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Participação cidadã na sociedade civil global

Citizen participation in the global civil society

Resumos

O artigo discute a constituição de um espaço público global, focalizando sobretudo a ação de organizações não-governamentais que exercem pressão, em diferentes fóruns multilaterais, no sentido da constituição de um sistema internacional de prestação de contas com respeito a questões tais como as finanças internacionais, meio ambiente, qualidade de vida e segurança.


The article discusses the constitution of a global public space, with main focus on the action of non-governamental organizations which express in multiple international settings their concern with the creation of an international system of accountability directed to such questions as international finance, environment, quality of life and security.


ORDEM MUNDIAL

Participação cidadã na sociedade civil global

Citizen participation in the global civil society

Elenaldo Celso Teixeira

Professor do Departamento de Ciência Política da FFCH da Universidade Federal da Bahia

RESUMO

O artigo discute a constituição de um espaço público global, focalizando sobretudo a ação de organizações não-governamentais que exercem pressão, em diferentes fóruns multilaterais, no sentido da constituição de um sistema internacional de prestação de contas com respeito a questões tais como as finanças internacionais, meio ambiente, qualidade de vida e segurança.

ABSTRACT

The article discusses the constitution of a global public space, with main focus on the action of non-governamental organizations which express in multiple international settings their concern with the creation of an international system of accountability directed to such questions as international finance, environment, quality of life and security.

A sociedade civil situa-se num determinado território onde desenvolve suas relações e constrói seus espaços públicos para expressão e participação de seus atores. Com o processo de globalização, torna-se pertinente a indagação sobre as tendências à superação desses limites, estendendo-se a ação para espaços globais. Isto é particularmente importante quando os problemas enfrentados pelas populações nos diversos países agravam-se em decorrência das políticas adotadas em nível mundial, como o ajuste fiscal, a privatização, a dívida pública, o comércio exterior (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PNUD - 1993; Diaz-Salazar 1996). Os cidadãos defrontam-se com realidades que desafiam sua capacidade de indignar-se e de intervir para reconquistar direitos que vão sendo eliminados por políticas que atendem às diretrizes globalizadas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento tecnológico cria também oportunidades de entrar em contato mais facilmente com problemas enfrentados por outros povos e com suas reações. Muitas ações desenvolvidas pelos cidadãos e suas organizações recebem apoio, orientação e recursos de organizações internacionais.

Por sua vez, os organismos intergovernamentais já não podem desconhecer ou minimizar esse tecido associativo e buscam sua colaboração, seja para tornar seus projetos mais eficazes, seja para legitimar certas políticas. Os governos locais, até então marginalizados no campo internacional, começam a ter voz, pois descobriu-se que os efeitos perversos das macropolíticas não podem ser atenuados sem sua participação. As autoridades locais também descobriram que podem tirar proveito da globalização, usando o papel estratégico que as cidades passam a ter na atração de investimentos e que precisam inserir-se nesse grande espectro de interesses e de competição. Esse quadro leva-nos a refletir sobre os indicadores de formação de uma sociedade civil global e sobre as alternativas que se desenham, não-coincidentes com as do capital globalizado. Descobre-se que não basta "pensar globalmente", mas também "agir globalmente", mesmo não se sabendo ainda como fazê-lo, e que o agir local pode interferir no global, questionando seus efeitos e buscando outros caminhos e possibilidades de desenvolvimento.

Pretendemos discutir neste artigo a noção de sociedade civil global, a qual engloba uma série de organizações civis e redes que desenvolvem relações de crítica, proposição e colaboração com os organismos intergovernamentais. Estes, por sua vez, desenvolvem uma série de projetos e políticas que repercutem também nas condições de vida e de organização das comunidades locais. Assim, as ações locais que, de alguma forma, respondem aos efeitos dessas políticas, serão também objeto de nossa análise. Da mesma forma, buscaremos entender o papel de esferas públicas globais - conferências internacionais e espaços autônomos criados em paralelo -, de fóruns alternativos e outros espaços que se ampliam, como as comissões de ligação, os grupos de trabalhos, etc. Considerando-se que as organizações da sociedade civil com atuação internacional, nacional ou local, tentam articular-se por meio de redes internacionais, qual é o significado disso para o fortalecimento dessas organizações? Como os governos locais se inserem nesse processo e qual é o significado da cooperação internacional na relação com o poder e a sociedade civil local? Enfim, trata-se de examinar a participação cidadã na esfera global e como esta participação se articula com o local.

Tal discussão faz-se necessária tendo em vista a configuração do poder estatal que se amplia através de organismos supranacionais, os quais regulam as atividades dos cidadãos nacionais e realizam projetos que interferem nas vidas destes mesmos cidadãos. Tais projetos não são submetidos a um processo de legitimação democrática e de debate crítico dos envolvidos. Vários estudiosos do poder local e da cidadania têm abordado essa questão. Villasante (1995 p.94), por exemplo, acentuando o papel da comunicação nesse processo, afirma que hoje é impossível falar de participação ou de desenvolvimento sem fazer referências aos marcos globais assim como aos locais. Não se pode, pois, abandonar a dialética existente entre os âmbitos global e local. Daí porque esse autor se dedica a estudar as novas experiências do local, sobretudo na Espanha, identificando a potencialidade dessas para darem resposta aos mecanismos de uniformização do sistema mundial. Algumas revistas de renome internacional, como a Revista Internacional de Ciências Sociais (117, 1988), editada pela Unesco, têm reunido especialistas como Hill, Galtung, Alger e outros, para debater em profundidade os nexos dos processos locais e mundiais. De igual forma, a revista Transnational Associations vem dedicando, desde 1993, alguns dos seus números às questões relacionadas à sociedade civil global, às organizações internacionais não-governamentais e às relações com o Banco Mundial. Autores clássicos da sociologia urbana e especialistas no tema do poder local e dos movimentos sociais urbanos, Jordi Borja e Manuel Castells lançaram, não faz muito tempo, um livro exatamente com este título; Local y Global (1996). No Brasil essa discussão é ainda muito incipiente, dando-se mais ênfase aos efeitos econômicos da globalização (Ianni 1992) e suas implicações no planejamento urbano e na gestão (Santos 1994; Fischer 1996). Relativamente às organizações da sociedade civil, o tema está presente na agenda de seminários, encontros e publicações (Fernandes 1994; revista Proposta 64, 1995; revista Democracia 114, 1995).

Em termos empíricos, tal problemática torna-se crucial para atores como as ONGs. Estas sofrem uma crise séria em relação à restrição de recursos oriundos de governos que se submetem às diretrizes das políticas de ajuste e a certos condicionamentos em relação a temas dos projetos e às exigências de produtividade. Tudo isso tem efeitos diretos sobre as sociedades locais em que esses projetos se realizam, cuja implementação é delegada às ONGs locais ou às organizações de base. Do ponto de vista dos governos locais, a quantidade de projetos de organismos internacionais que carreiam recursos por intermédio de órgãos públicos estaduais leva-os a novas atitudes em face das organizações locais que se tornam mais críticas e começam a questionar as diretrizes desses projetos. Como se percebe, a articulação entre o global e o local se evidencia sob várias formas. Importa, pois, analisar em que medida tal articulação contribui ou não para o fortalecimento da sociedade civil e do processo de democratização.

EXISTE UMA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL?

Se o conceito de sociedade civil jé é bastante complexo, maior dificuldade ainda se terá com o de sociedade civil global. Perez-Diaz (1997) adota uma concepção mais ampla, observando que o crescimento da sociedade civil internacional implica um tecido associativo mais denso, uma autoridade pública capaz de aplicar uma legislação internacional e o desenvolvimento de uma esfera pública internacional com intenso debate, não só pelas elites, mas também pela cidadania mundial. Os elementos referidos, segundo o autor citado, ainda não existem.

Não obstante, com o processo de globalização trava-se um forte debate, buscando-se interpretar as tendências emergentes no campo da sociedade e de suas organizações mais ativas no sentido de constituir uma esfera publica para acompanhar e tentar influir nas decisões dos organismos internacionais e, no caso da Europa, na estrutura de governo que se está construindo (União Européia). A globalização provoca identidades, internacional e extraterritorialmente e, contraditoriamente, também na esfera local. O local não desaparece, mas a noção de espaço passa a ser compreendida mais social do que territorialmente (Waterman 1994). A sociedade civil global emerge desse processo, não como uma estrutura, mas como um conjunto de atores transnacionais (associações civis, organizações não-governamentais, movimentos sociais) que tentam monitorar questões que estão fora do controle de cada país (sistema monetário internacional, meio ambiente, novas formas de comunicação) e que buscam redefinir o papel das agências internacionais e suas relações com as instituições nacionais, organizações da sociedade civil, de forma a adotar regras e princípios democráticos.

Held (apud Waterman 1994) aponta três dimensões para que esse processo possa fluir de maneira democrática: a) necessidade de parlamentos regionais eleitos (por continentes) e de referendos transnacionais para questões importantes; b) integração dos direitos civis, econômicos, sociais e políticos nos parlamentos nacionais e internacionais, sendo especificados os limites e extensão das tomadas de decisão; c) reforma da ONU, com iguais direitos para todas as nações democráticas. Trata-se, portanto, de proposições de ordem institucional, dependentes de decisões dos países que compõem esses organismos. Em termos da sociedade civil, Held propõe uma coalizão internacional de organizações não-governamentais internacionais para articular uma estratégia conjunta, definindo temas em fóruns multilaterais e atuando frente a esses organismos. Reconhece, outrossim, a necessidade de democratizar a própria sociedade civil global.

Dessa forma, busca-se definir, com a noção de "sociedade civil global", um conjunto de atores heterogêneos que atuam no sistema internacional em torno de alguns valores e da criação de espaços públicos nos quais seja possível debater as políticas desenvolvidas pelos organismos internacionais e reverter as tendências perversas da globalização. Tenta-se construir assim um sistema de accountability, principalmente em relação às questões de finanças, meio ambiente, segurança e novas formas de comunicação, repensando o papel das agências internacionais e articulando as instituições políticas, agências, associações e organizações da sociedade civil. Tudo isso ainda é um projeto, uma tentativa, mas com sinais que avançam na' direção de sua concretização, como tentaremos mostrar com a análise de ações coletivas em desenvolvimento nas organizações intergovernamentais e do debate público que se começa a travar, seja nas conferências oficiais, nos fóruns alternativos, seja noutros espaços públicos autônomos, nas redes internacionais. A questão central é saber que espaços de intervenção eficaz restam para a redefinição e desenho de uma nova ordem mundial e de suas implicações sobre as sociedades civis locais. Diante da liberalização dos mercados, da perda de controle dos Estados nacionais sobre sua própria economia, sem nenhum entrave para a ação dos grupos internacionais, diante do enfraquecimento das organizações multilaterais - Programa das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), etc. - que, até então, impunham alguns limites de atuação às multinacionais e organismos intergovernamentais, que perspectivas de mudança existem? Até que ponto esse processo se entrecruza com a intensificação das ações locais, em reação aos impactos perversos da globalização? Que atores estariam envolvidos nesse processo? Essas são algumas das interrogações que preocupam todos os autores que tratam do tema.

IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO

Nos últimos anos acelera-se e aprofunda-se o processo de globalização, não só em termos econômicos mas também de comunicação, em decorrência da revolução tecnológica nos meios de informação, possibilitando que os intercâmbios se realizem em termos mundiais e de forma instantânea e diária. Isso acarreta mudanças nas formas de pensar, informar, produzir, consumir, gerir, fazer política. A sociedade é cada vez mais organizada em torno da produção, distribuição e manipulação de símbolos e da cultura construída em torno do audiovisual, com a crescente digitalização das mensagens (Borja e Castells 1966).

A produção se descentraliza, torna-se mais flexível em unidades autônomas coordenadas em rede, potenciando a produtividade e a acumulação, ao mesmo tempo em que marginaliza vários segmentos da sociedade que passam a ser considerados supérfluos, não apenas nos países do Terceiro Mundo, mas também nos desenvolvidos. O aprofundamento da exclusão leva a se constituir o chamado "Quarto Mundo", com ampliação do desemprego, precariedade dos contratos de trabalho, redução das garantias sociais.

No bojo desse processo dá-se a internacionalização do sistema financeiro, com a implicação de que as transações de divisas passam a ocorrer de forma artificial e especulativa, simultaneamente em vários mercados, possibilitadas pela moderna tecnologia de comunicação. Com o agravamento da crise da dívida dos países do Terceiro Mundo, o sistema financeiro internacional impôs um programa de ajuste estrutural. Este programa facilita aos países endividados créditos para que paguem os juros da dívida, exigindo-lhes, em contrapartida, adoção de políticas de privatização, abertura ao capital estrangeiro, redução de gastos públicos, contenção salarial e fomento às exportações. Ao mesmo tempo, são financiados grandes projetos hidroelétricos e agroindustriais, com agressões ao meio ambiente e deslocamento forçado de milhares de pessoas para as periferias das cidades em busca da sobrevivência. Os efeitos desse programa têm sido o aumento da pobreza e exclusão social.

O quadro político altera-se substancialmente com a mudança do sistema dos países do Leste Europeu e a partilha de hegemonia dos Estados Unidos com o Japão e a União Européia. Com a crise do Estado de Bem-Estar Social, revigora-se a política liberal com nova roupagem, ou seja, adota-se o neoliberalismo, no qual se fundamentam as medidas ortodoxas aplicadas e o desmantelamento do aparelho dos serviços de proteção social. Os conflitos entre os grupos sociais se agravam em determinados países, provocados pela exacerbação das diferenças étnicas e religiosas ou das identidades culturais (Europa Oriental, Ásia Central e África), reavivando aspirações autonomistas ou atitudes agressivamente defensivas em relação aos efeitos das políticas adotadas.1 1 52 conflitos de maior envergadura em 42 países (UNRISD 1995).

Começam a mudar as relações entre Estado e sociedade, surgindo novos atores sociais (ONGs, associações, redes) com papéis diferenciados, inseridos em arranjos institucionais descentralizados, e novos espaços de participação social e política. Borja e Castells (1996) acentuam a posição estratégica que passa a ter o local, nesse contexto, como centro de gestão do global, em termos de produtividade e competitividade econômica, de integração sociocultural, de representação e gestão políticas. Os governos locais podem contribuir para melhorar as condições de competitividade das empresas (infra-estrutura, meios de comunicação, recursos humanos qualificados). A gestão das diferenças socioculturais que se expressam no território pode ser melhor implementada pelos governos locais, em razão da sua maior flexibilidade e maior proximidade com esses grupos.

No plano europeu, a política neoliberal uniformiza-se com o Tratado de Maastricht (1991), que aprofunda a constituição da União Européia para melhor competir com outros blocos mediante a liberalização do comércio de mercadorias e serviços, da redução dos custos laborais e da reestruturação do Estado, transferindo uma série de funções para as empresas privadas e objetivando chegar, ao final, à União Monetária. Em termos políticos, reduz-se a capacidade de cada Estado definir sua política econômica e social, dada a necessidade de obediência aos critérios estabelecidos pelo Tratado no sentido da reestruturação produtiva, implicando desregulamentação, flexibilidade e privatização. Todo esse processo, embora dependa da aprovação formal do Parlamento Europeu e dos parlamentos de cada país, é definido pelos chefes de governo (Comissão Européia). Segundo um dos seus críticos, visa "(...) potenciar os interesses do capital internacionalizado e particularmente do capital financeiro" (Etxezarreta 1997, p.3). Os efeitos dessa política têm sido perversos para a maioria da população na Europa, sobretudo para os trabalhadores, provocando um alto índice de desemprego (média de 11%), precariedade dos contratos, redução de prestações sociais.

Ao definir a "cidadania européia", o Tratado prevê a livre circulação, direito de voto e elegibilidade, proteção diplomática e petição ao Parlamento Europeu, e incorpora princípios de política social, porém sem garantias de sua efetivação. No entanto, a dimensão da participação é formal (referendo, direito de petição, presença de algumas entidades no Comitê Econômico Social consultas às autoridades locais), ou seja, através de mecanismos pouco utilizados e de pouca eficácia. Atualmente busca-se a revisão do Tratado, porém sem transparência (as reuniões do Conselho são secretas) e sem consenso dos membros (direito de veto). Por isso, a sociedade civil questiona sua legitimidade. As proposições de alguns países não foram ainda implementadas por oposição de um ou mais membros: introdução de um capítulo sobre direitos fundamentais, cláusula de não-discriminação, ampliação dos direitos sociais, proibição da pena de morte e xenofobia, voto majoritário, política de emprego (Sunyer e Borja, 1997).

A globalização tem provocado o surgimento de agrupamentos regionais de países em busca de maior integração econômica e, em certos casos, política, para tirar maior proveito da competitividade.2 2 Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean); Fórum de Cooperação Econômica na Ásia do Pacífico (Apec); Mercado Comum do Sul compreendendo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai (Mercosul); Comunidade para o desenvolvimento do sul da África (Sadc); Tratado de Livre Comércio entre México, Canadá e EEUU (Nafta); Mercado Comum Centro Americano; Comunidade Econômica Africana (CEA); Mercado Comum Árabe (MCA) (folha de São Paulo, Caderno Especial, 02.11.97). Nas estruturas desses agrupamentos, com exceção do Mercosul, a participação da sociedade civil é inexistente, restando-lhe os fóruns alternativos e ações de protestos.

Paralelamente à globalização ocorrem também, a partir dos anos 70, mudanças nos sistemas políticos em direção a uma democracia formal, com garantias para o exercício de alguns direitos básicos. Apesar da expansão das liberdades formais, num processo chamado por alguns de "liberalização" (O'Donnel e Schmitter, 1988), a crise de legitimidade das democracias é evidente, refletindo-se no grau crescente da abstenção eleitoral, que se pode atribuir não só a razões econômicas, mas à ausência de opções e à desconfiança em relação ao profissionalismo na política. Os partidos perdem cada vez mais prestígio, deixando de ser os mediadores entre população e governo. Não obstante, suas elites controlam os governos; os meios de comunicação, manietados por grupos econômicos, definem a agenda política e ampliam ou restringem a repercussão de fatos ao sabor dos interesses dos grupos dominantes.

A questão que se coloca diante desse quadro é a de saber se o aprofundamento da exclusão e o agravamento das desigualdades sociais são inexoráveis ou, dito de outra forma, em que medida as potencialidades criadas pela revolução tecnológica poderão ser canalizadas a serviço da população e da democratização das relações sociais. Muitos analistas desse processo (Touraine 1994; Amin 1994, Borja 1996, Giddens 1996; Diaz-Salazar 1996), não só admitem essa possibilidade, como apresentam alternativas técnicas e políticas para reverter as atuais tendências.3 3 Há propostas como a de James Tobin, prêmio Nobel de economia, para a criação de um imposto multilateral sobre operações de câmbio de moeda, e outra, de Ruben Mendez, para instituir uma Bolsa de Divisas ligada à ONU (Diaz-Salazar 1996).

O nível de discussão e de análise dos impactos dessas políticas tem-se aprofundado e, inclusive, ampliado para outros setores da sociedade civil, como se verá adiante, mas a viabilidade das propostas continua a depender de mudanças políticas nos diversos países que compõem os diversos blocos e nos organismos internacionais, numa conjuntura inteiramente desfavorável para as organizações da sociedade civil.

REAÇÃO ÀS POLÍTICAS GLOBAIS E AÇÃO CIDADÃ

É preciso indagar, pois, em que medida estão sendo criados espaços para essa discussão e luta, qual é sua agenda e sua repercussão no conjunto da sociedade. Trata-se de verificar se o processo de globalização, na forma como vem sendo realizado, é irreversível, ou seja, que ações ou reações esse processo tem provocado nas organizações da sociedade civil de base local. Iremos fazê-lo abordando os seguintes aspectos: a) atuação frente aos organismos internacionais; b) participação em Conferências Internacionais e acompanhamento das mesmas; c) ações locais de dimensão global; d) rede de organizações; e) cooperação internacional.

Atuação da sociedade civil nos organismos financeiros internacionais

Em relação aos organismos internacionais, principais responsáveis pela definição e implementação das políticas econômicas e sociais que afetam toda a humanidade e interferem nas relações entre os Estados e os grupos sociais, tem-se desenvolvido um acompanhamento das decisões, com denúncias de seus efeitos e alguma negociação em torno de proposições alternativas.

O Banco Mundial é o principal formulador e executor da política de ajuste estrutural imposta aos países devedores. Os impactos dessa política têm sido perversos sobretudo para as populações dos países menos desenvolvidos.4 4 A pobreza absoluta atinge 62% da população africana, 25% da asiática e 35% da latino-americana; atinge também 16,5% da população dos países do hemisfério Norte (PNUD, 1991). O Banco reconhece a realidade da pobreza e para aliviar seus efeitos desenvolve uma estratégia de realizar projetos concretos nas áreas da agricultura, do controle de natalidade, da redução de pobreza, da organização da comunidade, do desenvolvimento florestal e ambiental. Avalia como importantes os trabalhos desenvolvidos pelas ONGs, sua eficácia e baixo custo, além, da grande aceitação nas comunidades.

As experiências de projetos realizados por governos dos diversos países do Terceiro Mundo têm sido desastrosas, não apenas quanto a sua eficácia e custo, mas também quanto aos métodos paternalistas ou autoritários. Desde 1973, o Banco Mundial vem trabalhando com ONGs, principalmente como consultoras; a partir de 1980, de forma mais direta, envolvendo cada vez mais as ONGs locais e outros grupos organizados das comunidades (mulheres, cooperativas). Em termos de discurso, o principal atrativo do Banco para isso foi o conceito de auto-sustentação desenvolvido pelas referidas organizações em seus projetos, mas, efetivamente, os motivos reais foram a redução de custos dos projetos e a diminuição do papel do Estado nas políticas sociais. Nos últimos anos esse envolvimento tem aumentado, representando, em 1993, 30% dos projetos, principalmente nas áreas de desenvolvimento rural, meio ambiente e saúde/nutrição. Apesar de trabalhar com redes de ONGs e ONGs internacionais, a política é priorizar as organizações locais.

Outras formas de relacionamento das organizações têm sido a participação em encontros5 5 Em 1992 participaram 85 ONGs, e em 1993 foram 54 (Docs. n.1 e 2). promovidos pelo Banco, alguns incluindo representantes de governos; a criação de um Comitê Conjunto Banco/ONGs, que dá suporte ao primeiro nas suas relações com as organizações, facilitando a cooperação, troca de informações, melhoria do diálogo e discussão de temas específicos (ajuste estrutural, participação popular, etc.). Esse Comitê, com sede em Genebra, é constituído de representantes de 26 ONGs e de funcionários dirigentes superiores do Banco.

De sua parte, as ONGs também desenvolvem uma atividade de lobby com respeito às questões internas do Banco, pleiteando os seguintes pontos: 1) maior abertura nas informações, acesso do público aos documentos importantes; 2) inspeção independente para investigar as queixas dos afetados pelos projetos; 3) audiência pública e consultas às comunidades afetadas pelos projetos; 4) maior atenção às questões da "participação popular"; 5) introdução da política de direitos humanos. Destas questões, o Banco atendeu a primeira e a segunda e de forma parcial (Transnational Association, n. 1, jan/fev. 1995).

Outra forma de atuação, de caráter mais visível, desenvolvida pelas ONGs e outros atores sociais, consiste em ações coletivas de debate público e de protesto contra as políticas do Banco, como o Foro Alternativo em Madrid (1994)6 6 Teve participação de representantes de todo o mundo. Esse fórum culminou com uma campanha iniciada em 92, "50 anos bastam", envolvendo 300 grupos e 80 ONGs (Duran 1995). no qual se discutiram alternativas às políticas daquela entidade. Foram apresentadas propostas referentes à autonomia e liberdade das mulheres, negadas, praticamente, pelas políticas adotadas; à posição frente à globalização; ao enfrentamento da crise ecológica global com base na autonomia e responsabilidade local; à anulação da dívida externa; à redefinição da ajuda internacional e, até mesmo, à abolição das instituições econômicas internacionais. (Duran 1995). Independentemente da avaliação da pertinência, justeza e realismo dessas propostas, importa considerar a reação de setores organizados da sociedade que questionaram, de forma coletiva e pública, a ação de organismos internacionais cujas políticas têm impacto sobre toda a humanidade, em geral aceita pelos governos sem maiores contestações.

Outros eventos de igual teor, alguns de maior visibilidade, como o Fórum Internacional de ONGs sobre o Banco Mundial e FMI, têm sido realizados, criando-se inclusive uma organização permanente para tratar da questão do ajuste estrutural.7 7 No Fórum Internacional, também realizado em Madri, em 1992, com mais de 100 organizações de 46 países, criou-se um Centro de ONGs para a ação relacionada com o ajuste estrutural (Casa) (Coordinadora de ONGs para el desarrollo, 1994). Em 1988, o Tribunal Permanente dos Povos, em sessão dedicada às políticas do FMI e do Banco Mundial, declarou que esses dois organismos violaram a Carta das Nações Unidas, o direito de autodeterminação e a soberania dos povos. Ao lado da condenação, o Tribunal fez uma série de recomendações para uma ação comum de pressão sobre os governos e organismos internacionais no sentido da reestruturação das instituições financeiras mundiais. Mais recentemente, redes transnacionais, sobretudo nas áreas de direitos da mulher, povos indígenas e meio ambiente, têm ampliado sua atuação, com alguns resultados parciais na reforma das políticas sociais e ambientais do Banco Mundial, mas permanecendo ainda dependentes da implementação de cada governo e também da capacidade de pressão da sociedade civil nacional e local.

Os exemplos acima demonstram o esforço das organizações da sociedade civil para ampliar a participação cidadã em termos globais, buscando atingir os centros estratégicos de decisão da política mundial que afetam direta ou indiretamente as populações locais e suas organizações. As ações desenvolvidas explicitam as dimensões de expressão e de controle social da participação cidadã. Na primeira dimensão, os atos de protesto público sinalizam para a opinião pública o questionamento de políticas adotadas pelos governos que controlam os organismos internacionais. Na segunda dimensão, a exigência é a da transparência, da publicidade dos documentos e da criação de mecanismos de inspeção dos projetos realizados. Percebe-se claramente, do lado das organizações da sociedade civil, uma atitude mais ofensiva e propositiva, buscando-se levar ao debate público outras alternativas, diferentemente de há alguns anos, quando o envolvimento dava-se apenas na realização de projetos ou, no máximo, numa consultoria técnica.

Apesar da atuação crescente, os esforços de fortalecimento da sociedade civil para esse tipo de ação global são ainda incipientes e seus impactos são reduzidos. As coalizões entre organizações locais dos países do Terceiro Mundo e entidades internacionais, com sede nos países do Norte, na pressão contra megaprojetos de efeitos ambientais nocivos, têm tido resultados, porém pouco sucesso tem sido obtido em relação às macropolíticas do Banco. No entanto, recentemente, por meio do Grupo de Trabalho de ONGs sobre o Banco Mundial (GTONG), em reunião de outubro de 1997, iniciou-se uma discussão com diretores do Banco sobre as políticas macroeconômicas, que continuam sendo debatidas somente em um círculo restrito, ou seja, não há nenhuma transparência. Mas, no âmbito dos países, graças à pressão sobre os parlamentos, tem-se conseguido a divulgação desses documentos e, em alguns casos, até sua discussão em audiências públicas. Em relação à tentativa de monitorar a aplicação de recursos, conseguiu-se incluir na agenda do Painel de Inspeção8 8 O Painel de Inspeção, criado em 1993, pretende ser uma instância de cidadania global que recebe reclamações de qualquer cidadão e de suas organizações, quando prejudicados por projetos financiados pelo Banco. Já recebeu até hoje 11 solicitações, sendo 2 do Brasil. Uma delas, feita pelo Pólo Sindical do Submédio São Francisco pela não-conclusão do projeto de reassentamentos, teve apoio da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, de outras ONGs e de organizações de base locais (Viana 1997). duas questões concernentes ao Brasil. Foram obtidos resultados parciais, relativamente importantes, na medida em que o governo brasileiro foi obrigado a concluir dentro de um determinado prazo o Projeto de Reassentamento dos Atingidos pela Barragem de Itaparica, financiado pelo Banco. Através de algumas organizações especializadas, como a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, procura-se exercer um acompanhamento mais técnico e sistemático das decisões e políticas.

O maior êxito das organizações da sociedade civil, no entanto, foi o Banco reconhecer a Iniciativa de Revisão de Programas de Ajustes Estruturais, lançada em 1997 por uma rede de organizações da sociedade civil - Structural Ajustement Programs Review Iniciative Network (SAPRINetwork). Essa revisão, contudo, depende da aceitação dos governos e da decisão das organizações em participar da mesma (Inesc, 1997). Tal situação mostra que a ação das redes de organizações civis internacionais depende das organizações locais para uma ação mais eficaz. Segundo concluem Fox e Viana Junior (1997, p. 4), "a única forma de ampliar o sucesso de atuação das redes internacionais é trazer completamente seus trabalhos de articulação para a corrente central dos esforços locais e nacionais para a efetiva democratização dos Estados-nacionais". O problema é a dificuldade de acesso das ONGs locais às redes internacionais e sua sub-representação nos fóruns internacionais.

A eficácia desse tipo de atuação depende de um plano de continuidade, da articulação com as várias instâncias, inclusive a institucional, do apoio da mídia e de maior mobilização popular na esfera local. Outro complicador é a duplicidade de estratégias das ONGs em relação ao Banco: uma é a de colaborar em projetos financiados dentro das prioridades que o mesmo estabelece; a outra é a de exercer pressão política e fazer denúncias. Muitas organizações da sociedade civil nos últimos anos têm revisado suas práticas de apenas fazerem denúncias e protestos, passando a apresentar propostas fundamentadas tecnicamente. Em relação ao sistema financeiro internacional, as proposições apresentadas em vários fóruns,9 9 Reunião do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra, abril de 1995; Fórum de Washington em 1992; Rede de ONGs do Terceiro Mundo (Instituto de Estudos Políticos para África e América Latina - IEPALA, 1997). por ONGs ou por cientistas de renome, vão no sentido de maior democratização e mudanças das políticas, tais como: a) limitar a ação do FMI a suas funções monetárias, de controle do sistema bancário internacional; b) mudar os critérios de ajuda aos países do Sul; c) promover maior vinculação e clara prestação de contas à ONU d) democratizar a tomada de decisões; e) mudar o tratamento da questão da dívida externa dos países do Sul; f) tornar acessíveis os serviços financeiros do Sul, mudando os critérios de financiamento (Diaz-Salazar 1996).

Como se pode observar, aprofunda-se o debate público sobre o sistema internacional e multiplicam-se os espaços de proposições alternativas. No entanto, essas iniciativas têm impacto reduzido, pois a ação articulada globalmente é ainda incipiente e muito frágil diante da força e do poder do sistema global. Não se pode esquecer, inclusive, que apesar de o Banco Mundial pertencer a 151 países, suas decisões concentram-se em alguns países do Norte (Estados Unidos, Japão e União Européia) que detêm 60% das quotas, tornando-se bastante difícil qualquer mudança.

Atuação nas organizações do Sistema das Nações Unidas

Em relação às organizações internacionais que constituem o "Sistema das Nações Unidas", as ONGs têm uma articulação mais permanente através de um serviço, o United National Non-Governmental Liaision Service (NHLS). Com esse mecanismo, criado em 1980, as entidades trocam informações entre si e acompanham as atividades relacionadas com seus objetivos. Em conferência realizada em 1995, reconhecem a importância de construir-se um sistema de governance global, em resposta à emergente globalização e ao declínio da influência das Nações Unidas. Demandam uma reforma de democratização da ONU, no sentido de maior transparência, accountability, menos burocracia e maior controle da sociedade civil global emergente e fortalecimento do sistema multilateral. Acentuam a importância de mecanismos criados pelas ONGs em torno das conferências realizadas pela ONU, que buscam tornar o trabalho internacional do sistema mais transparente, controlável, cooperativo e efetivo. Reconhecem os conflitos entre ONGs do Sul e do Norte e a necessidade de elevar o nível de informação e das análises, de voltar-se mais para a criação de alternativas e de clarificar suas relações com outros atores da sociedade civil, inclusive com as entidades não-lucrativas vinculadas às empresas. Insistem na participação das ONGs nos trabalhos dos órgãos decisórios da ONU: Assembléias, Conselho de Segurança, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (OMC), tendo claras porém as dificuldades para obtê-la. Embora avaliem positivamente os esforços de cooperação entre ONGs e ONU, propugnam pela criação de outros espaços10 10 Da conferência promovida pela NGLS em 1995 participaram 43 ONGs nacionais e 17 internacionais. Há também outros mecanismos permanentes de cooperação entre o Sistema ONU e ONGs, como o Partnership in Action (PARinAC); UN Program of Action for African Economic Recovery and Development (UNPAAERD) (NGLS, 1996). (NGLS, 1996).

Com as discussões que ora se travam no Sistema da ONU, inclusive com a possibilidade de alterar a Resolução 1296 do Conselho Econômico Social,11 11 A resolução 1.296 estabelece o status consultivo para as ONGs, porém, na prática, não tem restringido sua participação; mesmo o limite imposto de não negociar com os países membros tem sido superado nas conferências (Transnational Associations 3, 1996). há perspectivas de maior interação na esfera regional por meio de conselhos nacionais de ONGs, pleiteando-se ampliar a atuação para que estes últimos participem das reuniões da Assembléia Geral. Acena-se com a possibilidade de se constituir um órgão permanente para representar os pontos de vista da sociedade civil, um fórum que agrupe todas as representações já credenciadas, que se reuniriam antes da sessão anual da Assembléia. Algumas oportunidades têm sido criadas pelas organizações do Sistema ONU (Unesco, Unicef, FAO) para intervenção de entidades da sociedade civil em suas reuniões, conferências e, até mesmo, em reuniões do Conselho de Segurança, não apenas como observadoras, mas com direito a voz e à apresentação de proposições, o que já vem acontecendo nas últimas conferências oficiais (Stambul, Pequim, Roma).12 12 A rede OXFAM apresentou ao Conselho de Segurança um relatório sobre as implicações humanitárias dos conflitos dos Grandes Lagos. Na Conferência da FAO sobre segurança alimentar, realizada em Roma, em novembro de 1996, as ONGs apresentaram em sessão plenária um plano alternativo de combate à fome ( El País, nov. 1996, e Revista El Viejo Topo 103, 1997).

De qualquer forma, tem-se intensificado esse tipo de atuação de organizações da sociedade civil frente aos organismos internacionais. A tendência das ONGs é cada vez mais a de se constituírem em rede para essa atuação de caráter mais global e para troca de experiências sobre projetos locais. Se em relação a determinadas organizações do Sistema das Nações Unidas a interação tem sido proveitosa e construtiva - embora crítica -, em relação àqueles organismos que decidem sobre as políticas econômicas e sobre a aplicação dos recursos, os avanços têm sido reduzidos. As diretrizes econômicas conflitam com as de natureza social. Ademais, os compromissos assumidos pelos governos em relação às políticas sociais recomendadas pelas conferências não são cumpridos, exigindo das organizações da sociedade civil forte pressão política. Pressão que nem sempre é exercida em face do envolvimento dessas entidades em projetos concretos localizados.

Frente aos impactos da globalização, também se redefine o papel da sociedade civil local e global, no sentido de uma atuação mais articulada, propositiva e ofensiva em termos políticos. Da sociedade civil local exige-se que não se ocupe apenas dos problemas imediatos, do controle e pressão sobre os governos locais, mas que estenda sua ação também sobre os espaços globais, mediante a inserção em redes internacionais, a presença em reuniões e conferências internacionais, o acompanhamento atento dos projetos com recursos internacionais geridos por governos locais ou daqueles macroprojetos que têm impacto local, realizados por companhias estatais ou multinacionais. Nesse sentido, a articulação com outras organizações, com parlamentares progressistas e com as organizações do Sistema ONU e a pressão sobre os governos nacionais que se vem exercendo em alguns países indicam caminhos que começam a ser trilhados. Em termos da sociedade civil global, a colaboração crítica e propositiva com as entidades do Sistema ONU tende a uma ampliação dos espaços públicos globais (reuniões, conferências, grupos de trabalho, cobertura da mídia), ao fortalecimento dessas entidades, com maior preocupação social, no confronto com os organismos financeiros internacionais. Os riscos de um envolvimento meramente institucional e tecnicista com as entidades oficiais, resultando no estreitamento do campo de atuação das organizações da sociedade civil merecem ser considerados e enfrentados com uma articulação mais intensa, reflexão conjunta das ações, intensificação do debate público nos diversos fóruns e relacionamento mais estreito com as organizações locais de base. Há, no entanto, limitações claras nessa atuação por falta de uma estratégia mais definida que articule, de forma mais permanente, todos os atores sociais, como sindicatos, organizações de intelectuais e outras entidades não-lucrativas. Na realidade, os atores mais atuantes são as ONGs, sobretudo as internacionais e alguns coletivos nacionais, representados em alguns fóruns. Mesmo assim, muitas das ONGs estão concentradas na coordenação dos projetos financiados com recursos internacionais, sem uma atuação mais forte na esfera global.

Participação nas conferências internacionais

Nos últimos anos tem sido freqüente a participação de ONGs e outras organizações da sociedade civil nas conferências internacionais promovidas pelos organismos da ONU, seja como observadoras, seja como delegadas. Têm-se organizado fóruns alternativos que reúnem milhares de pessoas e organizações em encontros temáticos de entidades especializadas (ONGs, sindicatos, associações civis), além de vir ocorrendo um intercâmbio de idéias e experiências através da rede eletrônica. Tentaremos analisar o significado desses eventos para a constituição e fortalecimento da sociedade civil global e sua relação com o local, Nosso pressuposto é de que se inicia a construção de espaços públicos globais nos quais se tematiza uma série de questões que afetam a humanidade, as organizações da sociedade civil desempenhando nisso um papel relevante.

A partir da Conferência Mundial da Educação, realizada em 1990, em Jomtien, Tailândia, as organizações da ONU superam os formalismos do "status consultivo" outorgado a certas organizações civis e permitem a participação em pé de igualdade com os representantes de governos e de instituições multilaterais. Mas, somente com a ECO-92, no Rio de Janeiro (Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), essas conferências passam a ter um impacto maior, graças à presença mais ampla de representantes da sociedade que sempre se reúnem em Fóruns Alternativos.

A participação da sociedade civil tem sido significativa, não apenas pelo número de organizações presentes, mas pelo espaço de publicização das questões debatidas. Promovem-se denúncias de posições dos governos e, até mesmo, negociações informais com os representantes oficiais. Constituem-se também espaços de encontros das diversidades culturais e um frutífero intercâmbio de idéias e de experiências das diversas organizações.

A participação das organizações torna-se mais importante porque não se reduz ao momento da conferência, mas resulta em todo um processo de discussão e reflexão. Primeiro, entre as próprias organizações (encontros, seminários, por regiões) depois, em reuniões preparatórias com as delegações oficiais, em que se discutem e se preparam os documentos e análises, com uma atuação mais livre das entidades civis. Apresentam-se emendas ao documento da agenda, participa-se do grupo de elaboração. Essa discussão amplia-se porque muitas organizações de base dela fazem parte, divulgando-se documentos, diagnósticos, propostas. Nelas tornam-se claras as posições dos governos e suas tendências, que podem ser objeto de denúncia e pressão.

Em termos regionais têm-se realizado conferências com agrupamentos de países - grupo andino, grupo do Mercosul - ou de organizações oficiais - Organização da Unidade Africana (OUA); Conferência do Mediterrâneo; conferência da União Européia; Organização dos Estados Americanos (OEA); Conferência das Américas), além de seminários e encontros internacionais. Em todos tem havido forte presença das ONGs, de representações de movimentos sociais e também de organizações de base.

Pela forma como se constituem esses fóruns, pelas posições críticas que têm assumido, pelas alternativas concretas que apresentam, pelo cenário alegre e descontraído, quase festivo e exótico, em contraposição aos debates formais e confrontos de bastidores que caracterizam as conferências oficiais, eles vêm obtendo uma relativa repercussão nos meios de comunicação. Têm-se também constituído espaços para protestos públicos, com manifestações, passeatas em ruas e, por vezes, confrontos com autoridades policiais (Istambul e Pequim). A dimensão expressiva e simbólica da participação mostra-se aí evidente, criando-se um espaço público global, ainda que não permanente.

A ação das organizações da sociedade civil nessas conferências e nos fóruns tem-se exercido com algumas dimensões importantes: a) lobby junto às delegações oficiais, desde a preparação, tentando influir nas posições a tomar, com propostas de redação de textos; b) participação nas sessões plenárias com direito a voz (Istambul, Roma); c) discussão temática e de experiências, com a conseqüente formação de redes e coalizões internacionais através dos fóruns alternativos; d) protesto e denúncias públicas de situações específicas de países e governos e da própria conferência (Tribunal de Julgamento de Crimes Contra Mulheres - Pequim); e) exposição de experiências: no caso de Istambul, as cem melhores práticas de desenvolvimento urbano, tanto de governos, como de entidades da sociedade civil, previamente selecionadas; f) publicização das questões em debate mediante um jornal próprio que acompanha todos os eventos e debates numa perspectiva crítica, assim como por meio do contato permanente com a grande imprensa.13 13 Cf. Documentos do Fórum, das ONGs e jornal Vivre Autrement, junho 1996, vários números, publicados durante a Conferência Habitat II.

Tem-se sempre concluído com um documento oficial - uma Declaração - assinado por representantes dos governos e das instituições oficiais, contendo compromissos, planos de ação e até montante de recursos públicos a serem gastos, assumidos internacionalmente e submetidos à aprovação dos parlamentos nacionais. Paralelamente, são também apresentados, nos fóruns alternativos, documentos representando o consenso das entidades da sociedade civil.

Nas últimas conferências, a questão da participação dos cidadãos e de suas organizações tem sido enfatizada, inclusive nos documentos oficiais. A de Istambul teve uma peculiaridade que foi a participação, na Conferência Oficial, de várias representações da sociedade civil (sindicatos, entidades científicas, entidades empresariais e governos locais), que também realizaram suas reuniões específicas, elaborando propostas para o desenvolvimento urbano apostas ao documento final.

Os temas de participação cidadã e poder local estão cada vez mais presentes, sobretudo a partir da Conferência do Rio (Eco-92), em que se criou a máxima "pensar globalmente e agir localmente". Nessa conferência, estabeleceu-se um programa de compromissos que se denominou "Agenda Local 21", em que se definem os papéis dos governos locais e da participação cidadã no âmbito local, sobretudo em relação aos problemas ecológicos. Recomendou-se que "os programas, as políticas, leis, regulamentos para alcançar os objetivos da Agenda 21 devem estabelecer-se e modificar-se a partir dos processos locais adotados". As organizações da sociedade civil também subscreveram um documento que estabelece bases para um projeto alternativo de desenvolvimento sustentável, extraídas de experiências de grupos e movimentos da sociedade civil nas últimas décadas.

Na Conferência Habitat II, em Istambul, com a temática centrada no desenvolvimento urbano, não se pôde deixar de discutir as responsabilidades dos governos locais na implementação de políticas e o papel da sociedade civil nesse processo, não apenas como parceira na execução, como também na avaliação e monitoramento dos projetos. No Fórum Alternativo, o tema da participação local esteve presente de forma enfática em quase todas as sessões de debate, inclusive com apresentação oral e visual de experiências inovadoras desenvolvidas a partir da sociedade civil, em parceira ou não com os governos locais. A concepção de participação cidadã que fundamenta tais práticas acentua a necessidade de mecanismos e instrumentos de acompanhamento, monitoramento e prestação de contas para o controle social do poder político e administrativo pela sociedade civil. Do lado dos governos locais, algumas posições semelhantes foram assumidas, indicando, que em termos do discurso, há uma certa convergência. Na Assembléia Mundial das Cidades e Autoridades Locais, que funcionou na Conferência de Istambul, os prefeitos de várias partes do mundo assumiram os seguintes compromissos: a) gestão durável e auto-sustentável do meio ambiente; b) esforço em comprometer todos os setores e grupos sociais no processo do governo municipal, incluindo a preparação do orçamento; c) política de descentralização, com participação da população; d) melhoria da transparência e eficácia da gestão; e) intercâmbio de experiências e estratégias de ação e cooperação com outras comunidades, Estados e comunidade internacional; f) fortalecimento da coordenação mundial permanente de cidades e autoridades locais; g) implementação das resoluções da Conferência Habitat II.

Nas últimas conferências foram criados espaços importantes de participação das organizações da sociedade civil, por meio dos comitês preparatórios oficiais em cujas reuniões foi-lhes permitido apresentar emendas aos documentos. A articulação dos representantes das ONGs e de outras entidades, aceitos como delegados oficiais, com o Fórum Alternativo foi possível mediante a realização de Assembléias diárias em que os participantes não só recebiam informações do andamento das negociações da Conferência Oficial, como faziam sugestões, tornando o processo de negociação com os representantes de governos mais transparente.

Em Istambul, além das questões substantivas em torno do documento final da Conferência, tais como o reconhecimento do direito à habitação como direito fundamental, da responsabilidade dos governos de prover recursos para os planos de habitação e da necessidade de haver proteção legal e soluções alternativas aos despejos forçados, outras questões de natureza procedimental foram negociadas. Alguns compromissos com as representações oficiais foram estabelecidos: a) reconhecimento do papel das ONGs na implementação da Agenda Habitat II; b) obrigação dos governos de estabelecer mecanismos de consulta à sociedade civil para as tomadas de decisão; c) colaboração das ONGs em estudos, pesquisas, atividades cooperativas, monitoramento, avaliação; d) dar passos efetivos no sentido do cumprimento da Convenção das Nações Unidas de Direitos de Habitação e Assentamentos Humanos.

Em decorrência do processo de negociação e pressão, observaram-se alguns avanços na cooperação entre ONGs e Sistema de Nações Unidas: a) composição plural da futura Comissão de Assentamentos Humanos (delegados de governos, ONGs, autoridades locais e setor privado); b) formalização de regras de procedimentos para a confecção dos rascunhos dos documentos; c) reconhecimento informal do direito de as ONGs participarem como negociadores; d) envolvimento das ONGs no monitoramento da avaliação de atividades e em outros sistemas de troca de informações.

Afinal, as últimas conferências, pelas temáticas e pelos processos desenvolvidos, com negociações no seu âmbito entre os vários atores e com atividades paralelas de participação simbólica maciça (passeatas, protestos, atos públicos de solidariedade), podem sinalizar perspectivas de um papel político global, cada vez mais ativo e propositivo, para a sociedade civil. Em parceria com os governos e instituições multilaterais, estabeleceram-se regras de jogo mutuamente aceitas para resolver os problemas, cada um assumindo, publicamente, suas responsabilidades. Na conferência de Pequim, reafirmaram-se os princípios da igualdade ente os sexos, como um direito humano e como uma condição da justiça social, e dos direitos das mulheres e crianças como inalienáveis; recomendaram-se aos governos medidas para promover esses direitos e para eliminar toda forma de discriminação, especificando-se as responsabilidades dos diversos atores (governos, empresários, trabalhadores, sindicatos, ONGs, instituições educativas, etc.).

Sem minimizar a importância desses eventos, sobretudo no aspecto político da afirmação da sociedade civil, inclusive no plano global e no de fortalecimento das organizações, não se pode, contudo, supervalorizar seu papel em termos de mudança social. Em termos oficiais os compromissos assumidos pelos governos são meramente declaratórios e dependem de posterior aprovação dos parlamentos; necessitam de leis e projetos que os operacionalizem e, portanto, dependem de vontade política dos governos e de uma pressão muito forte da sociedade civil, que nem sempre chega a exercer-se. Os governantes engajam-se no discurso e concordam no diagnóstico, participam dos atos de forma espetacular, mas na hora de implementar as ações transformadoras outros interesses falam mais alto. Não obstante, os documentos assinados constituem compromissos assumidos oficialmente e podem ser utilizados como plataformas de lutas em cada país e nos demais fóruns internacionais. As organizações da sociedade civil, com poucos recursos, voltam-se depois das conferências para suas atividades de rotina, sem condições de realizar um monitoramento mais sistemático das decisões e compromissos assumidos. Como exemplo, tem-se a Agenda Local 21, definida na Eco-92, no Rio de Janeiro, até hoje não concretizada por muitos governos. Por outro lado, as conferências têm sido realizadas com intervalos muito curtos (seis conferências em quatro anos, duas em 1996), com temas que se entrecruzam e com proposições que nem sempre avançam, fruto, muitas vezes, de cansativas e lentas negociações em torno de palavras ou conceitos que refletem visões de mundo diferentes. Não obstante os temas e as proposições refletirem as problemáticas vividas nos diversos países, não se tem êxito em atingir os centros estratégicos de decisão constituídos pelos organismos do sistema financeiro internacional, os quais subordinam os governos nacionais na execução e políticas que impedem concretamente serem viabilizadas as proposições de conteúdo social e democrático.

Apesar da heterogeneidade das organizações, da diversidade das situações vividas, há indicações de que começam a superar a fragmentação, as demandas muito setorializadas e específicas, e de que buscam um projeto comum, ainda que genérico. Constitui-se um espaço público global em que as diferenças são expostas e as distintas visões de mundo se mostram e são aceitas, identificando-se o que há de comum e que se traduz em propostas concretas, porém ainda sem uma estratégia de como implementá-las. Conscientes da necessidade de avaliação desse processo, do cumprimento dos compromissos assumidos nas conferências, organizações da sociedade civil decidiram acompanhá-lo através de um Indicador de Compromissos Cumpridos, relativamente ao desenvolvimento social. Esse indicador tem duas dimensões básicas: a) distância em relação às metas; b) vontade política (planos e programas e iniciativas; gasto social do governo; ajuda ao desenvolvimento, ratificação dos Acordos Internacionais, envolvimento da sociedade civil). O indicador de envolvimento da sociedade civil mede o grau de formalização e extensão das organizações, as relações com o Estado, a participação nas declarações das conferências nos planos, programas e políticas. Sua aplicação tem um significado político importante porque avalia a eficácia dos compromissos assumidos e a atuação dos diversos atores. A questão é saber se o destino dos relatórios será o de meros papers para ilustrar a competência dos seus autores ou se chegarão a constituir-se em elementos para exercer-se pressão política sobre os governos e para a própria mobilização da sociedade civil.14 14 O Instituto do Terceiro Mundo, do Uruguai, publicou o "Observatório de Cidadania", elaborado por ONGs de vários países, contendo a metodologia e dados sobre alguns países; há um grupo coordenador dessa iniciativa, constituído de representantes das Filipinas, Gana, Holanda, Uruguai (Roque e Correa 1997). A efetiva implantação desses mecanismos, revela que a dimensão do controle social da participação cidadã pode ser concretizada, inclusive no plano global, demonstrando o papel político que as organizações da sociedade civil podem desempenhar no sentido da accountability e democratização de instâncias intergovernamentais globais.

Algumas conferências, seminários e congressos internacionais, organizados pelas entidades da sociedade civil, têm-se realizado, nos últimos anos, em várias partes do mundo, sem o caráter espetacular e promocional dos eventos oficiais, porém com significado político importante no sentido do fortalecimento da sociedade civil global, constituindo-se em espaços públicos autônomos para o debate público, as proposições e denúncias. Os temas tratados são bastante diversificados, indo desde questões de participação cidadã, política financeira mundial e meio ambiente, até questões sociais de desemprego, educação, saúde. As proposições resultantes desses eventos vão na direção das mudanças de relações entre os países, da democratização das organizações intergovernamentais, do fortalecimento da sociedade civil (Docs. n. 11 e n. 12). A composição social dos participantes tem sido mais ampla: movimentos sociais, moradores, organização de mulheres, jovens, sindicatos, etc., refletindo a diversidade e pluralidade da sociedade civil. Essas iniciativas de caráter autônomo e propositivo caracterizam nova forma de participação em que os elementos de integração, educação e expressão estão bem claros. Indicam também a nova tendência das organizações locais, como associações de bairros de várias partes do mundo, a ultrapassarem o limite territorial, a discutirem questões de ordem mundial que repercutem no cotidiano das populações. Não obstante, esses eventos têm reduzido impacto na opinião pública e pouca influência nas decisões dos organismos internacionais, até porque carecem de continuidade e de um acompanhamento sistemático como o proposto para as conferências oficiais. Constituem, porém, um dado importante no processo de empowerment da sociedade civil global, na medida em que se intercambiam experiências, se articulam os problemas locais com a nova ordem global, se buscam soluções alternativas às políticas perversas postas em prática pelos governos nacionais com recursos de organismos internacionais. As reações a essas políticas não se esgotam no discurso das conferências e congresso. Traduzem-se também em ações coletivas concretas, como veremos a seguir.

Ações locais de dimensão global

Constituem uma forma de articulação do local com o global, uma vez que as políticas globais têm impacto no local, atingindo sobretudo os grupos sociais de menor força econômica e política que começam a resistir e buscar alternativas. Como bem observou Alger (1988), muitas atividades locais atravessam fronteiras uma vez que populações atingidas, ao resistirem a certos projetos, pressionam os centros internacionais de decisões a revisá-los. Os efeitos da globalização materializam-se no local, seja no uso das tecnologias disponíveis, seja na reação a seus efeitos perversos (desemprego, destruição da natureza, agravamento da pobreza).

Tratando-se do local, um dos maiores impactos da globalização dá-se na hierarquia das cidades, constituindo as "cidades mundiais" como centros gerenciais das corporações internacionais, formando redes de cidades para atender à flexibilização da produção e aos novos fluxos tecnológicos. As grandes cidades passam a ter um novo papel estratégico. Segundo Sassen (apud Borja e Castells 1996, p. 25), essas cidades funcionam como pontos direcionais da organização da economia mundial, como localizadores-chave das finanças e serviços especializados, lugares de produção de inovação nos setores avançados, mercado desses produtos. Para os teóricos da globalização, apesar da violência, da desintegração social, dos problemas de tráfego, de habitação, etc., o futuro da humanidade está sendo jogado nas megacidades e isso é considerado inevitável para o processo (Ibid., p. 33). Reconhecem, contudo, seu caráter excludente para vários setores sociais, cujos efeitos podem ser amortecidos por políticas sociais e urbanas integradoras. As cidades só poderão ser recuperadas por seus cidadãos na medida em que reconstruam, de baixo para cima, a nova relação histórica entre função e significado, mediante a articulação entre o local e o global (Ibid., p. 40). Essa articulação sofre limitações, tais como ausência ou presença apenas como observador das conferências das Nações Unidas; escassez de programas concertados entre organismos locais, nacionais e internacionais; lógica setorial da atuação dos governos nacionais sem o reconhecimento da dimensão local dos problemas econômicos, sociais, culturais, restrita cooperação com a sociedade civil e reduzida participação cidadã (Ibid., p. 232).

Autores tais como Sassen, Borja e Castells concebem as cidades como atores políticos e mostram o seu protagonismo, a partir dos anos 80, através da ação conjunta dos vários atores, principalmente para atrair investimentos, gerar empregos e renovar a base produtiva. Na realidade, o protagonismo das cidades situa-se mais no plano da inserção criativa na estratégia de globalização, por meio dos Planos Estratégicos, do que na busca de alternativas que priorizem as necessidades dos excluídos. Claro que nesse processo estão presentes vários atores sociais (centrais sindicais, associações de bairros, de profissionais, ONGs) que, embora não sejam hegemônicos, podem negociar alguns projetos que beneficiem os setores em apreço, principalmente na área de emprego e de alguns serviços básicos, até porque a atenuação da exclusão constitui uma condição favorável para atrair investimentos.

Em nível global ou continental, tem ocorrido a criação de entidades que articulam os governos locais que, sob pressão da sociedade civil, exercem um outro tipo de protagonismo, no sentido de reorientar as políticas urbanas para o atendimentos das necessidades básicas da população. Tal articulação, pela troca de experiências de gestão urbana, de informações sobre fontes de financiamento, de fato, tem-se realizado na direção da competitividade, inserindo-se, portanto, na estratégia da globalização. Conforme atestam Borja e Castells, "la cooperación, necesaria para inserirse en un sistema internacional tiene como objetivo último la mejora de la competidvidad. Se coopera para poder competir mejor" (1996, p. 226). Do lado da sociedade civil, surgem também algumas associações internacionais, estruturadas em redes, objetivando uma ação mais coordenada nos organismos e fóruns internacionais sobre a questão local, trabalhando principalmente temas de desenvolvimento local, democracia, educação cívica.

Quanto às ações coletivas com algum impacto global, poderemos considerar dois tipos que se desenvolvem com base na sociedade civil. Uma, de caráter defensivo, de resistência a certos programas de organismos intergovernamentais ou empresas multinacionais, com ações que vão desde o boicote a produtos ou projetos, denúncias, tentativas de impedir sua implantação, até estratégias de adaptação/buscando tirar proveito dos programas, porém sem cumprir totalmente suas exigências, Como exemplo, têm-se as várias ações locais desenvolvidas em vários países (México, Filipinas) a partir dos anos 80, em reação aos programas de controle de natalidade.

O outro tipo de ação é de caráter ofensivo, em que os objetivos são os de realizar projetos que alterem as condições de vida, exercer pressão ou negociação sobre programas ou políticas adotadas pelos países dominantes, organizações intergovernamentais e empresas, ou ainda o de pressionar os governos locais para assumir uma posição em relação às questões internacionais. Algumas ações recaem sobre problemas que têm impacto mundial ou sobre temas que estão na pauta de ONGs importantes como a Anistia Internacional, Greenpeace, etc. É o caso da luta dos indígenas no Brasil e no México pela preservação de sua cultura e suas terras, das ações dos seringueiros no norte do Brasil em torno da defesa da floresta Amazônica, as denúncias sobre os massacres de índios e de crianças, ocorridos no Brasil. O impacto dessas ações sobre a opinião pública tem levado, no mínimo, a que o governo tenha que investigar os autores e prestar esclarecimentos a determinados organismos internacionais, ainda que os resultados em termos de punição dos culpados sejam ainda bastante modestos.

As organizações locais buscam mudanças com alternativas que melhorem suas condições de sobrevivência ou tomam atitudes de mera resistência e defesa. Kothari (apud Arger 1988) mostra experiências de surgimento de movimentos de massa e associações, à margem dos partidos, abrindo novos espaços políticos, redefinindo inclusive o conteúdo da política. Questões como saúde, direitos sobre os bosques, direitos da mulher, passam a ser objetos de luta. Mas não se limitam a reivindicações econômicas e políticas, estendendo-se a problemas ecológicos, culturais e educativos, decorrentes das atividades de multinacionais que atuam na região. Alguns exemplos na Índia são citados pelo autor, tais como os esforços paa impedir a derrubada de árvores e a luta dos mineiros e dos sem-terra contra a exportação de granito (Ibid., p. 350).

As lutas contra as guerras, o comércio de armas, a pobreza, a violação dos direitos humanos, geralmente objeto de conferências internacionais, passam a constituir-se em pautas dos movimentos locais, não como meros protestos simbólicos, mas como pressão para que autoridades locais tomem uma posição. Desobediência civil, boicote de produtos de empresas multinacionais poluentes ou ações contra propagandas que afetam a imagem das crianças do Terceiro Mundo são alguns exemplos. Algumas dessas lutas provocam mudanças nas políticas das empresas ou atitudes de organismos internacionais, como ocorreu com a campanha realizada contra a Nestlé, que resultou na elaboração de normas pela OMS sobre a comercialização de produtos alimentícios para crianças. Muitas dessas ações, porém, não ultrapassam sua dimensão simbólica e expressiva, tendo significado para a construção da identidade das organizações que as promovem, mas não resultando em mudanças nas políticas ou decisões. Em algumas áreas como meio ambiente, organizações de porte como o Greenpeace conseguem realizar ações de cunho espetacular pelo inusitado e pela criatividade, atraindo a atenção da mídia e a reação em geral violenta das instituições-alvo, tornando as denúncias e os atos mais visíveis perante a opinião pública.

A dimensão de controle social da participação constitui-se em importante elemento na ação de organizações locais sobre grandes projetos de multinacionais, instituições multilaterais e governos, traduzida na exigência de transparência da contabilidade e dos recursos de origem pública investidos. Essa reivindicação passa a ter um conteúdo mais global quando se exige novo estilo de desenvolvimento, com participação da sociedade na elaboração e implementação de projetos. Os macroprojetos (hidroelétricas, agroindústrias, estradas) que afetam pequenos produtores, trabalhadores e meio ambiente, geralmente financiados pelo Banco Mundial, tornam-se alvos concretos de muitas dessas organizações que se articulam internacionalmente, como foi o caso dos Atingidos pelas Barragens no Brasil. De igual forma, os pequenos produtores afetados pelas obras de grandes hidroelétricas, ou pela desertificação do solo, criam uma rede de organizações, buscando alternativas para enfrentar os problemas causados pela ação de grandes multinacionais nos campos agrícolas.

A ação sobre os governos locais para que esses tomem posições no que diz respeito a problemas internacionais, tem ocorrido sobretudo nos países desenvolvidos e tem-se relacionado a temas como apartheid, desarmamento, cooperação internacional (Comitê Americano para a África, Movimento Antinuclear-Estados Unidos, Campanha em prol do Desarmamento Nuclear-Reino Unido). Na Europa, campanha intensa tem-se desenvolvido para que os municípios não só participem dos programas de cooperação para o desenvolvimento, como também dediquem 0,7% do PIB para essa ações. O resultado de tais mobilizações é que hoje, na Espanha, há cinco fundos de Comunidades Autônomas com recursos das prefeituras dedicados a esses programas.

Acentuando o importante papel desempenhado pelas mulheres, Jordi Borja (1996, p. 65) refere-se à resistência popular às políticas tecnocráticas de ajuste econômico do Fundo Monetário Internacional em vários países. Mostra também as novas formas de organização das mulheres para se defenderem dos efeitos da precarização dos contratos de trabalho, das mudanças na economia urbana provocadas pela globalização, como a extensão do trabalho em domicílio, a terceirização, etc.

Em termos de projetos produtivos desenvolvidos por diversas organizações da sociedade (ONGs, organizações de base, sindicatos, cooperativas) em todo o mundo, o PNUD, em relatório de 1993, apresenta uma série de iniciativas em que as populações locais procuram defender-se dos efeitos das políticas de ajuste estrutural adotadas pelos governos, sob pressão dos organismos internacionais. O relatório conclui, em tom otimista, que a atuação das organizações populares e de ONGs é uma clara demonstração de como as pessoas de todo o mundo exigem uma maior participação na sociedade civil e que essa participação tem-se convertido em imperativo e condição de sobrevivência (PNUD 1993). Indica assim que a resistência e ação ofensivas ainda não têm como alvos os centros de decisão e as estratégias fundamentais (políticas macroeconômicas). Mas, como conclui Alger (1988 p. 357), citando D.L.Seth, assiste-se à gestação de um novo tipo de atividade política que ultrapassa as fronteiras regionais, lingüísticas, culturais e nacionais. Essa atividade caracteriza-se pela articulação dos atores no debate público de questões de interesse geral, por meio de conferências, congressos, encontros, estabelecimento de redes, criando-se assim espaços públicos autônomos. Embora não tenham um caráter espetacular, com grande visibilidade, reproduzem-se por várias partes do mundo, fincando raízes em populações mediante suas organizações de base.

REDES INTERNACIONAIS DE ORGANIZAÇÕES

No intuito de superar o localismo e o isolamento, nos últimos anos as organizações da sociedade civil passaram a formar redes tendo em vista seu próprio fortalecimento, por meio da troca de experiências, informações e, em alguns casos, da promoção de ações conjuntas. Essas redes são criadas em torno de temas comuns e os mais freqüentes referem-se a questões urbanas, meio ambiente, gênero, desenvolvimento local, cooperação, cidadania, segurança alimentar, monitoramento do sistema financeiro, etc.

Muitas das redes vão além da virtualidade, são verdadeiras redes sociais, com objetivos amplos e ambiciosos. Sua abrangência é bastante grande e diversificada: há redes com 10 a 15 organizações e outras com mais de cem; algumas agregaram apenas ONGs, outras ampliam-se para grupos de cidadãos e organizações de base; umas restringem-se a um país ou região, enquanto boa parte tem como raio de ação os cinco continentes.

No vasto leque de temas com que se ocupam, percebe-se uma preocupação intensa com a questão da ética na política e com a participação dos cidadãos no processo. A luta contra a corrupção nas transações comerciais internacionais merece a atenção de uma rede específica, a International Transparence, sinalizando assim o papei da sociedade civil de controle sobre o mercado.

Ao lado do acompanhamento dos efeitos das políticas globais de ajuste estrutural, da dívida, do comércio internacional e de ações lobísticas, algumas redes têm sido criadas para desenvolver atividades alternativas, tanto no setor produtivo e de distribuição quanto no financeiro, fornecendo créditos rotativos para essas atividades. São sistemas auto-sustentáveis, que atuam com pequenos empréstimos de curto prazo financiando habitação ou instrumentos de trabalhos, pequenos negócios orientados por princípios de responsabilidade solidária, com base na poupança comunitária, na ética da confiança, no uso de recursos públicos de baixo custo e na simplicidade nas operações.15 15 São exemplos dessas iniciativas: Banco Comunitário na Índia; Coalizão Internacional das Mulheres para o crédito; Corporação do Fundo de Apoio de Empresas Associativas (Colômbia) e Grameen Bank, em Bangladesh, mobilizando mais de um milhão de pessoas. Mortgage Program - Filipinas e Working Women Forum (WWF) são programas de créditos destinados às mulheres (Vivre Autrement, junho 1996). Apesar da sua importância no fortalecimento das organizações e do próprio tecido social, essas iniciativas de apoio financeiro são pulverizadas e marginais e não atingem o sistema financeiro, até porque atendem a um público que está fora dele. O que se questiona é se, além desse tipo de iniciativa, não caberia à sociedade civil exercer uma pressão mais forte e coordenada sobre o sistema financeiro especulativo e artificial, hoje totalmente fora do alcance do Estado nacional e da própria sociedade civil, e que decide sobre as questões que envolvem as vidas de milhões de pessoas, sequer passando pelos controles formais dos diversos governos. Nesse sentido, algumas experiências começam a ser tentadas, como a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, o GTONG, para monitoração das atividades do sistema financeiro internacional. Apesar do reduzido impacto dessas iniciativas sobre o sistema econômico, nelas estão presentes valores e elementos da lógica do "mundo da vida" que podem fundamentar alternativas mais amplas de organização econômica na direção do empowerment da sociedade civil. Algumas organizações procuram articular os vários tipos de ação: o lobby, nos organismos financeiros (OMC e Banco Mundial), e a capacitação de entidades para ter acesso a fontes de financiamentos públicos com a promoção de outras redes e plataformas de ação conjunta.

Outros organismos de caráter internacional, utilizados como espaço público de denúncias e condenação de atos de governos ou de políticas de instituições multilaterais (Tribunais Internacionais), desempenham importante papel político na comunidade internacional e confirmam o caráter institucional da sociedade civil global em construção, cujos instrumentos criam possibilidades de fazer ouvir "outras vozes do planeta". É difícil, contudo, avaliar a eficácia de sua utilização no sentido de reais mudanças políticas, já que, cada vez mais, os centros de decisão mais importantes se situam nas grandes corporações econômicas, e no reduzido número de governos. Aquelas organizações têm uma atuação mais simbólica, não raro sem muito impacto na opinião pública. É visível, porém, a formação de uma cultura política na direção da ação solidária, da compreensão dos efeitos causados pelas atuais políticas, da necessidade de se construir alternativas.

A problemática do poder local está presente na atuação dessas redes, seja como espaço para realização de projetos concretos de desenvolvimento urbano, com recursos de ONGs do hemisfério Norte, ou programas de organizações intergovernamentais, seja como locais de redefinição das relações sociedade/Estado, pelo controle dos atos, proposições de leis e políticas, pela criação de instâncias de interlocução ou, ainda, intercâmbio de experiências.

Outro nível de atuação no campo internacional, com ações localizadas e uma estrutura mais fechada, é o desenvolvido por associações internacionais, como a Anistia Internacional, na área de Direitos Humanos, e o Greenpeace, na área de meio ambiente. Essas duas organizações têm uma eficácia muito grande na ação que desenvolvem, a primeira com uma estratégia bem legalista (campanhas de cartas, telefonemas, denúncias, relatórios, pressões junto às autoridades), e a outra baseando-se fundamentalmente na ação direta, cujo caráter de espetáculo sempre atrai a mídia, tornando suas ações bem visíveis para a opinião pública. Algumas centenas de outras associações no campo da ecologia, da informação, pesquisa, desenvolvimento, estão agrupadas na União de Associações Internacionais.

Como se pode observar, tem-se um quadro associativo em rede bastante amplo e diversificado, porém, com raras exceções, de pouca visibilidade e eficácia limitada, em face da forte estrutura controlada hoje pelo capital financeiro globalizado. Não obstante, é um indicativo claro da existência de uma sociedade civil global que busca se fortalecer e descobrir formas e estratégias para enfrentar os problemas colocados pela globalização, que produzem impactos sobre as realidades e os agentes locais. Alguns exemplos identificados são mostras de um processo que pode potencializar os impactos da ação cidadã se forem além da troca de informações, pela Internet ou encontros periódicos, e começarem a atuar em espaços institucionais concretos e em ações coletivas coordenadas, sobretudo com estratégias mais globais sobre os centros internacionais de decisão. A constituição de redes constitui um nível mais elevado de organização, traduzido numa relação horizontalizada, rompendo a hierarquização comum às entidades internacionais tradicionais. A utilização de novas tecnologias de comunicação tem-se intensificado a partir da Eco-92, com base em organizações especializadas como a NGONET e a Associação para o Progresso da Comunicação (APC).

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E PODER LOCAL

Desenvolve-se em vários países europeus um programa de cooperação descentralizada em que os municípios espanhóis estão tendo crescente desempenho. Esse programa se realiza de três formas: a primeira tem um conteúdo mais simbólico e consiste na promoção de relações de amizade e solidariedade entre comunidades do Norte e Sul, o "Hermanamiento", através de intercâmbios culturais, apoio a projetos, envio de voluntários. A segunda dá-se por meio de convênios intermunicipais para capacitação da administração pública e de serviços, com a transferência de tecnologia e assessoria. A terceira constitui-se da transferência de recursos para realização de projetos, o que pode ser feito diretamente, de município a município, com participação de ONGs locais responsáveis pela sua implementação ou através de um Fundo de Desenvolvimento que recolhe recursos de vários municípios espanhóis e os administra, financiando projetos dos países de Terceiro Mundo, apresentados pelas ONGs. Essa cooperação não é desinteressada, apesar do discurso da solidariedade. Ao lado dos recursos transferidos para as ONGs, a cooperação abrange também viagens de empresários aos municípios, importação de produtos, constituição de empresas mistas para exploração de atividades econômicas de mútuo interesse, etc.

Verifica-se uma crescente participação dos municípios nesse programa, sendo que, em alguns, como Arbúcies-Espanha, dedica-se mais de 0,7% do PIB para apoiar os projetos e estimula-se a criação de ONGs locais.16 16 Em 1989 os municípios espanhóis aplicaram 231 milhões de pesetas na cooperação; em 1994 havia 218 municípios no programa e em 1995 estes eram 309, totalizando um investimento de 5,4 bilhões de pesetas (FEMP, 1993). A partir da campanha dos 0,7% com a grande mobilização feita pelas ONGs desde 1994, recolhendo mais de 500 mil assinaturas em apoio a essa reivindicação, organizaram-se Fundos de Cooperação em algumas das Comunidades Autônomas, reunindo-se recursos dos municípios e formando-se também uma Confederação dos Fundos de Cooperação e Solidariedade. Com esses fundos, propõe-se o desenvolvimento de ações conjuntas de autoridades locais e ONGs, buscando-se superar a dispersão e isolamento locais numa visão global de cooperação descentralizada. Favorece-se assim o intercâmbio entre comunidades dos dois mundos e de suas entidades, apoiando-se projetos nas áreas: educativa, sanitária, ocupacional, de infra-estrutura, agropecuária, direitos humanos e cooperação municipal. Pretendem, explicitamente, reforçar a democracia na instância local por meio da cooperação dos municípios, valorizando a participação de coletivos sociais, sobretudo dos mais marginalizados (mulheres, crianças). Apesar das diretrizes e intenções proclamadas de apoio à democracia local, num relatório de um dos Fundos só se encontrou um projeto com esse objetivo, predominando projetos de infra-estrutura e obras.

As ONGs dos países do Norte, em relação aos municípios, desenvolvem tríplice papel: 1) o de sensibilizar a população dos países do Norte em relação ao programa de cooperação, realizando o trabalho de "educação para o desenvolvimento" mediante campanhas, seminários e exposições que retratem a realidade dos países do Terceiro Mundo; 2) o de pressionar o poder local para a ampliação dos recursos destinados ao programa e para uma política de cooperação com requisitos para a distribuição de recursos pelos países e projetos; 3) fazer a mediação entre os municípios espanhóis e as ONGs do Terceiro Mundo, acompanhando a implantação dos projetos, avaliando seus resultados, etc. Em grande parte dos municípios há um Conselho de Cooperação de que fazem parte as ONGs do município e outras organizações, em que se decidem as políticas e normas relativas ao programa. As Federações de municípios (regionais e nacional) também desenvolvem um papel político de sensibilizar os prefeitos e de pressionar outras entidades públicas para o aumento dos recursos destinados à cooperação. De fato, esses recursos têm aumentado nos últimos anos, ampliando-se o número de municípios que participam, duplicando-se o seu valor entre 1989/1991 (FEMP 1993; IEPALA 1990). A cooperação por meio dos municípios, inclusive com utilização de recursos da União Européia, é mais uma forma de articulação de organizações e poder local com organizações de governos locais de outros países. Tal articulação, apesar de ter em vista alguns objetivos estratégicos dos países desenvolvidos, cria espaços de interlocução entre organizações de mundos diferentes, possibilitando recursos e oportunidades para realização de projetos que podem ou não fortalecer a sociedade civil e os movimentos do mundo não-desenvolvido, a depender da estratégia utilizada.

Em síntese, os elementos analisados indicam a existência de uma sociedade civil global em processo de constituição, formada de um conjunto heterogêneo de organizações sociais, movimentos, grupos de cidadãos, ONGs, que se articulam em redes sociais e eletrônicas, criando espaços públicos autônomos ou utilizando-se de esferas públicas institucionais para o debate crítico e propositivo de questões gerais que afetam a sociedade. Em relação às organizações internacionais intergovernamentais, buscam exercer um triplo papel: a) o monitoramento das atividades, programas e políticas cujos impactos tenham agravado a situação de pobreza e miséria de grande parte dos países; para isso, foi criada uma série de instrumentos que começam a ser implantados; b) a colaboração crítica mediante a formulação e implementação de projetos de desenvolvimento, debate público e proposições no sentido da mudança nas políticas e procedimentos; c) a denúncia e pressão sobre os efeitos perversos das políticas adotadas, utilizando-se espaços públicos globais em campanhas, manifestações e outras ações coletivas de caráter simbólico-expressivo. As conferências internacionais oficiais, apesar do seu caráter espetacular e da promoção de chefes de governo, têm-se constituído em esferas públicas para a intervenção das organizações da sociedade civil, propiciando uma maior visibilidade a suas proposições e gerando compromissos dos governantes que se traduzem em plataformas de lutas para as organizações nacionais e locais. Outros eventos globais, patrocinados pelas próprias organizações, servem de suporte para a formação de opinião, sua articulação e integração, pelo intercâmbio de experiências e informações. As organizações locais descobrem que é preciso agir globalmente, desde que muitos problemas enfrentados localmente decorrem de políticas globais e que as ações coletivas das organizações internacionais não se sustentam sem recorrerem ao local. Desse modo, num processo muito incipiente e frágil integram-se em redes temáticas, buscam recursos para projetos de desenvolvimento alternativo e participam de ações conjuntas. De igual forma, os poderes locais passam a ser reconhecidos pelas organizações intergovernamentais, pois, no final, são os executores de grande parte dos programas que necessitam legitimar-se perante a sociedade. Procuram tirar proveito disso, inserindo-se também na lógica da globalização numa estratégia de competição para atrair recursos das multinacionais e organismos internacionais e oferecer-lhes condições urbanas favoráveis, em prejuízo do atendimento das populações mais pobres. Para amenizar os efeitos das políticas de ajuste, desenvolvem-se programas de cooperação internacional em que os municípios dos países desenvolvidos passam a ter um papel importante na sua gestão, em parceria com ONGs locais, mas seguindo diretrizes dos governos centrais cuja estratégia é utilizar esses programas como suporte de seus interesses políticos e econômicos internacionais. Dessa forma, a participação cidadã na sociedade civil global enfrenta sérios desafios e riscos: exercer um controle social mais eficaz sobre as políticas globais utilizando-se dos espaços e recursos disponíveis, manter a autonomia de suas organizações construindo alternativas viáveis para um desenvolvimento mais eqüitativo, ou deixar-se envolver na teia de projetos econômicos-sociais que beneficiam reduzido número de pessoas.

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  • WEFFORT, Francisco. (1992), "Novas democracias. Que democracias?" Lua Nova 27, p. 5-30.
  • 1
    52 conflitos de maior envergadura em 42 países (UNRISD 1995).
  • 2
    Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean); Fórum de Cooperação Econômica na Ásia do Pacífico (Apec); Mercado Comum do Sul compreendendo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai (Mercosul); Comunidade para o desenvolvimento do sul da África (Sadc); Tratado de Livre Comércio entre México, Canadá e EEUU (Nafta); Mercado Comum Centro Americano; Comunidade Econômica Africana (CEA); Mercado Comum Árabe (MCA)
    (folha de São Paulo, Caderno Especial, 02.11.97).
  • 3
    Há propostas como a de James Tobin, prêmio Nobel de economia, para a criação de um imposto multilateral sobre operações de câmbio de moeda, e outra, de Ruben Mendez, para instituir uma Bolsa de Divisas ligada à ONU (Diaz-Salazar 1996).
  • 4
    A pobreza absoluta atinge 62% da população africana, 25% da asiática e 35% da latino-americana; atinge também 16,5% da população dos países do hemisfério Norte (PNUD, 1991).
  • 5
    Em 1992 participaram 85 ONGs, e em 1993 foram 54 (Docs. n.1 e 2).
  • 6
    Teve participação de representantes de todo o mundo. Esse fórum culminou com uma campanha iniciada em 92, "50 anos bastam", envolvendo 300 grupos e 80 ONGs (Duran 1995).
  • 7
    No Fórum Internacional, também realizado em Madri, em 1992, com mais de 100 organizações de 46 países, criou-se um Centro de ONGs para a ação relacionada com o ajuste estrutural (Casa) (Coordinadora de ONGs para el desarrollo, 1994).
  • 8
    O Painel de Inspeção, criado em 1993, pretende ser uma instância de cidadania global que recebe reclamações de qualquer cidadão e de suas organizações, quando prejudicados por projetos financiados pelo Banco. Já recebeu até hoje 11 solicitações, sendo 2 do Brasil. Uma delas, feita pelo Pólo Sindical do Submédio São Francisco pela não-conclusão do projeto de reassentamentos, teve apoio da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, de outras ONGs e de organizações de base locais (Viana 1997).
  • 9
    Reunião do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra, abril de 1995; Fórum de Washington em 1992; Rede de ONGs do Terceiro Mundo (Instituto de Estudos Políticos para África e América Latina - IEPALA, 1997).
  • 10
    Da conferência promovida pela NGLS em 1995 participaram 43 ONGs nacionais e 17 internacionais. Há também outros mecanismos permanentes de cooperação entre o Sistema ONU e ONGs, como o
    Partnership in Action (PARinAC);
    UN Program of Action for African Economic Recovery and Development (UNPAAERD) (NGLS, 1996).
  • 11
    A resolução 1.296 estabelece o
    status consultivo para as ONGs, porém, na prática, não tem restringido sua participação; mesmo o limite imposto de não negociar com os países membros tem sido superado nas conferências
    (Transnational Associations 3, 1996).
  • 12
    A rede OXFAM apresentou ao Conselho de Segurança um relatório sobre as implicações humanitárias dos conflitos dos Grandes Lagos. Na Conferência da FAO sobre segurança alimentar, realizada em Roma, em novembro de 1996, as ONGs apresentaram em sessão plenária um plano alternativo de combate à fome (
    El País, nov. 1996, e
    Revista El Viejo Topo 103, 1997).
  • 13
    Cf. Documentos do Fórum, das ONGs e jornal
    Vivre Autrement, junho 1996, vários números, publicados durante a Conferência
    Habitat II.
  • 14
    O Instituto do Terceiro Mundo, do Uruguai, publicou o "Observatório de Cidadania", elaborado por ONGs de vários países, contendo a metodologia e dados sobre alguns países; há um grupo coordenador dessa iniciativa, constituído de representantes das Filipinas, Gana, Holanda, Uruguai (Roque e Correa 1997).
  • 15
    São exemplos dessas iniciativas: Banco Comunitário na Índia; Coalizão Internacional das Mulheres para o crédito; Corporação do Fundo de Apoio de Empresas Associativas (Colômbia) e Grameen Bank, em Bangladesh, mobilizando mais de um milhão de pessoas. Mortgage Program - Filipinas e Working Women Forum (WWF) são programas de créditos destinados às mulheres
    (Vivre Autrement, junho 1996).
  • 16
    Em 1989 os municípios espanhóis aplicaram 231 milhões de pesetas na cooperação; em 1994 havia 218 municípios no programa e em 1995 estes eram 309, totalizando um investimento de 5,4 bilhões de pesetas (FEMP, 1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      1999
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