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Uma perspectiva analítica para a reforma do Estado

State reform in Brazil: an analytical perspective

Resumos

Os problemas e as dificuldades ligadas à reforma do Estado no Brasil são examinados por um ângulo pouco explorado na bibliografia: o do legado político-institucional da antiga ordem. O principal alvo das críticas são as visões reducionistas, incapazes de dar conta da complexidade do seu objeto e de atribuir o crédito devido à sua dimensão propriamente política.


The problems and difficulties concerning the reform of the state in Brazil are examined from a viewpoint scarcely found in the bibliography: that of the politico-institutional legacy of the old order. The main target of criticism are the reductionist views, which are unable to perceive the complexity of their object and to give due credit to its specifically political dimension.


Uma perspectiva analítica para a reforma do Estado*

State reform in Brazil: an analytical perspective

Eli Diniz

RESUMO

Os problemas e as dificuldades ligadas à reforma do Estado no Brasil são examinados por um ângulo pouco explorado na bibliografia: o do legado político-institucional da antiga ordem. O principal alvo das críticas são as visões reducionistas, incapazes de dar conta da complexidade do seu objeto e de atribuir o crédito devido à sua dimensão propriamente política.

ABSTRACT

The problems and difficulties concerning the reform of the state in Brazil are examined from a viewpoint scarcely found in the bibliography: that of the politico-institutional legacy of the old order. The main target of criticism are the reductionist views, which are unable to perceive the complexity of their object and to give due credit to its specifically political dimension.

O tema da reforma do Estado adquiriu centralidade crescente no debate sobre as condições para o enfrentamento da crise que se abateu sobre a economia brasileira no decorrer dos anos 80. Sob o impacto da globalização, configurou-se um quadro de desequilíbrios, em que a deterioração do antigo modelo de Estado, ao lado do agravamento da divida externa e do processo inflacionário, transformaram-se nos principais problemas que desafiariam a criatividade dos governos da Nova República. Por outro lado, apesar de incorporada à agenda das questões prioritárias, a reforma do Estado avançaria de forma particularmente lenta, enfrentando fortes resistências, expressão das divergências sobre o caráter e as dimensões das mudanças necessárias.

O desacordo acerca do Estado do futuro contrasta com o consenso negativo quanto à rejeição do antigo formato estatista-concentrador, sob o qual se deu o desenvolvimento da estratégia da industrialização substitutiva de importações. A polêmica envolve visões distintas e mesmo contraditórias sobre as metas e os critérios aos quais a proposta de reordenamento deveria ajustar-se.

O presente texto pretende contribuir para o aprofundamento desse debate e a redefinição de seus termos, esclarecendo alguns pontos obscuros e sobretudo incorporando à análise dimensões que até o momento têm sido desconsideradas. Para tanto, proponho como eixo da argumentação um balanço dos principais problemas que configuram o legado político-institucional da antiga ordem e as restrições que a partir daí decorrem para a construção de um novo modelo de Estado. Embora muitos analistas apontem a herança patrimonialista, o enraizamento das práticas clientelistas e o peso da tradição anti-republicana como sérios desafios a serem enfrentados, os aspectos político-institucionais aí envolvidos, bem como as tensões e desequilíbrios constitutivos desse padrão de expansão do Estado têm sido sistematicamente negligenciados.

Ao lado da perspectiva histórica, de mais longo prazo, enfatizo os problemas ligados ao desempenho dos dois primeiros governos da Nova República na busca de respostas aos principais desafios da década de 80, quais sejam, a crise econômica e a consolidação da democracia. A conjugação dos enfoques histórico e conjuntural tem como objetivo romper com o vezo reducionista presente na maioria das análises, procurando, alternativamente, repensar a reforma do Estado em conexão com o aperfeiçoamento institucional do país em direção a uma ordem democrática plena. Nesse sentido, a principal questão que se coloca refere-se a como compatibilizar a administração da crise do antigo modelo com os imperativos do fortalecimento da nova ordem política posterior à derrocada do autoritarismo.

Finalmente, o tema será considerado a partir de um enfoque amplo e de uma perspectiva multidimensional, o que significa, em primeiro lugar, levar em conta os vários aspectos envolvidos na problemática da reforma do Estado, como a relação entre os poderes, o papel dos partidos políticos ou ainda a articulação Estado-sociedade. Em segundo lugar, essa abordagem implica situar a reforma administrativa como um dos itens de uma agenda mais complexa e abrangente de reforma. Esta compreende também as dimensões técnicas, financeiras e, sobretudo, políticas da reforma do Estado.

HIPERATIVIDADE DECISÓRIA X INCAPACIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO: PARADOXOS DE UM ESTADO EM CRISE

Como salientei em outro trabalho (Diniz, 1995), a maioria das análises sobre a crise de governabilidade que caracterizou a primeira década após a instauração da democracia no país insistiriam em atrelar suas origens a problemas derivados da própria transição democrática, tais como a explosão de demandas, a sobrecarga da agenda, o excesso de pressões e outras restrições decorrentes do alargamento da participação política. Desta forma, o governo, acossado por demandas excessivas e mesmo contraditórias, ver-se-ia impossibilitado de deliberar e agir com a presteza e segurança necessárias tendo em vista o caráter emergencial da crise. Subjacente a esse diagnóstico, está o pressuposto de um conflito inevitável entre o reconhecimento do teor explosivo da crise e o aprofundamento da democracia através da ampliação dos espaços de participação e dos direitos de cidadania.

Entretanto, um balanço do desempenho dos dois primeiros governos da Nova República na área da política econômica revela um agudo contraste entre uma hiperatividade decisória e uma fraca capacidade de implementação das políticas formuladas, configurando um primeiro tipo de paradoxo de um Estado em crise. Em outros termos, se o Estado foi dotado de poderosos instrumentos de decisão, estaria limitado, por outro lado, por precários instrumentos de gestão (Diniz, 1997, cap. 2). Essa conclusão contrapõe-se ao diagnóstico dominante,1 1 Em diferentes trabalhos, faço um balanço das tentativas de interpretação da assim chamada ingovernabilidade da recém-instaurada democracia brasileira, (Diniz, 1995; 1996; 1997). Ver também Melo, 1995. acima referido, cujo cerne seria a chamada paralisia decisória. Segundo a perspectiva aqui adotada, ao contrário, os pontos de estrangulamento situam-se, sobretudo, no âmbito da execução das políticas, da capacidade de fazer cumprir as decisões tomadas e de assegurar a continuidade dos programas governamentais.

O referido contraste pode adquirir maior clareza se introduzirmos na análise as duas dimensões que, segundo a ótica de Michael Mann (Mann, 1986), caracterizam o poder do Estado, quais sejam, os poderes despótico e infra-estrutural.2 2 Em um interessante estudo sobre a República Velha no Brasil, Elisa Reis (Reis 1991) utiliza de forma particularmente arguta a perspectiva de Michael Mann aqui salientada. O primeiro significa a capacidade das elites estatais tomarem iniciativas que transcendam à negociação institucionalizada com grupos da sociedade civil e implementar logisticamente as decisões políticas por todo o seu domínio. Tal visão permite-nos romper com a dicotomia Estado forte - Estado fraco tão comum à maioria das análises e que constitui uma camisa de força, já que um Estado pode ser, ao mesmo tempo, forte numa dimensão e fraco na outra, como o Estado Imperial, dotado de alto poder despótico e baixa capacidade de penetrar e de coordenar a sociedade civil. De forma similar, o Estado patrimonial analisado por Weber está marcado por esse tipo de desequilíbrio. Por contraste, o Estado feudal seria fraco em ambas as dimensões. Ademais, como ressalta Reis (1991), o enfoque de Mann rejeita as antíteses simples entre Estado e sociedade civil, pois tais termos estão temporalmente articulados, variando seus respectivos graus de autonomia de um momento a outro. Desta forma, não faz sentido atribuir ao poder do Estado um grau permanente, ahistórico de autonomia, como se se tratasse de um atributo fixo do Estado, passível de ser assegurado mediante algum tipo de mecanismo institucional. Esse é o equívoco, por exemplo, das análises que ressaltam a eficácia da fórmula tecnocrática para garantir o insulamento burocrático e, simultaneamente, a independência ou mesmo a isenção de um Estado supostamente equidistante do jogo político e dos conflitos de interesses.

Tendo em vista estas considerações, pode-se constatar, com o advento da Nova República, um reforço do poder despótico do Estado, mediante a alta concentração decisória na cúpula tecno-burocrática, paralelamente a um debilitamento do poder infra-estrutural. Esta última tendência refletiu a convergência de três processos interligados: uma crise fiscal de fortes proporções, uma crise de autoridade resultante do fracasso dos vários planos de estabilização econômica de Sarney a Collor, o desgaste dos princípios e valores republicanos, além da erosão da capacidade do Estado de realizar suas funções básicas e intransferíveis, como a garantia da ordem e segurança públicas e de condições mínimas de existência para expressivas parcelas da população, o que se refletiria na ampliação das faixas de destituição social e política. Sob o impacto da conjugação desses fatores, reduziu-se drasticamente a capacidade do Estado de penetrar no conjunto do território nacional e de incluir em seu raio de ação os diferentes segmentos da sociedade, garantindo de forma universalista o acesso aos serviços públicos essenciais, bem como a eficácia de seus ordenamentos legais.

Esse tipo de fragilidade, segundo O'Donnell, não seria uma especificidade brasileira, senão que uma característica do Estado latino-americano, configurando uma situação de baixa institucionalidade com a ampliação das chamadas área marrons, isto é, a proliferação dos espaços em que a presença estatal é débil ou inexistente (O'Donnell, 1993, p. 130). De forma similar, Wanderley Guilherme dos Santos, referindo-se ao híbrido institucional brasileiro, chama a atenção para a insuficiência da cobertura legal e jurídica proporcionada pelo Estado, dando origem à retração da esfera pública e à exacerbação do hobbesianismo social (Santos, 1992; 1993). Desta forma, temos uma democracia peculiar, em que a esfera poliárquica se sobrepõe a grandes vazios institucionais, nos quais o que prevalece é a ausência de direitos e a falta de acesso à ordem legal, o que reduz senão inviabiliza o exercício da cidadania.

À incapacidade de assegurar a efetividade da ordem legal deve-se acrescentar a debilidade da máquina estatal e a degradação do serviço público, em decorrência de reformas administrativas inspiradas nas diretrizes neoliberais, que levaram à mutilação do aparelho de Estado, como ocorreu durante a administração Collor. Este seria o segundo paradoxo que gostaria de salientar, qual seja, a presença de um forte poder burocrático numa burocracia devastada. Em outros termos, o reforço do núcleo tecnocrático contrasta com os óbices de uma burocracia com fraca capacidade operacional, destituída de padrões de carreira bem delineados e de uma estrutura de incentivos que favoreça níveis superiores de desempenho, delineando-se um forte descompasso entre a rapidez das decisões e o emperramento da máquina burocrática.

Em contrapartida, o reforço do poder despótico do Estado baseou-se no fortalecimento dos instrumentos de ação autônoma do governo, acentuando-se o desequilíbrio entre os poderes. Tal desequilíbrio está associado à hipertrofia da capacidade legislativa concentrada na alta burocracia governamental, cuja produção legal — mediante os decretos-leis e as medidas provisórias — a partir do governo Sarney, foi sistematicamente superior à produção média do Legislativo (Monteiro, 1995 a, 1995 b), tendência que, aliás, se acentuaria, ao longo dos últimos cinco anos. Assim, reproduzindo as palavras do autor acima citado, o Plano Real "promoveu a mais intensa intervenção regulatória na economia, desde 1990. Para tanto, lançou-se mão de uma peculiar âncora institucional, a volumosa emissão de medidas provisórias: o equivalente a 70% do total de MPs dos anos 90, ou cerca de 2/3 de toda emissão já ocorrida, desde a criação desse mecanismo, em 1988"(Monteiro, 1996:15). Discordando, portanto, das análises correntes, cabe salientar que a crise de governabilidade correspondente à primeira década pós-autoritarismo (1985-1995) caracteriza-se fundamentalmente pelo forte desequilíbrio entre os poderes despótico e infra-estrutural do Estado.

Desta forma, deu-se continuidade à tendência prevalecente sob o regime militar (1964-1985) ao governo por decretos-leis, substituídos, quando da promulgação da Constituição atualmente em vigor, pela já mencionada figura das medidas provisórias (MPs). Estas foram concebidas como instrumento a ser usado em situações emergenciais, tal como definido pelo art. 62 da Constituição de 1988. Cedo, porém, passaram a ser utilizadas como forma rotineira de governo, tendo sido empregadas para a execução de um amplo espectro de políticas, incluindo não só os pacotes voltados para a estabilização econômica e alguns itens dos programas de ajuste, como também inúmeras outras questões, desde políticas setoriais até aumentos salariais para alguns segmentos do funcionalismo civil e militar. A inexistência de restrições temáticas e a possibilidade de reedições sucessivas, sem qualquer tipo de controle, abriram possibilidades à produção legal do Executivo, numa escala certamente inimaginável pelos constituintes, tendência que, aliás, ainda não se reverteu.

No que tange à produção de políticas, portanto, o que se tem observado é a proliferação de decisões tomadas com total liberdade, sem consulta e sem transparência, por um pequeno círculo que se localiza em instâncias enclausuradas na alta burocracia governamental. Tais esferas administrativas situam-se fora do controle político e do escrutínio público. Ademais, deve ser salientado que o recurso a esse instrumento legal pelo Executivo cresceu de forma sistemática, ao longo dos quatro governos da Nova República, mesmo depois que a estabilização foi alcançada. O quadro abaixo é ilustrativo não só da persistência, como da expansão dessa prática.

Considerando-se o governo Fernando Henrique Cardoso, só no seu primeiro ano de governo, entre edições e reedições, tem-se o total de 450 MPs. De acordo com um levantamento recente da Câmara dos Deputados, o atual presidente, até agosto de 1997, havia editado 88 MPs, reeditando 1463, perfazendo um total de 1551 MPs, superando os governos anteriores em termos da média mensal de emissões: 8,15, em contraste com 3,32; 3,45 e 7,25 para os seus antecessores, Itamar Franco, Collor e Sarney, respectivamente (dos Santos, L. A, 1997). Nenhuma das MPs examinadas pelo Congresso foi rejeitada. Ainda segundo esse último levantamento, o total para os quatro presidentes seria de 2.354 MPs.

Sarney, por outro lado, antes da Constituição de 1988, editara 209 decretos-leis. Tais instrumentos legais, como foi ressaltado, foram utilizados, em parte, para viabilizar os numerosos planos de estabilização econômica do período. O último deles, o Plano Real, foi introduzido pela MP n. 542, de 30 de junho de 1994, cuja aprovação definitiva deu-se com a Lei 9.069, de 29 de junho de 1995. Nesse período, como salienta Pessanha, a MP inicial foi objeto de 12 reedições (Pessanha, 1997, p. 112). Assim, durante um ano, o Executivo usufruiu do poder irrestrito de criar, ampliar, suprimir e alterar normas de direito, sem qualquer tipo de controle. Dados do Senado Federal confirmam essa tendência à exacerbação do poder legislador do Executivo, indicando o total de 2.100 emissões de MPs pelos vários governos da Nova República, entre 1988 e junho de 1997, de acordo com informações divulgadas pelo presidente daquela Casa, senador Antônio Carlos Magalhães, em artigo publicado na imprensa (JB, 26-06-1997, p 11).

Cabe ainda ressaltar que o Executivo tem determinado a agenda do Legislativo e o conteúdo da produção legal. Do total de leis aprovadas entre 1989 e 1993, 78% originaram-se de iniciativa do Executivo no exercício de suas prerrogativas constitucionais (Figueiredo & Limongi, 1995, p. 34). Tais evidências sugerem que o Executivo, de fato, passaria a governar ad referendum do Congresso. é preciso lembrar que as MPs, ao entrarem em vigor imediatamente após a sua promulgação, podendo ser reeditadas sem limites pelo Executivo no caso de não serem aprovadas no prazo de 30 dias estabelecido pela Constituição, criam fatos novos que reestruturam efetivamente a ordem econômica e social. Portanto, ainda que quisessem usar seu poder de veto, os congressistas ver-se-iam, na prática, impedidos de fazê-lo, dada a amplitude dos efeitos concretos desencadeados de imediato por quaisquer dessas medidas, uma vez editadas pelo governo.

Trata-se da política do fato consumado, que tem um efeito paralisador sobre o Legislativo, já que, pela referida propriedade de entrar imediatamente em vigor, a MP pode produzir um impacto profundo e mesmo avassalador, sobretudo no caso dos planos de estabilização e de algumas políticas de ajuste. Assim, rejeitar qualquer dessas medidas teria custos econômicos e políticos tão altos que, numa análise custos-benefícios, voltar à situação anterior seria a solução menos racional. Em outros termos, a imobilização tende a tornar-se o resultado mais provável. Eis porque o desequilíbrio entre os dois poderes pelo uso indiscriminado das MPs, embora reflita em parte a abdicação por parte do Legislativo de suas prerrogativas constitucionais, expressa também, em não menor medida, um extravasamento do Executivo para além de sua esfera de competência, dada a ausência de freios institucionais à sua capacidade de legislar. Em síntese, a não regulamentação do uso das MPs exacerbaria a autonomia legal do Executivo, deixando a critério do presidente de turno usá-las de maneira moderada ou, ao contrário, de forma amplamente arbitrária.

Quanto a esse aspecto, é preciso ainda salientar um segundo fator de ineficiência relacionado à assimetria Executivo-Legislativo. A velocidade de emissão de MPs tem provocado uma situação de congestionamento permanente do Congresso, constituindo um forte incentivo para a omissão deste Poder e a propensão à prática das reedições ilimitadas. Em palestra proferida por ocasião da XXI Reunião Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), realizada em Caxambu, em 24-10-1997, o deputado José Genuíno assim se referiu à tendência do Congresso a não apreciar as MPs: "Imaginemos que o Congresso decidisse votar as Medidas Provisórias. Nós temos hoje, circulando no Congresso Nacional, em torno de 60 MPs. Nós teríamos, então, 60 comissões. Essas 60 comissões são compostas por 12 parlamentares. Com seus suplentes, totalizariam 24 parlamentares. Multiplique-se 60 por 24 e teríamos parte substancial do Congresso, em termos numéricos, reunindo-se em comissões para dar um parecer de admissibilidade, que é apenas a primeira fase, caso o requisito de "urgência urgentíssimo" fosse atendida nos cinco dias da emissão da MR Em seguida, esta comissão emite parecer sobre o mérito e depois voltaria ao plenário. Admitindo-se um cenário ideal, um Congresso atuante, com muita vontade política e a maioria do governo querendo colocar as MPs em votação, o Congresso Nacional entraria em um processo de exclusividade para deliberar sobre as MPs (...). E as demais atividades do Congresso? E o trabalho de fiscalização? E o orçamento? E as emendas constitucionais? E os projetos de iniciativa do Legislativo? E a lei infra-constitucional? E as regulamentações? Isso tudo fica secundário. Portanto, o problema das MPs representa (...) a eliminação das prerrogativas do Congresso." Em outros termos, a dinâmica das emissões constituiria em si um fator de indução ao retraimento do Congresso, reforçando a assimetria entre os poderes.

O Plano Collor I representou o exemplo paradigmático desse estilo voluntarista de governar, expressando de maneira inequívoca o paradoxo do modelo tecnocrático de gestão. Se o governo burocrático insulado, voltado para a meta da eficiência enquanto ampliação máxima da liberdade de ação do Executivo, permitiu ao presidente em exercício forte poder discricionário, levou, por outro lado, à erosão da viabilidade política dos programas governamentais. O estilo coercitivo de implementação acirrou o isolamento do governo, aumentando as dificuldades de sustentação política de um Presidente desde o início carente de apoio parlamentar. Em outros termos, a rejeição da política em nome da preservação da racionalidade técnica das decisões, acabou por comprometer a continuidade das políticas formuladas.

Cabe, portanto, ressaltar os efeitos perversos da insularidade burocrática, que não só podem restringir a eficácia da ação estatal por falta de suporte político, como também comprometer o processo de consolidação democrática pelo debilitamento da instância parlamentar-partidária. Ademais, o comportamento cesarista do Executivo, por ser refratário ao controle externo, acentua a insuficiência dos mecanismos de accountability. Particularmente marcante é o déficit de accountability horizontal, que pode ser ilustrado pela lacuna gerada pela inexistência de agências estatais que estejam legalmente capacitadas e dotadas do poder necessário para tomar a iniciativa de ações voltadas para a fiscalização efetiva dos atos governamentais, aplicando as sanções pertinentes, no caso de práticas ilegais. Existe uma área de sombra, acentuada pela baixa visibilidade da operação rotineira do Estado brasileiro, pelas razões assinaladas. Portanto, a baixa eficácia dos instrumentos de responsabilização pública dos governantes e o excesso de discricionariedade da alta burocracia estatal reforçam-se mutuamente, gerando um vazio quanto às formas usuais de supervisão entre os poderes e de controle social por parte do público em geral. à ineficácia dos mecanismos de controle externo associa-se a prática da reforma pelo alto, de longa tradição no país, produzindo condições adversas à institucionalização de procedimentos abertos ao jogo democrático. Desta forma, o desenho institucional prevalecente e as formas menos formalizadas de atuação levaram à consolidação de uma estrutura de oportunidades e incentivos favorável à aludida tendência à irresponsabilidade pública das elites estatais e à expansão das práticas de clientelismo e corrupção, destacando-se, mais uma vez, o governo Collor como um caso exemplar.

A centralização e concentração do poder decisório governamental através do enclausuramento burocrático tem, portanto, efeitos que não podem ser ignorados. A assimetria de poder degrada as relações Executivo-Legislativo e, ao submeter este último a uma lógica que lhe escapa do controle, produz incentivos ao comportamento irresponsável do Congresso, reforçando a tendência populista dos parlamentares. A esse respeito, torna-se oportuno lembrar as palavras de Weber (1974, p. 44), ao analisar as conseqüências adversas do estilo bismarckiano de centralizar o poder de decisão e atribuir à burocracia a proeminência na condução dos negócios públicos: "(...) só um Parlamento ativo e não um Parlamento onde apenas se pronunciam arengas pode proporcionar o terreno para o crescimento e ascensão seletiva de líderes genuínos e não meros talentos demagógicos. Um Parlamento ativo, entretanto, é um Parlamento que supervisiona a administração, participando continuamente do trabalho desta. Isto não era possível na Alemanha antes da guerra, mas deverá sê-lo depois, ou teremos a velha misère (...)".

O DÉFICIT DE ACCOUNTABILITY ACUMULADO

O Brasil pós autoritarismo pode ser considerado certamente um país de democracia consolidada, quanto aos requisitos liberais clássicos. Refiro-me às liberdades básicas, como as de organização, expressão, consciência, participação eleitoral, entre outras. Por outro lado, revela-se um sistema extremamente deficitário quanto à eficácia dos mecanismos de cobrança e de prestação de contas, inexistindo praticamente os instrumentos garantidores da responsabilização pública dos governantes diante da sociedade e de outras instâncias de poder. Desperdícios, fraudes, desvios de recursos, abuso de poder, nepotismo, tráfico de influência tornam-se práticas generalizadas de difícil prevenção ou punição. Trata-se evidentemente de um problema que tem raízes históricas. Entretanto, o excesso de discricionariedade dos governos da Nova República acentuou essa tendência, gerando burocracias insuladas do escrutínio público, cujas decisões passariam ao largo dos procedimentos rotineiros de controle democrático.

Segundo a visão tecnocrática, o confinamento burocrático, ao manter o jogo político-partidário distante das arenas formuladoras de políticas, conduziria ao aprimoramento da qualidade das decisões, maximizando seu teor universalista. Porém, como ressalta Przeworski, o desenho institucional em que se baseia esse estilo de governo não é apropriado à consecução de objetivos sociais, reduzindo-se os incentivos para a promoção do interesse público, que, ao contrário seriam mais efetivos nos sistemas caracterizados pelo vigor dos mecanismos que induzem os decisores a prestar contas dos resultados de suas ações, garantindo a maior transparência e a exposição pública das políticas governamentais.

A luz da perspectiva principal-agente, Przeworski chama a atenção para esse tipo de dificuldade, ressaltando a importância das instituições de controle e supervisão, de forma a reverter as tendências apontadas. Em suas palavras, o uso abusivo do poder de decreto, em países como o Peru Argentina e Brasil, em anos recentes, ao restringir a informação e o debate, reduziria a efetividade dos mecanismos de accountability (Przeworski, 1996:27). De forma similar, Malloy e Conaghan (1994, especialmente pp. 204-205), analisando o processo de implementação da agenda neoliberal, na Bolívia, no Peru e no Equador, salientam que tais países estariam evoluindo para novos tipos de regime político de caráter híbrido, em que a democracia eleitoral coexistiria com um estilo autoritário-tecnocrático de formação de políticas, lembrando o que Tocqueville chamara de depotismo democrático. Finalmente, focalizando o estilo de gestão política do governo Menem, na Argentina, Palermo destaca a combinação dos elementos peronista e tecnocrático na forma de conduzir o governo e produzir políticas públicas (Palermo, 1996, pp. 193-195).

É preciso, portanto, situar o caso brasileiro dentro de um quadro mais geral, caracterizado pela tendência à associação entre o desencadeamento de programas de estabilização e de ajuste, por um lado, e a opção por alta concentração decisória no Executivo, por outro, mediante a utilização de recursos constitucionais e extra-constitucionais. Dessa maneira, estaríamos assistindo à configuração de regimes híbridos, democráticos quanto aos procedimentos eleitorais garantidores da rotatividade dos governantes, mas fortemente burocráticos no tocante aos processos de tomada de decisões e de produção de políticas públicas.

Cabe salientar um outro ponto. A falta de freios institucionais ao arbítrio do Executivo tem levado ainda ao debilitamento do sistema democrático pelo desrespeito sistemático à ordem legal constituída. Tornou-se um comportamento recorrente o presidente em exercício, com o respaldo do Congresso, alterar as regras constitucionais em vigor, tendo em vista a aprovação do princípio da recandidatura a um mandato consecutivo, negado pela maioria das constituições latino-americanas. Eleitos sob o império desta proibição, os chefes do Executivo, apoiados por sua coalizão parlamentar, ou, como no caso do Peru do presidente Fujimori por intermédio de um golpe, empenharam-se em alterar as regras às quais seus mandatos estavam subordinados, tornando-se os princípios beneficiários da mudança constitucional induzida por seus respectivos governos. Desta forma, o que estava efetivamente em jogo era assegurar a reeleição do presidente de turno, em franco desacordo com a normalidade institucional.

Deve-se considerar, por outro lado, que a estabilidade das regras é um dos principais requisitos da consolidação democrática, sobretudo em países com uma longa tradição da prática do casuísmo. Este é o caso do Brasil, onde, durante o recente regime militar (1964-1985), os generais na chefia do governo mudavam as leis sempre que lhes parecia conveniente. Ainda não se apagou da memória nacional a vasta produção de pacotes eleitorais para deter a escalada ascencional das forças oposicionistas, representadas inicialmente pelo MDB e posteriormente pelo PMDB e demais partidos de oposição à ditadura militar.

Ademais, independente do regime eventualmente em vigor, a história da América Latina está marcada pela presença de padrões de comportamento de teor autoritário, em que a lei é posta a serviço do poder e os governos são pouco inclinados a aceitar a convivência com mecanismos de freios e de entraves formais. O secular predomínio de padrões de interação política típicos de sociedades hierárquicas e rigidamente estratificadas, em que se observa a subversão sistemática do princípio da supremacia da lei, determinou uma alta tolerância à instabilidade legal-institucional. Por essa razão, a ruptura com essa tendência constitui um imperativo da construção de uma nova ordem política, sem as debilidades do passado. O desregramento e a instabilidade institucional, no contexto latino-americano, estão de fato conduzindo ao prevalecimento de uma concepção minimalista de democracia, com o fortalecimento de práticas incompatíveis com o primado do governo representativo.

PRIVATIZAÇÃO DO ESTADO

A diluição das fronteiras entre o público e o privado, a apropriação dos recursos públicos por interesses privados configuram a chamada privatização do Estado. No Brasil, a consolidação do corporativismo estatal consagrou o padrão setorial bipartite de articulação dos interesses empresariais com o Estado, paralelamente à exclusão dos representantes dos trabalhadores dos arranjos corporativos, traduzindo-se na alta permeabilidade da máquina burocrática aos interesses dominantes (Diniz, 1997, especialmente cap. 1 e 4). Esse modelo distancia-se bastante do corporativismo europeu sobretudo por duas de suas características. Em primeiro lugar, pela ausência de arenas de interlocução entre capital e trabalho, resultando no distanciamento entre as duas classes e na inexistência de incentivos para a articulação de pactos e alianças entre tais interesses. Em segundo lugar, pela falta de instâncias transetoriais de negociação, dificultando o desenvolvimento de forma unitárias de atuação entre diferentes segmentos empresariais ou sindicais. A ação integrada em torno de plataformas de teor abrangente, a atuação em bloco voltada para a defesa de propostas gerais seriam práticas estranhas a esse arcabouço institucional. Em conseqüência, prevaleceria um padrão fragmentado de intercâmbio com o Estado em busca da garantia de benefícios particulares.

O estreitamento dos vínculos entre elites estatais e empresariais, em certos momentos no tempo e em determinadas agências burocráticas, sob os efeitos de um contexto não competitivo, gerou situações de intricado entrelaçamento de interesses e de subordinação do público ao privado. Em alguns casos, observou-se a articulação de redes ligando atores empresariais, políticos e burocratas, em diferentes esferas de poder, objetivando a apropriação de rendas em benefício privado. Sob diversas designações, como captura do Estado (Salgado, 1993), caráter bifronte do corporativismo (O'Donnell, 1977) ou privatização do Estado (Diniz & Boschi, 1978; Diniz, 1992), diferentes autores chamaram a atenção para as distorções e a perda de eficiência resultantes da prevalência da ótica dos interesses privados. Um caso extremo foi o esquema montado durante o governo Collor, que resultou no impeachment do presidente.

Nesse sentido, a desestruturação das instituições e mecanismos que favorecem práticas de rent-seeking, paralelamente à expansão e criação de sistemáticas de cobrança e prestação de contas, à difusão de procedimentos de fiscalização e controle públicos sobre a atuação das diferentes esferas de governo seriam formas de aumentar a eficiência estatal, tendo em vista a consecução de metas coletivas.

A DISJUNÇÃO ESTADO-SOCIEDADE

Historicamente, a tutela do Estado cerceou a autonomia da sociedade. Porém, o êxito da industrialização substitutiva, sobretudo após o chamado milagre econômico, sob o regime militar, desencadeou um amplo processo de diferenciação social, que mudou radicalmente o perfil da sociedade brasileira. Esta evoluiu para um sistema híbrido, caracterizado pela coexistência de antigas e novas configurações organizacionais, onde, ao lado do corporativismo em transição, formas diversificadas de intermediação de interesses e padrões alternativos de associativismo ocupariam um espaço cada vez maior. Assim, ao lado dos sindicatos, associações profissionais, educacionais, recreativas, comunitárias e inúmeras outras, o novo associativismo difundiu-se bastante, com o surgimento dos movimentos de mulheres, negros, direitos humanos, expansão da cidadania, defesa do meio ambiente, para citar apenas os mais conhecidos. Em decorrência desse processo, a estrutura diferenciada e multipolar de representação de interesses extravasou do arcabouço institucional em vigor. A rigidez da institucionalidade estatal, presa à herança corporativa, seu fraco potencial de incorporação política, a impermeabilidade do Estado às demandas sociais em expansão, seu baixo grau de responsabilidade pública acentuariam o divórcio Estado-sociedade.

Tal defasagem não se reverteu com a transição democrática e a instauração da Nova República. Ao contrário, a despeito do alargamento do leque de demandas e do aumento das pressões por novas formas de inserção política, permaneceu expressivo o número de setores à margem do sistema político, sobretudo na área rural. Ademais, o descompasso entre o modelo concentrador e insulado de ação estatal e a lógica plural e competitiva da sociedade contribuiu para aumentar o potencial de conflito do conjunto do sistema.

Estes seriam os principais desafios a serem enfrentados pela reforma do Estado no momento atual. Esta não se confunde com a redução drástica das funções estatais, segundo a fórmula neoliberal do Estado mínimo, mas implica redimensionar as funções e reestruturar o campo de ação do Estado, tendo em vista aumentar sua eficácia na consecução dos fins definidos socialmente.

A CENTRALIDADE DA DIMENSÃO POLÍTICA

Tendo em vista a argumentação até aqui desenvolvida, cabe ressaltar que o diagnóstico da crise do Estado extrapola as questões ligadas ao poder decisório concentrado nas agências governamentais, envolvendo, ainda, e sobretudo, a capacidade de gerar adesão e garantir sustentabilidade política para as decisões tomadas. Os pontos de estrangulamento residindo, em grande parte, na falta de viabilidade política da implementação, esta dimensão passa a assumir importância central.

Sob esse aspecto, a pergunta fundamental refere-se a como maximizar a eficácia da ação estatal. A discussão contemporânea adota um enfoque abrangente, focalizando não só os aspectos técnicos e administrativos, como também a dimensão política desta questão. Assim, cabe considerar, para além dos aspectos convencionais, os requisitos políticos que possibilitam uma ação eficiente por parte do Estado.

Dessa forma, para repensar a reforma do Estado, parece-me pertinente utilizar as categorias de governabilidade e governança como conceitos interligados. Trata-se de aspectos distintos, porém complementares que circunscrevem a ação estatal. Governabilidade refere-se às condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício do poder numa dada sociedade3 3 Melo (1995) caracteriza governabilidade de forma semelhante, desenvolvendo interessante argumentação a respeito do tema. , refletindo características do sistema político, tais como a forma do governo, as relações entre os poderes, os sistemas partidário e de intermediação de interesses, entre outras. A propósito, cabe lembrar que não há fórmulas mágicas para garantir governabilidade, já que diferentes combinações institucionais podem produzir condições favoráveis de governabilidade.

Governança, por outro lado, diz respeito à capacidade governativa em sentido amplo, envolvendo a capacidade de ação estatal na formulação e implementação das políticas, tendo em vista a consecução de metas coletivas. Refere-se ao conjunto dos mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade, o que implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de administração do jogo de interesses. As novas condições internacionais e a complexidade crescente da ordem social pressupõem um Estado dotado de maior flexibilidade, capaz de descentralizar funções, transferir responsabilidades e alargar, ao invés de restringir, o universo dos atores participantes, sem abrir mão dos instrumentos de controle e supervisão. Em outros termos, cabe viabilizar a inserção do Estado na sociedade, sem enfraquecer a autoridade estatal e seus meios de coordenação e de execução.

Como foi ressaltado, a estratégia do insulamento burocrático revela-se irrealista, se considerarmos que a meta almejada, qual seja implementar escolhas públicas imunes às pressões dos interesses particulares e das forças políticas, não é factível. Tudo o que se consegue é eliminar alguns interesses em benefício de outros, em geral daqueles que controlam maior gama de recursos e detêm maior poder de barganha, acentuando os incentivos à privatização do Estado.

Por outro lado, uma incorporação não predatória não se produz espontaneamente. é preciso criar um meio associativo favorável ao desempenho governamental eficiente, o que exige uma estratégia deliberada de ação voltada para encorajar a governança econômica e social, onde for apropriado e eficaz. Nesse sentido cabe salientar que não se trata aqui de recomendar a expansão da participação espontânea e desordenada da sociedade, senão de aprofundar os vínculos entre as duas esferas, sem comprometer a eficácia da gestão pública. Em última instância, tais objetivos requerem táticas apropriadas à articulação de acordos e alianças, criando arenas de negociação, ligadas às instituições estatais.

OS EQUÍVOCOS DOS ENFOQUES REDUCIONISTAS

A argumentação até aqui desenvolvida levanta algumas questões importantes para o aprimoramento da análise política, em face dos desafios gerados pelo processo de globalização e seu impacto sobre as diversas sociedades, que buscam novas formas de inserção na ordem internacional em mutação. Refiro-me, em particular, às dificuldades enfrentadas pelas abordagens mais convencionais da ciência política para dar conta da complexa relação entre a implementação da agenda neoliberal e os requisitos da consolidação democrática, nos países em desenvolvimento. Nesse campo, é possível detectar uma crise de paradigmas e da capacidade analítica diante da complexidade dos processos em curso. Um dos principais entraves está representado pela tendência reducionista presente nas teorias de médio alcance, projetando-se na formulação de paradigmas e na definição de conceitos básicos para lidar com a administração da crise sob condições da política democrática. O conceito de autonomia do Estado reflete de forma particularmente aguda algumas dessas ambigüidades.

Além do reducionismo das principais abordagens, é preciso evitar as ciladas derivadas de visões dicotômicas que, embora equivocadas, tornaram-se bastante difundidas. Entre estas, gostaria de destacar em primeiro lugar a dicotomia Estado-mercado, que contrapõe uma visão maximalista — presa ao paradigma estatista — a uma concepção minimalista, responsável pela idealização do mercado. Em segundo lugar, cabe mencionar o confronto entre racionalidade governativa e imperativos democráticos, aquela informada por uma lógica concentrada e discricionária, em contraste com a dinâmica descentralizadora, plural e competitiva do jogo democrático. Tais polaridades e enfoques reducionistas constituem verdadeiras camisas de força às quais se tenta ajustar realidades complexas e multifacetadas. Nesse quadro, a discussão contemporânea impõe a busca de novas formulações teóricas acerca do Estado, de suas relações com a sociedade, o mercado e a política, internamente, bem como, no plano externo, de sua articulação com o sistema internacional.

Quanto a esse último aspecto, a relação Estado-ordem mundial, duas visões dicotômicas e reducionistas são recorrentes. A primeira consiste em enfatizar unilateralmente as variáveis exógenas, tomando as mudanças internas como mero reflexo de decisões e de processos que se situariam para além das fronteiras nacionais e, portanto, fora do controle das autoridades internas. Sob esta ótica, independente de ideologias e orientações políticas, as elites dirigentes tenderiam a agir de forma pré-determinada, sob o impacto dos imperativos externos. A segunda modalidade de reducionismo implica privilegiar os fatores internos, desconsiderando os requisitos da inserção no sistema internacional. Tal perspectivada origem também a visões unilaterais, calcadas no pressuposto da autonomia de Estado nacionais considerados enquanto entidades insuladas, imunes aos efeitos da globalização. Uma perspectiva mais adequada exigiria integrar os dois planos de análise, pois, se é verdade que as restrições externas não podem ser ignoradas, é igualmente verdade que essas injunções externas podem ser administradas com maior ou menor grau de independência e, portanto, com maior ou menor grau de eficácia por parte dos Estados nacionais.

A tentação reducionista acaba por reforçar as antigas explicações deterministas presentes em algumas formulações da teoria da dependência, tão difundidas entre os anos 60 e 70. O raciocínio determinista esvazia as decisões governamentais de seu teor estratégico, já que, sob o impacto de pressões percebidas como inexoráveis, não há evidentemente margem para escolhas entre alternativas distintas. No entanto, não só o conteúdo como até mesmo o timing e a oportunidade das decisões, a capacidade de antecipação ou, ao contrário, a excessiva demora, ou ainda a tibieza na avaliação dos riscos têm conseqüências do ponto de vista da consecução dos resultados.

Ademais, o processo de globalização não obedece apenas a uma lógica econômica, senão que reflete também uma dinâmica política, ligada à relação de forças na arena internacional. Trata-se de um fenômeno cujos efeitos não são unívocos. Ao contrário, se desencadeia efeitos construtivos, provoca também impactos profundamente desorganizadores e destrutivos. Finalmente, criar condições razoáveis de governabilidade internamente não garante estabilidade, diante da ingovernabilidade da ordem financeira internacional. Em conseqüência, cabe enfatizar a relevância de uma perspectiva pluridimensional, de forma a apreender esse leque de múltiplas determinações.

Um segundo tipo de reducionismo diz respeito à análise das relações Estado-sociedade, ou ainda da articulação entre burocracia e política. A tradição teórica de ver Estado-sociedade como entidades polares associa-se à tendência a encarar burocratas e políticos como atores envolvidos numa dinâmica do tipo jogo de soma zero. Sob essa ótica, observa-se o predomínio da referida dicotomia racionalidade governativa-imperativos democráticos, marcada pela tensão entre as lógicas contraditórias de reforço da discricionariedade estatal, por um lado e de aprofundamento do jogo democrático, por outro. Assim, segundo o paradigma tecnocrático que se tornou dominante paralelamente à ascensão da ideologia neoliberal, eficiência governamental passaria a ser concebida em termos de concetração, centralização e fechamento do processo decisório; eficácia de gestão seria reduzida à noção de insularidade burocrática e, finalmente, autonomia do Estado seria interpretada em termos da capacidade do Estado isolar-se das pressões do mundo da política e situar-se acima dos conflitos.

O paradigma tecnocrático, no plano analítico, legitimaria, por sua vez, o estilo tecnocrático de gestão, que se impôs, na prática, como forma de maximizar eficiência no enfrentamento da crise. A ênfase na capacidade técnica concentrada nos altos escalões burocráticos e o reforço do chamado núcleo duro do Estado acentuariam o divórcio com a política, percebida, crescentemente, como fonte de distorções e de irracionalidade ou ainda como foco de práticas predatórias, como o clientelismo e a defesa de privilégios corporativos. A meta de neutralizar a política para preservar a racionalidade burocrática tornar-se-ia preponderante.

Nessa linha, o predomínio de um enfoque reducionista levaria a reforma do Estado a um impasse teórico, já que a noção de eficiência estatal, levada às últimas conseqüências, seria incompatível com o fortalecimento dos requisitos da democracia. Em outros termos, a governabilidade das economias de mercado, num mundo globalizado, e a plenitude democrática obedeceriam a lógicas antagônicas.

Concluindo, vale insistir, repensar a reforma do Estado implica uma ruptura com esse tipo de paradigma. A saída para os impasses presentes não seria mais e mais concentração de poder técnico. Uma visão alternativa torna indispensável enfatizar a dimensão política da reforma do Estado, o que implica reforçar as conexões da esfera estatal com a sociedade e com as instituições representativas. Sob esse aspecto, a perspectiva neoliberal caracterizou-se pela ambivalência, adotando a ideologia do Estado mínimo mas favorecendo a prática de conceder ao Estado um forte poder discricionário, concentrando capacidade de decisão na alta tecnocracia estatal. Portanto, o que se verificou foi a persistência da tática privilegiada pelo modelo burocrático-autoritário, que consistiu em criar dentro da máquina burocrática agências ou núcleos dotados de alta capacidade técnica e insulados da sociedade e da instância político-partidária.

Em contraposição, a reforma do Estado informada por uma perspectiva não reducionista não é incompatível com a vitalidade da sociedade civil. Antes a requer. Ademais, reclama o estreitamento dos vínculos com a política, a diversificação dos espaços de negociação e o estímulo às táticas de alianças. Demanda ainda o fortalecimento dos mecanismos de accountability, cuja insuficiência constitui uma das principais debilidades das democracias latino-americanas. A efetiva independência dos poderes, a eficácia dos controles externos, a institucionalização de instrumentos de cobrança e prestação de contas seriam importantes aspectos da nova visão aqui ressaltada. A noção de governança e a perspectiva agente-principal, referidas no texto, representam esforços na direção apontada: recuperar a capacidade de comando, coordenação e implementação do Estado sem agravar seu isolamento, romper com o estilo tecnocrático de gestão e fortalecer os mecanismos e procedimentos de responsabilização pública dos governantes. Finalmente, cabe destacar a relevância de enfoques metodológicos capazes de captar o caráter multidimensional, a diversidade e a complexidade dos processos e fenômenos reais.

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  • 1
    Em diferentes trabalhos, faço um balanço das tentativas de interpretação da assim chamada ingovernabilidade da recém-instaurada democracia brasileira, (Diniz, 1995; 1996; 1997). Ver também Melo, 1995.
  • 2
    Em um interessante estudo sobre a República Velha no Brasil, Elisa Reis (Reis 1991) utiliza de forma particularmente arguta a perspectiva de Michael Mann aqui salientada.
  • 3
    Melo (1995) caracteriza governabilidade de forma semelhante, desenvolvendo interessante argumentação a respeito do tema.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      1998
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