Acessibilidade / Reportar erro

Gramsci, a crise da política e a esquerda em crise

Gramsci, the crisis of politics and of the left

Resumos

Repensando Gramsci 60 anos após a sua morte o autor assinala a importância teórico-política da inserção por Gramsci da sociedade civil numa "teoria ampliada do Estado". Com base nisto, reflete sobre o conjunto do pensamento político gramsciano e sobre uma política democrática para a esquerda.


Sixty years after Gramsci's death the author points out the theoretical-political importance of the way Gramsci includes the civil society in an "amplified theory of the state". On this basis some reflections are made about Gramsci's thought as a whole and about a democratic political program for the left.


SUJEITO E OBJETO

Gramsci, a crise da política e a esquerda em crise* * Texto preparado como base para uma intervenção no grupo de trabalho "Governati e governanti: socialismo e democrazia", parte integrante do Seminário "Antonio Gramsci da un secolo all'altro", organizado pela International Gramsci Society e realizado entre 16 e 18 de outubro de 1997 em Nápoles, Itália.

Gramsci, the crisis of politics and of the left

Marco Aurélio Nogueira

Professor de Ciência Política na UNESP e pesquisador na FUNDAP

RESUMO

Repensando Gramsci 60 anos após a sua morte o autor assinala a importância teórico-política da inserção por Gramsci da sociedade civil numa "teoria ampliada do Estado". Com base nisto, reflete sobre o conjunto do pensamento político gramsciano e sobre uma política democrática para a esquerda.

ABSTRACT

Sixty years after Gramsci's death the author points out the theoretical-political importance of the way Gramsci includes the civil society in an "amplified theory of the state". On this basis some reflections are made about Gramsci's thought as a whole and about a democratic political program for the left.

O sexagésimo aniversário da morte de Antonio Gramsci (1891-1937), ao par de ter sido acompanhado e registrado em eventos sucessivos nas mais diversas partes do mundo, pôs em evidência algo com o qual não se contava alguns anos atrás: modificou-se sobremaneira — em termos verticais (quantitativos) e horizontais (diversificação temática) — a relação dos cientistas sociais com o legado teórico do grande pensador sardo. Hoje, Gramsci é empregado como estímulo ou como "guia" metodológico por um número expressivamente maior de pesquisadores, inseridos em ambientes acadêmicos mais ou menos especializados, vinculados a tradições culturais as mais específicas (japoneses, islâmicos, norte-americanos, alemães, franceses, espanhóis, latino-americanos), envolvidos ou não com a dimensão prático-organizacional do movimento político de esquerda. Integra relações bibliográficas de marxistas e positivistas, estruturalistas e funcionalistas, lukacsianos, weberianos, althusserianos e habermasianos. Desafia e provoca a reflexão teórica de filósofos como Norberto Bobbio, declaradamente posicionado no campo do individualismo e do pluralismo clássicos. Ocupa lugar de destaque no panorama da cultura democrática de países até há poucos anos considerados imunes a maiores aventuras marxistas, como é o caso dos Estados Unidos, onde anima parte do debate sobre o "comunitarismo". E continua a ser referência inevitável de toda a fragmentada e sempre' mais diversificada tradição comunista, seja.como porta de entrada de uma operação de recuperação crítica do comunismo, seja como "antecipador" do fim do socialismo do Leste e animador de uma vertente teórico-política "pós-comunista".

Gramsci é freqüentado e interpelado com tanta intensidade que se torna impossível escapar de um intrincado conjunto de indagações. Como pôde um intelectual "italiano", tão visceralmente comprometido com as questões da revolução em seu país numa específica fase histórica do capitalismo, servir de parâmetro "universal" e manter-se em circulação em um mundo tão diferente e tão mais complexo do que aquele que inspirava sua elaboração original? Teria Gramsci se tornado, em definitivo, um "clássico", um patrimônio a ser apropriado por todos os que questionam a realidade contemporânea? Como "clássico", deve ser objeto de que tipo de abordagem e utilização? Seu pensamento seria forte o suficiente para quebrar o risco de um "congelamento" filológico — derivado da interpretações fechadas em si, concentradas no manuseio técnico-abstrato de sua produção textual — e por-se como protagonista "vivo" do debate atual? E, nesses termos, que Gramsci surge dos textos e documentos criticamente trabalhados? Um autor a ser reverenciado por sua grandeza ou um pensador capaz de sugerir vias intelectuais com que atravessar as turbulências de hoje, impostas pela complexidade societal, pelo reordenamento do mundo, pelas novas condições do capitalismo, pela alteração dos termos da questão do Estado, pela "crise" da idéia de esquerda?

Bem pesadas as coisas, essas são indagações que jamais deixaram de estar coladas à trajetória de Gramsci e à evolução de seu pensamento ao longo do século XX. Até mesmo porque se trata, hoje, de um pensador consumido por tantas e tão diferentes correntes teóricas, usado como base de apoio e estímulo para diversas operações políticas e culturais, sujeito a interpretações as mais variadas e a um sem-número de riscos conceituais, talvez não seja mais possível encontrar um "único" Gramsci. Talvez não seja sequer desejável: mantidos certos critérios básicos de entendimento e preservado o núcleo (teórico-metodológico, político e cultural) de seu pensamento, os inconvenientes do livre manuseio poderão ser radicalmente minimizados, com ganhos inquestionáveis em termos de difusão e divulgação. Seja como for, o fato é que Gramsci, a rigor, nunca esteve distante da polêmica e da disputa. Que Gramsci fora recolhido nas prisões de Mussolini: o fundador do Partido Comunista Italiano, disciplinado companheiro de Togliatti e dos demais dirigentes partidários, ou o adversário das orientações enviesadas da III Internacional staliniana que chegaria mesmo a ser hostilizado pelos demais companheiros de cela? De que Gramsci iria se falar nos anos 40-50, quando seus Cadernos do Cárcere começavam a ser publicados e se iniciava a afirmação togliattiana de uma nova identidade comunista na Italia? Do mártir antifascista, líder comunista partidário de uma luta sem tréguas contra o capital, ou do teórico defensor da renovação democrática "processual" da sociedade? De que Gramsci falar-se-ia depois, ao longo das décadas sucessivas? Do Gramsci "voluntarista", entusiasta dos conselhos de fábrica, ou do Gramsci "reformista", partidário da unidade das forças reformadoras? De que Gramsci falamos hoje?

Creio ser possível aceitar o ponto de partida estabelecido pelo pesquisador italiano Guido Liguori no importante livro que dedicou à historia da disputa travada em torno de Gramsci entre 1922 e 1996 na Itália: "A Gramsci se reportaram, para exaltá-lo ou condená-lo, para dele se apropriarem ou para rejeitarem-no, os expoentes dos mais importantes filões culturais do século XX italiano, sem nenhuma exceção. Em torno de Gramsci, contrapuseram-se duas diversas leituras". Houve, antes de mais nada, a diversificada e renovada leitura comunista, que acabou por ser um verdadeiro indicador das transformações que caracterizaram a história do PCI. A imagem de Gramsci oscilou: "De chefe da classe operária' e do partido a mártir antifascista; de pai da 'política de unidade' do pós-guerra, 'grande italiano' e 'grande intelectual', a inspirador da via italiana ao socialismo; de expoente da tradição cultural nacional a embaixador do comunismo italiano no mundo e porta-bandeira do eurocomunismo; a comunista crítico, enfim, ponto de partida de uma original possibilidade de ser comunista após a crise do 'socialismo real'". Houve, por outro lado, "a leitura liberal-democrática, liberal-socialista, que com ênfases diferentes re-propôs constantemente, perante o Gramsci comunista, um Gramsci liberal e libertário, mais intelectual que político, freqüentemente usado como critério para avaliar (negativamente, quase sempre de modo não-generoso e apriorístico) seus companheiros de partido e de luta"1 1 G. Liguori, Gramsci conteso. Storia di un dibattito 1922-1996. Roma, Editori Riuniti, 1996,pp.X-XI. . Um Gramsci, poderíamos dizer, instrumentalizado com intenções anticomunistas, usado para demarcar distâncias e diferenças em relação ao comunismo. Um Gramsci interpretado e empregado contra Gramsci.

Como explicar a existência desses "dois Gramsci" permanentemente disputados? Liguori acredita que, na base disso, "encontra-se acima de tudo a riqueza e a complexidade de Gramsci, que fizeram de sua obra um repertório conceituai que podia e pode ser alcançado de muitas partes e com objetivos diversos. Trata-se de um fato inegavelmente positivo, talvez a melhor prova da grandeza de um autor. Gramsci, além do mais, demonstrou ser mais avançado do que quase todos os seus intérpretes, além de mais aberto e mais rico em problematicidade. A peculiaridade da sua trajetória biográfica também contribuiu para tornar possíveis leituras as mais diferenciadas. Por uma combinação de razões históricas, portanto, Gramsci tornou-se o teatro em que se combateu parte decisiva da batalha pela hegemonia na Itália e na esquerda italiana, e o seu destino foi o de ser simultaneamente arma ideológica e aposta, 'protagonista' deste confronto e espaço no qual mediram-se forças, projetos, hipóteses teóricas e políticas"2 2 Idem, ibidem, pp. XI-XII. .

Algo desse processo de produção de "vários" Gramsci também pode ser registrado no Brasil, país onde a recepção do pensador italiano não só foi precoce (data dos anos Sessenta o início da publicação das partes mais conhecidas dos Cadernos), como ganhou forte intensidade a partir da segunda metade dos anos 70 e sobretudo ao longo dos anos 80. Nesse período, o pensamento de Gramsci desempenhou inquestionável função renovadora nos diversos ambientes de esquerda, foi freqüentado por muitos intelectuais de orientação liberal ou socialdemocrática e consumido por áreas católicas, recebeu tratamento livre da parte de numerosas disciplinas acadêmicas "especializadas", teve parte de seu léxico (sociedade civil, intelectual orgânico, bloco histórico, hegemonia) incorporado ao linguajar corrente e chegou mesmo a virar moda.3 3 Para uma apreciação da recepção de Gramsci no Brasil, remeto ao meu texto "Gramsci, a questão democrática e a esquerda no Brasil", in Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira (orgs.), Gramsci e a América Latina. 2ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993. O que indica claramente, dentre outras coisas, o poder de sedução de sua obra e a capacidade a ela inerente de "dialogar" com diferentes interlocutores. Indica também a força evocativa da própria trajetória biográfica de Gramsci, um homem que soube juntar pensamento e ação, teve uma vida triste e repleta de derrotas, foi encarcerado quando se encontrava no auge político-intelectual e que precisamente na prisão conseguiu dar curso a uma vigorosa produção teórica. 4 4 O uso instrumental de Gramsci por parte de políticos e intelectuais brasileiros prossegue sem interrupções. Em uma recente entrevista ( Veja, setembro de 1997), o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, aproveitou-se de um artigo de Massimo D'Alema, secretário-geral do PDS italiano, no qual se afirma, dentre outras coisas, que Gramsci extraía do comunismo o "senso do processo histórico e do interesse coletivo mas estava ligado a uma cultura liberal e até liberista, que exalta o indivíduo e sua função", para acenar com a construção de um Gramsci não mais "marxista-leninista-estatizante", já que vinculado aos "valores de liberdade, dinamismo e responsabilidade individual" que hoje integram aquilo que "se poderia chamar de liberalismo". O "Gramsci liberal" do presidente, se de um lado mostra capacidade que tem o pensamento gramsciano de penetrar nos mais recônditos e inesperados espaços políticos e culturais, de outro lado denuncia a implementação de uma clara operação ideológica, destinada a provocar a esquerda brasileira e a veicular a face moderna e progressista de um governo que encontra não poucas dificuldades de legitimação.

A ATUALIDADE DE GRAMSCI

Detalhes e inflexões à parte, parece certo que o pensamento de Gramsci continua vivo e atual, contrastando, nesse particular, com a opacidade e o silêncio teórico da esquerda. Muitos de seus problemas são os nossos problemas. Praticamente todos reconhecem, também, que, no campo do marxismo, Gramsci é o principal ponto de referência de um movimento de renovação. Talvez seja ele o único pensador político a nos deixar em condições de "ler" Marx com lentes dialéticas, capazes de surpreender as rápidas sinuosidades deste fim-de-século e de superar os limites doutrinaristas, o determinismo mecânico, a lógica fria das "estruturas". Gramsci não nos concede a prática de um marxismo recluso em si, até mesmo porque seu modo de ser marxista nos convida ao espírito crítico e à curiosidade cultural; seus textos, aliás, são costurados por incessantes jatos de renovação e pela preocupação constante de sublinhar a natureza histórico-dialética de Marx. O marxismo de Gramsci tem uma clara dimensão anti-fatalista e traz consigo uma vocação para ser "filosofia da práxis". Está fortemente fixado no político, na criatividade do sujeito humano e na natureza sempre mais inovadora e "surpreendente" da política moderna.

Gramsci, além do mais, é um teórico da crise: da crise do Estado, da democracia representativa, do liberalismo, das tradicionais relações entre as massas e a política. A crise que interessava a Gramsci não era mera derivação da dinâmica econômica, subproduto mecânico das contradições da acumulação capitalista, mas um processo amplo e complexo: era uma "crise orgânica", uma "crise do Estado em seu conjunto", uma "crise de hegemonia", como ele escreveu diversas vezes nos Cadernos.5 5 As citações feitas a seguir são extraídas de Quaderni del carcere. Edição crítica de V. Gerratana. Torino, Einaudi, 1975, e serão indicadas no corpo do texto com a letra Q, seguida do número da página. Não é uma boa forma de abordar a crise dos dias de hoje? A idéia de crise em Gramsci acentuava os elementos de "desagregação" da vida estatal sob o capitalismo: a burguesia, constatava, "está 'saturada'; não só não se expande como se 'desagrega'; não só não assimila novos elementos como desassimila uma parte de si mesma" (Q, 937). Tratava-se, em suma, de um "processo que tem muitas manifestações e no qual causas e efeitos se complicam e se superpõem. Simplificar, nesse caso, significa desnaturar e falsificar" (Q, 1755).

Da necessidade de alcançar uma teorização compatível com as dimensões daquela transfiguração "epocal" Gramsci extrairá os fundamentos da teoria da hegemonia, parte decisiva da sua teoria política. Afinal, se a crise do pós-guerra era profunda e radical, por que não trazia consigo imediatamente a revolução? Que mecanismos ela desencadeava para conseguir novas formas de adesão dos subalternos ao capitalismo? O que falhava e o que funcionava? Como e através de quais instrumentos eram os homens (massas e indivíduos) recapturados pelas classes dominantes ou engolfados por uma dinâmica oposicionista? De que modo as instituições político-culturais e a vida associativa reagiam àquela nova fase, como ficavam as relações entre dirigentes e dirigidos, governantes e governados? Em suma, como se organizavam, através do Estado e do aparato institucional, os grupos fortes da sociedade? Gramsci perceberá que, naqueles anos, o "aparato de governo espiritual" estava sendo "reduzido a pedaços" (Q, 84) e que as grandes massas "que se separaram das ideologias tradicionais já não crêem mais no que acreditavam antes". Porém, não se armava um estado de espírito oposicionista e menos ainda uma mobilização coletiva radicalmente contrária ao estado de coisas. O "velho" morria e deixava de orientar os indivíduos, ao passo que o "novo" já anunciado ainda não pudera nascer, interregno no qual se verificavam "os fenômenos morbosos mais variados" (Q, 311). As massas, até então passivas, dirá ele, "entram em movimento, mas em um movimento caótico e desordenado, sem direção, isto é, sem uma precisa vontade política coletiva" e as forças antagônicas "mostram-se incapazes de organizar em seu benefício tal desordem de fato" (Q, 912-913). Tratava-se, assim, de uma crise de hegemonia: "No período do pós-guerra, o aparato hegemônico se estilhaça e o exercício da hegemonia torna-se permanentemente difícil e aleatório. A crise apresenta-se praticamente na sempre crescente dificuldade de formar os governos e na sempre crescente instabilidade dos próprios governos" (Q, 1638-1639).

Diante desse quadro, como reagir? Com o mesmo marxismo mal-digerido, tosco e canonizado que então se praticava nos ambientes da III Internacional, atravessado por um viés economicista que o mantinha aferrado a posições ingênuas e o incapacitava para pensar a "complexidade" que se constituía a olhos vistos? Com os programas "radicais" que pregavam a plena recuperação da política de "classe contra classe" e afastavam os revolucionários do cotidiano empírico do movimento operário e sindical? Com a visão de urna vanguarda partidária onisciente e toda-poderosa, formada por abnegados quadros profissionais que mal conseguiam conviver com a classe que queriam comandar?

O que propunha Gramsci? Basicamente, ele falava numa nova idéia de política: não mais o momento hipostasiado da força, mas o momento da hegemonia, da direção intelectual e moral, da construção de consensos. Ao invés de golpes revolucionários, privilegiava a ação persistente de sujeitos coletivos capazes de protagonizar processos "fortes" e extensos de revolução. Sustentado por essa inspiração de fundo, construiu uma teoria ampliada do Estado, compatível com uma época em que a política se socializava, saindo do terreno dos notáveis e das querelas parlamentares para o das lutas de massas. Nessa concepção, a política deixava de se identificar com o Estado e se voltava para a sociedade civil. Deixava de se reduzir à idéia de potência para se colar à idéia de hegemonia, acompanhando as alterações que se processavam na forma do Estado, nas relações Estado/economia e Estado/massas. Para Gramsci, a nova fase da política derivava de uma mudança no padrão da acumulação (novas tecnologias, esgotamento da regulação pelo mercado), mas se realizava especialmente como complexificação das funções estatais e como configuração de um "Estado de massas", que se conectava com o "aparato privado" de hegemonia e invadia a sociedade civil igualmente complexificada, isto é, enriquecida com a presença dos grandes partidos e sindicatos de massa. O Estado gramsciano era já um "outro" Estado: mais forte, mais "complexo" e articulado. Um Estado que exigia, para ser pensado e enfrentado, uma "nova" política. Impossível ir "contra o Estado" sem uma teoria do governar, isto é, do dirigir, do transformar, do administrar, do responder às demandas societais e do propor.

A nova qualidade do Estado trazia consigo a necessidade de uma nova perspectiva analítica e de um aparato categorial mais vasto, com o qual fosse possível apreender aquilo que redefinia a estrutura da dominação política: a coerção, o "monopólio legítimo da violência", ação típica da "sociedade política", precisava ser ajustada à imprescindível busca de consensos. O ato de governar deveria agora obter o "consenso dos governados" não mais como "consenso genérico e vago" que "se afirma no instante das eleições", mas como "consenso organizado". O Estado, observava, "tem e pede o consenso, mas também 'educa' esse consenso utilizando as associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa particular da classe dirigente" (Q, 56). O terreno das associações privadas tornava-se, assim, uma espécie de "dimensão civil" do Estado, base material da hegemonia política e cultural. Estado (coerção) e sociedade civil (consenso) passavam, desse modo, a ser vistos como instâncias distintas mas integradas, formando uma unidade — não uma antítese, menos ainda uma dicotomia. Reuniam-se, portanto, dialeticamente. O Estado, dizia Gramsci, é sempre uma combinação dialética de hegemonia e coerção. "O exercício 'normal' da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar 0ae escreverá ae, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram variadamente sem que a força suplante muito o consenso, ou melhor, procurando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expressado pelos chamados órgãos da opinião pública" (Q, 1638). O dirigente político, o estadista, o revolucionário deveria seguir sempre esta "dupla perspectiva" de inspiração maquiaveliana (a sabedoria política depende da capacidade de usar "tanto o homem quanto o animal, a perspicácia da raposa e a força do leão), "correspondentes à dúplice natureza do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e do momento universal (da 'Igreja' e do 'Estado'), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia" (Q, 1576).

Gramsci estava convencido de que a combinação de força e hegemonia fazia parte da própria realidade e devia ser buscada pelo sujeito revolucionário que desejasse triunfar. Pôs tal idéia na base mesma da renovação conceituai que introduziria na teoria do Estado: "na noção geral de Estado entram elementos que também são comuns à noção de sociedade civil (no sentido, poder-se-ia dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção)". Com isso, "pode-se imaginar que o elemento Estado-coerção está se exaurindo na medida em que se afirmam elementos sempre mais conspicuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)" (Q, 763-764).

A transição para o "Estado de massas", para o Estado com sociedade civil fortalecida, também alterava as formas da ação política e particularmente da ação revolucionária: da "guerra manobrada (e do ataque frontal)" passava-se para a "guerra de posições", alteração vista como sendo "a mais importante questão de teoria política posta pelo período do pós-guerra, a mais difícil de ser resolvida" (Q, 801). Gramsci não pensava que essa era uma questão de escolha, de preferência. Tratava-se de uma imposição histórica, de algo derivado da nova relação de forças nascida das transformações políticas e sociais. Ao menos nos Estados mais avançados civil e industrialmente, a "guerra" devia se "reduzir a funções táticas mais do que estratégicas", posto ter a sociedade civil se transformado "numa estrutura muito complexa e resistente às 'irrupções' catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.)". A "estrutura maciça das democracias modernas" — seja como organizações estatais, seja como complexo de associações na vida civil ou "superestruturas da sociedade civil" — passava assim a funcionar "como o sistema de trincheiras na guerra moderna", fazendo com que se tornasse "apenas 'parcial' o elemento do movimento que antes constituía 'toda' a guerra" (Q, 1567, 1615).

O que significava dizer, dentre muitas outras coisas, que a operação de construção de uma nova hegemonia — base para a afirmação de uma nova autoridade política — não poderia se limitar à conquista do aparato governamental, da dominação, mas tinha de se concentrar na explicitação de uma nova capacidade de direção intelectual e moral. Uma classe em luta pela própria afirmação política deve ser dirigente antes de ser dominante, precisa dirigir para poder governar. O consenso torna-se o fundamento e a garantia de uma dominação duradoura e, acima de tudo, democrática: "Um grupo social pode e aliás deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (essa é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder, e mesmo que o conserve firmemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também 'dirigente'" (Q, 2010-2011).

Gramsci, em suma, descobriu na sociedade civil fortalecida a chave para elaborar uma "teoria ampliada do Estado". Via a sociedade civil como um espaço inerente ao exercício da dominação política, "no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado" (Q, 703). Tratava-se de um espaço organizacional complexo, ocupado por uma "multiplicidade de sociedades particulares de duplo caráter, natural e contratual ou voluntário", que constituem "o aparato hegemônico de um grupo social sobre o resto da população, base do Estado entendido estritamente como aparato governativo-coercitivo" (Q, 800). Como é fácil perceber, estamos bem distantes do conceito hoje em moda de "sociedade civil", que vê nesse espaço de luta ideológica um contraponto mecânico do Estado e da economia, quer dizer, um "outro" e autônomo plano da realidade em nada, ou em quase nada, vinculado seja ao mundo dos interesses materiais, seja ao mundo do Estado propriamente dito. Em Gramsci, acentua-se sempre a dialética de unidade/distinção entre economia/sociedade civil/Estado, a partir da qual a sociedade civil passa a significar o locus em que se organiza a subjetividade política como expressão de uma dada economia, ou seja, como parte integrante do processo global de reprodução das relações de classe. Exatamente por isso, os sujeitos da sociedade civil são candidatos à dominação/ hegemonia na medida em que "se fazem Estado". Sem Estado (sem um nexo com o Estado e sem uma perspectiva de Estado), portanto, não pode existir sociedade civil digna de atenção e menos ainda associada ao universo gramsciano: sem Estado não pode existir hegemonia. Nada mais estranho a Gramsci — e seria mesmo possível dizer, ao marxismo — do que a visão hoje em voga de uma "sociedade civil" maniqueisticamente pensada como o oposto virtuoso do Estado, como um reino desencarnado de política, no qual os interesses (os movimentos sociais, as associações, as iniciativas ativadoras de direitos) fluiriam em inteira liberdade e em inteira liberdade colocariam em xeque o sistema de ordem constituído. Uma "sociedade civil" sem Estado aproxima-se da imagem de uma "selva" na qual coexistem interesses fechados em si, pouco "comunicantes" e permanentemente avessos aos "controles" democráticos da comunidade política ae situação em que estaria, no mínimo, dramaticamente prolongada a não-resolução do problema de saber quem equaliza os interesses, protege os mais fracos e garante direitos e conquistas. Situação, também, em que já não existiria mais a possibilidade de afirmação de uma hegemonia.

Com suas descobertas, Gramsci estabeleceu as condições para uma dilatação do conceito de Estado, que passaria a ser concebido não só como "sociedade politica" — isto é, como "aparelho de coerção estatal que assegura 'legalmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem', nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (Q, 1519) —, mas também como "aparato privado de hegemonia ou sociedade civil" (Q, 801), ou seja, como "organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo" (Q, 1584). O grupo dominante, nesse caso, passava a se "coordenar com os interesses gerais dos grupos subordinados" e a vida estatal passava a ser "concebida como uma contínua superação de equilibrios instáveis entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados" (Q, 1584). O Estado era assim "retotalizado": tornava-se "todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém o seu domínio como também consegue obter o consenso ativo dos governados" (Q,1765).

É precisamente essa "teoria ampliada do Estado", esse modo rico e original de pensar a política, de conceber os tempos e os ritmos do processo revolucionário compatível com a época de crise do Estado liberal e de complexificação da sociedade e da política, que fazem de Gramsci um pensador de valor estratégico para os dias de hoje. Ao estruturar seu pensamento em torno desses dois eixos — a crise e a complexificação da política —, Gramsci não apenas reservou para si um espaço singular no interior do marxismo, como também pôs-se numa clara perspectiva de futuro. Conseguiu, assim, não só manter vivo o pensamento de Marx na difícil conjuntura do entre-guerras como também viabilizá-lo para concorrer com a teoria política dos adversários e analisar os posteriores desdobramentos da vida política e social. Talvez por isso possa ser visto como o único grande pensador marxista em condições de revitalizar o marxismo (como teoria e como Weltanschaung) nas atuais circunstâncias históricas, nas quais a política está definida precisamente pelos fenômenos da crise e da complexidade, correspondendo, de resto, a uma época de crise, de sujeitos fraturados, de refluxo no protagonismo de massa, de cultura com baixa densidade utópica.

UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA PARA A ESQUERDA 6 6 Reproduzo aqui, de modo bastante resumido, algumas passagens do texto "Gramsci e os desafios da política democrática", preparado para o Seminário "Gramsci: a vitalidade de um pensamento" (UNESP, Campus de Franca, maio de 1997), ora em vias de publicação.

Com quais desafios se defronta a esquerda para desenhar e impulsionar uma efetiva política democrática de transformação? Em primeiro lugar, o desafio da democracia. Como preservar, consolidar e ampliar a democracia, cada vez mais ameaçada pelo egoísmo maduro e encorpado presente nas sociedades complexas, pela crise do Estado-nação e da política, por aquela "tirania do tempo real" que "tende a liquidar a reflexão do cidadão em benefício de uma atividade reflexa" de que fala Paul Virilio?7 7 P. Virilio, Cybermonde, la politique du pire. Paris, Les Editions Textuel, 1996, p. 84. A "tirania do tempo real", observa esse autor, "é uma sujeição do telespectador. A democracia está ameaçada em sua temporalidade, já que a expectativa de um juízo tende a ser suprimida. A democracia é a expectativa de uma decisão tomada coletivamente. A democracia live, a democracia automática, liquida essa reflexão em benefício de um reflexo". Hoje, juntamente com os direitos sociais, estão postos em xeque os fundamentos mesmos da democracia, seus valores, suas instituições centrais, seus sujeitos clássicos. Como fazer para recriá-la?

Em segundo lugar, o desafio da nova organização do mundo, isto é, da globalização capitalista, dos blocos econômicos regionais, das operações transnacionais, das redes de dados e informações, dos sofisticados mecanismos de financeirização. Tudo nos impele para novas formas de integração e de supremacia, em meio ao inédito aprofundamento da crise do Estado-nação e do princípio da soberania absoluta e à irrupção de tensões entre as nações e no interior das nações. O desafio da cooperação, de uma nova solidariedade, de uma nova convivência entre os povos, portanto, está dramaticamente dilatado: trata-se de encontrar meios de equacionar o processo da interdependência no plano externo e o processo da unificação democrática (e da recomposição do espaço público) no plano interno. Que "vontade coletiva" dirigirá essa transição? Que instância poderá garantir direitos e reivindicações e balizar a continuidade da luta cotidiana? Que idéia de política poderá unificar em termos superiores os múltiplos pedaços da sociedade e construir uma direção intelectual e moral? Seguramente não a idéia de política como potência, que vê o Estado como "pura força" e, precisamente por isso, impõe, afasta e separa, ao invés de coordenar, aproximar e unir.

A questão do Estado e do espaço público encontra na hipótese gramsciana do "fortalecimento da sociedade civil" um poderoso aliado. Naquilo que tem de vida associativa, de estruturação de "famílias" ideológicas, de possibilidade de ativação de energias coletivas, a sociedade civil é o locus principal para uma requalificação radical da "sociedade política" e, nestes termos, para a organização ou revitalização do espaço público e a atribuição de um novo sentido ao Estado. Para o que é preciso romper, antes de tudo, com qualquer modalidade de sociedade civil hipostasiada, vista como negação do Estado, como instância que por si só conteria o impulso renovador de todas as coisas.

Em terceiro lugar, o desafio do trabalho, vetor a partir do qual organizaram-se o mundo moderno, a cultura contemporânea, a democracia e a identidade das esquerdas. Hoje, a sombra do "fim do emprego" transformou-se num incômodo descomunal, que interfere nas formas mesmas de reprodução da vida social e amplifica ao extremo as conseqüências da fragmentação e do corporativismo, complicando a discussão a respeito das relações entre "incluídos" e "excluídos", da cidadania, dos sujeitos políticos. Escancarou-se assim a face mais perversa da nossa época: problematizou-se dramaticamente o trabalho, que, de direito fundamental, de fator estruturante da vida mesma (material, cultural e psicológica) dos indivíduos, ameaça tornar-se atividade não-essencial. De fonte de satisfação de necessidades básicas, o trabalho parece estar se convertendo em fonte de problemas: em torno dele pelejam os que estão "dentro" e os que estão "fora", "comunitários" e "extra-comunitários", estilhaça-se a já precária unidade sindical, exponencia-se o egoísmo defensivo de cada cidadão e arde a solidariedade de classe.

Em quarto lugar, o desafio da esquerda. Como ser de esquerda, radical e democrata — se se quiser: comunista— num mundo que isola e fragmenta, esvazia de sentido a política, confunde identidades e dissolve organizações duramente construídas? Como manter de pé a grande utopia da "sociedade regulada", do socialismo, da igualdade, num momento histórico que hipostasia o presente imediato, cancela o futuro, promove a expansão da exclusão e da desigualdade em nome da "modernidade" e de uma vida com menos trabalho? Como, em suma, ser de esquerda quando os sinais "direita" e "esquerda" já não são claros para muitas pessoas e inúmeros socialistas tendem a se deixar atrair por formas confusas de política de poder, pelo "pragmatismo" ou mesmo pela mudança de campo? Manter-se à esquerda, hoje — quando as derrotas sofridas pela esquerda são mais eloqüentes do que sua capacidade propositiva — é, na verdade, o maior dos desafios. Mas é também, ao mesmo tempo, uma espécie de "imperativo categórico" da própria democracia: como sustentar a democracia — como ideal, como sistema institucional e como forma social — sem uma esquerda como horizonte valorativo, como cultura e como força?

A "crise da esquerda" atingiu, nos últimos anos, um ponto de inegável consistência. Não se trata só de perceber que há uma rarefação de movimento prático questionando a ordem vigente e construindo novos caminhos para a vida social. Mais grave é a cristalização de um buraco de proporções ainda não-calculadas na esfera do pensamento: a rigor, já não temos mais a diferenciação clara de um campo ideológico de esquerda, capaz de se pôr na vanguarda política e cultural e de oferecer, aos cidadãos em geral mas sobretudo aos inconformados, aos discriminados, aos explorados, alguns sonhos materializáveis e o desenho de um novo futuro. Claro, o pensamento crítico ainda pulsa em muitas cabeças, mas não consegue colar-se à política e nem mesmo difundir-se entre os intelectuais. Vive-se, em muitos ambientes, sob o império do "pensamento único" e da "morte" dos temas clássicos da esquerda: partidos, militância, coerência de princípios, ligações com os "de baixo", projetos de futuro. Diz-se com tranqüilidade, com base numa visão neofuncionalista e conservadora da "complexidade", que a política se converteu em mero jogo de cálculos e interesses, espaço repleto de marketing, de mercado, de eleitores que "flutuam", de irresolúveis "problemas técnico-institucionais".

Mesmo no campo dos que continuam a pelejar pela realização das grandes utopias da esquerda e a buscar explicações para o mundo em um esforço de atualização dos temas e valores clássicos da esquerda, o cenário está longe de ser tranqüilo. Antes de mais nada, não há muitos consensos. A quem eleger como sujeito da transformação socialista? Aos trabalhadores ou aos "excluídos"? Como viabilizar a transformação? Com ou sem partidos? Com qual modelo de partido? Atribuindo qual papel ao Estado? A partir de que noção de democracia? Com qual idéia de política? Dada a reiteração dos valores clássicos do socialismo, com quais projetos e medidas práticas poderão eles ser validados? Todos são temas estratégicos e não-resolvidos.

Deveria a esquerda permanecer, nesta paradigmática virada de século, limitada a seguir a velha tradição social-democrática e a buscar a conciliação da globalização da economia com a implementação de políticas sociais ativas? Seria esse o seu programa "máximo" para o momento? Em que ponto dar-se-ia a distinção entre uma esquerda gestora dos movimentos de reposição do capitalismo e uma esquerda propositora de novas formas de organização social?

A crise da esquerda é real. Tem determinações claras. De um ângulo mais geral, está imposta pela alteração categórica do padrão de organização da economia e do trabalho, que tolheu o nervo da esquerda histórica. Mas a crise também é um produto da emergência de novos interesses sociais, que reforçam o individualismo e reduzem o coletivismo. É um produto da "fuga" que parece separar as massas e a política. E é, enfim, um produto da transformação da política em "técnica" e do esvaziamento utópico. A esquerda está sendo "devorada" pelos interesses emergentes e pela exacerbação dos particularismos de antes. As massas, antes disponíveis para projetos coletivos, fragmentaram-se e afastaram-se da política, que sempre foi o grande espaço da esquerda. Na hipótese melhor, passaram a engordar os sindicatos, que sempre foram um "problema" para a esquerda.

Mas a esquerda também foi simultaneamente abalada pela queda do Muro e pela força da globalização capitalista, que sugou o componente socialista da social-democracia e dilatou seu componente de mercado, democrático-liberal. Em decorrência, a esquerda foi perdendo noção de si, audiência e capacidade de proposição. Hoje, em muitos países, é impelida a coadjuvar governos estranhos a ela; em outros, limita-se a fazer o papel de verdugo inconseqüente dos governantes. A chegada ao poder de partidos ou coligações de esquerda já não parece mais trazer consigo, necessariamente, a realização efetiva de um programa de esquerda.

O mundo atual, que multiplica sem cessar a desigualdade e a exclusão, não pode dispensar a presença de uma esquerda forte, com identidade cultural e programática, não só uma esquerda "de governo" no sentido fraco da palavra. O momento requer coerência e radicalidade. Impossível avançar com base num "oposicionismo" abstrato, de circunstância, reduzido a um "eterno" estar-fora-do-poder ou contrário a um ou outro governante em função de mesquinhos cálculos eleitorais. Faz-se necessário um oposicionismo consistente, dedicado a analisar criticamente os fundamentos mesmos da atual organização econômica, política e social. Isso significa que se deve passar a trabalhar — como pensava Gramsci nos Cadernos — não tanto em favor de uma imediata "chegada ao poder", mas em favor da progressiva construção de uma efetiva alternativa democrática (que preveja, entre outras coisas, um novo estilo de governar, uma nova política econômica, uma nova forma de abordar os temas sociais).

O contato da esquerda com o pensamento de Gramsci mostra-se de uma fecundidade à toda prova. Afinal, tal como nos anos Vinte e Trinta, a crise dos nossos dias não se anuncia como terminal. De todas as partes surgem indicações de que o capitalismo, em que pesem suas monstruosidades e contradições, demonstra possuir reservas para sustentar, talvez não um novo ciclo expansivo, mas seguramente uma sobrevida duradoura. Trata-se da reafirmação de uma hegemonia, que hoje se alimenta das sobras da cultura neoliberal e de toda a engenharia, individualista, "virtual" e "mediática" de que se impregnaram as sociedades contemporâneas. Mas o terreno da reposição do capitalismo é também o terreno da reiteração dos seus paradoxos e contradições. É o terreno em que são reafirmadas as razões da esquerda.

A situação exige uma nova idéia de esquerda. Uma nova idéia de esquerda para uma esquerda que precisa ser nova, concentrar-se no social mas ter os olhos no Estado-comunidade, opondo, além do mais, um projeto de sociedade à prevalência do "institucional", do eleitoral, da "força" e do "espetáculo" na política. Uma nova esquerda que talvez não possa nascer e se expandir sem um pensamento que consiga — a exemplo do que fez Gramsci — extrair o máximo do marxismo e das tradições culturais do socialismo, medindo-se sem pretensões arrogantes com a inventividade das demais correntes teóricas. Um pensamento que saiba ser, sobretudo, contemporâneo da sua própria época e dialogar com toda a sociedade. Que esteja embebido de visão de futuro, inteligência e cultura, de capacidade de produzir consensos e "interesses gerais".

Para tudo isso, a obra de Gramsci fornece mais que estímulos e sinais animadores: oferece uma perspectiva. Quer dizer, precisamente o elemento decisivo para que seja possível não só freqüentar a "grande transformação" em que hoje nos encontramos, mas direcioná-la para fins mais justos e generosos, mantendo viva a grande utopia gramsciana de passar de uma sociedade de governantes e governados para uma sociedade de governados que governam.

  • * Texto preparado como base para uma intervenção no grupo de trabalho "Governati e governanti: socialismo e democrazia", parte integrante do Seminário "Antonio Gramsci da un secolo all'altro", organizado pela International Gramsci Society e realizado entre 16 e 18 de outubro de 1997 em Nápoles, Itália.
  • 1 G. Liguori, Gramsci conteso. Storia di un dibattito 1922-1996. Roma, Editori Riuniti, 1996,pp.X-XI.
  • 3 Para uma apreciação da recepção de Gramsci no Brasil, remeto ao meu texto "Gramsci, a questão democrática e a esquerda no Brasil", in Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira (orgs.), Gramsci e a América Latina. 2Ş edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
  • 5 As citações feitas a seguir são extraídas de Quaderni del carcere. Edição crítica de V. Gerratana. Torino, Einaudi, 1975,
  • 6 Reproduzo aqui, de modo bastante resumido, algumas passagens do texto "Gramsci e os desafios da política democrática", preparado para o Seminário "Gramsci: a vitalidade de um pensamento" (UNESP, Campus de Franca, maio de 1997),
  • 7 P. Virilio, Cybermonde, la politique du pire. Paris, Les Editions Textuel, 1996, p. 84.
  • *
    Texto preparado como base para uma intervenção no grupo de trabalho "Governati e governanti: socialismo e democrazia", parte integrante do Seminário "Antonio Gramsci da un secolo all'altro", organizado pela International Gramsci Society e realizado entre 16 e 18 de outubro de 1997 em Nápoles, Itália.
  • 1
    G. Liguori,
    Gramsci conteso. Storia di un dibattito 1922-1996. Roma, Editori Riuniti, 1996,pp.X-XI.
  • 2
    Idem, ibidem, pp. XI-XII.
  • 3
    Para uma apreciação da recepção de Gramsci no Brasil, remeto ao meu texto "Gramsci, a questão democrática e a esquerda no Brasil", in Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira (orgs.),
    Gramsci e a América Latina. 2ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
  • 4
    O uso instrumental de Gramsci por parte de políticos e intelectuais brasileiros prossegue sem interrupções. Em uma recente entrevista (
    Veja, setembro de 1997), o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, aproveitou-se de um artigo de Massimo D'Alema, secretário-geral do PDS italiano, no qual se afirma, dentre outras coisas, que Gramsci extraía do comunismo o "senso do processo histórico e do interesse coletivo mas estava ligado a uma cultura liberal e até liberista, que exalta o indivíduo e sua função", para acenar com a construção de um Gramsci não mais "marxista-leninista-estatizante", já que vinculado aos "valores de liberdade, dinamismo e responsabilidade individual" que hoje integram aquilo que "se poderia chamar de liberalismo". O "Gramsci liberal" do presidente, se de um lado mostra capacidade que tem o pensamento gramsciano de penetrar nos mais recônditos e inesperados espaços políticos e culturais, de outro lado denuncia a implementação de uma clara operação ideológica, destinada a provocar a esquerda brasileira e a veicular a face moderna e progressista de um governo que encontra não poucas dificuldades de legitimação.
  • 5
    As citações feitas a seguir são extraídas de
    Quaderni del carcere. Edição crítica de V. Gerratana. Torino, Einaudi, 1975, e serão indicadas no corpo do texto com a letra
    Q, seguida do número da página.
  • 6
    Reproduzo aqui, de modo bastante resumido, algumas passagens do texto "Gramsci e os desafios da política democrática", preparado para o Seminário "Gramsci: a vitalidade de um pensamento" (UNESP, Campus de Franca, maio de 1997), ora em vias de publicação.
  • 7
    P. Virilio,
    Cybermonde, la politique du pire. Paris, Les Editions Textuel, 1996, p. 84. A "tirania do tempo real", observa esse autor, "é uma sujeição do telespectador. A democracia está ameaçada em sua temporalidade, já que a expectativa de um juízo tende a ser suprimida. A democracia é a expectativa de uma decisão tomada coletivamente. A democracia
    live, a democracia automática, liquida essa reflexão em benefício de um reflexo".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2010
    • Data do Fascículo
      1998
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br