfera da economia, como também por afinidades mais profundas e de grande alcance, entre racionalização formal em Max Weber e fetichismo da mercadoria em Marx.

Os dois últimos fenômenos acarretam para ambos os autores uma determinação heterônoma do comportamento do homem moderno, cuja lógica não é transparente de forma imediata para os envolvidos. O princípio da calculabilidade, que é definido por Lukács como o princípio por excelência da sociedade reificada, significa tanto para Marx como para Weber a expressão de uma racionalidade onipresente e independente dos atores envolvidos, a qual é percebida por estes como algo externo e coercivo. Esta realidade objetiva seria percebida como urna "segunda natureza", contra a qual os indivíduos enquanto tais são impotentes. As teses weberianas da racionalização e da burocratização proporcionam a Lukács, sob a manutenção das categorias fundamentais da crítica da economia política, o meio que irá permitir o desmascaramento do fetichismo da mercadoria como o fenômeno mais geral da sociedade capitalista. A crítica da razão instrumental vai ser continuada pela escola de Frankfurt, especialmente nas obras de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, a partir da recepção lukacsiana das teses de Weber.

Habermas vê-se a si próprio como um continuador do programa da escola de Frankfurt sem, no entanto, partilhar dos pressupostos que serviram de base para a construção teórica dessa escola. Para ele, a assim chamada teoria crítica da sociedade, incluindo-se nessa rubrica tanto Marx quanto Lukács, fracassou na tentativa de explicitar os seus próprios fundamentos normativos. Desde a crítica da economia política até a crítica da razão instrumental a teoria crítica perdeu a oportunidade de elaborar um conceito da possibilidade da emancipação que estivesse livre tanto das premissas da filosofia da história quanto das da escatologia.

Habermas percebe que elaborar um conceito da possibilidade de emancipação adequado ao mundo contemporâneo exige uma nova visão do processo de desenvolvimento ocidental. Fundamental nesse desiderato passa a se perceber esse desenvolvimento na sua ambigüidade constitutiva, rejeitando a absolutização da razão instrumental, seja na sua avaliação positiva em Marx na sua apologia da técnica como libertadora, seja na sua avaliação negativa em Weber e nos frankfurtianos.

Paralelamente à entronização da razão instrumental no mundo moderno, jamais negada por Habermas, esse autor procura captar uma nova forma de solidariedade não-tradicional. Esse ponto é essencial, posto que o que passa a ser de impossível fundamentação para os autores da razão instrumental totalitária é precisamente qualquer forma de solidariedade. O mundo moderno é visto, nessa perspectiva, unicamente como o mundo da perda do sentido e da liberdade. Em outras palavras, a qualidade específica da vida prático-moral, a qual pressupõe escolha entre caminhos de vida alternativos ( é essa enfim a ligação entre liberdade e reflexão na tradição iluminista), é vista como inexistente no mundo moderno. Razão instrumental significa (o tema por excelência da escola de Frankfurt) a transformação quase imperceptível, seja na esfera pública ou na esfera privada, de escolhas prático-morais em escolhas técnicas. Razão instrumental significa também, fundamentalmente, que os fins da ação humana em geral já estão desde sempre escolhidos no mundo moderno. Dinheiro e poder são meios que se transformam em fins absolutos. No mercado capitalista ninguém escolhe fins. Esse é o domínio da acumulação infinita, mesmo que não se tenha claro que objetivo. A única escolha possível é aquela dos meios para que melhor se atinja um fim já dado.

A questão para Habermas passa a ser perceber uma lógica de desenvolvimento ocidental que não se reduza ao aspecto técnico-instrumental, por um lado, nem às formas tradicionais de moralidade particularistas de fundo metafísico ou religioso por outro.

A teoria da ação comunicativa representa, exatamente, a tentativa de captar a possibilidade da solidariedade na sociedade moderna a partir de uma análise imanente. A estrutura da ação comunicativa pretende captar a presença do interesse geral no interesse particular, na medida em que vincula a teleología típica à toda a ação com a necessidade de consenso. Habermas procura atingir esse objetivo, e isto me parece ser sua contribuição para a renovação de uma teoria crítica da sociedade que se coadune com o sentido de solidariedade na metafísica tradicional sem, no entanto, apelar para estratégias metafísicas de fundamentação. Aceitos os princípios da tentativa de fundamentação baseada na pragmática universal, a teoria da ação comunicativa espelharia precisamente um objetivo de unir teleologia e entendimento, ou seja interesse particular e geral.

HABERMAS E A ESFERA PÚBLICA

Um exame retrospectivo da obra habermasiana mostra que a tentativa de construir um conceito de solidariedade pós-tradicional remonta ao início da sua carreira acadêmica. Na sua tese de livre-docência de 1962, sobre a mudança estrutural da esfera pública, todos os grandes temas que o preocupariam ao longo das três décadas seguintes já estão delineados (Habermas, 1975).

De forma muito interessante, a tese da "mudança estrutural" expõe de forma clara e cristalina toda a ambigüidade da relação de Habermas com a herança teórica do marxismo ocidental em geral e com a escola de Frankfurt em particular. A tese do livro ainda está em perfeita consonância com o estilo clássico da velha escola de Frankfurt, especialmente na sua versão horheimiana e adorniana, ao refletir sobre o desenvolvimento da esfera pública moderna enquanto uma história da decadência. O livro é quase uma versão sociológica das teses filosóficas do "A Dialética do Iluminismo". O tom trágico e desencantado, que tanto lembra seu mestre Adorno, perpassa o livro. Por outro lado, no entanto, percebe-se em germe aquilo que será uma das suas maiores discordâncias com os velhos frankfurtianos: a crença de que o desenvolvimento ocidental moderno possibilita formar potenciais de convivência social com validade universal. Já temos aqui, em semente, o grande desafio intelectual habermasiano, que é o de captar a especificidade do capitalismo, ou, em palavras de hoje, da modernidade ocidental na sua ambigüidade constitutiva.

O fio condutor do livro sobre a "mudança estrutural" é a revolução moral e política resultante do processo de formação e autonomização da subjetividade burguesa no século XVIII. O sujeito burguês é aquele que aprende a lidar reflexivamente como suas experiências, de início com as experiências ligadas ao mundo privado da intimidade e da familia. É a troca de experiências e de informações acerca dessa nova privacidade - possibilitada por novos meios artísticos que serviram como canal de expressão dos anseios e necessidades a ela relacionados; como o drama burguês e o romance psicológico - que constitui uma esfera pública literária, destinada a tematizar, sob novas bases, as experiências de auto-compreensão dos sujeitos e os dramas da vida interior.

O que mais importa a Habermas, no entanto, é que essa nova subjetividade libertada das amarras da tradição possibilita não só a criação de uma esfera pública literária que tematiza a construção consciente da vida interior mas permite, também e principalmente, a constituição de uma esfera pública política que tematiza os fundamentos da vida pública e social segundo um novo patamar de racionalidade. Agora não apenas a violência ou o recurso à tradição são decisivos para a legimitação da ação política.

As pessoas privadas reunidas num público apresentam-se como uma esfera regulada pela autoridade, mas dirigida fundamentalmente contra ela. O princípio de controle que o público burguês contrapõe à dominação tradicional pretende modificar a dominação enquanto tal. O público literariamente cultivado estimula uma igualdade das pessoas cultas, com opinião, igualdade essa indispensável para a legitimação do processo básico da esfera pública: a discussão baseada em argumentos. Pelo lado do público, isso significa o reconhecimento de uma força interna à comunicação, exigindo a desconsideração parcial de fatores sociais externos como privilégios, situação econômica etc. Pelo lado do Estado, esse fato leva à necessidade de justificação da ação política, segundo os mesmos princípios.

Habermas vê a esfera burguesa destruir-se a partir do século XIX até nossos dias sob a pressão de basicamente três fatores: o aumento da intervenção estatal no universo familiar, comprometendo sua autonomia; a transformação da imprensa em grande indústria; e a formação da indústria cultural, conceito esse, nessa fase, ao contrário do que irá acontecer mais tarde, ele aceita acriticamente tal como formulado por Adorno. Esses fenômenos, os quais antecipam o diagnóstico das patologias da modernidade feito na "teoria da ação comunicativa", quase vinte mais tarde, sinalizam a colonização deletéria dos princípios organizativos do Estado e da economia sobre o mundo da cultura e da sociedade não-institucionalizada. A saída proposta por Habermas ainda é, a essa altura, compatível com o marxismo tradicional: a democratização dos aparelhos institucionais.

O CONCEITO DUAL DE SOCIEDADE

Essa idéia fundamental habermasiana sobre a existência de uma ambigüidade constitutiva do processo de modernização ocidental é no entanto meramente intuída na mudança estrutural. O conceito de esfera pública é meramente descritivo. Ele aponta um lugar, o espaço de uma prática que não foi ainda definida enquanto tal. Não existe ainda um conceito do que foi destruído na mudança estrutural do século XVIII ao XIX no âmbito público. Essa vai ser a questão central do pensamento habermaniano a partir daí: como perceber o aspecto positivo, evolutivo, o significado universal do desenvolvimento ocidental. Em 1968, no seu exame da técnica e da ciência como ideologia (Habermas, 1969), temos uma primeira tentativa de captar o que a história dos movimentos sociais do Ocidente propiciou em termos de aprendizado moral, algo que, desde então, deve ser identificado e preservado como guia da ação política.

Nesse texto, Habermas propõe, pela primeira vez, um conceito dual de sociedade, de modo a explicar o conceito de técnica e ciência no contexto do capitalismo tardio simultaneamente como força produtiva e como legitimação ideológica. Este texto procura construir o conceito de "consciência tecnocrática", ou seja, a consciência que não percebe a diferença entre normas internalizadas e apelos externos empíricos, ou, em outras palavras, não registra a distinção entre questões prático-morais e questões técnicas. Essa dualidade é percebida por Habermas mediante os conceitos de trabalho e interação, referindo-se o primeiro tanto à ação - instrumental quanto à escolha racional, enquanto o segundo diz respeito a normas aceitas intersubjetivamente e mediadas simbolicamente.

Temos aqui, neste texto de 1968, como novidade marcante em relação ao texto sobre a mudança estrutural da esfera pública de 1962, a tentativa de nomear o destruído na unilateral modernização ocidental. Este resultado é conseguido, precisamente, pela separação entre duas dinâmicas: a do mundo normativo, possuidor de uma racionalidade própria irredutível à lógica instrumental, e a do mundo racionalizado segundo padrões formais, para usar a terminologia weberiana.

Esse sucesso é ainda parcial, e poderíamos alinhar pelo menos duas boas razões para críticas: o conceito de interação é meramente descritivo e, por outro lado, Habermas parte de uma distinção no nível da teoria da ação diretamente para o nível societário, criando a ilusão de setores estanques, onde apenas um tipo de ação social seria possível nos respectivos subsistemas.

Para uma melhor fundamentação da tese formulada em "técnica e ciência" Habermas empreende no decorrer da década de 70 três passos fundamentais para a constituição da sua teoria da sociedade como apresentada na sua obra máxima, a "teoria da ação comunicativa", de 1981. O primeiro passo é a substituição da explicação hermenêutica da experiência comunicativa, pela análise (quase) transcendental das condições de possibilidade do entendimento por meio de uma teoria dos significados peculiar que Habermas irá chamar de "pragmática universal". A pragmática universal é o estudo dos pressupostos implícitos em qualquer situação de fala ou diálogo. Um estudo da língua enquanto processo, portanto, contrariamente à lingüística, que estuda a língua enquanto estrutura. A reconstrução racional das condições universais da comunicação humana é a pedra de toque da teoria da ação comunicativa, como um todo de todas as suas derivações. O resultado das investigações de Habermas sobre esse tema foi depois reunido em livro (Habermas, 1986).

Complementar ao papel fundamental da pragmática universal temos uma teoria da evolução social, a qual confere o caráter "diacrônico" à teoria da ação comunicativa, em contraposição ao caráter "sincrônico" da pragmática universal. Nesse contexto, ganha relevo a apropriação piagetiana para a Sociologia e a distinção entre lógica de desenvolvimento e dinâmica de desenvolvimento, O aspecto diacrônico da ação comunicativa tem a ver com a progressiva racionalização dos três aspectos (ou reivindicações valorativas) implícitas na ação comunicativa, a saber: verdade (mundo objetivo); justiça (mundo social), e sinceridade (mundo subjetivo). O conjunto de artigos editado sob o título de Reconstrução do materialismo histórico (Habermas, 1982) é uma primeira aproximação do autor dessas questões.

O terceiro e último passo é a apropriação da teoria sistêmica, destinada a resgatar, ainda que parcialmente, o aspecto da eficiência institucional capitalista, especialmente o mecanismo de mercado e o aparelho estatal, os quais devem ser preservados para o Habermas maduro. Esse ponto, extremamente discutido mesmo pelos seguidores de Habermas, é o responsável pela mudança de atitude quanto à estratégia adequada nas sociedades do capitalismo tardio, relativamente à ação política reformadora.. A atitude agressiva do início da obra é substituída por uma postura defensiva em relação ao Estado e ao mercado.

Esses três passos devem fundamentar melhor a mesma tese já defendida em "técnica e ciência enquanto ideologia". Ou seja, trata-se de uma mudança de estratégias e não de teses. A tese que se mantém é a crítica ao crescimento unilateral da razão instrumental (razão funcionalista para o Habermas da "teoria da ação comunicativa") às custas do momento prático-normativo. A tese da existência de uma racionalidade comunicativa é a base do projeto habermasiano e aponta para uma competência potencial passível de tornar-se efetiva nas sociedades modernas. O grau em que essa racionalidade pode se tornar real é uma questão empírica e reflete o jogo das forças políticas em ação, sendo, portanto, um jogo em aberto. Ao contrário dos frankfurtianos, que não conseguiram reconstruir um conceito enfático de razão no mundo desencantado, Habermas fundamenta a razão comunicativa como específica ao mundo moderno e desencantado. A racionalidade comunicativa é vista, nesse sentido, como apenas possível num contexto pós-tradicional, meramente procedimental, refletindo uma forma de lidar com reivindicações valorativas, sendo antes uma atitude do que um conteúdo.

O que fica como ganho em relação à teoria crítica anterior é precisamente a possibilidade de apreender o mundo moderno para além da razão instrumental percebida como totalitária. É exatamente esse pressuposto da teoria crítica anterior, tanto em Weber quanto nos frankfurtianos, que impede pensar em formas pós-tradicionais de solidariedade social. Dado o ponto de partida da teoria social anterior como um todo, é a fundamentação racional da solidariedade que passa a ser impossível. É apenas a partir da possibilidade de se pensar a solidariedade social a partir de um interesse comum racionalmente obtido - a presença do interesse geral no particular, como diria Horkheimer - é que permite nomear as perdas e o que é destruído na nova modernidade, assim como dar conta da possibilidade mesma da sua crítica.

O conceito de solidariedade pós-tradicional está relacionado com um potencial de estabelecer vínculos sociais que não têm relação com a tradição de fundo religioso ou com a solidariedade baseada em vínculos de sangue, como nas sociedades tradicionais, nem tem a ver com motivos de comportamento baseados em estímulos empíricos como. dinheiro e poder, como no mundo moderno. Esse potencial é baseado em uma força interna ao diálogo e à comunicação humana. Resumindo o máximo possível a idéia de Habermas nesse particular, temos que essa lição de um potencial de entendimento intrínseco à situação dialógica tem a ver com a redefinição da teoria semântica. A virada pragmática de Austin no contexto da teoria dos significados implica considerar que no ato mesmo da fala eu não apenas falo mas também atuo. A partir da idéia de que todo ato lingüístico enquanto unidade elementar do diálogo possui uma estrutura dupla: um componente performativo e um outro proposicional, temos uma revolução na teoria semântica.Tomemos o exemplo: "eu prometo a você que voltarei amanhã". "Eu prometo a você" é o componente performativo posto que constitui uma relação entre emissor e receptor da mensagem, sendo o elemento dominante na medida em que determina e explicita a forma em que o elemento proposicional é utilizado. O componente proposicional é dependente, por indicar sobre o que emissor e receptor se comunicam. Um entendimento entre emissor e receptor só se efetiva quando os dois níveis são consumados.

É essa virada pragmática na teoria semântica, pragmática posto que liga ação e expressão lingüística, que é a base da ação comunicativa. O que importa notar aqui é que não só a integração sistemática de atitudes estratégicas motivam a ação humana. Quando digo "eu prometo a vocês que virei amanhã", eu estou me comprometendo, contraindo obrigações com um público. Palavras não são sons ao vento, mas obrigações sociais plenas de conseqüências. Se falto com a minha promessa de vir realmente no dia seguinte, perco muito provavelmente minha credibilidade até para um público maior do que aquele com o qual me comprometi.

Apesar desse poder vinculador ser inerente à comunicação humana, apenas no mundo moderno, onde uma atitude crítica com relação a tradição é possível, podemos ver o diálogo como uma fonte de um feixe de vinculações sociais, posto que apenas nesse contexto o convencimento depende de "argumentos racionais" para produzir consenso. Isto não significa dizer que Habermas percebe o mundo moderno com o espaço da concórdia e da não-violência. O núcleo do raciocínio habermaniano parece-me localizar-se em outro lugar. Não é a negação da existência e recorrência da violência e da manipulação em todas as relações humanas, da mais pública à mais privada, que confere sentido à sua hipótese. É apenas o fato de que o mundo real, especialmente aquele da política, não é apenas violência e dominação. O que temos aqui na realidade é urna releitura da tese central do "mudança estrutural" ou seja, o fato de que a partir do século XVIII o poder passa a ser definido como um amálgama indissociável não só de violência e manipulação de sentidos mas também de convencimento. Que esse potencial de convicção íntima baseado em argumentos racionais não seja o fator determinante das relações sociais modernas não é decisivo para o argumento habermasiano. Decisivo é meramente que ele exista em alguma medida, posto que a admissão da sua existência remete à possibilidade de um processo de aprendizado na esfera política.

UM CRITÉRIO PARA A AÇÃO DEMOCRÁTICA

Como característica distintiva da ciência política tradicional, temos, ao invés da nomeação de pré-condições funcionais e institucionais para a existência e permanência da democracia, a construção teoricamente fundada de um critério normativo para o exercício da democracia. Democrática passa a ser a sociedade na qual as condições para a produção de consensos parciais baseados na argumentação estão presentes. A forma como estes consensos parciais implicam uma redefinição da agenda política é ponto controverso na obra habermasiana.

Em sua última obra importante, Facticidade e Validade (Faktizitat und Geltung - doravante citada como FG) de 1992, Habermas continua e precisa várias formulações da "teoria da ação comunicativa" de 1981. O tema principal daquele livro parece-me dirigido a enfrentar a dificuldade da articulação "prática" entre ação comunicativa e aparelho estatal (ou o aspecto administrativo e sistêmico da política). Habermas aceita a tese sistêmica do aumento da eficiência de funções institucionais quando o dispendio do processo de convencimento é substituído por certas preferências funcionais independentes da vontade individual. Este ganho em funcionalidade, no entanto, deve ficar restrito ao aparelho administrativo do Estado. A vitalidade democrática, não obstante, depende do dinamismo de uma periferia (em relação ao Estado) que tematiza a agenda política em relação a qual o Estado deve reagir. O direito, daí sua importância no livro, seria o elemento que permite a tradução da linguagem comum em código sistemático e vice-versa.

Na política essa tradução entre esfera institucionalizada e mundo da vida pressupõe um espaço público político. O que é pressuposto aqui, portanto, é uma periferia capaz de perceber problemas e, ao tematizá-los, chamar a atenção dos procedimentos democráticos institucionalizados. Essa periferia é suposta fora do ambiente institucional. Afinal este é dominado por rotinas e pouco sensível, por si mesmo, a transformar questões problemáticas em questões conflitivas. As condições de possibilidade de existência de tal esfera são problemáticas, posto que uma formação de opinião mais ou menos espontânea é a base da coisa inteira. Habermas percebe sentido como recurso escasso e como função da espontaneidade social.

A esfera pública precisa não apenas identificar problemas mas, também, dispor de meios eficientes de pressão sobre o Parlamento (instituição decisiva, por ser um órgão a meio caminho entre a esfera pública e o poder administrativo estatal). Para Habermas a esfera pública refere-se a um terceiro aspecto da teoria comunicativa: não à sua função ou conteúdo mas ao seu espaço social. Esse espaço social é o espaço onde as diversas experiências pessoais e privadas podem encontrar repercussão. Aqui Habermas repete sua velha idéia, de 1962, da esfera pública como caixa de ressonância de experiências privadas.

A sociedade civil, por sua vez, é a base institucional voluntária dessa esfera pública. Sua composição inclui associações, movimentos e organizações mais ou menos espontâneos que funcionam como auto-falantes, de modo a sensibilizar a esfera pública. Quando o sistema político não está ligado à sociedade civil e à esfera pública, temos massas passíveis de serem manipuladas para fins plebiscitarios. É a união desses três elementos que representa, para Habermas, a tradução sociológica da questão da democracia deliberativa.

É extremamente interessante, nesse contexto em que Habermas é confrontado com o desafio de demonstrar a existência e a eficácia de uma racionalidade comunicativa operante em meio de contextos pragmáticos, perceber a transformação da categoria da influência. Influência deixa de ser, como na teoria da ação comunicativa, urna categoria sistemática apartada da lógica comunicativa do convencimento. Em FG a influência passa a ser vinculada à lógica argumentativa, na medida em que se instaura uma nova oposição entre influência legítima e ilegítima.

Percebendo o contexto de uma sociedade mediática, afastando-se da tentação de pensar idealisticamente a relação entre entendimento e convencimento - como se ela pudesse realizar-se, hoje em dia, segundo o modelo clássico da comunicação face a face e imediata (e "imediática" também) da ágora grega - Habermas procura pensar a intesecção entre comunicação e poder 2 2 É interessante pensar aqui na TAC ( Teoria da Ação Comunicativa) como um livro "filosófico", na medida em que reflete acerca dos pressupostos da ação comunicativa enquanto uma categoria social, e o FG ( Faktizität und Geltung) com o seu contraponto "sociológico". Neste livro, Habermas, de certo modo, "empiriciza" seu argumento na medida em que "testa" suas hipóteses da TAC com a realidade e as instituições da democracia contemporânea. . Habermas admite a inserção de poder e prestígio, categorias não comunicativas, como definindo, em última instância, tanto a seletividade dos temas abordados quanto a forma pela qual são abordados e discutidos. Essa admissão, no entanto, não compromete a hipótese básica da eficácia de uma racionalidade não dependente do poder, da manipulação e da instrumentalidade. Mesmo que a seletividade dos temas controversos seja uma função do prestígio e do poder, a capacidade de construir consenso, em um contexto minimamente pluralista, depende de convencimento. Acredito ser isto que estimulou Habermas a dizer que sentido pode ser manipulado mas não comprado.

A concepção dual da política esboçada acima, a qual vincula uma esfera de poder comunicativo (sociedade civil e esfera política) e outra de poder administrativo, implica uma nova concepção de estratégia da ação política. O poder comunicativo deve auto-limitar-se e não ceder à tentação de conquistar e controlar - como no ideário marxista - o poder administrativo. Que se dispute na esfera pública por influência e não por poder político. Na teoria da ação comunicativa Habermas fala de uma estratégia de assédio, ou seja, da necessidade de manter o Estado "sitiado". Em outros textos da mesma época ele fala em manter o Estado "em xeque". Já em FG a imagem muda para a metáfora mais sofisticada de um sistema de eclusas, onde periferia e poder administrativo, através do meio jurídico, trocam influências recíprocas (Costa, 1997).

Esta concepção da arena política e da luta política é altamente problemática, como veremos a seguir. Eu gostaria de começar a parte crítica deste ensaio fazendo um balanço do que considero construtivo no diagnóstico habermasiano, para apenas depois discutir o que julgo criticável. O que Habermas oferece, enquanto teórico da democracia moderna, é um critério ou guia para a ação política, um critério normativo para a política democrática, em um contexto de perda de eficácia dos paradigmas antes existentes, o que não é pouco. No entanto, sua visão parece-me unilateral em aspectos fundamentais. Acredito que esta unilateralidade tem a ver, retomando uma temática desenvolvida acima, com sua postura radicalmente anti-Bildung. Habermas pretende construir urna alternativa à opção aristocrática, a qual é alfa e ômega da concepção de mundo na Bildung, a qual, por sua vez, é a base das concepções realistas e elitistas da política.

Acredito mesmo que, pela influência da inversão do principio representativo assimilado por Schumpeter de Max Weber, temos urna vinculação clara entre Bildung alemã e ciência política americana realista ou elitista do século XX. Assim, o cultivo do mundo da personalidade por oposição ao mundo coletivo compartilhado socialmente caminha lado a lado das concepções que interpretam a política como um assunto de líderes carismáticos ou de organizações partidárias todo-poderosas, que manipulam massas de todo modo indiferentes ou infantilizadas. O privilégio dado à dimensão do indivíduo como cliente do Estado, ou seja, como mero pagador de impostos que tem direitos à contraprestação através de serviços estatais é outro reflexo desta atitude. Os cidadãos amesquinhados e transformados em meros clientes do Estado são o duplo negativo dos líderes todo-poderosos que os conduzem. A dimensão da cidadania, a qual implica maioridade moral no sentido kantiano, ou seja a possibilidade, também para o homem comum, de mediante a razão efetuar escolhas conscientes de projetos coletivos, é um dado secundário nestas tradições de se pensar a política.

O erro de Habermas não é combater esta concepção. Seu engano me parece localizar-se na construção de uma visão também parcial da política, a partir de um ponto de partida diametralmente oposto ao elitismo político. Gostaria de enumerar e analisar três aspectos, articulados e dependentes entre si, obscurecidos ou esquecidos pela análise habermasiana: 1) a posição secundária da dimensão subjetiva na teoria da ação comunicativa; 2) a oposição simplista entre Estado e sociedade civil; 3) o esquecimento da importância da individualidade na política.

1) A posição secundária da dimensão subjetiva.

Este tópico parece-me estar relacionado em Habermas à sua apropriação peculiar do freudismo, assim como com sua posterior crítica a essa posição teórica em favor da perspectiva da assim chamada Psicologia do Ego. Esta discussão relaciona-se também de forma bastante íntima com o tópico anterior, por explicar a posição ambígua de Habermas em relação à categoria do sujeito ou da subjetividade. Creio que essa questão pode ser encontrada como uma aporia dentro da própria obra habermasiana, por um lado sob a forma de uma contradição entre o valor da vida social racionalmente regulada e o valor da satisfação de necessidades individuais (esta era a contradição social por excelência tanto para Freud quanto para a escola de Frankfurt), e, por outro, na forma da negação do conteúdo emotivo e irracional da vida social em favor de urna perspectiva hiper-racionalista. Vale a pena nos demorarmos neste tópico.

O que chamo de interpretação hiper-racionalista do mundo subjetivo tem seu começo na peculiar recepção habermasiana da psicanálise. No livro de 1968 sobre conhecimento e interesse a psicanálise interessa a Habermas como paradigma de teoria crítica. Todo o processo psicanalítico entre médico e paciente é visto por Habermas como reproduzindo, através do processo da transferência, "o caminho retroativo de uma unidade perdida entre ação e reflexão" (Habermas, 1988, p. 283). A dificuldade do processo inteiro reside precisamente na superação das resistências afetivas para a cura.

Seria essa ligação entre (auto) conhecimento motivado pelo interesse na cura, na superação de conflitos e sofrimentos reais que conferiria à psicanálise seu lugar paradigmático enquanto prática científica. A crítica meramente reflexiva não teria a força de superar uma consciência falsa se não fosse animada por uma "paixão da crítica". No início está a experiência do sofrimento e da dor e, portanto, do interesse na sua superação. A força das motivações inconscientes da resistência é oposta à força do interesse no auto-conhecimento. A psicanálise passa a ser vista como modelo de ciência crítica. A crítica social, da mesma forma, deveria apontar as causas da miséria e sofrimento humanos, assim como a forma de superá-los. Nesse sentido, é razoável perceber uma teoria crítica da sociedade como uma teoria que, em certo sentido, pretende fazer com a sociedade como um todo o que o analista faz com o analisando.

Um dos pontos mais interessantes e reveladores da interpretação hermenêutica habermasiana é o do status da linguagem na relação entre inconsciente e consciente. O raciocínio básico de Habermas é o seguinte: a fuga do Ego de si próprio tem que ser uma operação baseada na linguagem e realizada através da mesma, posto que, no caso contrário, não seria possível sua superação através da linguagem na prática hermenêutica da análise (Habermas, 1988, pp. 294-295).

Habermas é perfeitamente consciente do fato do próprio Freud ter procurado explicar o recalque como uma separação da "representação do representante pulsional" da linguagem. Desse modo, a diferença entre uma representação inconsciente e pré-consciente residiria no fato de que a primeira se dá a partir de algum material desconhecido, de qualquer modo pré-lingüístico, enquanto a última implica uma representação lingüística.

Essa distinção é problemática e insatisfatória para Habermas. Se assim fosse, pensa ele, não seria possível ver de que forma, que não gramática, as representações inconscientes poderiam ligar-se posteriormente a palavras. A "solução" de Habermas consiste em supor duas linguagens: uma privada (do inconsciente) e outra social (do pré-consciente e consciente). Nessa interpretação, teríamos a linguagem desgramaticalizada e imagética do sonho como paradigma de uma "linguagem excomungada". Na neurose, por sua vez, teríamos uma espécie de exílio no mundo dos significados e sentidos privados. Alguma possibilidade de tradução entre as duas linguagens permanece, de outro modo seria impossível a hermenêutica da linguagem do analista.

Habermas, na realidade, oferece toda uma interpretação lingüística da psicanálise. A categoria tardia do Super-ego é explicada, por exemplo, da seguinte forma: como o recalque só pode ser produto do Ego, Freud descobre uma parte do Ego (o Super-ego) que irá se incumbir dessa operação de censura. Enquanto a função de censura for atributo do Superego falamos de recalque, enquanto for atributo do Ego falamos de controle consciente das pulsões. O interessante é que Habermas percebe o Superego em ação como um conjunto de "frases sagradas" carregadas de libido, as quais, embora não sejam relegadas ao plano da linguagem não-social como o Id, são imunizadas da crítica pela carga libidinal (Habermas, 1988, pp. 298-299).

A interpretação hermenêutica habermasiana abrange e redefine, nos seus próprios termos, toda a teoria estrutural da mente freudiana. A questão passa a ser: uma interpretação desse tipo faz jus à riqueza freudiana? A minha resposta é negativa, e irei justificá-la em breve. Se ela é unilateral e empobrece o escopo teórico do freudismo, qual é a sua razão de ser no projeto teórico de Habermas? Porque ele é levado a ter precisamente essa visão da psicanálise?

A concepção habermasiana da psicoanálise parece-me espelhar exemplarmente sua concepção dilemática da subjetividade. Por um lado, Habermas procura conferir toda a validade e retirar todas as conseqüências da revolução individualista que marca a modernidade. Por outro lado, procura enquadrar esse indivíduo dentro dos limites de uma teoria que tende a exagerar o papel da gênese social da racionalidade e enfatizar a predominância do componente social sobre o individual. Esse fato não passou desapercebido aos atentos pesquisadores e estudiosos da obra de Habermas, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha.

Uma contribuição particularmente interessante parece-me a de Joel Whitebook. Este autor chama a atenção para o movimento verificado na teoría da ação comunicativa no sentido do privilegiamento da psicologia do Ego (Piaget, Kohlberg) às custas da psicologia do Id (Freud) com todas suas vastas repercussões teóricas. Resumidamente, Whitebook pretende demonstrar que o advento do paradigma lingüístico dentro da teoria crítica implica uma ruptura também na concepção de natureza interna. O núcleo da discussão entre as psicologias do Ego e do Id reside no espaço que cada uma delas reserva para o papel genético e funcional do Ego. A psicologia do Id duvida da independência e autonomia do Ego. Como o Id tem a ver com o aspecto instintivo e orgânico, enquanto o Ego é equiparado com as influências restritivas do princípio da realidade, torna-se difícil, a partir dessa perspectiva, falar de alguma forma de racionalidade que não tenha a ver imediatamente com repressão (Whitebook, 1985, p. 143).

Dessa forma, os pressupostos freudianos da antiga escola de Frankfurt (acima de tudo Adorno e Marcuse) teriam levado, por um lado, à dramatização da oposição entre indivíduo e sociedade, mas, por outro, à impossibilidade da representação de uma sociedade livre. A libertação social inevitavelmente tomaria, nesses autores, traços escatológicos.

Habermas, ao contrário, pretende libertar-se da unilateralidade da teoria dos impulsos freudiana em favor da psicologia do Ego e da sua tese da autonomia do Ego relativamente às suas fontes instintivas. Nesse contexto, Habermas enfatiza, antes de tudo, o papel do processo de socialização linguísticamente mediado, em contraposição ao dado biológico.

O perigo, aqui, para Whitebook, situa-se precisamente na direção oposta dos antigos frankfurtianos, nomeadamente em uma relação exageradamente harmônica entre indivíduo e sociedade, ou seja, entre as naturezas interna e externa (incluindo-se nesta última a social). A questão essencial para Whitebook, que a meu ver confere à sua crítica toda a sua legitimidade, parece apontar para a necesidade de levar-se em conta a ambivalência da natureza humana entre os seus aspectos instintivo e reflexivo. Nesse sentido, pergunta-se o autor: "qual a força das conclusões que podem ser retiradas do caráter linguístico do processo de socialização?" (Whitebook, 1985, p. 154). Com certeza, não se pode negar o papel da linguagem na transformação do dado instintivo da natureza interna, no sentido de possibilitar formas mais racionais de convivência intersubjetiva. A projeção das estruturas lógico-lingüísticas na natureza interna representa, no entanto, um exagero racionalista cuja fundamentação ainda é duvidosa3 3 Ulf Matthiesen parte de um ponto de partida semelhante para criticar, no âmbito da interpretação do mundo subjetivo no contexto da teoria comunicativa, o esquecimento do nível da expressividade corporal em sentido estrito. Para Matthiesen, servem de apoio as pesquisas do "collége de sociologie" (antes de tudo G. Bataille), ao invés de meditações psicológicas ou psicoanalíticas. A censura mais importante de Matthiesen refere-se à visão habermasiana da racionalização do mundo subjetivo enquanto um progresso acumulativo em direção a estágios superiores de desenvolvimento cognitivo, levando a que a questão do desaprendido, no âmbito dessa mesmo processo, seja sequer passível de ser problematizada.

Também Whitebook parte de uma das interpretações possíveis de Freud. Esse autor rejeita não só a interpretação hermenêutica habermasiana da psicanálise mas também a interpretação do freudismo por Lacan. Esclareçamos os termos desse debate. Whitebook segue, até onde posso ver, a brilhante interpretação de Freud por Paul Ricoeur. Ao contrário tanto de Lacan quanto de Habermas, Ricoeur parte do princípio de que uma interpretação exclusivamente hermenêutica da psicanálise trai aspectos fundamentais da empresa freudiana. Nesse sentido, Ricoeur defende a psicoanálise como um conhecimento limite entre uma hermenêutica e uma energética (Ricoeur, 1970, p. 65-115).

A questão fundamental da discordância remete à concepção da relação entre Inconsciente/sub-consciente e Consciente, nos termos da primeira tópica freudiana; ou da relação entre Id/ego e Super-ego, segundo os termos da segunda tópica. A posição de Ricoeur é, fundamentalmente, a seguinte. Desde os textos meta-psicológicos de 1915 Freud teria proposto uma nova relação, dentro do próprio Inconsciente, entre representação e pulsão. Esse avanço é considerado fundamental por Ricoeur. Ele implica o reconhecimento de que a relação entre Inconsciente e Consciente não é uma relação simples entre uma "energia" e uma "idéia".

Essa nova visão é espelhada na noção de representante. A noção de representante implica que as pulsões têm um conteúdo indeacional, o qual expressa "o corpo para a mente" (a hipótese fundamental da psicanálise para Ricoeur). O Inconsciente freudiano seria, nesse sentido, um inconsciente psíquico, formado por "representações psíquicas". Esses representantes, no entanto, têm não apenas uma base ideacional mas também afetiva, Essa relação entre idéias e afetos (enquanto representantes de uma pulsão) mostraria todo o sentido da interpretação da psicanálise como um conhecimento limite, de fronteira, entre uma energética e uma hermenêutica. O ponto essencial aqui é que o representante afetivo tem outra qualidade em comparação com o ideacional. O que é representado nos afetos e que não passa à idéia é o desejo enquanto desejo, ou seja, àquilo que é anterior à linguagem e à cultura. Por ser esse conhecimento de fronteira é que o ponto de vista "econômico" da energética justifica-se até o fim. Uma interpretação unilateralmente hermenêutica desse processo obscurece o que seria essencial para Freud.

O próprio estatuto metodológico da psicanálise, assim como sua especificidade científica, baseia-se no fato de ser um discurso a meio caminho entre desejo e linguagem, entre energia e sentido (Ricoeur, 1970, p. 137). Para Ricoeur não é por acaso que Freud não leva a linguagem em consideração quando trata do Inconsciente, restringindo seu papel ao Subconsciente e Consciente. O fator significante que ele encontra no inconsciente, o qual, como vimos, é denominado representante pulsional (ideacional ou afetivo) é da ordem das imagens. Isso é evidenciado, por exemplo, pela regressão do pensamento no sonho para a ordem da fantasia.

A forma pela qual uma pulsão atinge o psiquismo (por meio do seu "representante"), embora já possua um fator significante, é não-lingüística. A "representação" não é da ordem da linguagem, na medida em que é uma representação de coisas e não de palavras. Na regressão pictórica dos pensamentos do sonho, quando se tenta explicar a distorção, ou quando se quer referir a tudo que seja remoto no ser humano, o registro pertence ao mundo da fantasia ou das imagens e nunca ao discurso. Em todos esses casos Freud encontra um poder significante que é operante antes da linguagem.

O fato do Inconsciente ter uma estrutura como se fosse uma linguagem (Lacan) que pode ser compreendida no contexto de um discurso lingüístico (a "talking cure" da análise) não deve esquecer o como se, ou seja, de que se trata de uma mera "aproximação". É precisamente essa qualidade de infra ou supra-lingüístico que separa a psicanálise da fenomenologia, por exemplo. A psicanálise é uma luta contra resistências afetivas, contra as quais nenhum aumento da consciência ordinária pode contribuir. O uso da transferência na análise, assim como a substituição da repetição pela lembrança, mostram uma relação de outra ordem, uma luta contra afetos.

Que exista alguma possibilidade de tradução entre Inconsciente e Consciente significa que a alteridade entre os dois níveis é relativa e não absoluta. Citando Freud, Ricoeur lembra que "do Id nós nos aproximamos com analogias: nós o chamamos caos, um caldeirão cheio de excitações agitadas" (Ricoeur, 1970, p. 444). Desejo seria o conceito-limite entre o orgânico e o psíquico, ou entre o corpo e a alma, por ser, ao mesmo tempo, o não-exprimível e o desejo de falar. O "quantitativo" é mudo, a energia afetiva é muda, mas, ao mesmo tempo, é a semente e a raiz do discurso (Ricoeur, 1970, p. 454).

Se a ambigüidade tensa entre desejo e discurso, entre uma energética e uma hermenêutica, ou ainda mais radicalmente, entre corpo e alma, é o alfa e ômega da psicanálise, a interpretação habermasiana implica uma distorção do freudismo. Aqui não se trata de criticar a leitura habermasiana enquanto tal, mas de inquirir sobre as conseqüências teóricas de suas escolhas metodológicas. Que caminhos são abertos e que caminhos são fechados a partir delas? A grande originalidade de Habermas como pensador social está contida na sua fórmula de uma mudança de paradigmas na ciência social da "filosofia da consciência" para o paradigma lingüístico. A tese central da teoria comunicativa é a de que o pensamento social crítico do Ocidente, especialmente aquele resultante da influência teórica dos gigantes Max Weber e Karl Marx, foi prisioneiro de aporias fatais. Antes de tudo, um pensamento que se pretendia crítico acabou advogando a tese da dominação totalitária de uma razão instrumental tida como inescapável.

A mudança de paradigma, nesse contexto, implica a tese da existência de uma razão alternativa, atualizada no diálogo, a qual atua para além das consciências individuais. Por outro lado, essa mesma escolha teórica que privilegia o infra e o supra-individual (língua e cultura), ao tentar incluir o que é específico à subjetividade parece sempre errar o alvo. Todas as necessidades não exprimíveis em linguagem não têm lugar por princípio no seu esquema. Habermas parte de um eu lingüísticamente competente. Todo o estágio anterior à intersubjetividade comunicativa é relegado às sombras. A negligência acerca dos estágios de desenvolvimento primários (esta é uma tese básica da psicanálise) implica a negligência necessária com relação a aspectos essenciais da individualidade adulta. A questão aqui não é defender a esfera individual de forma absoluta. No entanto, um conceito conteudístico de personalidade individual (tão caro a Max Weber), a partir de uma consciência radical tanto da sua origem e responsabilidade social quanto da sua distância e especificidade em relação à sociedade, parece estar na origem mesma da significação e validade universal da cultura ocidental.

Para Habermas, no entanto, autonomia e responsabilidade individual não têm a ver com natureza humana, mas com o caráter emancipatório da linguagem (Alford, 1988, p. 181). É interessante notar que a opção filosófica pelo paradigma comunicativo corresponde à opção sociológica pela ênfase na categoria de esfera pública em contraposição à de esfera privada. O que nos devolve ao tema da oposição entre Bildung e esfera pública. Se nos lembrarmos da primeira obra importante de Habermas, temos um raciocínio diferente do atual. Naquele brilhante livro temos ainda um argumento frankfurtiano à antiga, sob forte influência de Adorno e sua "dialética do iluminismo". Como sabemos, Adorno (e Horkheimer) defende uma contradição interna ao iluminismo, que o leva a uma reflexão totalizante associada à categoria do poder, incapaz de perceber e assimilar diferenças e, portanto, impossibilitando uma reflexão crítica que havia sido a razão do seu nascimento. Habermas mostra nesse livro, a correspondência sociológica dessa tese. A partir da constatação de que o nascimento do conceito de esfera pública na Europa do século XVIII é que permite mudar os padrões de legitimação do poder então vigentes, precisamente pela possibilidade de crítica reflexiva e racional do poder, interessa a Habermas perceber quais as contradições internas desse mesmo fenômeno que levaram ao seu declínio mais tarde.

A tese é a de que o descolamento entre esfera pública e privada leva ao empobrecimento de ambas. Na medida em que instituições, seja do Estado seja da indústria cultural (o papel da imprensa é especialmente relevante nesse processo), passam a invadir e mediar o espaço anteriormente ocupado pela familia e pela experiência da interioridade, temos a ruptura da alimentação recíproca entre os dois níveis. O resultado é o empobrecimento de ambos (Habermas, 1975, p. 172/ 278). Tendo isso em mente, fica difícil compreender a "colonização" da categoria de subjetividade, assim como da categoria de esfera privada, na teoria comunicativa. Lembremos que é exatamente o cultivo do mundo interior (a definição por excelência da Bildung) que possibilita, também historicamente, a constituição de uma esfera pública baseada na argumentação.

A questão essencial parece residir, nessa tentativa de assimilação da natureza interna à razão comunicativa, na adequada teorização do status de uma racionalidade parcialmente pré-lingüística em uma moldura teórica preocupada, desde o início, com a construção das condições de possibilidade de um conceito racional e universal de razão prático-moral. Uma razão prática, por sua vez, que deveria ser independente de considerações estratégicas, por um lado, assim como do conteúdo especulativo (principal crítica de Habermas aos antigos frankfurtianos) da intuição estética por outro. Nessa tentativa, Habermas parece ter assimilado a razão prática por demais a uma razão teórica e discursiva, sacrificando todas as necessidades incapazes de serem exprimidas segundo outros paradigmas.

Apenas nesse contexto, ou seja, como uma tentativa de evitar a unilateralidade descrita acima, é possível compreender a curiosa vinculação habermasiana entre auto-expressão enquanto "sinceridade" e auto-expressão enquanto enquanto valor estético. Habermas está perfeitamente consciente da importância de algum acesso à interioridade emocional e irracional de qualquer ser humano, de alguma preocupação com o que cada um define como a sua felicidade, de modo a evitar o risco da "emancipação infeliz"4 4 O tema da emancipação infeliz é problematizado por Habermas no seu belo ensaio sobre Walter Benjamin. Neste texto, Habermas contempla a hipótese de uma ordem política justa mas infeliz. Vejo este texto como um esforço pioneiro de enquadrar as questões clássicas da escola de Frankfurt no seu próprio quadro teórico de referência (Habermas ,1987b, pp. 336/ 377). . Como a teoria comunicativa só consegue ter acesso a necessidades passíveis de justificação discursiva, a expressão estética passa a ser a única forma de explicitar o mundo obscuro do caos individual de cada um de nós. De outro modo seria impossível compreender a retórica "pós-moderna" habermasiana, a partir do final da década de 80, sobre essa questão.

A experiência estética passa a ser a linguagem capaz de assimilar socialmente o discurso mudo das necessidades individuais5 5 Acho difícil perceber de que forma o sujeito estético radical, como definido acima, pode articular-se de algum modo, sequer procedimental como defende Habermas, com uma ordem normativa qualquer. Para Georges Bataille, interpretando Baudelaire, a própria razão de ser desse sujeito estético radicalizado é representar o "mal", no sentido de ser o outro do "bem" moral, socialmente definido. Essa nova percepção da estética implica, de algum modo, um retorno ao lugar privilegiado dessa categoria nos antigos frankfurtianos. . Em resposta a colegas americanos, Habermas afirma o seguinte: "Refletida nessas interpretações e declarações está uma transformação na forma da experiência estética, induzida pela própria arte de vanguarda, na direção de um descentramento e uma liberação da subjetividade. Ao mesmo tempo, esse descentramento indica uma sensibilidade ampliada ao que permanece não assimilado nos resultados interpretativos do domínio pragmático, epistêmico e moral sobre as demandas e desafios de situações cotidianas. Ele produz uma abertura em relação aos elementos expurgados do inconsciente, o fantástico, o demente, o material e o corporal - e, desta forma, a tudo no nosso contato mudo com a realidade que é tão fugaz, tão contingente, tão imediato, tão individualizado, simultaneamente tão distante e tão próximo que escapa a qualquer apreensão categorial" (Habermas, 1985n, p. 201).

Para Habermas a noção de subjetividade é dependente de contextos biográficos e culturais (sempre particulares) que impedem, ao contrário do valor justiça, sua universalização. No entanto, Habermas é demasiado bom sociólogo para deixar de perceber que, alguma ligação com necessidades individuais é um componente fundamental para a motivação de qualquer ação social, incluindo as prático-morais. Além disso é demasiado bom filósofo para desconhecer as limitações do formalismo de tipo kantiano. Daí a tentativa de perceber o outro do discurso racional6 6 Contraditoriamente, no entanto, Habermas passa a ser alvo das críticas formuladas, por ele mesmo, aos antigos frankfurtianos, especialmente ao seu antigo mestre Adorno. Para Habermas, a negação da razão instrumental, através de uma síntese estética, não representa uma alternativa convincente de sociabilidade entre os homens, além de romper os laços com a ciência experimental. Especialmente por essa última razão ela deve ser superada. . Parece-me que Habermas percebe a importância da articulação entre necessidades individuais e formação discursiva de um consenso normativo. Ao mesmo tempo, a moldura categorial da teoria comunicativa tende a rejeitar qualquer forma de subjetividade pré-lingüística ou de necessidades não articuláveis discursivamente. Urna adequada compreensão da política, no entanto, parece exigir a consideração simultânea não só da racionalidade estratégica (ou sistêmica como prefere o Habermas maduro) e discursiva. Ela parece exigir ainda a consideração de fenômenos dificilmente racionalizáveis ou irracionais, seja no plano individual ou no coletivo7 7 O dito acima parece-me constituir o cerne do conceito weberiano, quase nunca percebido pelos comentadores dessa matéria, de ação sublimada. No seu texto sobre "os conceitos sociológicos fundamentais" localiza Weber a ação afetiva sublimada na fronteira entre a conduta afetiva em sentido estrito, a qual significa uma reação irrefletida freqüentemente para além do limite da ação dotada de sentido, e o tipo puro de ação racional com respeito à valores, a qual pressupõe uma orientação consciente, segundo um claro projeto do ator. Uma sublimação ocorre quando, na ação afetivamente determinada, temos uma descarga consciente do componente afetivo. Ele encontra-se então freqüentemente (mas não sempre), no caminho para a racionalização valorativa ou para a ação com respeito a fins ou para ambos. . Nesse sentido, alguma forma de articulação entre as preocupações da antiga escola de Frankfurt e a teoria da ação comunicativa seria desejável, especialmente com respeito às questões relacionadas ao peso da subjetividade individual, e, a partir da "sociologicização" conseqüente do freudismo (o qual já é sociológico desde sempre), a percepção de que a própria temática da racionalidade já exige a referência ao seu contrário. Vejamos mais de perto algumas conseqüências políticas desta escolha teórica em Habermas.

2) A oposição simplista entre Estado e sociedade civil

A crítica habermasiana a Max Weber tem em vista, desde o princípio, um conceito dual de sociedade. Essa crítica concentra-se não apenas na recusa do lugar supostamente paradigmático da racionalidade com respeito a fins no esquema weberiano, como também na impropriedade do próprio ponto de partida teórico da teoria da ação. O conceito de mundo vivido enquanto pressuposto da ação comunicativa deveria sanar a primeira insuficiência, enquanto caberia ao conceito de sistema superar a segunda dificuldade8 8 Habermas segue, nesse particular, a crítica dos teóricos sistêmicos a modelos como o weberiano, por exemplo, que percebem a lógica institucional como conseqüência das ações conscientes dos seu membros.(Habermas, J., 1987II, p. 453) . Nenhum aspecto da obra tardia de Habermas provocou tanta discussão quanto esse conceito dual de sociedade.

Duas entre essas críticas, reciprocamente relacionadas entre si, parecem-me merecer uma análise mais detalhada: a) a crítica a uma suposta correspondência entre tipos de ação e tipos de coordenação de ações com relação aos conceitos de formas de sociedade, mundo vivido e sistema; e b) a crítica à redução do conflito ao front entre Estado e esfera pública.

Axel Honneth, um dos mais talentosos teóricos alemães da nova geração, faz uma interessante censura a respeito de um certo "concretismo fora de lugar" à proposta de sociedade dual habermasiana (Honneth, 1980, p. 282) como um todo. Honneth defende a tese de que Habermas teria incorrido na "teoria da ação comunicativa" no mesmo erro já confessadamente cometido (Habermas, 1986b, p. 379) ao tratar de técnica e ciência como ideologia. "Quando sociedades capitalistas são concebidas como ordens sociais que se dividem em duas esferas de ação autônomas, sistema e mundo vivido, criam-se duas ficções complementares. Admite-se a existência de 1) ações livres do contexto normativo dentro das organizações e 2) esferas comunicativas livres de dominação. Com essas duas ficções criadas pela junção de teoria da ação e teoria sistêmica reencontramos os mesmos equívocos teóricos que já havíamos criticado como retificação na tese da tecnocracia habermasiana. (...) Habermas apenas prossegue, com esse obscurecimento recíproco, em outro nível, o mesmo dualismo em teoria social cujo chão já havia sido preparado pela tese da tecnocracia. Agora, com certeza, as referidas ficções resultam da retificação não mais de dois tipos de ação, mas de dois tipos de coordenação de ações que se expandem para esferas inteiras da reprodução social (Honneth, 1986, p. 328-331).

Como reação às discussões provocadas pela Teoria da Ação Comunicativa buscou Habermas, numa resposta às críticas, (Habermas, 1986b, p. 379) precisar melhor o modelo dual de sociedade. Desde essa reformulação, expressa-se Habermas bem mais cuidadosamente com respeito às supostas "correspondências". Agora, temos sempre o uso do adjetivo "primário", seja com respeito aos campos de ação "primariamente" integrados socialmente do mundo (Habermas, 1986b, p. 388), os quais não são imunes nem aos imperativos do poder nem aos das ações estratégicas, e aos campos de ação "primariamente" integrados sistemicamente, os quais também levam em consideração as ações comunicativas, não se apoiando, no entanto, em última instância, nos desempenhos integrativos das mesmas (Habermas, 1986b, p. 386).

Parece-me, no entanto, que um uso mais cuidadoso das palavras não resolve, como por mágica, todos os problemas. De início, a suposição da penetração de imperativos sistêmicos no mundo vivido possui repercussões bem mais ricas em conseqüências do que a suposição contrária. Enquanto a primeira suposição confere sentido à tese da colonização do mundo vivido, ou seja, o fenômeno patológico por excelência da crítica habermasiana da modernidade, com a interpenetração de ações comunicativas com sua base normativa nos contextos econômicos e políticos temos uma influência absolutamente ineficaz, em última instância (Habermas, 1986b, p. 386). As unilateralidades de análise que daí resultam foram, a meu ver, muito bem percebidas por Johannes Berger. Esse autor chama atenção para o fato da análise habermasiana, como resultado das suas escolhas teóricas, levar a uma concentração da atenção nos fenômenos patológicos situados no "front" entre sistema e mundo vivido, de sorte que uma unilateralidade de análise aparece como inevitável, descurando, por exemplo, dos fenômenos patológicos intrasistêmicos. Patologias são percebidas somente no front entre sistema e mundo vivido e lá apenas em uma direção: na transposição dos imperativos sistêmicos dentro do mundo vivido (Berger, 1986, p. 270).

Habermas reconheceu de forma categórica, na mesma resposta aos críticos, a correção das críticas de Berger, sem, no entanto, retirar todas as conseqüências desse reconhecimento, que a meu ver exigiria uma reformulação de grande porte em toda a sua proposta teórica. Correta é a crítica de Berger à linearidade de um diagnóstico da época dirigido unilateralmente para o caso da substituição de potenciais de comunicação pelo desempenho regulativo dos complexos administrativo e monetário, ou seja à colonização do mundo vivido pelos imperativos sistêmicos. Com isso cria-se um quadro histórico, do qual são retirados os traços de uma limitação contrária, nomeadamente, a que se refere à limitação desses imperativos pelos princípios do mundo vivido (Habermas, 1986b, p. 391).

3) O esquecimento da importância da individualidade na política

Este ponto se articula ao anterior de forma umbilical. Afinal é precisamente o peso relativo da ação individual dentro do mundo institucional que está em jogo aqui. Precisamente nesse ponto vale a pena retomar o diálogo com Max Weber. Habermas parte do pressuposto, o qual compartilha com Max Weber contra Karl Marx, de que não é legítima urna recusa da sociedade capitalista como um todo. De fato, Weber elogia o desempenho tanto da economia quando da política nas condições capitalistas. Sua opinião é a de que a burocracia racional representa a forma mais eficiente de quadro administrativo, possibilitando, desse modo, o tipo de dominação política mais eficiente para a relação entre dominadores e dominados. Por outro lado, sua confiança nos mecanismos reguladores da economia de mercado era enorme. As racionalizações da política e da economia representam, portanto, como para Habermas, conquistas indiscutíveis do processo de desenvolvimento ocidental. A posição weberiana, no entanto, parece-me, por mais surpreendente que isso possa parecer a um primeiro exame, pelo menos relativamente à esta problemática específica, menos resignada que a habermasiana.

Quando se leva em consideração textos seminais da sociologia política weberiana como "Parlamento e governo numa Alemanha reconstruída" (Weber, M. 1958, pp. 294-431) pode-se observar, em distinção à posição habermasiana de manter o aparelho estatal "em xeque", uma atitude positiva no sentido do controle e da transformação das instituições políticas. A grande questão para Max Weber no texto acima citado é o problema do controle da burocracia, a qual deve dedicar-se apenas às atividades meio da administração, abstendo-se do âmbito das escolhas políticas. Como a dominação burocrática é inevitável nas condições da democracia de massas, ela apenas pode ser limitada nas suas funções e controlada pelo Parlamento. A solução weberiana para evitar-se a dominação burocrática no mau sentido é a valorização do Parlamento, tanto enquanto instância selecionadora das melhores lideranças políticas quanto como instância de controle de uma burocracia que deve ser mantida sempre nos limites do exercício de funções técnicas da administração.

A meu ver trata-se aqui, antes de tudo, da tentativa de salvar o valor responsabilidade enquanto valor central da política, precisamente enquanto contraponto ético no inevitável embate e compromisso com as realidades pragmáticas. Apesar da concepção absolutamente desencantada e desiludida da política como espaço de manipulação dos impulsos irracionais das massas, com sua sugestão de reforma institucional pretende Weber ligar sucesso (no sentido de reconhecimento das condições estipuladas pela realidade para o desempenho eficiente de qualquer intervenção no mundo) e moral (no sentido de possibilitar, também no âmbito do espaço público, a distinção entre questões práticas, por definição fruto de uma escolha responsável, e questões técnicas). A ação normativa no terreno institucionalizado formalmente da política, para Max Weber, está longe, mesmo que não se concorde em concreto com algumas de suas posições conjunturais, de ser vista como em última instância ineficaz, como acontece com Habermas.

Neste contexto, podemos observar facilmente o tipo de relação imaginado por Weber entre o especialista com espírito, o homem vocacional moderno, e a ordem institucional. O mundo institucionalizado formalmente das instituições é inevitável apenas no sentido em que somos obrigados a viver com ele, mas não no sentido de que temos de subjugar-nos impotentemente à sua força. Apesar de uma oposição frontal contra o mundo institucional como um todo não fazer parte de modo nenhum das intenções de Weber, como seria o caso da proposta revolucionária marxista, parte Weber, a meu ver, do princípio de que uma "guerra de movimento" - para voltar a usar uma metáfora militar sempre tão a propósito nesse tema - deve ser privilegiada em relação a uma "guerra em campo aberto". Nesse sentido, todo esforço deve ser concentrado visando aproveitar todas as possibilidades dentro do mundo institucional visando criar espaços de ação, precisamente como pretende a sugestão do modelo parlamentar inglês na Alemanha do primeiro pós-guerra.

Apesar de liberdade política e pessoal não serem equivalentes (Henrich, D., 1988, p. 169), na medida em que as questões fundamentais da auto-realização pessoal não são simplesmente resolvidas a partir de reformas ao nível político, expressam estas uma condição necessária para aquelas. Desse modo, uma luta por definição interminável dentro das instituições parece ser uma condição para o conceito de homem vocacional com espírito. Trata-se, aqui, de evitar a todo custo o "parcelamento da alma" e salvar o "espírito" (Weber, M., 1924, p. 414). Esta parece-me uma atitude diferenciada e, num sentido muito próprio, mais positiva frente ao mundo institucional do que a preconizada por Habermas nos termos de uma luta defensiva no front entre sistema e mundo vivido.

Uma outra questão, estreitamente ligada com a que estávamos tratando até aqui, refere-se às conseqüências da tese da separação ou diferenciação do sistema em relação ao mundo vivido. Como já foi mencionado, a tese da diferenciação procura demonstrar como a conversão de uma coordenação de ações com base em uma interação a partir dos contextos comunicativos do mundo vivido, em favor de uma interação com base na lógica dos campos de ação racionalizados formalmente, não implica, necessariamente, como tanto Max Weber quanto Karl Marx admitiam, a criação de fenômenos patológicos per se. Decisivo passa a ser, nesse contexto, a questão de se a estruturação dos papéis sob o ponto de vista do mundo vivido de modo a possibilitar a troca deve ser considerada dependente das organizações, como no caso dos empregados e dos clientes, ou apenas relacionados às instituições, como no caso do consumidor e do cidadão.

Apenas os últimos casos mencionados não se deixam compensar através da satisfação mais eficiente de funções sociais. Não percebo, no entanto, o que leva Habermas a limitar apenas aos processos de formação dos consumidores e dos cidadãos a influência de preferências, orientações valorativas, atitudes etc., de modo a não permitirem, como no caso dos empregados e dos contribuintes, ser "comprados" ou "mobilizados" (Habermas, J., 1987II, p. 475). Parece-me, pelo contrário, que, especialmente com referência ao mundo do trababalho, as preferências, orientações de valor, atitudes etc., desempenham um papel extremamente importante, de modo que uma distinção precisa entre os papéis dependentes ou apenas relacionados às instituições, que na realidade constituem o núcleo da argumentação da mediação não patológica do mundo vivido, não pode ser mantida.

Eu suponho, na verdade, um obscurecimento da problemática individual, tão cara tanto para Weber quanto, em um sentido um tanto diferente, para Marx, da necessidade interna, nos papéis dependentes das instituições. A distinção "artificial" de Habermas entre os papéis dependentes relacionados às instituições leva à suposição de que a alienação nos primeiros papéis pode ser "comprada", sem que fique muito evidente porque o mesmo não deveria ocorrer nos outros casos.

Creio que, também aqui, a discussão do conceito de personalidade weberiano pode ajudar. Max Weber parte do pressuposto, juntamente com Marx nesse particular, que a mera conversão de contextos simbólicos para os campos de ação racionalizados segundo padrões formais tem por conseqüência inevitável a perda de identidade subjetiva e a alienação, não apenas nos papéis assim chamados relacionados às organizações, mas também, e até principalmente, nos papéis definidos por Habermas como dependentes das organizações, em especial as relações do mundo do trabalho.

Já o destino do especialista evidencia a perda inevitável para qualquer contemporâneo do mundo da divisão do trabalho e do "parcelamento da alma". Essa trágica despedida da "fáustica universalidade do homem" (Weber, M., 19471, p. 203), profundamente lamentada por Max Weber, não quer significar, como pretendo ter deixado claro mais acima, a impossibilidade da "chance" de doação de significado à própria vida através do trabalho por vocação, como a relação de reciprocidade entre ação e renuncia já prenuncia. Essa doação de significado na consciência da perda e da alienação não pode, no entanto, ser "comprada" já que falta para ela, por principio, um equivalente. O próprio vocabulário de Habermas ao mencionar "compensação" ou "ajuste" já é em si despropositado, visto que bens materiais e posturas de valor expressam grandezas heterogêneas.

Assim, do mesmo modo como a recepção de premissas da teoria sistêmica favorece uma atitude antes passiva e defensiva em relação ao mundo institucional, temos, também pelas mesmas razões, o obscurecimento da lógica própria e insubstituível das orientações valorativas dentro do mundo institucional. Habermas e Weber parecem-me defender posições polares que muito ganhariam se pudessem ser percebidas de forma complementar.

Seguindo a interpretação dominante, Habermas não percebe, em relação a Weber, que, para este, a moralidade secular não desaparece, ela apenas muda de lugar. O processo de subjetivação da moral é percebido por Weber como significando, como vimos, sua transferência da esfera da cultura para a esfera da personalidade. A concepção weberiana, ainda presa de certa forma nos limites da Bildung clássica, é incapaz, por princípio, de contemplar conceitualmente o mecanismo da gênese de vínculos de solidariedade social de tipo pós-tradicional. A desconsideração, no entanto, de um conceito conteudístico de personalidade com todas as suas repercussões para uma teoria da política, como vimos na obra habermasiana, deixa, por outro lado, escapar dimensões fundamentais do fenômeno social e político.

  • *
    Este artigo tem como base texto apresentado no Grupo de Teoria Política do Instituto de Estudos Avançados/IEA da USP.
  • 1
    Veja Gouldman, Harvey. 1988, p. 165. Gouldman procura demonstrar neste livro, a meu ver com sucesso, a permanência da idéia de vocação ao longo dos textos de Max Weber.
  • 2
    É interessante pensar aqui na TAC (
    Teoria da Ação Comunicativa) como um livro "filosófico", na medida em que reflete acerca dos pressupostos da ação comunicativa enquanto uma categoria social, e o FG (
    Faktizität und Geltung) com o seu contraponto "sociológico". Neste livro, Habermas, de certo modo, "empiriciza" seu argumento na medida em que "testa" suas hipóteses da TAC com a realidade e as instituições da democracia contemporânea.
  • 3
    Ulf Matthiesen parte de um ponto de partida semelhante para criticar, no âmbito da interpretação do mundo subjetivo no contexto da teoria comunicativa, o esquecimento do nível da expressividade corporal em sentido estrito. Para Matthiesen, servem de apoio as pesquisas do "collége de sociologie" (antes de tudo G. Bataille), ao invés de meditações psicológicas ou psicoanalíticas. A censura mais importante de Matthiesen refere-se à visão habermasiana da racionalização do mundo subjetivo enquanto um progresso acumulativo em direção a estágios superiores de desenvolvimento cognitivo, levando a que a questão do desaprendido, no âmbito dessa mesmo processo, seja sequer passível de ser problematizada.
  • 4
    O tema da emancipação infeliz é problematizado por Habermas no seu belo ensaio sobre Walter Benjamin. Neste texto, Habermas contempla a hipótese de uma ordem política justa mas infeliz. Vejo este texto como um esforço pioneiro de enquadrar as questões clássicas da escola de Frankfurt no seu próprio quadro teórico de referência (Habermas ,1987b, pp. 336/ 377).
  • 5
    Acho difícil perceber de que forma o sujeito estético radical, como definido acima, pode articular-se de algum modo, sequer procedimental como defende Habermas, com uma ordem normativa qualquer. Para Georges Bataille, interpretando Baudelaire, a própria razão de ser desse sujeito estético radicalizado é representar o "mal", no sentido de ser o outro do "bem" moral, socialmente definido. Essa nova percepção da estética implica, de algum modo, um retorno ao lugar privilegiado dessa categoria nos antigos frankfurtianos.
  • 6
    Contraditoriamente, no entanto, Habermas passa a ser alvo das críticas formuladas, por ele mesmo, aos antigos frankfurtianos, especialmente ao seu antigo mestre Adorno. Para Habermas, a negação da razão instrumental, através de uma síntese estética, não representa uma alternativa convincente de sociabilidade entre os homens, além de romper os laços com a ciência experimental. Especialmente por essa última razão ela deve ser superada.
  • 7
    O dito acima parece-me constituir o cerne do conceito weberiano, quase nunca percebido pelos comentadores dessa matéria, de ação sublimada. No seu texto sobre "os conceitos sociológicos fundamentais" localiza Weber a ação afetiva sublimada na fronteira entre a conduta afetiva em sentido estrito, a qual significa uma reação irrefletida freqüentemente para além do limite da ação dotada de sentido, e o tipo puro de ação racional com respeito à valores, a qual pressupõe uma orientação consciente, segundo um claro projeto do ator. Uma sublimação ocorre quando, na ação afetivamente determinada, temos uma descarga consciente do componente afetivo. Ele encontra-se então freqüentemente (mas não sempre), no caminho para a racionalização valorativa ou para a ação com respeito a fins ou para ambos.
  • 8
    Habermas segue, nesse particular, a crítica dos teóricos sistêmicos a modelos como o weberiano, por exemplo, que percebem a lógica institucional como conseqüência das ações conscientes dos seu membros.(Habermas, J., 1987II, p. 453)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2010
    • Data do Fascículo
      1998
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