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O novo enfoque do Banco Mundial sobre o estado

The new approach of the World Bank concerning the state

Resumos

Analisa-se o modo como o relatório do Banco Mundial de 1997 "O Estado num mundo em transformação" repõe o Estado como ator político fundamental e como nele transparecem as dificuldades propriamente políticas (independentes, portanto, da mera vontade das elites) para levar a efeito em curto prazo a reforma do Estado.


The recovery of the state as a key political actor in the World Bank 1997 Report is analysed, with particular attention to the properly political (and therefore independent of the mere will of the elites) obstacles to achieving in a short time the reform of the state.


INSTITUIÇÕES

O novo enfoque do Banco Mundial sobre o estado

The new approach of the World Bank concerning the state

Valeriano Mendes Ferreira Costa

Professor no Departamento de Política do IFCH/UNICAMP

RESUMO

Analisa-se o modo como o relatório do Banco Mundial de 1997 "O Estado num mundo em transformação" repõe o Estado como ator político fundamental e como nele transparecem as dificuldades propriamente políticas (independentes, portanto, da mera vontade das elites) para levar a efeito em curto prazo a reforma do Estado.

ABSTRACT

The recovery of the state as a key political actor in the World Bank 1997 Report is analysed, with particular attention to the properly political (and therefore independent of the mere will of the elites) obstacles to achieving in a short time the reform of the state.

Desde que Margareth Thatcher, há quase vinte anos, iniciou seu audacioso projeto de reforma do Estado, a maior parte dos países já passou, vem passando ou prepara-se para enfrentar reorganizações mais ou menos profundas - e mais ou menos bem sucedidas - de suas estruturas estatais. Mesmo países de grande tradição democrática e estabilidade institucional, como os Estados Unidos, vêm-se com freqüência envolvidos em processos de reorganização administrativa de amplo escopo1 1 March e Olsen (1983) contabilizaram desde o início do século até o governo Carter (1977-1980), 12 comissões do Congresso e do Executivo que resultaram em amplas reformas de estruturas e procedimentos administrativos tanto no Legislativo como no Executivo norte-americanos. É importante notar que deste levantamento estão excluídas as reformas no processo orçamentário de grande impacto no relacionamento entre os dois poderes. . Apesar da retórica em torno da inércia e da rigidez que caracterizariam as burocracias estatais, as administrações públicas em países ditos desenvolvidos têm sido alvo de freqüentes reformas visando o aumento da eficiência e da eficácia na prestação dos serviços públicos.

Por outro lado, nos países em desenvolvimento, onde os problemas de eficiência e eficácia das administrações públicas são reconhecidamente mais graves, a necessidade de reformas estruturais do Estado, desde pelo menos a primeira crise do petróleo em 1973, aparece no discurso das elites políticas locais como um imperativo inadiável e incontornável. Neste sentido, o relatório do Banco Mundial de 1997 "O Estado num Mundo em Transformação", apenas incorpora, com bastante atraso, uma preocupação comum à ampla gama de países que regidos pelos mais diversos princípios de organização política e administrativa enfrentam enormes dificuldades de se integrar à economia internacional, e não ser simplesmente absorvido de forma desorganizada pelo chamado processo de globalização.

Uma análise mais detida do relatório do Banco Mundial publicado em 1997 pode ser interessante na medida em que ele reflete o aprofundamento do processo de globalização sob dois ângulos pouco explorados: 1) por um lado, sob uma perspectiva propriamente intelectual ele pode ser considerado o resultado de um esforço de convergência teórica que reune diversas linhagens como a da "escolha racional", a (neo)estruturalista e a neoinstitucionalista, num empreendimento coletivo de amplas dimensões e bastante ambicioso: diagnosticar e apontar soluções para a crise global (ou melhor, de globalização) que afeta diferenciadamente estados em todas as regiões do mundo (agora, até mesmo o Japão e os "tigres asiáticos" que haviam escapado ao âmbito de preocupação do relatório); 2) de outro ângulo, este de caráter político, o relatório representa um novo enfoque, cujo impacto ainda não pode ser perfeitamente avaliado, que repõe o Estado como ator de primeira linha no cenário das transformações do mundo contemporâneo2 2 Sob o impacto da mais recente crise financeira global que atingiu a Rússia e o Brasil, os governos dos países que compõem o G-7 estão considerando a criação de novos mecanismos (ou instituições) de regulação dos fluxos financeiros e de investimento que certamente terão repercussões significativas na esfera das atribuições dos estados nacionais. Provavelmente não no sentido de um fortalecimento da soberania dos estados, mas no sentido de que os governos terão um papel crescente em processos de coordenação de políticas de regulação global da economia decididas em instâncias internacionais. .

É certamente possível e desejável ressaltar os aspectos positivos desse empreendimento, como a correta ênfase do relatório no fortalecimento institucional do setor público como pressuposto para a "flexibilização" das relações entre Estado e sociedade que se desdobra nos conceitos de transparência, participação e descentralização. Ou, ainda, o destaque que o relatório dá a questões como a corrupção sistêmica; a incerteza ou insegurança jurídica que assola grande parte do países em desenvolvimento; o comportamento arbitrário de muitos governos formalmente democráticos; e temas correlatos, como o caráter "predatório", patrimonialista e clientelista de muitos Estados que de outra perspectiva poderiam ser considerados "modernos" — como alguns tigres asiáticos late comers (p. ex., Indonésia, Filipinas e até a poderosa Coréia do Sul).

Não nos parece este, no entanto, nem o momento nem o espaço adequado para uma resenha do relatório que, aliás, deveria constituir leitura obrigatória em todos os cursos dirigidos à discussão das transformações do Estado contemporâneo. Deste modo, as referências mais ou menos diretas ao conteúdo e às propostas do relatório do Banco Mundial servem única e exclusivamente para apoiar ou esclarecer os argumentos apresentados ao longo do texto. De modo algum temos a pretensão de dar conta do enorme espectro de questões de que trata o relatório. Nosso objetivo é de escopo mais limitado embora pretenda certamente atacar problemas centrais não apenas à compreensão do relatório, mas à própria "efetividade" de sua mensagem.

Assim, o nosso argumento principal é que se o enfoque "eclético" do relatório não resulta em propostas necessariamente contraditórias — pelo menos em princípio —, na prática, as tensões, ou melhor, o tensionamento que a (tentativa de) implementação de muitas de suas orientações impõe às instituições e à organização estatal de muitos países em desenvolvimento pode resultar, seja numa "sobrecarga" seja numa "dispersão" do programa da coalizão reformista que pretenda se guiar pelo novo "modelo" de reforma do Banco Mundial.

Mais do que isso, o núcleo mesmo do relatório está apoiado nesta tensão entre a ênfase no fortalecimento institucional do "setor público", - termo que substitui com funções eufemísticas o tradicional conceito de burocracia estatal, de corte weberiano, consubstanciado em princípios como a formalidade processual, a impessoalidade no relacionamento com o interesse particular e a neutralidade com relação aos fins últimos do Estado - e as recomendações no sentido de "democratização" da administração pública, tanto no sentido da "transparência" como no de participação do cidadão em esferas de decisão pública; de orientação do serviço público para um trabalho em estreita parceria com o mercado e a sociedade civil; ou ainda, práticas gerenciais nas estruturas burocratizadas do Estado contemporâneo.

Embora não consideremos teoricamente incompatíveis ou contraditórios a realização desses dois objetivos gerais da proposta, as dificuldades políticas e técnicas (administrativas) impostas pela necessidade de priorizar um dos dois aspectos da reforma, e, portanto, de subordinar — "seqüenciar" diriam cautelosamente seus autores — um dos pólos ao outro, introduz obstáculos político-institucionais "endógenos" à própria estratégia de reforma do Estado sintetizada no relatório. O dilema dos reformadores do Estado nos "países em desenvolvimento" resume-se no seguinte: como implementar uma ampla reforma das estruturas administrativas do Estado — que compreende tanto o fortalecimento da sua capacidade institucional (planejamento, controle e coordenação) como uma maior "permeabilidade" em relação à sociedade civil organizada (transparência, participação e descentralização) —, quando a própria reforma depende de uma nova forma de relação entre Estado e sociedade que a sustente politicamente?

Aliás, este é o problema central de toda reforma política conduzida por elites reformadoras: até onde é possível induzir e controlar um processo de reforma que não apenas objetiva a transformação das próprias estruturas institucionais sobre as quais se apoiam essas elites, mas que, além disso, depende do apoio intenso e sistemático do pólo mais frágil da relação (a sociedade) e a quem justamente se pretende beneficiar com a reforma?

Concretamente, trata-se de levar em conta na análise as especificidades histórico-estruturais que marcam as relações entre Estado e sociedade nos "países em desenvolvimento" e as diferenciam das nações ditas desenvolvidas.

Em suma, o que caracteriza o processo de desenvolvimento capitalista e de modernização das estruturas sociais nesses países é exatamente a forte participação do Estado na construção da nação, não apenas como agente indutor do desenvolvimento econômico- através do planejamento, do financiamento e da produção direta, mas como elemento articulador e mesmo reprodutor das estruturas sociais em geral. Com isso não se pretende afirmar que a diferença entre países desenvolvidos e "em desenvolvimento" resida no nível de profundidade ou complexidade das interrelações entre Estado e sociedade, mas sim no tipo de configuração histórica dentro da qual se desenvolveram essas interrelações. Nos primeiros, embora o Estado tenha cumprido papel estratégico no processo de desenvolvimento econômico e na modernização das estruturas sociais, esse papel pode ser mais bem caracterizado como de "arbitragem" (sob nenhum aspecto neutra), de indução (através do planejamento keynesiano) ou de complementação e compensação (welfare state), mas não de substituição e muito menos de constituição dos agentes econômicos e sociais como nos chamados países em desenvolvimento.

Embora os autores do relatório estivessem plenamente conscientes dessas diferenças, a necessidade de estabelecer um contexto argumentativo favorável a uma intervenção dos atores reformistas induziu-os a relevar questões de natureza histórica mais complexas que poderiam enfraquecer essas forças já bastante envolvidas em problemas de legitimação na condução do processo de reforma das estruturas estatais seja nos países propriamente "em desenvolvimento" seja naqueles em "transição" para a economia de mercado.

Assim, ao explorar certas fragilidades inevitáveis num projeto tão ambicioso, o objetivo não é questionar a validade das orientações gerais do relatório, com as quais concordamos em grande medida, mas contribuir para o aprofundamento de uma discussão que, em parte pelas próprias implicações políticas, tende a oscilar entre a filosofia da história — mais propriamente do "fim da história" — e o discurso técnico administrativista. Polarização que no fim das contas acaba contribuindo para desviar o debate de questões estratégicas para a compreensão do processo de reforma do Estado, em especial a natureza intrínsecamente política e, portanto, conflituosa desse processo e o fato ainda mais importante de que os resultados das reformas propostas não significarão o fim do conflito nem muito menos uma solução para a tensão constitutiva das relações entre Estado e sociedade que povoam os horizontes utópicos das forças reformistas.

Na seqüência do texto procuramos desdobrar e tornar mais preciso esse argumento geral. No item I, discuto brevemente o diagnóstico do relatório a respeito da crise do Estado pós-45, enfatizando o seu impacto diferenciado nos Estados de Bem Estar consolidado dos países da OCDE e nos países em desenvolvimento, assim como suas conseqüências para a configuração do(s) novo(s) "modelo(s)" de Estado. Em seguida, item II, retomo a análise do núcleo conceitual do relatório, especialmente no que se refere à incidência dos conceitos de capacidade institucional e efetividade da ação estatal na referida tensão entre "fortalecimento" e "flexibilização" da administração pública.

No item III, procuro precisar as conseqüências práticas dessa tensão discutindo três situações "dilemáticas" com relação à reforma consubstanciada no relatório: a) se, por um lado, é perfeitamente legítimo e democrático tornar o Estado mais "transparente" ao cidadão, por outro, também é preciso capacitar o Estado, e a sua burocracia, para controlar o acesso a informações estratégicas que podem favorecer o interesse particular de grupos fortemente organizados e bem preparados, inclusive para se fazer ouvir com mais "clareza" do que outros pelo governo; b) a dificuldade de se criar mecanismos de participação da sociedade civil em decisões estatais, delegar atividades ou compartilhar serviços próprios da administração pública com organizações da sociedade e, ao mesmo tempo, garantir condições de eqüidade e universalidade na produção e distribuição de bens públicos, assim como na prestação de serviços; c) o problema de se atribuir maior autonomia e responsabilidade aos níveis regionais e locais de governo sem elevar ainda mais as disparidades na extensão e qualidade dos serviços prestados entre as diversas regiões assim como evitar que essa autonomia se transforme em maior desigualdade intra-regional (permitindo a "captura" dos serviços pelas elites locais).

Na conclusão, procuro mostrar que a reforma do Estado, como todo processo de mudança política é o resultado de urna complexa interação entre uma pluralidade de atores individuais e coletivos cujas opções estratégicas e ações táticas se desenvolvem em contextos marcados por fortes assimetrias de informação e heterogeneidade de interesses. O resultado dessa interação não pode ser previsto ou deduzido a partir de uma correlação de forças estática. Portanto, no que se refere à reforma do Estado, nos limites do cenário elaborado pelo Banco Mundial, ela dificilmente resultará de um balanceamento ideal entre medidas de "fortalecimento" e de "flexibilização" do setor público.

DA CRISE AO "COLAPSO" DO ESTADO

A constatação de que o Estado contemporâneo está em "crise", isto é, que os seus pressupostos, suas estruturas e instituições estão em conflito, por um lado, com o sentido do desenvolvimento da economia capitalista num contexto de globalização, e por outro, com o processo de democratização das relações sociais e políticas no contexto dos estados nacionais não pode ser vista como um fato histórico, uma ocorrência limitada no tempo e no espaço. Na verdade, desde pelo menos o segundo pós-guerra, a noção de crise, no sentido de um processo contínuo de conflito, esgotamento e transformação, é constitutiva do próprio conceito de Estado Contemporâneo.

Mais do que isso, as estruturas estatais que emergiram do conturbado período de entre-guerras (1918 a 1945) são, em grande medida, aglomerações heterogêneas de sistemas jurídicos, instituições políticas e organizações administrativas. Essas estruturas jurídicas, políticas e administrativas não resultaram de uma concepção abstrata e coerente de Estado, mas de respostas mais ou menos conjunturais — mais ou menos coerentes — desses Estados às "crises de gestão" de sociedades complexas e dinâmicas. A experiência de "crise permanente", típica do pós-guerra, apenas tornou evidente que os Estados são muito mais frágeis e heterogêneos do que faziam crer as concepções teóricas de matriz funcional-estruturalista ou marxista3 3 Ver o capítulo introdutório de Joe Migdal à coletânea de estudos State Power and Social Forces (1994). .

Dentro desse contexto, o que torna a leitura do relatório do Banco Mundial especialmente interessante não é apenas o reconhecimento do papel estratégico do Estado para o desenvolvimento econômico e social, inclusive como pressuposto para a existência de mercados, mas a consciência de que a "construção" de Estados e, mais ainda, de que a consolidação de estruturas estatais minimamente capazes de sustentar um processo de desenvolvimento econômico e social capitalista, são empreendimentos políticos de alta complexidade e risco de insucesso. Em resumo, a preocupação por trás do relatório não é somente a "crise" do modelo estatal burocrático, em suas versões "Welfare" ou "Desenvolvimentista", mas, também, o caráter incompleto e frágil desses Estados.

Se isto explica, em parte, as referências recorrentes ao risco de "colapso" do Estado tanto em regiões "subdesenvolvidas" (a África Subsaariana), como "desenvolvidas" (os Balcãs), a sensibilidade do relatório para com as incertezas envolvidas no processo de construção de Estados "num mundo em transformação" não decorre apenas de uma preocupação humanitária com os enormes contingentes populacionais expostos a guerras civis e genocídios. Ela reflete muito mais a perplexidade da alta burocracia das agências internacionais com a incapacidade das elites políticas das nações em desenvolvimento em assegurar as condições de sustentabilidade de seus mercados "emergentes".

Ora, ao reconhecer a necessidade de mudança de ênfase no diagnóstico da crise do Estado como sintoma do "esgotamento" de um modelo que se desenvolveu plenamente nos países centrais, para a constatação da insuficiência, "subdesenvolvimento" e mesmo "falência" desse "modelo" na periferia do sistema capitalista — o relatório deixa subentendido que se trata de dois tipos de "crise", ou melhor, de efeitos diferentes do processo de globalização sobre estruturas sociais que se articulam diversamente ao sistema econômico mundial. Embora o relatório não proponha uma retomada de análises do tipo "centro-periferia", fica implícito na insistência com que ressalta a importância de "fortalecer" o Estado para "sustentar" o mercado que se trata, para os países em desenvolvimento, de "resgatar", antes do que reformar, um modelo de Estado capaz de gerir economias capitalistas em processo de expansão e integração.

Não é por outra razão que o relatório praticamente exclui de seu âmbito de preocupações a "crise" dos Welfare States . Nesses países haveria supostamente uma "coerência sistêmica" que tornaria a reforma do Estado um processo "endógeno", aí sim, de flexibilização de regras (desregulamentação), de reorientação das instituições políticas e administrativas no sentido de maior transparência em relação ao cidadão, participação da sociedade civil, descentralização do poder para os níveis subnacionais.

Evidentemente, toda essa argumentação se apóia numa interpretação do relatório que procura apontar tensões inerentes à tentativa de composição de posições divergentes dentro de uma "mensagem" formalmente coerente. Entretanto é possível apresentar dados "objetivos", extraídos em textos largamente utilizados para a elaboração do relatório, que ressaltam as difreenças estruturais entre países industrializados e países em desenvolvimento e, portanto, os contextos radicalmente diversos dentro dos quais se desenvolvem os processos de reforma institucional e administrativa.

Segundo Tanzi e Schuknecht (1996), o grande "salto" nos gastos públicos em relação ao PIB nos países da OCDE ocorreu entre as décadas de 60 e 80. Até então, o nível de gasto alcançado por esses países não diferia substancialmente das nações em desenvolvimento. Portanto, ao contrário do que se poderia imaginar, a simples comparação do volume de gastos públicos em termos absolutos ou mesmo proporcionais não explica o grande desnível no desenvolvimento econômico e social entre os dois blocos. O desenvolvimento capitalista está claramente correlacionado ao investimento privado e, mais do que isso, ao nível de produtividade desse investimento4 4 A figura 1.2 do relatório mostra de forma inquestionável a fraca correlação linear entre riqueza e gastos governamentais. Uma das grandes "revelações" do relatório é exatamente a importância de uma análise da qualidade do gasto seja ele privado ou público. .

Embora este seja um argumento favorável a uma política de corte liberal, é preciso analisar com certa cautela a composição do gasto governamental nos dois grupos de países. Segundo a classificação de Tanzi e Schuknecht, os países da OCDE podem ser divididos em três subgrupos: aqueles com "Estados grandes", isto é, que gastam acima de 50% do PIB; os "médios", com gastos entre 40% e 50% do PIB e; os "pequenos", com gastos inferiores a 40% do PIB. Em todos eles, no entanto, predominam na composição dos gastos, as transferências e subsídios a indivíduos, em outras palavras, assistência social, pagamento de pensões e seguro-desemprego. Como existe uma tendência de elevação mais do que proporcional nos gastos com transferências e subsídios de acordo com o "tamanho" do Estados5 5 Segundo Tanzi e Schuknecht (1996) "Em 1990, os subsídios e transferências respondiam por 55% dos gastos totais dos Estados grandes, 50% dos Estados médios e cerca de 40% dos Estados pequenos." (p.3). , boa parte do crescimento do governo nos países da OCDE deve-se a gastos "improdutivos", isto é, a uma redistribuição de rendas que não tem um sentido imediatamente econômico. É o resultado de um consenso entre as principais forças políticas de cada um desses países que condiciona a extensão e a profundidade do Estado de Bem Estar caso a caso.

Mais do que isso, grande parte dos gastos governamentais — mais de 50% nos países onde o Welfare está mais consolidado — foram "desviados" das atividades produtivas para corrigir as "falhas" mais graves do próprio mercado, como o crescente desemprego, a marginalização tanto dos permanentemente incapacitados (deficientes físicos e mentais, idosos, etc), como daqueles temporariamente incapacitados (por doença ou acidente de trabalho), além das infinitas "distorções" alocativas que inviabilizariam o financiamento de atividade consideradas essenciais pela sociedade, como educação e saúde básica para todos, uma cultura pluralista e não totalmente mercantilizada, as ciências básicas, etc. Qualquer país "candidato" a um lugar entre os países desenvolvidos, pelos parâmetros das agências internacionais, não pode destinar menos do que 30% do seu PIB. E o próprio Vito Tanzi classifica como "pequenos" Estados de países que consomem até 40% do seu PIB.

Mas o que tudo isso tem a ver com a crise do Estado e o duro "ajuste estrutural" por que têm passado os países em desenvolvimento? Surpreendentemente, nada. Ou melhor, o sentido do ajuste nos países de Welfare State consolidado é exatamente o oposto do que se verificou e verifica nos países em desenvolvimento.

Se observarmos a natureza da crise do Estado de Bem Estar e a evolução recente — anos 80 e 90 — do "ajuste estrutural" nos países "ricos" notaremos em primeiro lugar, que o gasto governamental médio cresceu consistentemente, alcançando algo em torno de 47% do PIB em 1994. Mais surpreendente ainda é constatar que o componente do gasto público mais afetado pelo "ajuste" foi o investimento e não as transferências e subsídios ou o consumo corrente, ou seja, após quase vinte anos de reforma "neoliberal" aumentaram os gastos sociais e não foram reduzidos os gastos com a administração pública. Por outro lado, nos poucos países onde houve redução nos níveis centrais de governo ela foi compensada por aumento de servidores nos níveis locais, especialmente para a prestação de serviços sociais básicos (saúde, educação e assistência), de forma que o número médio de funcionários públicos manteve-se em torno de 8% da população6 6 Cf. Schiavo-Campo (1996), p.10. De acordo ainda com este autor, aliás, elemento estratégico na consolidação dos dados comparativos sobre o setor público para a elaboração do relatório do Banco Mundial, mais de dois terços do pessoal do governo nos países da OCDE encontra-se nos serviços de educação e saúde e nos níveis locais de governo. . Em resumo, até onde se pode perceber, o Estado de Bem Estar, apesar de ajustes marginais, está se estabilizando e não se retraindo.

Enquanto isso, o que se passou com os países em desenvolvimento? Antes de qualquer comentário é preciso estabelecer as bases de comparação entre os dois grupos. Para um gasto próximo de 50% do PIB nos países da OCDE, os Estados nos países em desenvolvimento movimentam cerca de 25% de PIBs substancialmente menores em termos absolutos. Além disso, esses Estados empregam em média pouco menos de 4% da população, ou seja, menos do que a metade em comparação com o governo de países da OCDE. Como se não bastasse a enorme disparidade na proporção do gasto público, entre as décadas de 80 e 90 verificou-se uma discreta mas consistente redução nos gastos governamentais nos países em desenvolvimento7 7 Cf. a Figura 1.2 do relatório. .

Mas a situação é ainda pior se compararmos a composição e "qualidade" do gasto público8 8 Figura 1.3. . A tendência generalizada de gastos proporcionalmente maiores em consumo corrente (gastos com a manutenção da máquina administrativa) e investimentos por parte dos governos dos países em desenvolvimento, significa que um grande volume do já escasso recurso à disposição desses Estados é gasto com atividades que tendem a ser menos "eficientes", em termos de custo-benefício, do que a simples transferência de recursos monetários a indivíduos — na verdade consumidores —, o que envolve um custo administrativo significativamente inferior e um "retorno" superior. Em resumo, não apenas o volume de gasto público nos países da OCDE é muito superior, como a sua "produtividade" relativa é maior em função do tipo de gasto que realiza. Ironia das ironias, a forte sinergia entre o mercado e o Estado nestes países torna mais "racional" — econômica e politicamente — um Estado "grande e forte".

O que podemos concluir dessa breve comparação? Primeiro, a enorme diferença tanto estrutural como política entre os Estados dos países industrializados (OCDE) e os dos países em desenvolvimento, torna ainda mais evidente a dificuldade de conciliar num arranjo "pragmático" as duas perspectivas referidas anteriormente: aquela que enfatiza a necessidade de fortalecimento da capacidade institucional do Estado; e a que propõe uma "reengenharia" gerencial do Estado, especialmente no seu caráter "burocrático". O problema, justamente, é avaliar se Estados "burocraticamente" frágeis — que lutam com dificuldade para evitar o comportamento predatório de suas elites políticas e econômicas, são periodicamente assaltados por crises políticas e vêem-se às voltas com uma crônica falta de confiança por parte de sua sociedade civil —, terão capacidade para realizar simultaneamente as reformas "burocrática" e "gerencial".

CAPACIDADE E EFETIVIDADE ESTATAL

O maior "avanço" realizado pelo relatório foi a compreensão de que não existe mercado, nem sequer sociedade civil, sem um Estado capaz e efetivo9 9 O relatório define sucintamente capacidade como "a capacidade de promover de maneira eficiente ações coletivas em áreas tais como lei e ordem, saúde pública e infra-estrutura"; já eficiência "é o resultado que se obtém ao utilizar essa capacidade para atender à demanda daqueles bens por parte da sociedade". Assim, um Estado "pode ser capaz mas não muito eficiente se a sua capacidade não for utilizada no interesse da sociedade" (Relatório do Banco Mundial 1997, p. 3, quadro 1) . Obviamente, a novidade não está na "descoberta" de que um Estado incapaz ou inefetivo não consegue manter a ordem ou impede o desenvolvimento econômico de seu país. Mas, na constatação de que boa parte — talvez a maior parte — dos Estados nos países em desenvolvimento sofre, em maior ou menor grau, de "incapacidade" e/ou "inefetividade" crônicas e que, além disso, o "colapso" das funções estatais é uma ameaça real para muitas nações.

A maior sensibilidade do relatório para com as dificuldades e os riscos envolvidos na construção e consolidação do Estado também decorre da constatação de que o Estado tem um papel estratégico na sustentação do desenvolvimento econômico — leia-se, do próprio mercado. Mas, ela vai além disso, pois, ao enfatizar o conceito de capacidade institucional o relatório dá visibilidade a uma questão que afeta e afetará cada vez mais a natureza das relações entre Estado e sociedade.

Durante toda a história moderna e contemporânea, o "sucesso" dos Estados esteve fortemente vinculado às suas capacidades coercitiva e organizativa. Na definição clássica de Weber, os Estados se sustentavam basicamente através do exercício do "monopólio racional-legal da violência". Entretanto, no mundo extremamente complexo do segundo pós-guerra, um Estado "bem-sucedido" não pode mais se limitar a uma atitude estática e isolacionista em relação à sua sociedade e aos outros Estados. É claro que a intervenção estatal na sociedade é tão antiga quanto a própria idéia de Estado. Do mesmo modo, a competição no campo militar, científico ou econômico é uma decorrência lógica da própria existência de Estados enquanto organizações políticas fundadas na conquista e na expansão do poder. O que mudou foi a dimensão e a profundidada da competição inter-estatal. A ponto de colocar em questão a própria autonomia dos Estados na definição de onde, quando e como competir.

É neste sentido que adquire precisão o conceito de globalização e seu corolário: a perda de controle dos governos sobre a gestão macroeconômica, a emergência de mercados "globais", a "diluição" das fronteiras nacionais, e a perda de identidade cultural e, por fim, da possibilidade de "colapso" dos Estados incapazes de suportar esta "sobrecarga" de demandas. Mas é nesse contexto que também surgem conceitos que procuram dar conta dessa nova realidade, como os de "competitividade sistêmica"10 10 Segundo o qual Estado e Mercado formam um complexo sistema de inputs e outputs visando a otimização das condições de competividade global do país. ou "autonomia inserida"11 11 Concepção desenvolvida por Peter Evans, inspirada no modelo estatal desenvolvimentista dos "tigres asiáticos" — principalmente, Coréia, Taiwan e Cingapura. , os quais certamente inspiraram as noções de capacidade e efetividade estatal.

Em termos bem concretos, o conceito de fortalecimento da capacidade do Estado se manifesta em dois tipos de ações por parte das instituições públicas:

a) de um lado, o fortalecimento dos mecanismos legais e administrativos de planejamento, coordenação, controle, regulamentação e coerção. Segundo os próprios termos do relatório, isto implica "elaborar normas e controles eficazes, coibir ações arbitrárias do Estado e combater a corrupção (...) melhorar o desempenho das instituições, melhorando os salários e incentivos (...);

b) de outro, a "flexibilização" de procedimentos e estruturas administrativas, sujeitando "as instituições públicas a uma concorrência maior (...) fazer com que o Estado seja mais sensível às necessidades da população, aproximar mais o governo do povo, mediante uma maior participação e descentralização12 12 Cf. p. 4. .

Na verdade, esta distinção não aparece claramente no texto, mas é exatamente este o aspecto mais problemático do relatório. Isto não significa qualquer objeção às propostas substantivas do relatório, todos desejamos que o Estado seja mais eficiente, eficaz e democrático, no entanto, a realização simultânea desses objetivos gerais impõem "custos" (trade-offs) que devem ser detidamente analisados em função do diagnóstico que se faça de cada país e da definição das metas políticas, econômicas e sociais que orientam a ação dos governantes "reformistas".

Uma breve análise das "tarefas fundamentais" que, de acordo com o relatório, qualquer Estado deveria cumprir para ser considerado "capaz", pode esclarecer melhor a questão. Seriam cinco as "tarefas" básicas de todo Estado que pretenda alcançar um nível de desenvolvimento sustentável, isto é, capaz de reduzir consistentemente a pobreza e as grandes desigualdades de renda que afetam os países em desenvolvimento: a) formar uma base jurídica estável e confiável para o desenvolvimento do mercado e a organização da sociedade civil; b) manter políticas "não-distorcionistas", isto é, que respeitem os princípios básicos da estabilidade macroeconômica (inflação baixa, preços livres, déficit público sob controle e política cambial previsível e estável, política fiscal efetiva); c) investir em serviços sociais básicos (energia, comunições, transportes, saneamento, educação, saúde, etc); d) proteger os grupos mais vulneráveis da sociedade (os mais pobres e as minorias raciais); e) proteger o meio ambiente.

Ora, a simples enumeração desses requisitos mínimos para o funcionamento do Estado coloca problemas suficientes para a agenda de qualquer governo do "primeiro mundo", o que dizer das frágeis estruturas estatais dos países em desenvolvimento? Basta pensar na distância que nos separa dos requisitos mínimos (como capacidade técnica e administrativa e credibilidade política) para assegurar a estabilidade dos fundamentos macroeconômicos num contexto de grande instabilidade dos fluxos financeiros e comerciais. Ou nos custos de formação e manutenção de uma burocracia de "qualidade" suficiente para garantir um "retorno" mínimo do gasto público em políticas sociais. Ou, ainda, na difícil missão de impedir a "captura" de rendas por parte de grupos econômicos ou setores melhor organizados da sociedade civil, especialmente nas políticas de caráter redistributivo.

Portanto, quando falamos em fortalecimento da capacidade institucional do Estado, seja para preparar a sociedade para a competição em âmbito global, seja para atender aos requisitos "mínimos" de eficácia das políticas econômicas e sociais, estamos enfatizando antes de mais nada as qualidades próprias de uma burocracia profissional, isto é, de um corpo de administradores públicos, qualificados, treinados, bem remunerados e com forte sentido de missão. Todo o discurso a respeito da "flexibilização", da "democratização" da administração pública só tem um sentido "construtivo" quando toma como ponto de partida essa burocracia profissional altamente qualificada.

Num contexto de ampla "informalização" dos procedimentos administrativos, onde grassam as relações personalizadas, onde a falta de transparência e o precário acesso a informações confiáveis inviabiliza o controle político e social dos serviços públicos, enfim, onde o relacionamento entre políticos e burocratas orienta-se por padrões clientelistas e corporativos, as políticas públicas são vítimas freqüentes da "captura" por grupos de interesse e o "desvio" de recursos, quando não a pura corrupção, são práticas generalizadas, é preciso muita cautela ao falar em "flexibilização", "democratização" ou mesmo "descentralização" dos serviços públicos.

Não se trata, evidentemente, de uma recusa dos objetivos propostos pelo relatório -uma administração pública mais flexível, eficaz, transparente e acessível ao cidadão -, mas de um questionamento mais aprofundado do diagnóstico elaborado pelos autores do relatório.

CONDIÇÕES FAVORÁVEIS E OBSTÁCULOS

Neste item discutirei de forma geral o diagnóstico geral das deficiências do setor público segundo o relatório do Banco Mundial e as medidas propostas para fortalecer a capacidade institucional do setor público e em particular três dimensões desse processo que exemplificam as tensões geradas, e não resolvidas, pela reforma.

O núcleo da proposta do relatório encontra-se nos três primeiros capítulos (5, 6 e 7) da terceira parte, "Fortalecimento da Capacidade Institucional". Em resumo, o fortalecimento da capacidade institucional do setor público compreenderia a implementação de três tipos de mecanismos institucionais: a) imposição de respeito às regras e limitações (legais) tanto dentro do Estado como na sociedade em geral; b) promoção de todo tipo de pressão competitiva tanto dentro como fora do Estado; c) estímulo ao controle social (voice) e às parcerias (partnerships) tanto fora como dentro do Estado.

No capítulo 5, discutido em parte nos dois itens anteriores, o relatório apresenta um interessante diagnóstico das deficiências estruturais do setor público nos países em desenvolvimento, reconhecendo a enorme dificuldade que envolve a promoção da "efetividade do Estado por meio de uma transformação do arcabouço institucional do setor público e mais ainda dos comportamentos enraizados nas instituições e nas pessoas que o compõem. Isto, para não falar das complexas articulações entre setores do Estado e grupos de interesse na sociedade que condicionam, em certa medida o comportamento desses setores". Deste modo, ressalva que, na medida em que "o desenvolvimento de burocracias efetivas leva décadas (...) é preciso que os reformadores estejam sempre conscientes das bases sobre as quais estão construindo os fundamentos de uma burocracia(...)", pois, "nos casos em que não foi possível estabelecer controles confiáveis sobre o uso de recursos por parte dos administradores, dar a estes maior flexibilidade servirá apenas para encorajar a arbitrariedade e a corrupção."13 13 Citação extraída do capítulo 5 do relatório, p. 85.

Levando em conta todas essas dificuldades, o primeiro passo para a constituição de um setor público efetivo seria o estabelecimento de "um forte controle político e administrativo sobre o setor público, não apenas controlando sua estrutura institucional (ministérios, agências executivas e reguladoras, fundações e empresas públicas) mas também determinando (e fazendo cumprir) critérios claros e efetivos de seleção, promoção, remuneração e atuação de seus funcionários.

O capítulo seguinte (6), discute as causas e os meios de restringir as ações arbitrárias e a corrupção do Estado. O comportamento arbitrário - aquele que extrapola os limites legais — e a corrupção — quando a arbitrariedade compreende ganhos privados, geralmente pecuniários — se desenvolve quando a autoridade pública não se submete ao controle da sociedade civil e, portanto, dispõe de ampla margem para ações discricionárias. A ausência de controle social e a generalização das práticas corruptas não caracteriza apenas governos autoritários, a maior parte dos Estados de países em desenvolvimento formalmente democráticos também se encontra sujeita a essas práticas em maiores ou menores proporções. Certas condições políticas e institucionais favorecem a disseminação da corrupção nesses países: a) o baixo nível de diferenciação funcional e autonomia políticas dos poderes legislativo e judiciário (checks and balances); b) deficiência na legislação destinada ao controle do uso dos recursos públicos; c) cultura política permissiva em relação ao suborno e práticas de favorecimento pessoal (nepotismo, clientelismo); d) baixo grau de profissionalização dos servidores públicos (ausência de critérios na seleção e promoção e remuneração incompatível com as funções).

As soluções propostas referem-se em geral ao fortalecimento das regras jurídicas e instrumentos administrativos de controle do gasto orçamentário, do funcionalismo público, assim como das relações entre os setores público e privado, seria preciso, também, profissionalizar e valorizar os servidores públicos em cargos estratégicos. O grande problema neste caso, admite o relatório, é "como cercear a arbitrariedade no processo decisorio sem criar rigidez que iniba a inovação e a mudança".

Finalmente, no capítulo 7, "Um Estado Mais Perto do Povo", são apresentados e discutidos alguns processos através dos quais o Estado pode se aproximar do cidadão, tornando-se, com isso, mais transparente, participativo e descentralizado. Na medida em que essas três qualidades caracterizam com perfeição o modelo de Estado "pós-burocrático" proposto pelo Banco Mundial, será interessante destacar as sugestões do relatório e discutir os obstáculos à efetivação dessas inovações institucionais.

Transparência

A questão central neste caso é como garantir igualdade de condições no acesso às informações relevantes a cada indivíduo ou grupo, abrindo canais de interação com os órgãos públicos, impedindo ou inibindo, ao mesmo tempo, a formação de circuitos restritos com acesso privilegiado à informação e redes de influência e decisão entre determinados setores do Estado e da forças mais bem organizadas da sociedade civil. A principal dificuldade aqui, como reconhece o relatório, é que a assimetria de informação que determina em grande parte a capacidade da população de ter acesso e de influenciar os serviços prestados pelo Estado não decorre apenas da vontade política dos governantes ou mesmo do padrão mais ou menos democrático de gestão dos serviços públicos. A capacidade e o interesse desigual de diferentes grupos e setores da sociedade em obter, processar e utilizar informações públicas depende em larga medida de condições estruturais de organização social e política desses grupos e setores.

Em muitas situações concretas, a dificuldade de setores marginalizados da população de ter acesso à informação e influenciar o processo decisorio do Estado não decorre de uma comportamento intencionalmente antidemocrático ou discriminador por parte da burocracia estatal, mas de efetiva incapacidade organizacional e até mesmo de falta de condições para definir claramente uma identidade social ou interesses coletivos.

Assim, embora sejam interessantes as sugestões no sentido de ouvir melhor o cidadão, especialmente, enquanto consumidor de serviços públicos, avanços efetivos nesse processo de "sensibilização" do Estado decorrem muito mais do aumento da capacidade de organização e pressão dos setores marginalizados sobre os órgãos públicos. O exemplo muito atual e significativo do Movimento dos Sem Terra é apenas um deles, podemos mencionar também o bem sucedido movimento dos mutuários do BNH, na década de 80. Um exemplo contrário neste sentido é o lento e irregular desenvolvimento dos direitos do consumidor, apesar da relativamente efetiva atuação dos Procons nos estados e municípios maiores.

Participação

Neste caso, o problema que se apresenta é semelhante ao da "transparência". Como, afinal de contas, abrir determinadas esferas decisórias à participação e impedir que os setores melhor organizados tenham um peso específico maior na orientação das decisões. De novo, o problema não é tanto o desenho das instituições de regulação da participação, mas o enorme diferencial de organização que caracteriza os grupos e setores da sociedade.

O processo mais tradicional e mais difundido de participação política, os sistemas representativos é o melhor exemplo da complexa tarefa de garantir acesso igual dos cidadãos ao poder. A começar pelas intrincadas fórmulas de cálculo para a distribuição das vagas entre os partidos políticos que tornam o vínculo entre o eleitor e o representante um problema quase metafísico. Não é sem razão que o caráter limitado e desigual da participação, mesmo em países plenamente democráticos, seja uma preocupação recorrente na ciência política contemporânea. Além disso, como nota o próprio relatório, o processo eleitoral apesar de essencial para a legitimação do poder público é muito restrito para dar conta da demanda atual por participação dos cidadãos na esfera pública.

Daí a grande importância que vêm adquirindo os mecanismos de participação direta seja através da constituição de organismos informativos e consultivos, onde os grupos e setores da sociedade interessados em determinado tipo de serviço (orçamento, saúde, educação, segurança pública etc.) obtêm informação e influenciam a tomada de decisão dos órgãos públicos; seja atuando em parceria ou substituindo o governo na execução desses serviços. A dimensão alcançada por esse tipo de interação do Estado com a sociedade pode ser avaliado pela crescente participação do "terceiro setor" nas economias industriais: cerca de 4% do PIB nos países da OCDE, segundo o relatório correspondem a despesas realizadas por organizações não-governamentais (ONGs) com a execução de serviços sociais de caráter público.

Os problemas decorrentes da ampliação e aprofundamento dos mecanismos de participação indireta ou direta dos grupos organizados nos serviços públicos são análogos aos da transparência do setor público. Da mesma forma que o interesse em obter informação junto aos órgãos do governo e influenciar o processo decisório varia conforme a capacidade de organização de cada grupo ou setor da sociedade (ver o ex. do MST. acima), o interesse e a capacidade de participação em determinada esfera decisoria seja em caráter consultivo seja deliberativo é muito desigual na maioria dos países em desenvolvimento.

Mesmo naqueles setores nos quais, de acordo com o relatório, os interesses públicos e privados seriam convergentes, como agricultura, saúde e educação, a desigualdade de condições de participação entre, por exemplo, pequenos e grandes agricultores, entre empresas de medicina de grupo, associações médicas e usuários de serviços de saúde, ou entre associações de pais e mestres de comunidades com grandes disparidades de renda e educação, são bastante evidentes.

Deste modo, todas as formas de participação no processo decisório de setores do serviço público propostas e discutidas no relatório apresentam limitações muito claras no que se refere à garantia de condições efetivas, e não apenas formais, de igualdade. Condições estas que não dependem diretamente do caráter mais ou menos democrático dos mecanismos de participação.

Assim, ao ampliar a esfera de interação e participação da sociedade civil organizada nos negócios públicos a elite política reformista não está simplesmente tornando mais transparente e democrático o Estado, mas também tornando muito mais complexas as tarefas de regulação e coordenação das novas e ampliadas atividades na esfera pública não-estatal. No mesmo sentido, amplia-se bastante a demanda por políticas sociais (comunicação social, educação, formação profissional etc.) que reduzam ou pelo menos atenuem, as enormes desigualdades na capacidade de organização e, portanto, participação, dos diversos grupos e setores da sociedade.

Finalmente, como ressalta o próprio relatório, a democratização do Estado aumenta e não diminui as tarefas do setor público. E, deste modo, um país sem tradição de serviço público profissional enfrentará enormes dificuldades para impedir que o caráter mais flexível e aberto do "novo" Estado o torne vítima de "predação" por parte de grupos de interesse organizados tradicionalmente para a extração de rendas do setor público.

Descentralização

Dos três mecanismos de democratização do Estado, a descentralização através da transferência de responsabilidade pelo financiamento e gestão de serviços públicos para os governos locais (estaduais ou municipais) é mais tradicional e a que representa maior impacto na estrutura organizacional do Estado. Sob uma perspectiva estritamente político-institucional, a descentralização significa, pelo menos potencialmente, o fortalecimento dos mecanismos de representação na medida em que o cidadão se encontra muito próximo dos responsáveis pela condução dos negocios públicos que afetam mais diretamente sua vida cotidiana. Os processos de decisão, neste caso, são mais acessíveis à compreensão e, portanto, à influência e participação dos consumidores dos diversos serviços públicos. Do ângulo da eficiência e eficácia dos serviços públicos, os ganhos (potenciais) com a descentralização de serviços básicos como saúde, educação, saneamento, segurança, habitação etc, também são evidentes.

Frente a tantas virtudes, quais poderiam ser os obstáculos à transferência da maior parte dos serviços públicos para os governos locais? O próprio relatório alerta para vários riscos ocultos em processos de descentralização realizados de forma precipitada, como resposta emergencial a crises fiscais que afetam mais diretamente os governos centrais e que se desenvolvem, portanto, num ambiente politicamente volátil em que é baixo o nível de confiança entre os níveis de governo e os responsáveis pelas políticas locais respondem de forma não sistemática a demandas que se projetam a partir de baixo, gerando posteriormente pressões fiscais muito mais difíceis de se controlar.

De acordo com o relatório seriam três as principais "ciladas" resultantes de um processo de descentralização mal preparado: a) os responsáveis pelas formulação das políticas no governo federal (central) podem perder o controle da macroeconomia em conseqüência da falta de coordenação das decisões de gasto locais; b) as disparidades regionais podem ampliarse, exacerbando tensões econômicas e sociais; c) os governos locais podem render-se à influência de interesses particulares, levando ao abuso do poder estatal e a uma administração menos sensível e responsável.

Deste modo, o que seria uma solução para o inúmeros problemas decorrentes da centralização e burocratização do Estado moderno pode significar uma sobrecarrega para o setor público com demandas para a criação de novos e complexos mecanismos de controle macroeconômico, coordenação administrativa e instituição de políticas compensatórias e redistributivas de escopo muito mais amplo que as anteriores. É tão extensa e complexa a lista de pré-condições para que a implementação de um processo de descentralização seja equilibrada e redunde em eficiência e eficácia do gasto público que seria perfeitamente legítimo acusar de irresponsabilidade os apóstolos da descentralização como caminho mais rápido para a democratização do Estado nos países em desenvolvimento.

Segundo o relatório, a preparação do terreno institucional para a implementação de uma correta descentralização dos serviços públicos exigiria: I) uma longa evolução prévia dos dispositivos de controle entre diferentes níveis de governo; II) que os Estados tenham atingido certo nível de centralização e possuam normas efetivas para o controle macroeconômico geral e um sólido processo de formulação de políticas, sem os quais a descentralização pode ser difícil de implementar e gerar desequilíbrios; III) que o governo central demonstre capacidade para administrar a política fiscal e monetária nacional e para aprovar e aplicar normas confiáveis para as relações intergovernamentais ou oferecer uma estrutura para congregar os interessados; IV) uma considerável redução nas disparidades sociais e econômicas inter-regionais, o desenvolvimento de mecanismos de articulação cooperação entre os diversos níveis de governo, assim como a existência de políticas de assistência técnica e administrativa que elevem minimamente a capacidade de organização no nível subnacional. O relatório alerta ao final que, na ausência destas condições melhor seria protelar a descentralização ou evitar estratégias ambiciosas, em favor de uma abordagem gradativa ou setorial mais cuidadosa.

Que conclusões podem ser extraídas dessas observações? Em primeiro lugar que a relação custo-benefício de um processo amplo de descentralização de serviços públicos é muito mais complexa do que se pode depreender do discurso triunfalista dos grupos reformistas.Em segundo, que a descentralização é um processo de longo prazo que exige uma reestruturação profunda das bases políticas e administrativas sobre as quais se construíram os Estados nacionais, especialmente nos países em desenvolvimento. Por último, mas não menos importante, o resultado de um processo bem conduzido de transferência de responsabilidades para os governos locais não será necessariamente um Estado muito menor do que o atual, mas terá de ser um Estado mais complexo, eficiente e qualificado se quiser realizar as novas funções que o setor público central na maior parte dos países em desenvolvimento não está capacitado a realizar.

CONCLUSÃO

A análise dos capítulos centrais do relatório, especialmente aquele que trata do "fortalecimento institucional" do setor público, é bem representativa das dificuldades que os autores do relatório encontraram para harmonizar o diagnóstico duro, até mesmo pessimista, com relação às capacidades atuais do setor público nos países em desenvolvimento com propostas de reforma francamente otimistas, beirando, em certos momentos, a ingenuidade.

Ora, como o próprio relatório mostra em detalhes, o grande problema dos países em desenvolvimento é exatamente a precariedade das suas máquinas burocráticas, com baixo nível de profissionalização , incompetentes e pouco confiáveis, incapazes, sequer, de realizar as tarefas fundamentais requeridas de um Estado que se pretende "moderno". Nestas condições, a mera proposição de reformas no sentido da modernização gerencial, democratização e descentralização dos serviços públicos são pouco mais do que petições de princípio se não levam em conta a necessidade de, simultaneamente, tornar mais claras e rígidas as regras de gestão da burocracia, de erguer barreiras políticas e administrativas ao assédio predatório de interesse econômicos, políticos e corporativos, assim como concentrar recursos políticos, administrativos e financeiros para impedir que os poderes locais e os interesses econômicos regionais transformem o processo de descentralização numa competição predatória de caráter "hobbesiano".

Isto não quer dizer que o empenho pelo fortalecimento da autonomia e capacidade gerencial da burocracia central seja contraditório com o desenvolvimento de novas formas de gestão dos serviços públicos. O problema é que esses processos de flexibilização, democratização e descentralização do setor público estão historicamente associados, com raras exceções14 14 A mais notória exceção são os Estados Unidos e, talvez, a única em um país de dimensões significativas. , à própria consolidação de estruturas burocráticas profissionais dos governos centrais. O processo de construção dos Estados nacionais modernos se confunde com a própria construção de burocracias "modernas" nos países ditos desenvolvidos.

Em todas as experiências históricas de construção de Estados modernos (não necessariamente associadas à democratização) os processos de centralização/descentralização das estruturas estatais e de profissionalização/politização das burocracias centrais ocorreram de forma mais ou menos simultânea e envolveram conflitos que opunham interesses político-ideológicos, econômicos, regionais, étnicos etc. Estavam vinculados, portanto, à questão da distribuição e da forma de exercício do poder político-administrativo. Em diferentes momentos da história de um Estado nacional, diferentes coalizões de forças políticas, econômicas e sociais apoiaram ou se opuseram ao processo de centralização — e burocratização — do poder. Neste sentido a perspectiva funcional que, por vezes, dá o tom das propostas do relatório, obscurece a natureza eminentemente histórica e política desse processo.

Nenhuma dessas observações é estranha aos autores do relatório. A cada proposta de modernização, flexibilização, democratização dos serviços públicos, nos deparamos com inúmeras ressalvas quanto às dificuldades políticas, administrativas e culturais para a implementação dessas melhorias e inovações. Entretanto, embora reconheçam o caráter eminentemente político do processo de reforma do Estado, os autores do relatório têm dificuldade em assumir plenamente as conseqüências desse fato. Isto é, que o aspecto decisivo da reforma é o controle efetivo dos recursos de poder atribuídos à burocracia estatal e que, portanto, a introdução de novos procedimentos técnicos e administrativos, assim como inovações tecnológicas, enfim, tudo o que se convencionou chamar de modernização gerencial, são fatores dependentes com relação ao resultado dos conflitos políticos reais que estão por trás do discurso modernizador. O próprio relatório reconhece que:

"No papel, em muitos países de baixa renda os sistemas administrativos assemelham-se em muitos casos aos países industriais. Na prática, porém, a informalidade continua a ser a norma. Contornam-se as regras de pessoal baseadas no mérito e a seleção ou promoção de pessoal baseia-se no nepotismo e no clientelismo; os orçamentos são fictícios..."

O problema central da reforma do Estado, portanto, não se encontra na falta de vontade política da elite estatal em introduzir inovações institucionais e administrativas — como as inúmeras tentativas de reforma administrativa no Brasil o evidenciam — mas, na ausência de condições políticas efetivas, independentemente de considerações sobre a coerência, competência ou espírito público dessas elites, o que certamente tem um peso na ausência dessas condições políticas para a efetivação das reformas.

  • 3 Ver o capítulo introdutório de Joe Migdal à coletânea de estudos State Power and Social Forces (1994).
  • 9 O relatório define sucintamente capacidade como "a capacidade de promover de maneira eficiente ações coletivas em áreas tais como lei e ordem, saúde pública e infra-estrutura"; já eficiência "é o resultado que se obtém ao utilizar essa capacidade para atender à demanda daqueles bens por parte da sociedade". Assim, um Estado "pode ser capaz mas não muito eficiente se a sua capacidade não for utilizada no interesse da sociedade" (Relatório do Banco Mundial 1997, p. 3, quadro 1)
  • 1
    March e Olsen (1983) contabilizaram desde o início do século até o governo Carter (1977-1980), 12 comissões do Congresso e do Executivo que resultaram em amplas reformas de estruturas e procedimentos administrativos tanto no Legislativo como no Executivo norte-americanos. É importante notar que deste levantamento estão excluídas as reformas no processo orçamentário de grande impacto no relacionamento entre os dois poderes.
  • 2
    Sob o impacto da mais recente crise financeira global que atingiu a Rússia e o Brasil, os governos dos países que compõem o G-7 estão considerando a criação de novos mecanismos (ou instituições) de regulação dos fluxos financeiros e de investimento que certamente terão repercussões significativas na esfera das atribuições dos estados nacionais. Provavelmente não no sentido de um fortalecimento da soberania dos estados, mas no sentido de que os governos terão um papel crescente em processos de coordenação de políticas de regulação global da economia decididas em instâncias internacionais.
  • 3
    Ver o capítulo introdutório de Joe Migdal à coletânea de estudos
    State Power and Social Forces (1994).
  • 4
    A figura 1.2 do relatório mostra de forma inquestionável a fraca correlação linear entre riqueza e gastos governamentais. Uma das grandes "revelações" do relatório é exatamente a importância de uma análise da
    qualidade do gasto seja ele privado ou público.
  • 5
    Segundo Tanzi e Schuknecht (1996) "Em 1990, os subsídios e transferências respondiam por 55% dos gastos totais dos Estados grandes, 50% dos Estados médios e cerca de 40% dos Estados pequenos." (p.3).
  • 6
    Cf. Schiavo-Campo (1996), p.10. De acordo ainda com este autor, aliás, elemento estratégico na consolidação dos dados comparativos sobre o setor público para a elaboração do relatório do Banco Mundial, mais de dois terços do pessoal do governo nos países da OCDE encontra-se nos serviços de educação e saúde e nos níveis locais de governo.
  • 7
    Cf. a Figura 1.2 do relatório.
  • 8
    Figura 1.3.
  • 9
    O relatório define sucintamente capacidade como "a capacidade de promover de maneira eficiente ações coletivas em áreas tais como lei e ordem, saúde pública e infra-estrutura"; já eficiência "é o resultado que se obtém ao utilizar essa capacidade para atender à demanda daqueles bens por parte da sociedade". Assim, um Estado "pode ser capaz mas não muito eficiente se a sua capacidade não for utilizada no interesse da sociedade" (Relatório do Banco Mundial 1997, p. 3, quadro 1)
  • 10
    Segundo o qual Estado e Mercado formam um complexo sistema de inputs e outputs visando a otimização das condições de competividade global do país.
  • 11
    Concepção desenvolvida por Peter Evans, inspirada no modelo estatal desenvolvimentista dos "tigres asiáticos" — principalmente, Coréia, Taiwan e Cingapura.
  • 12
    Cf. p. 4.
  • 13
    Citação extraída do capítulo 5 do relatório, p. 85.
  • 14
    A mais notória exceção são os Estados Unidos e, talvez, a única em um país de dimensões significativas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      1998
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