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Accountability horizontal e novas poliarquias

Horizontal accountability and new poliarchies

Resumos

As poliarquias desenvolvidas do Ocidente condensam influências de três tradições políticas distintas: a liberal, a republicana e a democrática. As tradições liberal e republicana são as responsáveis pela "accountability horizontal", um traço crucial dessas poliarquias que está ausente das novas democracias. Discute-se o significado diso, e como a accountability horizontal poderia ser criada nestas últimas.


The poliarchies developed in the western world have been shaped by three different political traditions: the liberal, the republican and the democratic. The liberal and republican traditions foster horizontal accountability, a crucial feature of those poliarchies wich is not to be found in the new democracies. After discussing what this absence implies ways of generating horizontal accountability in the latter are suggested.


INSTITUIÇÕES

Accountability horizontal e novas poliarquias* * "Horizontal Accountability and New Poliarquies", setembro de 1997. Tradução do original inglês de Clarice Cohn e Alvaro Augusto Comin. O autor agradece os comentários de Larry Diamond, Gabriela Ippolito-O'Donnell, Marcelo Leiras, José Maria Maravall, Sebastián Mazzuca, Scott Mainwaring, Geraldo Munck, Andreas Schedler e Philippe Schmitter

Horizontal accountability and new poliarchies

Guillermo O 'Donnell

Professor de Government and International Studies da Universidade de Notre Dame (EUA) e Faculty Fellow do Instituto Kellogg de Estudos Internacionais

RESUMO

As poliarquias desenvolvidas do Ocidente condensam influências de três tradições políticas distintas: a liberal, a republicana e a democrática. As tradições liberal e republicana são as responsáveis pela "accountability horizontal", um traço crucial dessas poliarquias que está ausente das novas democracias. Discute-se o significado diso, e como a accountability horizontal poderia ser criada nestas últimas.

ABSTRACT

The poliarchies developed in the western world have been shaped by three different political traditions: the liberal, the republican and the democratic. The liberal and republican traditions foster horizontal accountability, a crucial feature of those poliarchies wich is not to be found in the new democracies. After discussing what this absence implies ways of generating horizontal accountability in the latter are suggested.

I

Meu interesse pelo que chamo de accountability horizontal (O'Donnell, 1994) surge de sua ausência. Muitos países, na América Latina e em outros lugares, tornaram-se recentemente democracias políticas ou poliarquias. Com isso quero dizer que eles satisfazem as condições estipuladas por Robert Dahl na definição desse tipo de regime1 1 Ver, especialmente, Dahl (1989, pág 221). Os atributos estabelecidos por Dahl são: 1) Autoridades eleitas; 2) Eleições livres e justas; 3) Sufrágio inclusivo; 4) o direito de se candidatar aos cargos eletivos; 5) Liberdade de expressão; 6) Informação alternativa; e 7) Liberdade de associação. Em O'Donnell (1996), seguindo diversos autores lá citados, propus que se adicionasse: 8) Autoridades eleitas (e algumas nomeadas, como juizes das cortes supremas) não podem ser destituídas arbitrariamente antes do fim dos mandatos definidos pela constituição; 9) Autoridades eleitas não devem ser sujeitadas a constrangimentos severos e vetos ou excluídas de determinados domínios políticos por outros atores não eleitos, especialmente as forças armadas; 10) Deve haver um território inconteste que defina claramente a população votante. Tomo esses dez atributos em conjunto como definidores da poliarquia. . Satisfazer essas condições não é uma garantia: alguns países continuam sob mandatos autoritários e outros, mesmo tendo realizado eleições, não satisfazem as condições de competição livre e justa estipulada pela definição de poliarquia2 2 Esses casos são chamados "regimes eleitorais" por Karl (1986). . Neste artigo, não lido com os últimos casos; meu foco está naqueles que são poliarquias, no sentido acima definido, mas apresentam uma accountability horizontal fraca ou intermitente. Isso se refere a quase todos os países americanos, incluindo algumas poliarquias antigas como a Colômbia e a Venezuela3 3 As exceções são Costa Rica, Uruguai e, com o importante ressalva dos privilégios constitucionais mantidos pelas forças armadas, o Chile. . Essa categoria se ajusta também a algumas poliarquias novas como as Filipinas, a Coréia do Sul, Taiwan, assim como a uma antiga, a Índia, e a alguns dos poucos países pós-comunistas que poderiam ser definidos como poliarquias (Rússia, Bielorússia, Croácia, Eslováquia e Ucrânia4 4 Como defende Merkel (1996). Para a Rússia e a Coréia do Sul, ver Ziegler (1998); para a Rússia, ver também Merritt (1997). ), e talvez também Hungria, Polônia e República Tcheca5 5 Tendo em vista as opiniões altamente conflitantes sobre o tema, e minha falta de conhecimento direto, prefiro não julgar o grau em que esses países alcançaram, ou não, accountability horizontal similar à de Uruguai e Costa Rica. .

Por definição, nesses países a dimensão eleitoral de accountability vertical existe. Por meio de eleições razoavelmente livres e justas, os cidadãos podem punir ou premiar um mandatário votando a seu favor ou contra ele ou os candidatos que apoie na eleição seguinte. Também por definição, as liberdades de opinião e de associação, assim como o acesso a variadas fontes de informação, permitem articular reivindicações e mesmo denúncias de atos de autoridades públicas. Isso é possível graças à existência de uma mídia razoavelmente livre, também exigida pela definição de poliarquia. Eleições, reivindicações sociais que possam ser normalmente proferidas, sem que se corra o risco de coerção, e cobertura regular pela mídia ao menos das mais visíveis dessa reivindicações e de atos supostamente ilícitos de autoridades públicas são dimensões do que chamo de "accountability vertical". São ações realizadas, individualmente ou por algum tipo de ação organizada e/ou coletiva, com referência àqueles que ocupam posições em instituições do Estado, eleitos ou não.

Evidentemente, o que pode ser definido como o canal principal de accountability vertical, as eleições, ocorre apenas de tempos em tempos. Além disso, não está claro até que ponto elas são efetivas como mecanismo de accountability vertical. Análises recentes6 6 Przeworski e Stokes (1995) argumentam, de um lado, que "as instituições democráticas não contêm mecanismos de reforço da representação prospectiva" e, de outro, que "a votação retrospectiva, que toma informações apenas no desempenho passado do candidato, não é suficiente para induzir os governos a atuarem responsavel mente". Os autores listam algumas inovações institucionais que podem minorar esse problema mas, como veremos, a eficácia e mesmo a criação dessas instituições não devem ser tidas como garantidas nas condições em que muitas novas poliarquias funcionam. Por outro lado, enfocando o funcionamento dos partidos governistas da Espanha, mas lançando conclusões mais gerais, José María Maravall (1997, pág 5) argumenta que o controle dos eleitores sobre os políticos enfrenta difíceis, senão incomensuráveis, "problemas de informação, monitoramento e compromisso". Como contraponto, Klingeman et al. (1994) e Keeler (1993), que mostram que, no geral, em poliarquias formalmente institucionalizadas, as posições políticas apresentadas nas plataformas eleitorais dos partidos são prenuncios bastante bons de suas orientações políticas quando no governo. Em contraste, na América Latina, ao menos nas últimas duas décadas e no contexto da implementação de políticas econômicas neoliberais, como Przeworski e Stokes (1995), entre outros, deixam claro, essa previsibilidade tem faltado quase inteiramente. introduzem uma nota cética quanto ao grau em que as eleições são verdadeiramente um instrumento pelo qual os eleitores podem punir ou premiar candidatos, mesmo em poliarquias formalmente institucionalizadas7 7 Uso esse termo para manter consistência com os argumentos que desenvolvo em O'Donnell (1996). Para os propósitos desse texto, o termo pode ser entendido como incluindo a maioria das antigas poliarquias, aquelas que a literatura corrente considera altamente institucionalizadas. . Embora possam estar corretas (e não tratarei do tema aqui), parece claro que as condições que prevalecem em muitas novas poliarquias (sistemas partidários pouco estruturados, alta volatilidade de eleitores e partidos, temas de política pública pobremente definidos, e reversões políticas súbitas8 8 Ver, para a América Latina, Shugart e Carey (1992), Mainwaring e Scully (1995) e Mainwaring e Shugart (1997). ) diminuem definitivamente a eficácia da accountability eleitoral.

Por outro lado, o impacto das reivindicações sociais na mídia, quando denunciam e/ou exigem destituição ou punição por atos alegadamente ilícitos de autoridades públicas, depende muito das ações que as agências estatais propriamente autorizadas tomem para investigar e finalmente punir os delitos. Na ausência de tais ações, as reivindicações sociais e a cobertura da mídia, especialmente se forem abundantes e se referirem a temas que são considerados importantes pela opinião pública, tendem a criar um clima de insatisfação popular com o governo (e às vezes com o próprio regime), que pode obstruir suas políticas e levar à sua derrota nas eleições seguintes. Mas a insatisfação popular não necessariamente desencadeia procedimentos públicos apropriados, mesmo se a legislação existente os requer. Quando, como acontece nas novas poliarquias, há um sentimento generalizado de que o governo repetidamente incorre em práticas corruptas, a mídia tende a substituir os tribunais. Ela denuncia possíveis delitos, nomeia seus supostos responsáveis e divulga quaisquer detalhes que julgue relevantes. Algumas autoridades corruptas são, então, poupadas de punições que teriam provavelmente resultado da intervenção dos tribunais ou outras agências públicas. Outros, no entanto, que podem ser inocentes de qualquer impropriedade, assim como aqueles contra os quais nada pôde ser provado, se vêem condenados pela opinião pública, sem o direito a algo parecido com um processo justo para sua defesa.

II

A existência da accountability vertical assegura que esses países são democráticos, no sentido específico de que os cidadãos podem exercer seu direito de participar da escolha de quem vai governá-los por um determinado período e podem expressar livremente suas opiniões e reivindicações. Mas a fragilidade da accountability horizontal significa que os componentes liberais e republicanos de muitas novas poliarquias são frágeis. Essa afirmação nasce de minha crença em que as poliarquias são sínteses complexas de três correntes ou tradições históricas - democracia, liberalismo e republicanismo. Neste ponto me afasto das posições mais recentes, que tendem a ver as poliarquias como tencionadas entre apenas dois pólos: liberalismo vs. democracia ou liberalismo vs. republicanismo. Ademais, algumas dessas posições vêem essas correntes, ou tradições, como mutuamente exclusivas. Penso, no entanto, que mesmo que suas fronteiras tendam a se esfumar em alguns autores e discursos políticos, não há apenas duas, mas três tradições, que convergiram para instituições formais e, em alguma medida (variando no tempo e nos países), na prática de poliarquias modernas. Acredito também que essa convergência é parcialmente contraditória, no sentido de que alguns dos princípios básicos de cada uma dessas correntes são inconsistentes com os princípios básicos das outras. Essa inconsistência dá às poliarquias, junto com alguns de seus predicados, suas características únicas de dinâmica e abertura.

Tal como o entendo, o componente liberal que tem sido injetado nas poliarquias modernas reza, basicamente, que há alguns direitos que não devem ser usurpados por nenhum poder, incluindo, em especial, o Estado. O componente republicano, por sua vez, identifica no cumprimento dos deveres públicos uma atividade de tal forma enobrecedora que requer uma cuidadosa sujeição à lei e um devotado serviço ao interesse público, mesmo que à custa de sacrificar os interesses privados dos mandatários. Ambas as tradições, a liberal e a republicana, propõem uma distinção crucial entre as esferas pública e privada, mas as implicações dessa separação são muito diferentes. Para o liberalismo, a área do desenvolvimento próprio e pleno da vida humana é a esfera privada. Essa é a razão para a ambigüidade inerente ao liberalismo com relação ao Estado e, mais genericamente, à esfera pública: por um lado, o Estado deve ter poder suficiente para garantir as liberdades desfrutadas na vida privada, mas, por outro, ele deve ser impedido de sucumbir à tentação sempre presente de usurpar essas mesmas liberdades9 9 Acredito que essa ambigüidade inerente é uma importante razão para o caráter prioritariamente defensivo do liberalismo, a despeito dos esforços recentes de retratá-lo em cores mais positivas, próximas às republicanas; ver, por exemplo, Macedo (1992). Apresso-me a acrescentar que isso não impede que algumas das "liberdades negativas" e constrangimentos constitucionais típicos do liberalismo possam ter conseqüências que reforcem suas carreiras individuais ou institucionais, como argumentado especialmente por Holmes (1988 e 1995). . Para o republicanismo, o lugar onde se dá o desenvolvimento humano apropriado e pleno é a esfera pública. É nela que as demandas necessárias de dedicação ao bem público requerem, e nutrem, as mais altas virtudes. Se o liberalismo é basicamente defensivo, o republicanismo é basicamente elitista; tenha ou não sido eleito democraticamente, espera-se daqueles que clamam pelo direito de governar em razão de sua virtude superior que olhem para aqueles que se devotam às atividades menores da esfera privada. Por sua vez, a tradição democrática ignora essas distinções! podem haver de fato atividades privadas mas, em primeiro lugar, aqueles que participam das decisões coletivas não são a elite virtuosa e sim aqueles mesmos que podem encarregar-se de uma vida privada ativa10 10 Nas palavras de Péricles, documentadas por Thucydides: "Nosso homem público tem, ao lado da política, seus negócios privados para resolver, e nossos cidadãos comuns, embora ocupados com os interesses da indústria, são ainda juizes justos de questões públicas" (Thucydides, 1951). Antes de Péricles, os atenienses adotaram a inovação radical de pagar o equivalente a um dia de trabalho para tomar parte de suas diversas instituições de tomada de decisão, tornando portanto possível a participação de seus cidadãos pobres - ver Hansen (1991). e, em segundo lugar, e principalmente, como Sócrates e outros descobriram, o demos pode deliberar sobre qualquer questão: ele tem o direito de tomar decisões sobre qualquer tema que julgue apropriado11 11 Para essa questão ver Finley (1973 e 1984) e Jaeger (1946); embora de modo relutante, Hansen (1991) concorda com esse ponto de vista. .

Essas tradições e os princípios que as definem são diferentes e têm origens diferentes: a democracia em Atenas; o republicanismo em Roma (e de acordo com alguns autores também em Esparta), e posteriormente em algumas cidades medievais italianas; o liberalismo na sociedade feudal e, posteriormente de modo mais acentuado, na Inglaterra de Locke e na França de Montesquieu. Em alguns aspectos importantes essas tradições são conflitantes. No mínimo, os valores atribuídos às esferas pública e privada pelo liberalismo e republicanismo levam a uma divergência, senão oposição, de conclusões sobre os direitos e deveres políticos, a participação política, o caráter da cidadania e da sociedade civil e outros temas que constituem a substância mesma do debate político12 12 A esse respeito, embora disponham o problema entre dois termos, e não três como estou fazendo aqui, penso que Walzer (1989), Taylor (1990) e Offe e Preus (1991) são particularmente úteis. . De sua parte, a democracia não é dualista, mas monista; não conhece limites ou distinções válidos entre a esfera privada e a pública. Além disso, na democracia o exercício dos deveres públicos não requer, como no republicanismo, que aqueles que os desempenham sejam particularmente virtuosos e plenamente dedicados; antes, os procedimentos democráticos canônicos, o rodízio ou o sorteio13 13 Ver Hansen (1991) e Manin (1996). , pressupõem que todos são igualmente qualificados para esses papéis. Finalmente, quando se trata de votar, o princípio democrático é fortemente majoritário, em um duplo sentido. Primeiro, quando não há unanimidade, a vontade coletiva do demos tem que ser identificada, e algum tipo de maioria é o critério comum para tal identificação quando todos os membros são considerados iguais. Segundo, como já foi notado, seja qual for a decisão, ela não reconhece obstáculos que não aqueles erguidos pelo próprio demos 14 Com isso quero dizer que as decisões da Assembléia ateniense eram sujeitas à revisão pela Dikasterion (Corte do Povo) em termos de sua conformidade com as leis escritas, mas esses controles da esfera pública eram por ela exercidos sem o propósito de proteger direitos privados contra o demos. Para esse tema e para temas relativos, ver novamente Hansen (1991). 14 14 Com isso quero dizer que as decisões da Assembléia ateniense eram sujeitas à revisão pela Dikasterion (Corte do Povo) em termos de sua conformidade com as leis escritas, mas esses controles da esfera pública eram por ela exercidos sem o propósito de proteger direitos privados contra o demos. Para esse tema e para temas relativos, ver novamente Hansen (1991). . A cisão dualista postulada por liberais e republicanos impõe a idéia de limites ou fronteiras, que devem ser rigorosamente reconhecidas, muito embora cada corrente as defina e valorize diferentemente. O dualismo do liberalismo e do republicanismo os levou a adotar o mecanismo da representação política, enquanto, por outro lado, o monismo da democracia - tal como praticada em Atenas e tal como Rousseau, coerente com essa premissa, concluiu - a torna estranha, senão hostil, à idéia mesma de representação. A direção em que apontam direitos e obrigações é também diferente: basicamente, o liberalismo atribui direitos defensivos aos indivíduos localizados na esfera privada; o republicanismo atribui obrigações aos indivíduos que devem ser cumpridos na esfera pública; e a democracia afirma o direito positivo de participação nas decisões do demos.

Mas há uma convergência importante. A democracia em seus impulsos de igualação, o liberalismo com seu compromisso com a proteção das liberdades a sociedade, e o republicanismo em sua severa visão das obrigações daqueles que governam apoiam, cada qual a seu modo, outro aspecto fundamental da poliarquia e do Estado constitucional que deve coexistir com ela: o império da lei 15 "The rule of law" no original [N.T.] 15 15 "The rule of law" no original [N.T.] . Todos os cidadãos têm direitos iguais de participar da tomada de decisões coletivas dentro do quadro institucional existente; uma declaração democrática à qual se acrescenta o preceito republicano de que ninguém, inclusive aqueles que governam, deve estar acima da lei; e a salvaguarda liberal de que certas liberdades e garantias não devem ser infringidas. Veremos, porém, que a efetividade do império da lei registra variações importantes nos diferentes tipos de poliarquias.

III

Observemos agora essas correntes por outro ângulo. Em parte, a democracia e o republicanismo encarnam duas visões comuns da autoridade política. Em relação à democracia: por que aqueles que estão a cargo do bem comum deveriam aceitar restrições às suas decisões? Em relação ao republicanismo: por que deveriam aqueles que são mais virtuosos serem impedidos de governar em nome do bem comum? Em contrapartida, o liberalismo sempre foi contra-intuitivo: apenas em uma pequena parcela do mundo, influenciada pelas tradições do feudalismo, do conciliarismo e dos direitos naturais e chocada com o horror de guerras religiosas, se pôde argumentar persuasivamente que há direitos que não devem se infringidos por nenhum agente público ou privado.

Por outro lado, o liberalismo não pode justificar o exercício coercitivo da autoridade política sobre um território, senão pelo recurso artificial de um contrato social fundador. Já o republicanismo não vai além da afirmação típica de todos os tipos de autoridade16 16 Com as únicas exceções dos campos de concentração e das concepções punitivas das prisões. : de que ela existe para o bem dos que se sujeitam a seu governo. Mas essa corrente contribuiu para forjar outra idéia historicamente contra-intuitiva: a de que parte da virtude requerida aos governantes é a de que eles deveriam sujeitar suas ações à lei, não menos, e talvez ainda mais, do que os cidadãos comuns. A democracia, por seu turno, introduziu, muito antes do liberalismo e do republicanismo, uma outra novidade radical e contra-intuitivo: a de que ela não é apenas um governo para, mas também de e, ainda que na prática de forma incerta, por aqueles que de algum modo17 17 Digo "de algum modo" porque o princípio democrático é mudo em relação a quem devem ser os membros, ou cidadãos, de seu demos. Mas isso não deve nos preocupar agora. são membros de uma dada comunidade política.

Essas três correntes se combinaram de modos complexos e mutantes ao longo da história das poliarquias formalmente institucionalizadas que hoje existem na maioria dos países altamente desenvolvidos. Conseqüentemente, é um erro, embora praticado amiúde, postular uma determinada dimensão como sendo o alicerce "básico" ou mais fundamental da poliarquia. A afirmação exagerada do liberalismo torna-se "liberismo"18 18 Tal como expressou Giovanni Sartori (1987), retomando um termo cunhado por Benedetto Croce. Na América Latina, essa tem sido a principal aparência do liberalismo. , a defesa do laissez-faire econômico e do governo oligárquico por aqueles que estão entrincheirado em seus privilégios. Os riscos do princípio democrático majoritário foram exaustivamente discutidos e aqui não cabe examiná-los. O republicanismo, ao se tornar o princípio dominante, tende a tornar-se o governo paternalista de uma elite que se autopresume moralmente superior. A poliarquia é uma mistura complicada e às vezes exasperante, mas de longe preferível a tipos de governo baseados exclusivamente em uma de suas principais tradições componentes.

Nesse ponto, quero enfatizar três considerações que surgem da argumentação precedente: 1. a necessidade de distinguir os diferentes caminhos através dos quais o liberalismo e o republicanismo erguem uma fronteira entre as esferas pública e privada, assim como a de contrastar tal cisão com o monismo da tradição democrática; 2. o caráter radical, contra-intuitivo e historicamente original das descobertas derivadas da afirmação, pelo liberalismo, de uma esfera de direitos protegidos, da sujeição dos governantes aos princípios da lei pelo republicanismo, e da afirmação, pela democracia, de que os que estão submetidos a uma norma são a fonte mesma dessa norma; e 3. a combinação complexa e mutante desses três elementos como um fator importante para caracterizar as poliarquias, as democracias realmente existentes no mundo moderno.

IV

Pode-se muito bem perguntar o que a discussão precedente tem a ver com accountability horizontal. A resposta é que a poliarquia é a condensação de vários processos históricos, muitos deles concomitantes com um mesmo fenômeno, o capitalismo, que também emergiu, em um primeiro momento, na mesma parte do mundo em que o liberalismo nasceu. Mesmo que em um nível muito elevado (e freqüentemente não muito útil) de generalização possa-se falar do capitalismo como uma entidade única, muitos esforços apreciáveis foram devotados ao estudo comparativo dos diversos tipos de capitalismo. Esses estudos nascem do reconhecimento de que uma série de fatores históricos e estruturais determinaram a emergência de configurações específicas que, mesmo que compartilhem a característica genérica de serem capitalistas, exibem variações importantes, e que essas variações devem ser levadas em conta quando se pretende uma descrição e/ou avaliação adequada das tendências de mudança nos casos dados. O mesmo acontece com a poliarquia. Todos os casos desse gênero o são por compartilhar as características especificadas no início deste artigo. Usando tal definição, podemos realizar duas operações básicas. Uma delas é semelhante à que realizamos quando, munidos de nossa definição preferida de capitalismo, distinguimos entre sociedades que são capitalistas daquelas que não são (ou não eram); para nosso tema, podemos diferenciar de modo similar o conjunto de casos que são poliarquias do conjunto dos que não o são. A segunda operação, mais interessante para os propósitos desse artigo, consiste em olhar para o conjunto de poliarquias e perguntar pelas diferenças existentes entre esses casos e o que responde por essas diferenças. Esse é o caminho que tomarei agora.

Este não é o lugar nem eu sou o autor para enfrentar a tarefa weberiana de discutir que fatores (incluindo o capitalismo) contribuíram para a emergência e a expansão da poliarquia19 19 Entre trabalhos contemporâneos desse tipo, deve-se mencionar o excelente estudo de Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992); para a América Latina a referência mais importante e abrangente é Collier e Collier (1991). . Quero apenas lembrar que, entre os outros fatores, as três correntes que apresentei acima devem ser incluídas. Elas e seus princípios básicos não estão flutuando em um espaço abstrato; elas foram estabelecidas notavelmente por alguns autores, discutidas e revistas por outros, inspiraram incontáveis discussões e tratados, foram evocadas nas mais variadas circunstâncias e rituais, inspiraram constituições e inúmeras legislações, e através disso tudo influenciaram profundamente, embora com intensidades variadas de país a país e de era a era, o repertorio do pensamento e do debate políticos, bem como as formas de governar20 20 Ou, como diz John Rawls (1985, pág 225) em contexto semelhante, essas são "idéias intuitivas básicas que estão incrustadas nas instituições políticas das sociedades culturalmente plurais do Ocidente moderno ... e nas tradições públicas de sua interpretação". É claro que é difícil identificar autores que argumentam a partir de apenas uma dessas correntes, especialmente dentre os mais criativos - e portanto menos simplistas. Mas há nomes que se ressaltam: Thucydides/Péricles, Rousseau e, de seu próprio modo, Marx na corrente democrática; Hobbes, Locke, Montesquieu e Constant na liberal; e Cícero, Sallust, Livy, e o Maquiavel dos Discursos na corrente republicana. Mas note-se que estou defendendo que variou muito o grau em que essas correntes realmente se incrustaram nas práticas, e não apenas nas instituições formais, das várias poliarquias. .

Em particular, essas correntes convergiram para as instituições e para boa parte da legislação de uma entidade peculiar — que ganhou forma mais ou menos simultaneamente com o liberalismo e com o capitalismo, mas depois que a democracia e o republicanismo foram originalmente formulados —, o Estado de base territorial. Se cada uma dessas correntes tem sua própria lógica, no sentido de que articulam princípios e corolários razoavelmente consistentes, o Estado também tem a sua, que é parcialmente inconsistente com essas três correntes. Essa é uma questão complicada, na qual é desnecessário entrar agora. Basta mencionar dois pontos. O primeiro é que a maior parte das leis existentes foi produzida e/ou é sustentada pelo Estado -ou, mais precisamente, como os teóricos continentais há muito reconheceram e os anglo-saxões muito freqüentemente esquecem, o sistema legal é uma das dimensões constitutivas do Estado21 21 Desenvolvo esse argumento em O'Donnell 1993. . O segundo ponto é que outra face do Estado, suas burocracias, são sedes cruciais dos recursos de poder que se mobilizam quando questões de accountability horizontal estão em jogo.

Como o capitalismo, os Estados exibem uma grande variação no tempo e no espaço. Mesmo que pouco possa ser acrescentado no nível de generalização em que me coloquei aqui, parece óbvio que as variações de tipos tanto de capitalismo quanto de Estado terão conseqüências significativas para o tipo de poliarquia que cada país tem, assim como para seus mecanismos de mudança. O problema é que, em contraste com várias tipologias comparativas úteis de capitalismos e Estados que temos, há poucas de poliarquias, a sua maioria focada principalmente, senão exclusivamente, nos casos formalmente institucionalizados22 22 Proeminentemente o trabalho de Arendt Lijphart, a começar de seu livro seminal de 1984. . Esse problema é ainda mais agudo se levarmos em conta que nas poliarquias o peso relativo das correntes liberal, republicana e democrática exibe importantes variações no tempo e no espaço.

Convém ilustrar o último ponto. Pode-se dizer que na história dos Estados Unidos o componente democrático foi relativamente fraco, enquanto o republicano e especialmente o liberal foram fortes23 23 Relendo The Federalist Papers, fui novamente surpreendido pela imensa sabedoria com que Madison definiu e combinou liberalismo e republicanismo. Para citar apenas uma: "A diversidade nas faculdades dos homens, de onde se originam os direitos da propriedade, não é mais um obstáculo insuperável para a uniformidade dos interesses. A proteção dessas faculdades é o primeiro objetivo do governo" ( Federalist nº 10, pág 78). Em relação ao que chamo abaixo de dimensão invasiva do republicanismo, ouçamos mais uma vez Madison, quando ele discute os vários "departamentos" projetados para a constituição: "nenhum deles deve possuir, direta ou indiretamente, uma influência dominante sobre os outros na administração de seus respectivos papéis. Não será negado que o poder é de uma natureza invasiva e que deve ser efetivamente evitado que ultrapasse os limites que lhes foram atribuídos" ( Federalist nº 48, pág 308); e "Deve-se fazer com que a ambição neutralize a ambição. O interesse do homem deve estar conectado com os direitos constitucionais do lugar... o interesse privado de cada indivíduo deve ser uma sentinela dos direitos públicos" ( Federalist nº 51, pág. 323). Como se sabe, os federalistas foram declarados antidemocráticos; só mais tarde, em um longo processo que se pode dizer que só foi completado com as lutas dos direitos civis das décadas de 1950 e 1960, elementos mais democráticos foram introduzidos na constituição, na legislação e na jurisprudência dos Estados Unidos; ver Wood (1991, 1992) e Fishkin (1991). ; na França, os componentes democráticos e republicanos foram relativamente fortes, e o liberal fraco24 24 Entre as muitas fontes que poderiam ser citadas em apoio a essa afirmação, ver a discussão de Rosanvallon (1994) sobre o significado das eleições na França do século XIX em contraste com os casos anglosaxônicos. ; na Alemanha contemporânea, provavelmente como uma reação à ênfase democrática do período de Weimar, os componentes liberal e republicano predominam; enquanto em muitas novas poliarquias tanto os componentes liberais quanto republicanos são fracos, o democrático também não é tremendamente forte, mas sua eficácia relativa apresenta um grande contraste à debilidade dos primeiros.

V

Embora as diferenças que ressaltei estejam extremamente simplificadas, elas sugerem que há variações importantes tecidas historicamente nos tipos de poliarquias existentes, assim como no caso do capitalismo e dos Estados. As poliarquias são combinações complexas dos quatro elementos - as três tradições e o Estado - que esbocei. Muitas lutas políticas podem ser lidas como disputas sobre qual deveria ser a combinação mais apropriada em um dado momento em um dado país. Cada uma dessas correntes enfatiza valores e, por fim, visões da natureza humana diferentes. Depois que a Inglaterra começou a desenvolver as práticas e instituições que hoje reconhecemos como precursoras da poliarquia, estas freqüentemente atraíram a admiração de intelectuais e líderes políticos de outros países. A difusão, primeiro a partir da Inglaterra e mais tarde dos Estados Unidos e da França, foi o principal fator de modelagem das poliarquias que surgiram posteriormente - fora dos países de origem, a poliarquia jamais foi um produto verdadeiramente nativo25 25 Não ignoro que muitos pequenos países europeus estabeleceram poliarquias originais bastante cedo. Porém, não lido com esses países neste artigo porque, com as exceções parciais da Bélgica e da Holanda, eles não tiveram a influência imperialista que Inglaterra, França e Estados Unidos tiveram. . Os atores principais nesses países de origem olharam para Grécia e Roma, em busca conceitos, de exemplos edificantes e das calamidades de suas respectivas tradições. Alguns desses atores, na Inglaterra e nos Estados Unidos e mais tarde na própria França, obcecados com os horrores que a reivindicação do princípio democrático e da virtude republicana produziram na Revolução Francesa, reforçaram e reformularam sua crença em algum tipo de solução liberal para evitar esses riscos. Desde então, e até hoje, quando outros atores em outros países objetivam estabelecer poliarquias, eles têm em mente as poliarquias originais, seus mitos fundadores, seus pensadores "clássicos" e o poder e o prestígio dos países de origem.

Seus seguidores, como mostram algumas das mais antigas (e pouco efetivas) constituições do mundo, as da América Latina do século XIX, se confrontaram com o que lhes pareceu mais com pacotes fechados de instituições, que, na maior parte dos casos, eram escolhidos em função dos impérios a que formal ou informalmente esses países pertenciam. Tanto no Leste como no Sul, o transplante de constituições e legislações e as esperanças iniciais de que essas instituições seriam os grandes propulsores em direção à modernidade política e econômica criou o que talvez seja o mais persistente e quase sempre acalorado debate cultural e político nesses países: as formas de avaliar e, eventualmente, preencher a lacuna visível entre o pays légal e o pays réel26 26 Meu uso dos termos franceses dessa dicotomía mostra que mesmo nessa antiga poliarquia essa questão era importante - dela, apenas a Inglaterra e os Estados Unidos foram poupados. , que resultou desses transplantes. Independente da posição que se tome em relação a esta questão, ela tem uma base fatual forte que tem sido comentada por legiões de políticos, historiadores, romancistas e cientistas sociais: a grande diferença que freqüentemente existe entre as regras e normas formalmente prescritas, de um lado, e o que as pessoas fazem na maior parte do tempo, de outro. Como conseqüência, ainda que se deseje firmemente a definição de um pays légal ou a organização da vida política em torno das tradições do pays réel, a navegação bem sucedida pelo mundo social e político existente requer uma consciência aguda de ambos os códigos e suas interligações. Isso é verdade em qualquer lugar, mas em geral é mais verdadeiro quanto mais longe, no tempo e no espaço, do centro geográfico no qual as três correntes da poliarquia se originaram.

O fato é que, por muito tempo e com poucas exceções, fora desse centro nenhum dos princípios contra-intuitivos da democracia, do liberalismo e do republicanismo se adequaram. Muitos tipos de regime continuaram ou emergiram no Leste e no Sul, mas poucos foram poliarquias, mesmo que (o que é interessante, testemunhando a influência particularmente forte da tradição democrática) algumas delas tenham realizado eleições para dar um ar de legitimidade a seus governantes. Esses vários tipos de regimes autoritários negaram as salvaguardas do liberalismo, embora, por conveniência ou impotência, elas tenham tolerado um conjunto variável de atividades autônomas na sociedade. A despeito de eu ter sugerido que o republicanismo possa ser concebido como um regime autoritário, a maioria dos governantes autoritários não foram de maneira nenhuma republicanos. Eles se comportaram de um modo que, seguindo Max Weber e Juan Linz27 27 Weber (1978, vol. 1,226-37; vol. II, 1006-69) e Linz (1984). Para uma reelaboração e aplicação interessante desses conceitos à América Latina, ver Hartlyn (1998). , pode ser rotulado de neopatrimonialista, quando não, em alguns, casos de sultanista: eles proclamavam (como já observei todos os tipos de autoridade o faz) que lá estavam para o bem comum da população mas se consideravam de legibus solutus (ou seja, desobrigados a obedecer a lei) e freqüentemente ignoravam para sua vantagem pessoal as injunções éticas do republicanismo. No entanto, como já ressaltei, em muitos desses casos eleições, embora não competitivas, foram realizadas; em alguns países, inclusive (como sob a típica Junta Militar na América Latina) em que as eleições foram suprimidas, a população pôde relembrar períodos nos quais as eleições foram razoavelmente limpas (ou seja, em sua memória, tempos "democráticos"), mas em que não havia muito de liberalismo ou republicanismo28 28 Em vários trabalhos (especialmente 1988), Alain Touraine insistiu em um ponto de vista semelhante, o qual elaborei também em O'Donnell (1988, capítulo 1). .

Mesmo que, como já se observou, o rodizio ou o sorteio, e não as eleições, sejam os procedimentos verdadeiramente democráticos, foram as eleições que se identificaram com a"democracia", tanto nas várias teorias quanto no que imagino ser o senso comum universalmente difundido. Essa visão é reforçada quando - no que concluo ser um misto de simplismo e cinismo - muitos governos certificam países como democráticos, apenas pela realização de eleições mais ou menos plausíveis, mesmo que, como nos casos de Yeltsin e Fujimori, o executivo governe desconsiderando completamente o Congresso e o Judiciário. De um modo ou de outro, na memória histórica de muitas populações e na expectativa de muitos atores, a idéia de "democracia" (isto é, a poliarquia) passou a ser identificada com o processo - eleições - pelo qual o princípio democrático foi interpretado nos tempos modernos. Em conseqüência obscureceu-se a percepção do papel não menos constitutivo que o liberalismo e o republicanismo têm na poliarquia. Veremos que isso cria problemas quando, entre outras coisas, queremos discutir a accountability horizontal.

VI

Passei rapidamente por diversas questões importantes e complicadas, cada uma das quais reclama uma extensa bibliografia. Mas esse tour d'horizon era necessário para contextualizar o tema desse artigo. Posso, agora, definir o que entendo por accountability horizontal: a existência de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas29 29 Essa definição exclui o que Paul Collier (1991) chama "agências de restrição". Concentro-me aqui nas ações e omissões que são presumivelmente ilegais, e não nos constrangimentos que podem resultar de, por exemplo, dar autonomia ao Banco Central ou aceitar várias formas de condicionamentos econômicos em acordos com agências internacionais. Essas decisões são "neutras em relação a regimes", no sentido em que regimes podem ser adotados por poliárquicos ou autoritários. De fato, pode-se argumentar que a credibilidade desses acordos só será alcançada se eles forem realizados através de procedimentos propriamente poliárquicos, mas os exemplos, dentre outros, do Chile de Pinochet e da Indonésia de Suharto recomendam que se acrescente uma séria ressalva ceteris paribus a essa afirmação. Ademais, nem toda nova poliarquia procedeu de um modo legal quando tomou tais decisões. .

Tais ações podem afetar três esferas principais. A primeira, a democracia, é violada por decisões que, por exemplo, cancelem as liberdades de associação ou introduzam fraudes em eleições. Essas são ações importantes, mas não as considerarei porque elas resultam na abolição da poliarquia e, portanto, na exclusão desse caso do conjunto que discuto aqui30 30 Isso não significa que considero o papel dos tribunais eleitorais e dos fiscais desimportante. De fato, considero esse papel tão importante que, quando essas instituições e seus aliados domésticos e internacionais não podem garantir eleições limpas, tais países não podem ser considerados poliarquias. . A segunda esfera é a liberal, que é infringida quando, digamos, agentes estatais violam ou permitem a violação por atores privados de liberdades e garantias tais como a inviolabilidade do domicilio, a proibição de violência doméstica e tortura, o direito de todos a um julgamento razoavelmente justo, etc. Nas poliarquias (não necessariamente em regimes autoritários) a maioria dessas ações são perpetradas nas fronteiras entre o aparato estatal e os segmentos mais fracos e pobres da sociedade, por autoridades de baixo escalão e não responsabilizáveis perante o processo eleitoral (ainda que a disseminação desses fenômenos geralmente inclua a participação ou a conivência de autoridades de mais alto nível)31 31 Paulo Sérgio Pinheiro e seus colaboradores (1991, 1996, 1997) têm produzido no Brasil bons trabalhos sobre essa questão. Em Méndez, O'Donnell e Pinheiro (orgs.; no prelo), olhamos, junto com nossos colaboradores, para a situação que prevalece hoje na América Latina em relação às várias minorias étnicas, às mulheres, ao comportamento da polícia frente aos pobres, às condições das prisões, etc. O melhor que pode ser dito sobre essas questões é que as garantias liberais são parciais e intermitentes. . A terceira esfera afetada é o republicanismo. Refere-se às ações de autoridades, eleitas ou não, a maioria das quais bem posicionada no Estado ou no regime. Essas ações implicam uma séria desconsideração das exigências postas a esses autoridades pela tradição republicana: ou seja, que se sujeitem à lei e/ou dêem decisiva prioridade aos interesses públicos, e não aos seus próprios interesses privados.

Para certas concepções de autoridade política, as quais denomino "delegativas" — para não mencionar aquelas que são diretamente autoritárias —, é a dimensão dos constrangimentos republicanos que é mais contra-intuitiva. Por que reconhecer poderes outros que não o próprio quando se está, presumivelmente, tentando aproximar objetivos que levam a algum aspecto do bem público? E por que não beneficiar a si próprio, à família, ao clube, ou aos sócios nos negócios enquanto se está em um cargo público, se ao mesmo tempo se está (ao menos supostamente) buscando algum aspecto do bem público? Este é um tópico que me interessa há muito tempo. Em incontáveis conversas por muitos anos e em vários países, fiquei impressionado o quanto a resposta a essas perguntas era, para meus interlocutores, a do senso comum. Note-se que não eram escroques, ou não respondiam como se fossem: eles estavam tentando contribuir para algum tipo de bem comum ao mesmo tempo em que ultrapassavam as fronteiras republicanas. Eles não estavam sozinhos: famílias, membros do partido e de clubes, e/ou sócios nos negócios presumiam que as autoridades iriam se comportar desse modo e os teriam condenado seriamente se esse não tivesse sido o caso - há fortes expectativas normativas de que ajam desse modo. Para todos esses atores, as regras informais prevalecem frente às formais como fato consumado, sem uma má consciência detectável. Mas as regras formais não são inteiramente imateriais; elas têm que ser levadas em conta para que sua violação ou burla não provoque conseqüências danosas para as autoridades e seus afilhados.

Uso essa etnografía admitidamente indisciplinada porque ela diz algo importante: perfeitos escroques que não têm a menor intenção de servir algum aspecto do bem público são, de fato, um problema sério e freqüentemente disseminado em muitos países, poliárquicos ou não. Mas eles são a ponta de um iceberg: estou convencido que muitas das deficiências da accountability horizontal são o produto de uma infinidade de ações, cujos protagonistas e aqueles que a elas estão de alguma forma relacionados vêem como natural que as injunções republicanas32 32 Há um ditado dos tempos coloniais na América espanhola com referência à legislação real que sintetiza esse dilema: "La ley se obedece pero no se cumple". sejam algo a que no melhor dos casos se deve, para evitar conseqüências perniciosas, homenagear da boca para fora.

A principal questão aqui diz respeito às fronteiras, ou limites, em dois sentidos relacionados. Um é o da separação liberal e republicana, já mencionada, entre as esferas pública e privada. O outro, fortemente ligado a essas duas correntes, decorre da definição de accountability horizontal que propus: para que esse tipo de accountability seja efetivo deve haver agências estatais autorizadas e dispostas a supervisionar, controlar, retificar e/ou punir ações ilícitas de autoridades localizadas em outras agências estatais. As primeiras devem ter não apenas autoridade legal para assim proceder mas também, de facto, autonomia suficiente com respeito às últimas. Esse é, evidentemente, o velho tema da divisão dos poderes e dos controles e equilibrios entre eles. Esses mecanismos incluem as instituições clássicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, mas nas poliarquias contemporâneas também se estende por várias agências de supervisão, como os ombudsmen e as instancias responsáveis pela fiscalização das prestações de contas. Um ponto importante mas pouco acentuado é o de que, se se espera que essas agências sejam efetivas, salvo exceções, elas não funcionam isoladamente. Elas podem até mobilizar a opinião pública com seus procedimentos, mas normalmente sua efetividade depende das decisões tomadas pelos tribunais (ou, eventualmente, legisladores dispostos a considerar o impeachment), especialmente nos casos que envolvem autoridades de posição elevada. A accountability horizontal efetiva não é o produto de agências isoladas mas de redes de agências que têm em seu cume, porque é ali que o sistema constitucional "se fecha" mediante decisões últimas, tribunais (incluindo os mais elevados) comprometidos com essa accountability33 33 Assim como outras afirmações que faço aqui, essa leva a um tópico muito maior e mais complexo. Resumidamente, isso significa que os sistemas legais de poliarquias devem "fechar", no sentido de que todas as decisões de autoridades do Estado devem ser tomadas de acordo com a lei e serem controladas em última instância por normas constitucionais, inclusive a criação de leis e regulações. Governantes autoritários são, ao contrário, de legibus solutus; há sempre a possibilidade de que o rei absolutista, o partido de vanguarda, a Junta militar ou o caudillo possam agir discricionariamente, ignorando a legislação existente. . Devemos retornar a esse tema, porque ele nos permite vislumbrar algumas das dificuldades e das possibilidades na busca de accountability horizontal.

A idéia básica é a prevenção, e se necessário a punição, do tipo de ações para as quais as autoridades que caracterizei acima se inclinam; ou seja, sua extra-limitation, a transgressão dos limites de sua autoridade formalmente definida. Para serem autônomas, as instituições devem ter fronteiras, e elas devem ser reconhecidas e respeitadas por outros atores relevantes, devendo haver ainda atores dispostos a defender e se necessário reafirmar essas fronteiras se elas forem transgredidas34 34 Arthur Stinchcombe (1968: págs. 159-163), embora ponha essa questão em termos que eu nunca usaria aqui - legitimidade -, nota que a autoridade dos agentes estatais não depende tanto de seu próprio poder mas de sua habilidade de mobilizar outras agências em apoio à suas reivindicações. . No âmbito das três35 35 Digo "três" seguindo o uso corrente. No entanto, na maioria das poliarquias, em grande medida para os propósitos de adquirir accountability horizontal, essas instituições são de fato quatro, como resultado da divisão do legislativo em senado e câmara de deputados, ou seus equivalentes. principais instituições da poliarquia, como o demonstrou Bernard Manin36 36 Manin (1994). , a sabedoria dos Federalistas levou não à divisão um tanto mecânica de poderes proposta por seus oponentes mas a instituições que parcialmente se superpõem em sua autoridade. Isso produziu um arranjo que, criando diversos poderes fortes que parcialmente interferem um no outro, aumentou a autonomia de cada um deles com respeito à que teria resultado de uma separação simples desses poderes.

VII

Mencionei problemas que surgem do que suspeito serem visões abrangentes e profundamente arraigadas sobre o exercício da autoridade política em vários países, poliárquicos ou não. Um problema adicional resulta da vocação monística da democracia, particularmente da forma como foi interpretada em muitas novas poliarquias. Plebicitarismo, cesarismo, populismo e outros termos cognatos têm profundas raízes históricas em muitos desses países. Atualmente, quando esses países se tornaram poliarquias, esses termos podem ser lidos em um código delegativo: a democracia consiste em escolher em eleições razoavelmente limpas quem irá governar o país por um tempo determinado; governar é o que é feito pelo executivo; quem quer que seja eleito tem o direito e o dever de buscar o bem do país do modo como ele37 37 Uso o masculino porque, com as exceções de Indira Gandhi e Isabel Perón, e aquela mais duvidosa de Corazón Aquino, o governante de tipo delegativo é com freqüência um homem. e seus colaboradores diretos acharem apropriado; e se o eleitorado ficar insatisfeito com o desempenho do governo, ele pode votar em outros nas eleições seguintes - nem menos, nem mais do que isso38 38 Para aprofundar a discussão, ver O'Donnell (1994). . Nessa visão, evidentemente compartilhada por muitos líderes políticos e por uma parte indeterminada mas certamente não insignificante da opinião pública em muitas novas poliarquias39 39 Mesmo sendo provavelmente um caso extremo, em um survey que apliquei em 1991 na região metropolitana de São Paulo (n: 800), 57% dos respondentes "concordaram completamente" e 16% "concordaram em parte" com a afirmação de que "em vez de partidos políticos, o que é preciso é o povo seguir um homem competente e decidido que realize a unidade nacional", e 45% "concordaram completamente" e 16% "concordaram em parte" com "é melhor um governo que imponha a sua vontade, desde que tome medidas logo". , a existência de poderes que sejam suficientemente autônomos em relação ao executivo, especialmente quando se espera que aqueles exerçam controle sobre este, é totalmente inconveniente. No curto prazo, o senso comum do Executivo delegativo, desejoso de se desincumbir das enormes responsabilidades que ele acredita lhe terem sido exclusivamente confiadas, ignora aquelas outras agências e, no longo prazo, procura eliminá-las, cooptá-las ou neutralizá-las. Partindo de uma concepção delegativa de sua própria autoridade, o executivo tem fortes incentivos para proceder desse modo: contanto que seja bem sucedido, ele tem maior liberdade para tomar decisões. Com esse propósito, o Executivo pode contar com concepções semelhantes de autoridade compartilhadas por outros agentes40 40 Uma anedota argentina: quando a Suprema Corte foi criticada por sua subserviência explícita ao presidente Menem, um juiz alegou que, já que Menem fora eleito pela maioria dos argentinos e conseqüentemente "encarna a vontade popular", seria impróprio a Corte interferir em suas políticas. e, presumivelmente, com a concordância de uma parcela não desprezível da opinião pública com esse ponto de vista. Com a consciência limpa propiciada por de sua obrigação percebida de atender ao bem público, um Executivo escassamente liberal e republicano tentará maximizar seu poder eliminando ou negando a validade de outras instituições e poderes sociais que possam ser potencialmente controladores - a lógica monista do demos, transplantada para a lógica da delegação, reverbera aqui.

Nesse ponto, devo acrescentar que o que acabo de afirmar não significa que o Executivo seja todo poderoso. Como alguns autores notaram41 41 Palermo e Novaro (1996). Scott Mainwaring insistiu no mesmo ponto em comunicação pessoal. , esse tipo de Executivo encontra limites, mesmo entre seus aliados políticos, em diversos tipos de disputas de poder nas quais as normas legais possam ser invocadas. Mas a diferença crucial é que essas normas são instrumento de tais disputas, e não regras que, por serem reconhecidas em sua validade independente, dão os parâmetros legais de interações institucionais estabilizadas. Outra limitação surge do tamanho absoluto de alguns países e/ou de seu federalismo42 42 Para análises recentes dos padrões federalistas e algumas implicações relevantes para a discussão presente, ver Gibson (1997) e Mainwaring e Samuels (1997). , que tendem, ambos, a favorecer a existência de poderes locais, freqüentemente não menos delegativos e inacessíveis que o central, entre os quais existem relações de poder intrincadas que com freqüência compartilham uma utilização desavergonhadamente instrumental das normas legais.

Pode ser que no longo prazo o Executivo maximize seu poder sujeitando-se a controles horizontais, mas, exceto por algumas questões econômicas nas quais as vantagens de fazê-lo podem ser bastante imediatas e visíveis43 43 Esse é outro motivo para diferenciar os tipos de questões mencionadas na nota 30 das ações ilícitas que discuto aqui. , tomar, em cada rodada de decisões, o caminho da não-accountability parece ser a estratégia dominante. Em contraste, não é óbvio quais devam ser os incentivos de outras agências estatais para resistir ou punir ações ilícitas do Executivo (ou outra instituição, como acontece às vezes com o Congresso). A questão torna-se mais complicada se lembrarmos que, em larga medida, a efetividade da accountability horizontal depende não apenas de agências isoladas lidando com questões específicas mas com uma rede dessas agências que inclui tribunais comprometidos com o apoio a esse tipo de accountability. Incentivos eficazes para criar uma autonomia institucional suficiente devem ser, conseqüentemente, espalhados e coordenados por diversas agências estatais. Mas se adicionarmos o fato de que Menem, Fujimori, Yeltsin e outros líderes delegativos são muito eficientes em dividir e conquistar tais agências, torna-se claro que a tarefa de incentivar a sua autonomia está longe de ser fácil.

Há duas direções principais em que a accountability horizontal pode ser violada. Mesmo que em alguns casos essas direções possam na realidade coincidir, elas são distintas. A primeira consiste na usurpação ilegal por uma agência estatal da autoridade de outra; a segunda consiste em vantagens ilícitas que uma autoridade pública obtém para si ou para aqueles de alguma forma associados a ela. Chamarei o primeiro tipo de "usurpação" e o segundo, mesmo que inclua comportamentos que não se conformam verdadeiramente ao termo, de "corrupção". O liberalismo teme as conseqüências diretas e indiretas da usurpação pelos governantes, e portanto coincide com o republicanismo ao esperar que os governantes se sujeitem não apenas à lei existente — como os republicanos exigiriam — mas a um tipo de lei que proteja as liberdades e as garantias que o liberalismo aprecia. Mas o liberalismo não tem muito a dizer sobre a corrupção. O republicanismo, por sua vez, proíbe a usurpação e condena fortemente a corrupção (corruptio optimi est pessima), chegando a entender por isso, em suas versões mais clássicas, até mesmo a negligência pelas coisas públicas que o liberalismo vê com benevolência. Finalmente, a visão monística da democracia ignora a idéia mesmo de usurpação.

No entanto, há outro aspecto da democracia que a torna uma contribuição importante à accountability horizontal. Essa contribuição deriva da idéia democrática de que a autoridade política vem de todo e cada membro do demos: se é esse o caso, aqueles cidadãos que temporariamente - por rodízio, sorteio ou eleição - estão a cargo das questões políticas devem tomar suas decisões tendo em vista o bem de todos. Ademais, se o poder político vem de todos e se cada cidadão é ao menos potencialmente um participante na tomada de decisões coletivas, então -como em Atenas - todas as decisões devem ser públicas, no duplo sentido de que o processo que leva a elas está aberto à participação ampla e de que o conteúdo das decisões é acessível a todos. Mesmo que essas expectativas democráticas não levem diretamente à accountability horizontal, elas têm como conseqüência a demanda por um alto grau de transparência na tomada de decisão política, o que tem ao menos potencialmente uma implicação anticorrupção. Por sua vez, o liberalismo é em si mesmo indiferente à exigência de transparência, e em alguns casos pode renunciar a ela se isso parecer reforçar as salvaguardas individuais, enquanto, presumivelmente, governantes republicanos virtuosos tendam a encontrar excelentes razões para a não-transparência de suas decisões. Curiosamente o princípio democrático monista não impõe obstáculos à usurpação mas, por outro lado, alimenta uma preocupação ciosa com a corrupção. Se tivermos em conta que em novas poliarquias é a corrente democrática que se sobressai, pode haver uma reverberação dessa predominância na atitude de (aparentemente) muita indiferença em relação à usurpação por um executivo delegativo, mas muito menor tolerância por seus atos que se suspeitem corruptos.

No entanto, acredito que no longo prazo a usurpação seja mais perigosa que a corrupção para a sobrevivência da poliarquia: uma utilização sistemática da primeira simplesmente liqüida a poliarquia, enquanto a disseminação sistemática da segunda irá seguramente deteriorá-la, mas não a elimina necessariamente. Além disso, a usurpação impõe maiores obstáculos do que a corrupção à emergência de agências estatais relativamente autônomas que atuem de acordo com a autoridade propriamente definida que caracteriza as poliarquias formalmente institucionalizadas. Nesses últimos casos, provavelmente não é acidental que pareça haver mais corrupção que usurpação. Em contraste, a corrente democrática provê pouca ajuda contra a usurpação nos casos, tais como os de muitas novas poliarquias, em que os componentes liberais e republicanos são fracos.

VIII

Em relação a esses problemas, contudo, há algumas boas notícias. Ainda que combinando de maneira complexa e ambivalente os pontos de vista mencionados acima, sobre como os deveres públicos devem ser desimcumbidos, em muitas novas poliarquias há, mais do que no período precedente, um clima generalizado de condenação de ao menos um aspecto do comportamento ilícito das autoridades públicas. Refiro-me à corrupção, cuja difusão pesquisa após pesquisa mostram ser a preocupação principal nesses países. Sabemos, no entanto, que o que conta como corrupção no país Apode perfeitamente ser legal e moralmente permissível no país B; mas parece existir um núcleo básico: apropriar-se diretamente de fundos públicos ou aceitar suborno, que parece ser condenado na maior parte, senão em todos, os países44 44 Uso o termo "diretamente" para abarcar uma grande latitude que existe em alguns países para ações que em outros podem ser consideradas casos de enriquecimento ilícito de uma autoridade pública, tais como "consultorias" dadas a associados de autoridades para fazer negócios com suas agências, ou vários tipos de pantouflage. Outra ressalva: no texto considero "suborno" o que em uma dada cultura é considerado vultoso ou por alguma razão moralmente ultrajante; dar algum dinheiro a um pequeno funcionário para acelerar um processo burocrático ou para um policial para evitar uma multa por excesso de velocidade não é considerado condenável em muitos países. . Esse texto não trata especificamente de corrupção, embora essa praga seja em parte expressão e em parte conseqüência da debilidade da accountability horizontal. A questão é que, na medida em que algumas formas de corrupção se tornam altamente visíveis e são condenadas pela maioria da opinião pública, pode surgir um ângulo que permita pensar mais positivamente do que tenho feito até aqui sobre como adquirir accountability horizontal.

Outra boa nova é que, em conseqüência dos diversos abusos perpetrados nos períodos precedentes de governo autoritário, surgiram em muitas novas poliarquias várias organizações (algumas das quais de direitos humanos que têm extravasado a definição inicial de sua missão) que reivindicam vigorosamente que as autoridades estatais respeitem as liberdades e garantias liberais básicas (principalmente dos fracos e pobres). Outras organizações supervisionam eleições e realizam outras funções democráticas, tais como esforços para educar a população no conhecimento e exercício de seus direitos políticos. Outras ainda atuam como vigias republicanos da licitude das ações estatais em termos tanto de sua possível usurpação de prerrogativas de outras agências estatais quanto da conduta ética apropriada a autoridades públicas45 45 Para o argumento que apresento aqui, pode ser de interesse notar que, em todos os países que conheço suficientemente, a divisão de trabalho entre essas organizações segue muito proximamente esse padrão tripartite - democrático, liberal e republicano. . Como já mencionado, as operações dessas organizações têm efeitos limitados se a ação de agências estatais propriamente autorizadas não se seguem. Mas, ao lado de notícias jornalísticas, essas ações iluminam as ações ilícitas que de outro modo passariam despercebidas, e provêem aliados potenciais para agências estatais que, mesmo em condições duvidosas, possam se decidir a tomar as medidas apropriadas.

IX

O que pode ser feito para adquirir accountability horizontal? Essa é uma questão frente a qual, ao menos no curto prazo e na maior parte dos casos, é difícil ser muito otimista. Tudo o que posso oferecer são algumas sugestões modestas e pouco originais.

Em primeiro lugar, dar aos partidos de oposição que tenham alcançado um nível razoável de apoio eleitoral um papel importante, senão o principal, na direção das agências (Fiscalías, como são normalmente chamadas na América Latina) que estão a cargo de investigar supostos casos de corrupção. No entanto, nada garante que a oposição seja melhor que o governo46 46 Em muitos casos, por exemplo, ela pode usar essas posições para chantagear o governo. ou que este, como tem acontecido em muitas novas poliarquias, não vá ignorar, privar dos recursos necessários e/ou cooptar essas agências.

Em segundo lugar, não seria menos importante que as agências que desempenham um papel essencialmente preventivo, tais como os Tribunais de Contas (General Accounting Offices ou Controladorías), fossem altamente profissionalizadas, dotadas de recursos tanto suficientes quanto independentes dos caprichos do Executivo, e o mais isoladas que seja possível do governo. Por sua vez, isso não impede que a corrupção penetre nessas agências, ou que o Executivo as coopte, ou que, na alternativa de ser o Congresso a determinar a autoridade e o orçamento dessas agências, este se revele tão desejoso quanto o Executivo de eliminá-las ou neutralizá-las.

Em terceiro lugar, seria de muita ajuda a existência de um Judiciário que fosse altamente profissionalizado, bem dotado de um orçamento que seja tão independente quanto possível do Executivo e do Congresso, e totalmente autônomo em suas decisões relativas a estes. Mas tal "autonomia" é arriscada: pode facilitar o controle do Judiciário por um partido político ou uma facção ou coalizão de interesses duvidosos, ou pode promover uma auto-definição privilegiada e arcaica da corporação judicial e de sua missão, sem qualquer accountability própria em relação a outros poderes do Estado e da sociedade47 47 O Brasil é um exemplo disso. Nesse país, o Judiciário obteve um alto grau de autonomia em relação ao Executivo e ao Congresso, sem que isso significasse uma melhoria de seu desempenho (no mais, extremamente fraco). Mas o Judiciário tem usado sua autonomia para atribuir aos juizes e aos outros funcionários salários especialmente altos e, principalmente no caso dos Tribunais Superiores e em outros Tribunais, privilégios imensos. .

Em quarto lugar, esses e outros recursos institucionais concomitantes têm, como vimos acima, sérias desvantagens. Mas implementar esses recursos com um espírito "madisoniano" de descrença prudente nas inclinações republicanas de quem quer que seja é preferível à situação atual de muitas novas poliarquias, nas quais tais instituições não existem ou foram tornadas inefetivas por presidentes delegativos e legisladores aquiescentes.

Em quinto lugar, referindo-me agora ao sentido liberal da accountability horizontal, especialmente aquele que lida com os diversos encontros dos fracos e pobres com os agentes estatais, é evidente que há aí um mundo para ser construído, como os trabalhos já citados, dentre outros, mostram. Esse talvez seja o maior problema de todos: em sociedades marcadas não apenas pela pobreza arraigada mas também, e mesmo mais decisivamente para o nosso tema, por profundas desigualdades, como garantir que os fracos e pobres sejam pelo menos tratados decentemente por tais agentes?48 48 Refiro-me aqui à interessante idéia de Avishai Margalit (1996) de que uma sociedade decente é aquela que tenha instituições que não humilhem seus membros; para comentários e dúvidas a respeito dessa noção, ver o número especial de Social Research (Spring 1997). Esse tema é complicado demais para ser tratado em um artigo focado principalmente na dimensão republicana da accountability horizontal49 49 Discuto alguns aspectos desse tema em O'Donnell (1997). .

Em sexto lugar, informação confiável e adequada é essencial. Uma mídia razoavelmente independente, assim como várias instituições de pesquisa e disseminação, devem ter um papel importante, mas isso não substitui completamente a existência de agências que possam ser apoiadas publicamente, mas que sejam independentes do governo, responsáveis pela coleta e organização de dados, amplamente e disponíveis em um vasto leque de indicadores - inclusive, mas não exclusivamente, econômicos. Que indicadores devem ser esses, a metodologia de sua coleta, a sua periodicidade e os meios pelos quais são difundidos devem ser decididos por uma autoridade pluralista, e não puramente governamental50 50 Não por acidente em um dos dois países mais democráticos da América Latina, a Costa Rica, um grupo independente, patrocinado em conjunto pelo Gabinete do Ombudsman, o Conselho das Universidades Nacionais e várias organizações sociais realiza todo ano um documento amplamente discutido ( Estado de la Nación) do tipo que sugiro aqui. Atualmente esse mesmo grupo, liderado por Miguel Gutiérrez Saxe e Jorge Vargas Cullel, está planejando a publicação de um outro documento, especialmente focado na avaliação de mudanças na "qualidade da democracia" neste país. .

Em sétimo lugar, em relação a todas essas questões pouco se pode esperar sem a ação determinada e persistente dos atores domésticos -a mídia e várias organizações de accountability vertical - que já mencionei. Organizações e redes internacionais são de boa ajuda também. Mas suas injunções e recomendações correm o risco de ser definidas com sucesso como interferência "externa" indevida se não forem incorporadas e, digamos, "nacionalizadas" por agentes domésticos. O impacto que todos esses atores podem produzir na opinião pública ao menos em questões que envolvem alta corrupção e notória usurpação suscita um apoio que pode ser crucial para autoridades públicas dispostas a adotar uma accountability horizontal. Isso me leva à conclusão que gostaria de enfatizar, tanto quanto aquela a que chegamos antes, sobre a necessidade de uma rede de agências estatais capazes e dispostas a reforçar a accountability horizontal: sua efetividade também depende dos tipos de accountability vertical - inclusive, mas não apenas, as eleições - que apenas a poliarquia fornece.

Finalmente, evoco um fator difícil de estabelecer mas a meu ver importante: indivíduos, especialmente políticos e outros líderes institucionais, são de fato relevantes. Mesmo em países com uma tradição de ampla corrupção e repetidas usurpações, o bom exemplo de indivíduos bem posicionados que agem convincentemente de acordo com as injunções liberais e republicanas pode gerar um apoio, talvez difuso mas ainda assim valioso, da opinião pública. Não menos importante, essas atitudes podem encorajar outros indivíduos ou agências estrategicamente colocados a tomar posições semelhantes. Porque e como esses líderes surgem é um mistério para mim. O fato melancólico é que eles não parecem muito abundantes, ou bem sucedidos, na maioria das poliarquias e que, quando enfim chegam às mais altas posições, eles nem sempre são coerentes com as expectativas que geraram enquanto as ambicionavam.

Essas reflexões e seu clima não muito otimista espelham um problema ao qual já aludi anteriormente: os incentivos para muitos dos indivíduos em posição de poder e seus afilhados continuarem com suas práticas escassamente liberais e republicanas são extremamente fortes, e o componente democrático predominante, especialmente quando lido através de um código delegativo, pouco melhora essa situação. Em contraste, à exceção de indivíduos particularmente altruístas, os incentivos para perseguir a accountability horizontal são débeis, especialmente se, como tenho insistido, a realização de um nível significativo dessa accountability requeira a coordenação de diversas agências, cada uma delas sujeitas a estratégias divide et impera51 51 Outras pesquisas sobre esse tema emergente da accountability horizontal em novas poliarquias terão que levar em conta a interessante literatura existente sobre os controles que, especialmente, o Congresso dos Estados Unidos tenta exercer sobre o Executivo, incluindo as agências semi-autônomas deste. À medida que enfoca principalmente o Congresso, essa literatura toca em apenas uma, e não a mais decisiva das instituições da accountability horizontal nas novas poliarquias,. Mas, em particular, a distinção que alguns desses autores fazem entre controles na forma de "patrulhas policiais" e "alarmes de incêndio" me parece muito sugestiva; ver, especialmente, McCubbins e Schwartz 1984;, McCubbins, Noll et. Al. 1987; Kiewiet e McCubbins 1991; e Tsebelis 1993. Embora esse tema requeira uma análise mais detalhada, suspeito, porém, que a eficácia de mecanismos preventivos permanentes caracterizados como "patrulhas policiais" e, ainda mais, o mecanismo presumivelmente mais eficaz de "alarme de incêndio" (pelo qual vários atores, públicos ou privados, ocasionalmente encontram razão para disparar mecanismos de accountability horizontal) pressupõe a existência, a autorização e o reforço das mesmas agências públicas cuja ausência, fragilidade ou cooptação define os problemas que discuto nesse artigo. . A questão, enfim, é aquela que Madison e seus aliados tentaram resolver: como construir poderes que em um espírito liberal e republicano refreiem as tentações usurpadoras de outros poderes e que ainda satisfaçam à demanda democrática de propiciar governos não se esqueçam de que são devedores frente àqueles que são a fonte de sua pretensão de governar.

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  • ____. The Radicalism of the American Revolution, New York, Alfred A. Knopf, 1991.
  • *
    "Horizontal
    Accountability and New Poliarquies", setembro de 1997. Tradução do original inglês de Clarice Cohn e Alvaro Augusto Comin. O autor agradece os comentários de Larry Diamond, Gabriela Ippolito-O'Donnell, Marcelo Leiras, José Maria Maravall, Sebastián Mazzuca, Scott Mainwaring, Geraldo Munck, Andreas Schedler e Philippe Schmitter
  • 1
    Ver, especialmente, Dahl (1989, pág 221). Os atributos estabelecidos por Dahl são: 1) Autoridades eleitas; 2) Eleições livres e justas; 3) Sufrágio inclusivo; 4) o direito de se candidatar aos cargos eletivos; 5) Liberdade de expressão; 6) Informação alternativa; e 7) Liberdade de associação. Em O'Donnell (1996), seguindo diversos autores lá citados, propus que se adicionasse: 8) Autoridades eleitas (e algumas nomeadas, como juizes das cortes supremas) não podem ser destituídas arbitrariamente antes do fim dos mandatos definidos pela constituição; 9) Autoridades eleitas não devem ser sujeitadas a constrangimentos severos e vetos ou excluídas de determinados domínios políticos por outros atores não eleitos, especialmente as forças armadas; 10) Deve haver um território inconteste que defina claramente a população votante. Tomo esses dez atributos em conjunto como definidores da poliarquia.
  • 2
    Esses casos são chamados "regimes eleitorais" por Karl (1986).
  • 3
    As exceções são Costa Rica, Uruguai e, com o importante ressalva dos privilégios constitucionais mantidos pelas forças armadas, o Chile.
  • 4
    Como defende Merkel (1996). Para a Rússia e a Coréia do Sul, ver Ziegler (1998); para a Rússia, ver também Merritt (1997).
  • 5
    Tendo em vista as opiniões altamente conflitantes sobre o tema, e minha falta de conhecimento direto, prefiro não julgar o grau em que esses países alcançaram, ou não,
    accountability horizontal similar à de Uruguai e Costa Rica.
  • 6
    Przeworski e Stokes (1995) argumentam, de um lado, que "as instituições democráticas não contêm mecanismos de reforço da representação prospectiva" e, de outro, que "a votação retrospectiva, que toma informações apenas no desempenho passado do candidato, não é suficiente para induzir os governos a atuarem responsavel mente". Os autores listam algumas inovações institucionais que podem minorar esse problema mas, como veremos, a eficácia e mesmo a criação dessas instituições não devem ser tidas como garantidas nas condições em que muitas novas poliarquias funcionam. Por outro lado, enfocando o funcionamento dos partidos governistas da Espanha, mas lançando conclusões mais gerais, José María Maravall (1997, pág 5) argumenta que o controle dos eleitores sobre os políticos enfrenta difíceis, senão incomensuráveis, "problemas de informação, monitoramento e compromisso". Como contraponto, Klingeman et al. (1994) e Keeler (1993), que mostram que, no geral, em poliarquias formalmente institucionalizadas, as posições políticas apresentadas nas plataformas eleitorais dos partidos são prenuncios bastante bons de suas orientações políticas quando no governo. Em contraste, na América Latina, ao menos nas últimas duas décadas e no contexto da implementação de políticas econômicas neoliberais, como Przeworski e Stokes (1995), entre outros, deixam claro, essa previsibilidade tem faltado quase inteiramente.
  • 7
    Uso esse termo para manter consistência com os argumentos que desenvolvo em O'Donnell (1996). Para os propósitos desse texto, o termo pode ser entendido como incluindo a maioria das antigas poliarquias, aquelas que a literatura corrente considera altamente institucionalizadas.
  • 8
    Ver, para a América Latina, Shugart e Carey (1992), Mainwaring e Scully (1995) e Mainwaring e Shugart (1997).
  • 9
    Acredito que essa ambigüidade inerente é uma importante razão para o caráter prioritariamente defensivo do liberalismo, a despeito dos esforços recentes de retratá-lo em cores mais positivas, próximas às republicanas; ver, por exemplo, Macedo (1992). Apresso-me a acrescentar que isso não impede que algumas das "liberdades negativas" e constrangimentos constitucionais típicos do liberalismo possam ter conseqüências que reforcem suas carreiras individuais ou institucionais, como argumentado especialmente por Holmes (1988 e 1995).
  • 10
    Nas palavras de Péricles, documentadas por Thucydides: "Nosso homem público tem, ao lado da política, seus negócios privados para resolver, e nossos cidadãos comuns, embora ocupados com os interesses da indústria, são ainda juizes justos de questões públicas" (Thucydides, 1951). Antes de Péricles, os atenienses adotaram a inovação radical de pagar o equivalente a um dia de trabalho para tomar parte de suas diversas instituições de tomada de decisão, tornando portanto possível a participação de seus cidadãos pobres - ver Hansen (1991).
  • 11
    Para essa questão ver Finley (1973 e 1984) e Jaeger (1946); embora de modo relutante, Hansen (1991) concorda com esse ponto de vista.
  • 12
    A esse respeito, embora disponham o problema entre dois termos, e não três como estou fazendo aqui, penso que Walzer (1989), Taylor (1990) e Offe e Preus (1991) são particularmente úteis.
  • 13
    Ver Hansen (1991) e Manin (1996).
  • 14
    Com isso quero dizer que as decisões da Assembléia ateniense eram sujeitas à revisão pela
    Dikasterion (Corte do Povo) em termos de sua conformidade com as leis escritas, mas esses controles da esfera pública eram por ela exercidos sem o propósito de proteger direitos privados contra o
    demos. Para esse tema e para temas relativos, ver novamente Hansen (1991).
  • 15
    "The rule of law" no original [N.T.]
  • 16
    Com as únicas exceções dos campos de concentração e das concepções punitivas das prisões.
  • 17
    Digo "de algum modo" porque o princípio democrático é mudo em relação a quem devem ser os membros, ou cidadãos, de seu
    demos. Mas isso não deve nos preocupar agora.
  • 18
    Tal como expressou Giovanni Sartori (1987), retomando um termo cunhado por Benedetto Croce. Na América Latina, essa tem sido a principal aparência do liberalismo.
  • 19
    Entre trabalhos contemporâneos desse tipo, deve-se mencionar o excelente estudo de Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992); para a América Latina a referência mais importante e abrangente é Collier e Collier (1991).
  • 20
    Ou, como diz John Rawls (1985, pág 225) em contexto semelhante, essas são "idéias intuitivas básicas que estão incrustadas nas instituições políticas das sociedades culturalmente plurais do Ocidente moderno ... e nas tradições públicas de sua interpretação". É claro que é difícil identificar autores que argumentam a partir de apenas uma dessas correntes, especialmente dentre os mais criativos - e portanto menos simplistas. Mas há nomes que se ressaltam: Thucydides/Péricles, Rousseau e, de seu próprio modo, Marx na corrente democrática; Hobbes, Locke, Montesquieu e Constant na liberal; e Cícero, Sallust, Livy, e o Maquiavel dos Discursos na corrente republicana. Mas note-se que estou defendendo que variou muito o grau em que essas correntes realmente se incrustaram nas práticas, e não apenas nas instituições formais, das várias poliarquias.
  • 21
    Desenvolvo esse argumento em O'Donnell 1993.
  • 22
    Proeminentemente o trabalho de Arendt Lijphart, a começar de seu livro seminal de 1984.
  • 23
    Relendo
    The Federalist Papers, fui novamente surpreendido pela imensa sabedoria com que Madison definiu e combinou liberalismo e republicanismo. Para citar apenas uma: "A diversidade nas faculdades dos homens, de onde se originam os direitos da propriedade, não é mais um obstáculo insuperável para a uniformidade dos interesses. A proteção dessas faculdades é o primeiro objetivo do governo" (
    Federalist nº 10, pág 78). Em relação ao que chamo abaixo de dimensão invasiva do republicanismo, ouçamos mais uma vez Madison, quando ele discute os vários "departamentos" projetados para a constituição: "nenhum deles deve possuir, direta ou indiretamente, uma influência dominante sobre os outros na administração de seus respectivos papéis. Não será negado que o poder é de uma natureza invasiva e que deve ser efetivamente evitado que ultrapasse os limites que lhes foram atribuídos" (
    Federalist nº 48, pág 308); e "Deve-se fazer com que a ambição neutralize a ambição. O interesse do homem deve estar conectado com os direitos constitucionais do lugar... o interesse privado de cada indivíduo deve ser uma sentinela dos direitos públicos" (
    Federalist nº 51, pág. 323). Como se sabe, os federalistas foram declarados antidemocráticos; só mais tarde, em um longo processo que se pode dizer que só foi completado com as lutas dos direitos civis das décadas de 1950 e 1960, elementos mais democráticos foram introduzidos na constituição, na legislação e na jurisprudência dos Estados Unidos; ver Wood (1991, 1992) e Fishkin (1991).
  • 24
    Entre as muitas fontes que poderiam ser citadas em apoio a essa afirmação, ver a discussão de Rosanvallon (1994) sobre o significado das eleições na França do século XIX em contraste com os casos anglosaxônicos.
  • 25
    Não ignoro que muitos pequenos países europeus estabeleceram poliarquias originais bastante cedo. Porém, não lido com esses países neste artigo porque, com as exceções parciais da Bélgica e da Holanda, eles não tiveram a influência imperialista que Inglaterra, França e Estados Unidos tiveram.
  • 26
    Meu uso dos termos franceses dessa dicotomía mostra que mesmo nessa antiga poliarquia essa questão era importante - dela, apenas a Inglaterra e os Estados Unidos foram poupados.
  • 27
    Weber (1978, vol. 1,226-37; vol. II, 1006-69) e Linz (1984). Para uma reelaboração e aplicação interessante desses conceitos à América Latina, ver Hartlyn (1998).
  • 28
    Em vários trabalhos (especialmente 1988), Alain Touraine insistiu em um ponto de vista semelhante, o qual elaborei também em O'Donnell (1988, capítulo 1).
  • 29
    Essa definição exclui o que Paul Collier (1991) chama "agências de restrição". Concentro-me aqui nas ações e omissões que são presumivelmente ilegais, e não nos constrangimentos que podem resultar de, por exemplo, dar autonomia ao Banco Central ou aceitar várias formas de condicionamentos econômicos em acordos com agências internacionais. Essas decisões são "neutras em relação a regimes", no sentido em que regimes podem ser adotados por poliárquicos ou autoritários. De fato, pode-se argumentar que a credibilidade desses acordos só será alcançada se eles forem realizados através de procedimentos propriamente poliárquicos, mas os exemplos, dentre outros, do Chile de Pinochet e da Indonésia de Suharto recomendam que se acrescente uma séria ressalva
    ceteris paribus a essa afirmação. Ademais, nem toda nova poliarquia procedeu de um modo legal quando tomou tais decisões.
  • 30
    Isso não significa que considero o papel dos tribunais eleitorais e dos fiscais desimportante. De fato, considero esse papel tão importante que, quando essas instituições e seus aliados domésticos e internacionais não podem garantir eleições limpas, tais países não podem ser considerados poliarquias.
  • 31
    Paulo Sérgio Pinheiro e seus colaboradores (1991, 1996, 1997) têm produzido no Brasil bons trabalhos sobre essa questão. Em Méndez, O'Donnell e Pinheiro (orgs.; no prelo), olhamos, junto com nossos colaboradores, para a situação que prevalece hoje na América Latina em relação às várias minorias étnicas, às mulheres, ao comportamento da polícia frente aos pobres, às condições das prisões, etc. O melhor que pode ser dito sobre essas questões é que as garantias liberais são parciais e intermitentes.
  • 32
    Há um ditado dos tempos coloniais na América espanhola com referência à legislação real que sintetiza esse dilema: "La ley se obedece pero no se cumple".
  • 33
    Assim como outras afirmações que faço aqui, essa leva a um tópico muito maior e mais complexo. Resumidamente, isso significa que os sistemas legais de poliarquias devem "fechar", no sentido de que todas as decisões de autoridades do Estado devem ser tomadas de acordo com a lei e serem controladas em última instância por normas constitucionais, inclusive a criação de leis e regulações. Governantes autoritários são, ao contrário,
    de legibus solutus; há sempre a possibilidade de que o rei absolutista, o partido de vanguarda, a
    Junta militar ou o
    caudillo possam agir discricionariamente, ignorando a legislação existente.
  • 34
    Arthur Stinchcombe (1968: págs. 159-163), embora ponha essa questão em termos que eu nunca usaria aqui - legitimidade -, nota que a autoridade dos agentes estatais não depende tanto de seu próprio poder mas de sua habilidade de mobilizar outras agências em apoio à suas reivindicações.
  • 35
    Digo "três" seguindo o uso corrente. No entanto, na maioria das poliarquias, em grande medida para os propósitos de adquirir
    accountability horizontal, essas instituições são de fato quatro, como resultado da divisão do legislativo em senado e câmara de deputados, ou seus equivalentes.
  • 36
    Manin (1994).
  • 37
    Uso o masculino porque, com as exceções de Indira Gandhi e Isabel Perón, e aquela mais duvidosa de Corazón Aquino, o governante de tipo delegativo é com freqüência um homem.
  • 38
    Para aprofundar a discussão, ver O'Donnell (1994).
  • 39
    Mesmo sendo provavelmente um caso extremo, em um
    survey que apliquei em 1991 na região metropolitana de São Paulo (n: 800), 57% dos respondentes "concordaram completamente" e 16% "concordaram em parte" com a afirmação de que "em vez de partidos políticos, o que é preciso é o povo seguir um homem competente e decidido que realize a unidade nacional", e 45% "concordaram completamente" e 16% "concordaram em parte" com "é melhor um governo que imponha a sua vontade, desde que tome medidas logo".
  • 40
    Uma anedota argentina: quando a Suprema Corte foi criticada por sua subserviência explícita ao presidente Menem, um juiz alegou que, já que Menem fora eleito pela maioria dos argentinos e conseqüentemente "encarna a vontade popular", seria impróprio a Corte interferir em suas políticas.
  • 41
    Palermo e Novaro (1996). Scott Mainwaring insistiu no mesmo ponto em comunicação pessoal.
  • 42
    Para análises recentes dos padrões federalistas e algumas implicações relevantes para a discussão presente, ver Gibson (1997) e Mainwaring e Samuels (1997).
  • 43
    Esse é outro motivo para diferenciar os tipos de questões mencionadas na nota 30 das ações ilícitas que discuto aqui.
  • 44
    Uso o termo "diretamente" para abarcar uma grande latitude que existe em alguns países para ações que em outros podem ser consideradas casos de enriquecimento ilícito de uma autoridade pública, tais como "consultorias" dadas a associados de autoridades para fazer negócios com suas agências, ou vários tipos de
    pantouflage. Outra ressalva: no texto considero "suborno" o que em uma dada cultura é considerado vultoso ou por alguma razão moralmente ultrajante; dar algum dinheiro a um pequeno funcionário para acelerar um processo burocrático ou para um policial para evitar uma multa por excesso de velocidade não é considerado condenável em muitos países.
  • 45
    Para o argumento que apresento aqui, pode ser de interesse notar que, em todos os países que conheço suficientemente, a divisão de trabalho entre essas organizações segue muito proximamente esse padrão tripartite - democrático, liberal e republicano.
  • 46
    Em muitos casos, por exemplo, ela pode usar essas posições para chantagear o governo.
  • 47
    O Brasil é um exemplo disso. Nesse país, o Judiciário obteve um alto grau de autonomia em relação ao Executivo e ao Congresso, sem que isso significasse uma melhoria de seu desempenho (no mais, extremamente fraco). Mas o Judiciário tem usado sua autonomia para atribuir aos juizes e aos outros funcionários salários especialmente altos e, principalmente no caso dos Tribunais Superiores e em outros Tribunais, privilégios imensos.
  • 48
    Refiro-me aqui à interessante idéia de Avishai Margalit (1996) de que uma sociedade decente é aquela que tenha instituições que não humilhem seus membros; para comentários e dúvidas a respeito dessa noção, ver o número especial de
    Social Research (Spring 1997).
  • 49
    Discuto alguns aspectos desse tema em O'Donnell (1997).
  • 50
    Não por acidente em um dos dois países mais democráticos da América Latina, a Costa Rica, um grupo independente, patrocinado em conjunto pelo Gabinete do Ombudsman, o Conselho das Universidades Nacionais e várias organizações sociais realiza todo ano um documento amplamente discutido (
    Estado de la Nación) do tipo que sugiro aqui. Atualmente esse mesmo grupo, liderado por Miguel Gutiérrez Saxe e Jorge Vargas Cullel, está planejando a publicação de um outro documento, especialmente focado na avaliação de mudanças na "qualidade da democracia" neste país.
  • 51
    Outras pesquisas sobre esse tema emergente da
    accountability horizontal em novas poliarquias terão que levar em conta a interessante literatura existente sobre os controles que, especialmente, o Congresso dos Estados Unidos tenta exercer sobre o Executivo, incluindo as agências semi-autônomas deste. À medida que enfoca principalmente o Congresso, essa literatura toca em apenas uma, e não a mais decisiva das instituições da
    accountability horizontal nas novas poliarquias,. Mas, em particular, a distinção que alguns desses autores fazem entre controles na forma de "patrulhas policiais" e "alarmes de incêndio" me parece muito sugestiva; ver, especialmente, McCubbins e Schwartz 1984;, McCubbins, Noll et. Al. 1987; Kiewiet e McCubbins 1991; e Tsebelis 1993. Embora esse tema requeira uma análise mais detalhada, suspeito, porém, que a eficácia de mecanismos preventivos permanentes caracterizados como "patrulhas policiais" e, ainda mais, o mecanismo presumivelmente mais eficaz de "alarme de incêndio" (pelo qual vários atores, públicos ou privados, ocasionalmente encontram razão para disparar mecanismos de
    accountability horizontal) pressupõe a existência, a autorização e o reforço das mesmas agências públicas cuja ausência, fragilidade ou cooptação define os problemas que discuto nesse artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      1998
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