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Equidade, seletividade e assistência à saúde

Equity and selection in health care

Resumos

Argumenta-se a favor de um exame histórico mais aprofundado de dilemas bioéticos, como os que dizem respeito aos princípios morais que guiam a alocação e distribuição de recursos para a assistência à saúde.


A deeper historical examination of bioethical dilemmas, like those involving moral principles which guide the allocation and distribution of resources for health care, is argued for.


EQÜIDADE COSMOPOLITA

Equidade, seletividade e assistência à saúde

Equity and selection in health care

Giovanni Berlinguer

Professor do Departamento de Biologia Animal e do Homem na Università degli Studi di Roma " La Sapienza"

RESUMO

Argumenta-se a favor de um exame histórico mais aprofundado de dilemas bioéticos, como os que dizem respeito aos princípios morais que guiam a alocação e distribuição de recursos para a assistência à saúde.

ABSTRACT

A deeper historical examination of bioethical dilemmas, like those involving moral principles which guide the allocation and distribution of resources for health care, is argued for.

A seleção de agentes, métodos e sujeitos da assistência à saúde com base em critérios sociais e morais, um capítulo freqüentemente ignorado ou não revelado, é parte de quase toda a história da medicina.

Apenas excepcionalmente médicos ou filósofos a admitiram ou justificaram. Platão, por exemplo1 1 Platão: Laws, IV, 720. , estabeleceu a existência "nos estados de dois tipos de pacientes: os homens livres e os escravos", e descreveu como eles diferiam no que concerne aos agentes (médicos livres ou escravos), à abordagem (consulta ou coerção, calma ou pressa), e muito provavelmente aos resultados. Na Europa, durante o Iluminismo, os pobres eram assistidos em hospitais desconfortáveis e os ricos em casa; esses últimos, em Paris, eram estimulados a dar apoio aos hospitais através de caridades para seu próprio benefício: "o paciente que está no leito que você possibilitou sofre de um mal que você terá, mais cedo ou mais tarde. Ele se recuperará ou perecerá. Em ambos os casos, o destino dele pode iluminar seu médico e salvar sua vida"2 2 J. Dulaurens. Analyse du livre intitulé "Moyens de rendre les hospitaux utiles et de perfec-tionner la médecine". Paris 1788, p. 12. . Quando ingressei na Escola de Medicina, na Itália, nós estudávamos anatomia apenas nos defuntos que haviam sido tratados de graça pela Municipalidade, cujos corpos após a morte eram considerados como res nullius ou propriedade comum. Há quinze anos, uma análise, na Espanha, do tempo devotado por clínicos gerais no exame médico dos pacientes anunciou que ele era de menos de 5 minutos para 65% dos pobres, 38% dos trabalhadores manuais, 22% da classe média e 5% da alta3 3 J. M. De Miguel, L. Lenkow, J. A. Rodriguez. "Spain", in The Health Burden of Social Inequities OMS, Regional Office for , Copenhague, 1984. . Nos anos 90, uma investigação feita em Roma sobre o acesso ao transplante de rins, no qual as prioridades deveriam seguir regras "justas" e "objetivas", mostrou que o tempo de espera para pacientes com educação primária era duas vezes maior do que aqueles com maior educação4 4 C. Perucci et al: no prelo. .

Citei apenas poucos exemplos diacrônicos, sobre uma variedade de casos, a partir dos quais podemos tirar duas conclusões. A primeira, que muitos dos dilemas bioéticos, como aqueles que dizem respeito aos princípios morais que guiam a alocação e distribuição dos recursos para a assistência à saúde, têm antecedentes históricos que deveriam ser analisados mais profundamente. A segunda, que uma das conseqüências positivas do debate atual do racionamento de serviços de saúde pode ser, para o passado e ainda mais para o futuro, tornar explícitos os agentes, o critério social e os princípios morais que guiam as decisões em questões como: o quê? quando? onde? como? e para quem?.

ESTAMOS EM GUERRA?

Na realidade, o debate teve origem, mais do que em um desejo de discutir abertamente e definir esses critérios e princípios, nas despesas públicas crescentes (e às vezes descontroladas) com a assistência à saúde em muitos países do mundo. Pode-se mesmo considerar esse fato como um dos "pecados originais" do debate, que levou a se considerar o racionamento apenas como uma resposta à escassez dos recursos financeiros. Ao mesmo tempo, surgiu a necessidade, especialmente em países desenvolvidos, de uma revisão crítica dos objetivos da medicina5 5 Um projeto internacional do HastingsCenter: The Goals of Medicine. Setting New Priorities. Hastings Center Report, Suplemento Especial, Novembro-Dezembro 1996. , da organização dos sistemas de assistência à saúde, e da eqüidade na saúde e na assistência à saúde6 6 The Global Health Equity Initiative, 1996. . Foram apresentadas alternativas às interpretações puramente financeiras do problema, que incorporam a questão da despesa com saúde mas consideram o racionamento como um instrumento para definir os direitos dos pacientes (e seus limites), para tornar transparentes as escolhas públicas, e para promover uma maior eqüidade no acesso e na qualidade da assistência à saúde.

Essa tendência pode abrir um caminho para uma ética "mais baseada em valores humanos", para políticas mais compreensivas, e, por que não?, para uma reconsideração da adequação do termo racionamento.

Racionamento foi definido como "um termo de origem militar, que significa proporcionar a cada membro do grupo sua parte dos suprimentos"7 7 Encyclopaedia Britannica, 1959. . Esse sistema "foi aplicado primeiro à distribuição nacional de alimentos na Primeira Guerra Mundial"; e, durante a Segunda Guerra Mundial, foi posto em prática também em países neutros que enfrentavam carência e preços altos. Uma definição mais abrangente poderia ser: "uma medida para limitar o consumo, aplicada em circunstâncias de emergência, especialmente durante guerras, para distribuir equitativamente bens indispensáveis disponíveis"8 8 Dizionario Enciclopedico Italiano, 1970. .

Ninguém irá pôr em dúvida o direito de utilizar esse termo (e essa prática), estabelecido em circunstâncias tão diferentes, em um novo contexto. Mas a mensagem que o termo carrega é a de uma guerra, ou de alguma emergência mundial, que cria condições persistentes de escassez de bens essenciais, e impõe regras estritas para sua distribuição eqüitativa, de modo a fazer dessa necessidade uma virtude. Faz-se também necessário que se sublinhe a principal diferença (entre tantas) frente ao racionamento em tempos de guerra. Durante uma guerra, o acesso a bens racionados é universal, ninguém pode distribuir legalmente alimentos através de canais privados, e ninguém é excluído; apenas crianças, mães e pacientes, ou trabalhadores braçais, podem receber suprimentos extras. O racionamento de assistência à saúde é exatamente o oposto: refere-se principalmente (ou unicamente) ao que é distribuído através de recursos públicos, não ao que pode ser comprado no mercado; e procede pela exclusão de tratamentos ou de indivíduos. Ao invés de introduzir justiça em troca de uma parcela comum de sacrifícios, pode consolidar e aumentar as desigualdades.

Está claro que a distância entre as oportunidades dadas (ou prometidas) pela medicina e os recursos disponíveis está crescendo, que mesmo a mobilização desejável de outros recursos não permitirá a satisfação dessas necessidades, e que escolhas devem ser feitas. Mas provavel mente as palavras prioridade, quando relativa às decisões públicas, e seleção, quando relativa ao destino dos indivíduos, são menos politicamente corretas mas mais apropriadas e diretas. De qualquer modo, mais do que palavras, é importante que se analise e reconsidere o contexto internacional no qual o racionamento está sendo proposto.

O PARADIGMA DA SAÚDE SUBVERTIDO

Nas duas últimas décadas, uma mudança no paradigma se formou em escala mundial9 9 G. Berlinguer. Globalization and Global Health. No prelo. . A noção de saúde como uma pedra fundamental do desenvolvimento econômico, como um multiplicador de recursos humanos, e, mais importante, como um objetivo primário de políticas públicas foi amplamente substituída por uma noção oposta. Serviços de, saúde pública e assistência à saúde para todos estão sendo apresentados hoje como um obstáculo, e freqüentemente como o maior deles, que obstrui as finanças públicas e a Riqueza das Nações e transforma a redução das despesas em saúde (não seu controle e racionalização, que são um imperativo em qualquer lugar!) numa das principais prioridades de muitos governos e poderosas agências internacionais.

Essa mudança de paradigma foi acompanhada de um múltiplo reducionismo, que tento resumir nos seguintes (algo parciais, aviso) pontos:

• a saúde reduzida à assistência à saúde, e a prevenção à medicina preventiva;

• os fatores de saúde e doença reduzidos basicamente a fatores individuais (genética e modos de vida), ou confundidos com uma "teia de causas", na qual se torna impossível identificar a aranha;

• o dever do estado reduzido da assistência universal à assistência apenas aos pobres, como nas "cidades livres" do Renascimento e nas nações européias do século XIX;

• a redução do debate sobre os recursos de assistência à saúde a principalmente (ou unicamente) recursos financeiros;

• as muitas questões relativas à alocação de recursos reduzidas à trágica escolha de "para quem".

Um desenvolvimento paralelo teve lugar na medicina — "A medicina científica do século XX, focada na busca de meios médicos e tecnológicos para a redução da mortalidade e da morbidade, deixou de lado a saúde pública e a assistência primária. Nenhuma das duas tinha o charme necessário para atrair financiamento de pesquisas e prêmios Nobel, nem prometiam grandes retornos à indústria de assistência à saúde voltada ao lucro. O público, em muitas partes do mundo, assim como muitos líderes políticos, tem sido feliz em nadar com a maré"10 10 D. Callahan. Equity and the Goals of Medicine. WHO-CIOMS Conference on Ethics, Equity and the Renewal of WHO's Health for All Strategy, 12-14 de março 1997. .

O CRESCIMENTO DAS DESIGUALDADES NA SAÚDE

Os três fenômenos que tentei resumir, ou seja, um novo paradigma, o reducionismo e as tendências na medicina, têm como cenário comum os desenvolvimentos políticos e culturais das últimas décadas do século XX. Além do mais, eles convergem e multiplicam seus efeitos, tanto em princípios morais quanto nas conseqüências práticas. Não é minha ambição aqui analisar esses desenvolvimentos; e não é minha intenção subestimar as numerosas e abrangentes conquistas de nosso tempo, inclusive aquelas no campo da saúde. Posso ainda acrescentar que sua afirmação rápida e universal se deve não apenas a interesses econômicos e decisões políticas, mas também à satisfação de necessidades reais.

No entanto, quais são as conseqüências morais e práticas dessa tendência? A idéia básica de que a economia de mercado e as políticas de "ajuste" poderiam estender espontaneamente seus benefícios à vida (e saúde) cotidiana das pessoas está sendo substituída, quando se toma o futuro em consideração, por preocupações e, às vezes, consternação. "Quando ajustamos o desequilíbrio orçamentário, devemos reconhecer que os programas para manter as crianças na escola podem ser perdidos, que os programas para assegurar a assistência à saúde para os mais pobres podem ser perdidos, que empreendimentos pequenos e médios...podem ter seus créditos secados, e falhar...[Isso] reflete um sentimento crescente de que há algo errado com o sistema no qual mesmo os países que tiveram políticas econômicas fortes por um período de anos são nocauteados por mercados financeiros internacionais, no qual os trabalhadores nesses países serão despejados do trabalho, no qual a educação de suas crianças será interrompida, suas esperanças e sonhos destruídos"11 11 J. D. Wolfesohn, Presidente do Banco Mundial. The Other Crisis. Address to the Board of Governors. Washington D. C, 6 de outubro de 1998. . . Avaliando o impacto profundo que as políticas do Banco Mundial tiveram nas reformas da saúde orientadas para o mercado em todo o mundo (que podem ser consideradas como um dos maiores experimentos humanos já realizados, provavelmente sem consenso informado pleno, e certamente sem uma análise de custo/benefício em termos de resultados e equidade na saúde), pode-se questionar se essa instituição, que substituiu a liderança perdida ou abandonada da OMS12 12 M. Koivusalo e Eeva Ollila. Health Policies by Default. The Changing Scene of International Health Policies. Congresso Mundial de Sociologia, Montreal, 1998. , representa uma solução ou uma parte desse problema.

As diferenças injustas e que poderiam ser evitadas na saúde entre os países e em seu interior estão aumentando, quase em todo lugar. De acordo com a OMS, "Hoje, quase 1,3 bilhões de pessoas vivem na miséria absoluta. A pobreza é uma das maiores causas de desnutrição e insalubridade; ela contribui com a disseminação da doença, diminui a efetividade dos serviços de saúde e desacelera o controle populacional. A morbidade e a invalidez levam a um círculo vicioso de marginalização, permanência na condição de miséria, e, por sua vez, maior insalubridade"13 13 Health For All in the Twenty-first Century. OMS, A 51/5, Genebra 1998, p. 9. . As desigualdades aumentam também nos países desenvolvidos. Na Grã-Bretanha, que tem desde 1912 a melhor tradição de análise nesse campo, o Independent Inquiry into Inequalities in Health14 14 Relatório (Chairman: Sir Donald Acheson), The Stationery Office, Londres 1998. mostrou que a diferença na mortalidade entre as classes I e II (profissionais, administradores e técnicos) e as classes IV e V (trabalhadores pouco ou não qualificados) cresceu de 53% no fim dos anos 70 para 68% no fim dos 80 para os homens, e de 50% para 55% para as mulheres (p. 11); que a expectativa de vida de 65 anos era consideravelmente maior nas classes mais altas, e que a diferença aumentou, no mesmo período, particularmente para as mulheres (p. 13); que diferenças semelhantes existem nas taxas de mortalidade e acidentes (pp. 14-16). Em outros países desenvolvidos, a tendência (sempre que analisada) é a mesma. Podemos argumentar que a saúde propriamente dita tem sido racionada do modo mais desigual.

Do ponto de vista moral, uma razão para se preocupar é que a noção da saúde mundial como indivisível - uma pedra fundamental em meados do século XX, o princípio fundante da própria OMS, e um dos principais objetivos das políticas de bem-estar na Europa - pode ser suplantada por uma crença disseminada de que um grupo de países pode se favorecer da melhor saúde possível em um mundo que sofre; e que o mesmo pode acontecer no interior de cada país. Uma razão paralela de preocupação foi formulada em um editorial do Hastings Center Report: "Ontem, a ética falava de justiça e acesso aos direitos dos pacientes; hoje fala de racionamento dos serviços de saúde". Na realidade, a saúde, que tem um valor intrínseco e instrumental (como uma base da auto-determinação), é também um dos melhores indicadores para medir como outros direitos humanos têm sido protegidos ou promovidos pela sociedade; mais que isso, a afirmação ou a negação do direito à saúde envolve quase todos os outros direitos.

UMA NOVA TENDÊNCIA

Nos últimos dois anos, muitos grupos e iniciativas pela eqüidade na saúde e na assistência à saúde cresceram em muitas partes do mundo. Revistas científicas qualificadas começaram a escrever intensamente sobre isso, agências internacionais (como a OMS e também o Banco Mundial) começaram a falar sobre o tema e associações internacionais a incluí-la em seus programas, e o problema foi posto na agenda, com mais rapidez e força do que se poderia esperar nos anos 90.

Se tentarmos interpretar as causas desse desenvolvimento, posso encontrar duas razões diferentes. Uma é negativa: as desigualdades continuam a crescer, e tornam-se mais e mais evidentes. A outra é positiva, e pode ser explicada por uma citação de Amartya Sen: "A informação sobre discriminações, tortura, miséria, doença e abandono ajudam a coalizão de forças contra esses eventos, estendendo a oposição das vítimas apenas para o público vasto. Isso é possível porque as pessoas têm capacidade e disposição de reagir às dificuldades dos outros"15 15 A. Sen. La libertà individuale come impregno sociale. Laterza, Bari 1997. . Pode-se acrescentar que provavelmente a desigualdade na saúde é menos aceita e tolerada que, por exemplo, desigualdades de renda: porque se volta à vida propriamente dita, e porque a interconexão da saúde de cada um ainda é amplamente percebida.

Esse desenvolvimento conecta-se com uma mudança na atmosfera internacional, a qual ouso definir como o declínio da hegemonia do fundamentalismo monetário, cuja autoridade não equivale mais a seu poder. Pode ser interessante sublinhar - rejeitando obviamente a idéia de que a saúde seja considerada um "problema partidário" - que um papel chave nas escolhas políticas, feitas pelos cidadãos de muitos países pertencentes à União Européia entre 1996 e 1999, foi encenado pelo destino do bem-estar e dos sistemas de assistência à saúde. O conflito se colocava às vezes entre ataque e defesa, mas mais freqüentemente entre desmantelamento e inovação, o que inclui definir prioridades e tornar o sistema mais justo, livre, flexível e eficaz. Ninguém pode ter certeza hoje sobre onde e como as escolhas pela inovação, feitas pela maior parte dos países da União, serão efetivamente implementadas. Por ora, podemos tomar isso como um sintoma e uma esperança.

Uma mudança significativa já foi iniciada pela atitude da União Européia em relação à saúde. Essa região alcançou, no mundo, um dos melhores níveis, não por gastar mais com a assistência à saúde (os EUA gastam quase o dobro), mas por ter "adicionado valor" à saúde e ao bem-estar pela combinação de democracia, livre mercado e justiça social. O Tratado de Maastricht16 16 On the Development of Public Health in the European Community. Comunicação da Comissão, COM (1998) 230 final Bruxelas, 15 de abril de 1998. já incluiu, pela primeira vez, a saúde pública entre as funções da Comunidade (Artigo 129), embora com muitas limitações e a partir de uma perspectiva que considera principalmente os "grandes males" (como AIDS, dependência de drogas e câncer), como se os europeus estivessem sendo ameaçados por inimigos exteriores. O novo Tratado de Amsterdã, que está sendo ratificado agora, amplia as funções da União Européia. A Comissão considera que uma das principais direções de ação deveria ser "lidar com determinantes da saúde através da promoção da saúde e da prevenção de doenças". As principais idéias17 17 European Union Health Policy on the Eve of the Millennium. Public Hearing on Health Policy, 28 de outubro de 1998, SACO 102 EN. são considerar "a conscientização crescente dos fatores sociais e culturais como variáveis explicativas do status na saúde e das desigualdades" (3.3) e contrastar "a guetoização da saúde pública" (ponto 4.1). A primeira Recomendação é a de que "o núcleo dos esforços futuros da União Européia na saúde pública deve ser a integração da avaliação do impacto da saúde nas áreas das suas políticas que incidem sobre a saúde" (5.5.i).

REDISTRIBUIÇÃO DO QUÊ?

Vejo esses desenvolvimentos (os quais são, no interior da União Européia, acompanhados de muitas contradições, e acima de tudo por seu isolamento frente aos problemas de saúde no mundo!) como uma tendência para reconhecer: primeiro, que a saúde deveria ser, em si, uma prioridade máxima das políticas públicas; segundo, que os principais determinantes das desigualdades na saúde são sociais e culturais; e terceiro, que as principais ameaças são as internas, e que a avaliação preliminar das políticas (e da ação humana, em geral) é essencial para a redução de riscos e para a promoção de uma saúde melhor.

Quando se considera a distribuição (a qual deveria ser o principal propósito do racionamento), pode-se dizer que a tarefa primeira é a redistribuição mais eqüitativa da saúde. Mesmo que isso pareça desejável, o alvo deveria ser mais amplo: melhorar a saúde de todos (inclusive dos ricos), de modo a ter, como resultado, não uma "saúde igual para todos", que é um nonsense do ponto de vista biológico e antropológico, mas a oportunidade para cada indivíduo de alcançar seu próprio nível de saúde. Isso pode ser obtido principalmente pela redução de mortes e doenças injustas e que podem ser evitadas, que têm uma distribuição individual aleatória, mas muito influenciada por classe social, exposição, renda, gênero e educação. Esse objetivo corresponde a interesses e valores comuns, porque a saúde não é um resultado soma-zero, um bem que necessita apenas de uma melhor distribuição. Maior eqüidade em saúde pode atuar como um multiplicador.

A "nova tendência" de que falei (que é tão velha quanto a tradição de prevenção e saúde pública) deve incorporar, para ser realista, a questão dos recursos, de sua definição e distribuição. Gostaria de introduzir esse problema com uma questão: quais são, na era pós-antibióticos, as medidas específicas que, citando o título do livro de Roy Porter, dariam à humanidade o maior benefício, reduzindo as mortes que podem ser evitadas? Minha escolha (muitas outras são legítimas, assim como qualquer análise comparativa é problemática) favorece duas descobertas.

A primeira é a identificação dos diferentes fatores que causam a morte por doença cardíaca coronária, tais como nutrição, hipertensão, stress, fumo e vida sedentária, feita em uma ampla pesquisa epidemiológica em sete países nos anos 60. Roy Porter, depois de criticar as "baterias de equipamentos de monitoração sofisticados ... extremamente custosos e que requerem intensa qualificação" usadas nos EUA desde os anos 50, e sublinhar que "a utilidade real das unidades de cuidado coronário em manter as pessoas vivas jamais foi testada", escreve: "o que talvez tenha contribuído mais para a queda da taxa de mortes coronárias, particularmente nos Estados Unidos, não são essas técnicas de controle remendadas e custosas, mas os movimentos em direção a estilos de vida mais saudáveis que são conseqüência da melhor compreensão da causa de muitas doenças cardíacas"18 18 R. Porten The Greatest Benefit to Mankind. A Medical History of Humanity, W. W. Norton & Company, 1997, pp. 584-585. .

A segunda é a da terapia de reidratação oral (TRO), descoberta a partir de experiências nos anos 60 e introduzida há 30 anos, que se utiliza de uma solução extraordinariamente simples de açúcar, sal e água e salva a vida de bebês e crianças (e outros) severamente desidratados pela diarréia, que é, nos países pobres, uma das principais causas de morte. TRO é um tratamento que "apenas" previne as mortes por diarréia, mas que permite, desse modo, que bebês e crianças sobrevivam, e freqüentemente se recuperem, a partir de suas forças e de apoio externo. Ele salvou e continua a salvar milhões de jovens vidas. Um historiador escreveu: "A ignorância formidável e persistente do establishment médico ocidental, que permanece depois de vinte e cinco anos da descoberta, é fenomenal ... sua ação parece ser direcionada também por considerações financeiras"19 19 J. Nalibow Rukin: "Magic Bullet: the History of Oral Rehydratation Therapy", in: Medical History, 38, 363-397. . Usar a terapia intravenosa, a despeito do risco de infecções, ou prescrever antibióticos, embora causem resistência, é mais caro, mas pode ser mais "conveniente".

Esses dois exemplos, mesmo que pertencentes a diferentes esferas e beneficiem povos e países diferentes, tem duas características em comum: a) baixo custo; b) fácil acesso; c) distribuição eqüitativa; d) mobilização de recursos individuais, tanto naturais quanto culturais.

QUEM DECIDE?

Talvez minhas escolhas sejam tendenciosas e inapropriadas. O que pretendo sublinhar, longe de menosprezar os enormes benefícios oriun dos de pesquisas avançadas e do avanço tecnológico, é como é tendencioso limitar o conceito de recursos àqueles financeiros, e como é inapropriado acreditar que apenas bens custosos, profissionais especializados e instrumentos de alta tecnologia - cuja característica comum são geralmente alto custo (e lucro), acesso difícil e injusto, e a delegação de nossa saúde a algo ou alguém - podem ter efeitos profundos e amplos na prevenção e terapia.

As escolhas são influenciadas pela "indústria de saúde de lucro", por esperanças espontâneas ou falsamente induzidas20 20 D. Callahan. False Hopes. Why America's quest for perfect health is a recipe for failure. Simon & Schuster, 1998. , e também pelas atitudes dos sistemas de assistência à saúde e dos médicos, quando desdenham a medicina baseada em evidências e aquela, disseminada, baseada em invasões. Operações cesarianas, por exemplo, representam menos de 10% dos partos na Bélgica e na Holanda, 23,5% nos EUA, 26,1% na Itália e 32% no Brasil21 21 I. Figa Talamanca. "La violenza contro le donne". in La salute in Italia. Rapporto 1999, Ediesse, Roma, 1999. . É fato conhecido que as despesas com saúde são amplamente influenciadas pelo modo como os médicos são pagos. Nos países desenvolvidos há uma variedade de métodos, mas as despesas com saúde são 45% mais altas onde se baseiam principalmente em "pagamento por serviço" que onde são feitas "per capita"22 22 OECD Health Data Base, 1998. . A probabilidade de as mulheres sofrerem uma histerectomia nos EUA ou na Suíça é 35-70% mais alta que na Finlândia e 165-230% que na Noruega, um caso onde a questão da integridade e da liberdade substantiva das mulheres tem uma relevância moral maior que o gasto de recursos financeiros. Os filhos e filhas de cirurgiões e advogados na população total dos EUA têm a menor taxa de operações de amígdala, não por razões clínicas mas por razões sociais claramente perceptíveis (solidariedade com os primeiros, medo dos segundos), e sua integridade é assim mais protegida.

A despeito desses fatos, a principal pressão se volta à extensão dos sistemas de "pagamento por serviço", e a reformas na saúde orientadas para o mercado, ao invés da busca de sistemas nos quais os interesses profissionais e industriais possam convergir às necessidades dos cidadãos e ao controle dos gastos23 23 A. Donzelli. "Modifiche del comportamento medico in relazione ai sistemi retributivi". in Salute in Italia. Rapporto 1999. Ediesse, Roma 1999. .

RECURSOS FINANCEIROS: ESCASSEZ ABSOLUTA OU RELATIVA?

O reconhecimento da escassez dos recursos financeiros para a assistência à saúde deveria levar a essa direção. Ademais, sobre a escassez, duas questões podem ser formuladas. A primeira: seria ela absoluta ou relativa? John Harris sugeriu que "a questão deveria ser colocada em termos, não somente do orçamento para a assistência à saúde, mas do orçamento nacional [e internacional]. Se isso for feito, ficará mais claro que simplesmente não é verdade que os recursos necessários para salvar as vidas dos cidadãos não são disponíveis"24 24 J. Harris. "QALYfying the value of life", in: Journal of medical ethics, 13, 1997, p. 122, e The value of life. Routledge & Kegan Paul. London 1985, capítulo 3. . Mesmo que isso seja verdade apenas (ou principalmente) em países desenvolvidos (mas muitos dos países pobres gastam proporcionalmente mais comprando armamentos), dois pontos devem ser postos à clara: que os recursos financeiros não são infinitos; e que não podemos considerar as prioridades na assistência à saúde (o quê e para quem) sem considerar antes e ao mesmo tempo a prioridade da saúde como um objetivo comum à sociedade.

A segunda questão é: de onde vêm os recursos financeiros, e para onde vão? Não elaborarei esse ponto, que implica uma crítica de alguns sistemas públicos que transferem recursos dos trabalhadores à classe média e deixam parcelas importantes da população sem qualquer proteção. O problema da eqüidade abrange também a análise das diferentes perspectivas existentes sobre o financiamento da assistência à saúde: receita geral, impostos diferenciados, contribuições à previdência social, prêmios de planos de saúde privados, taxas para usuários, e financiamento comunitário. Cada sistema tem um impacto diferente na distribuição, e podem ter também profundas implicações morais. Na Coréia do Sul, por exemplo, a passagem à vacinação gratuita levou a uma nova discriminação de gênero: a proporção dos sexos de crianças recentemente vacinadas é hoje de 4 a 125 25 I. Figà Talamanca. "La violenza contro le dorme" (veja nota 21). .

PARA QUEM?

Minhas conclusões vão da perspectiva internacional de volta à questão: "será o racionamento da assistência à saúde inevitável?". Há na literatura pelo menos sete procedimentos de racionamento implícito, que podem ser documentados e expostos, e há pelo menos doze critérios para uma resposta explícita à questão: "para quem?", as quais são freqüentemente conflitantes. São escolhas que concernem principalmente à população, e seria uma democracia estranha e enfraquecida aquela que excluísse de sua agenda procedimentos (que devem ser implementados com todo o devido cuidado) a respeito da vida e da morte. Muito freqüentemente as "políticas de saúde... dão pouca atenção a seu impacto sobre as pessoas, as quais em muitos casos são vistas como recebedoras [ou excluídas!] de serviços"26 26 P. Makara. Health Promotion and Democracy. European Standing Conference of National Ethics Committees, Paris, 12 e 13 de janeiro de 1998. . Em outras palavras, "deveríamos tentar retornar ao povo, resgatando dos especialistas, o problema da saúde". Informar e envolver os cidadãos, na tentativa de evitar tanto o viés quanto a demagogia, poderia também estimular o enorme potencial dos indivíduos, das famílias e das comunidades como produtores de sua própria saúde e como parceiros ativos na tomada de decisões concernentes a macroalocações.

Poderia também ajudar a bioética a evitar um padrão "justificativo", por exemplo ao legitimar a discriminação de indivíduos. Tenho em mente a qualidade de vida, um conceito que foi criado com um propósito positivo - depois de ter adicionado em nosso século muitos anos às vidas humanas, adicionar vida (qualidade) aos anos - e está sendo sugerido (ou utilizado) hoje não como uma medida do que tem havido ou poderia ser obtido em favor de cada indivíduo ou grupo, mas como um instrumento (QALY = quality adjusted life years, ou anos de vida ajustados à qualidade) de decisão sobre quem merece mais ou menos viver.

Uma resposta preliminar à questão "para quem?" poderia ser encontrada, voltando ao ponto 3 desse artigo, aos três fenômenos que tentei descrever (novo paradigma, reducionismo, tendências da medicina), na sugestão de que as alternativas ao racionamento poderiam consistir principalmente (e não inteiramente) em alternativas a eles. Isso significa considerar a saúde e o bem-estar humano de qualquer pessoa como um objetivo primeiro das políticas públicas, concentrar os esforços em seus determinantes e na eqüidade, e mudar as prioridades da medicina.

* "Equity, Rationing and Selection in Health Care". Tradução da Clarice Cohn.

  • * "Equity, Rationing and Selection in Health Care". Traduçăo da Clarice Cohn.
  • 1 Platăo: Laws, IV, 720.
  • 2 J. Dulaurens. Analyse du livre intitulé "Moyens de rendre les hospitaux utiles et de perfec-tionner la médecine". Paris 1788, p. 12.
  • 3 J. M. De Miguel, L. Lenkow, J. A. Rodriguez. "Spain", in The Health Burden of Social Inequities OMS, Regional Office for , Copenhague, 1984.
  • 5
    5 Um projeto internacional do HastingsCenter: The Goals of Medicine. Setting New Priorities. Hastings Center Report, Suplemento Especial, Novembro-Dezembro 1996.
  • 6 The Global Health Equity Initiative, 1996.
  • 7Encyclopaedia Britannica, 1959.
  • 8Dizionario Enciclopedico Italiano, 1970.
  • 9 G. Berlinguer. Globalization and Global Health. No prelo.
  • 10 D. Callahan. Equity and the Goals of Medicine. WHO-CIOMS Conference on Ethics, Equity and the Renewal of WHO's Health for All Strategy, 12-14 de março 1997.
  • 11 J. D. Wolfesohn, Presidente do Banco Mundial. The Other Crisis. Address to the Board of Governors. Washington D. C, 6 de outubro de 1998.
  • 12 M. Koivusalo e Eeva Ollila. Health Policies by Default. The Changing Scene of International Health Policies. Congresso Mundial de Sociologia, Montreal, 1998.
  • 13
    13Health For All in the Twenty-first Century. OMS, A 51/5, Genebra 1998, p. 9.
  • 14 Relatório (Chairman: Sir Donald Acheson), The Stationery Office, Londres 1998.
  • 15 A. Sen. La libertŕ individuale come impregno sociale. Laterza, Bari 1997.
  • 16
    16On the Development of Public Health in the European Community. Comunicação da Comissão, COM (1998) 230 final Bruxelas, 15 de abril de 1998.
  • 17
    17 European Union Health Policy on the Eve of the Millennium. Public Hearing on Health Policy, 28 de outubro de 1998, SACO 102 EN.
  • 18 R. Porten The Greatest Benefit to Mankind. A Medical History of Humanity, W. W. Norton & Company, 1997, pp. 584-585.
  • 19 J. Nalibow Rukin: "Magic Bullet: the History of Oral Rehydratation Therapy", in: Medical History, 38, 363-397.
  • 20 D. Callahan. False Hopes. Why America's quest for perfect health is a recipe for failure. Simon & Schuster, 1998.
  • 21 I. Figa Talamanca. "La violenza contro le donne". in La salute in Italia. Rapporto 1999, Ediesse, Roma, 1999.
  • 22OECD Health Data Base, 1998.
  • 24 J. Harris. "QALYfying the value of life", in: Journal of medical ethics, 13, 1997, p. 122,
  • e The value of life. Routledge & Kegan Paul. London 1985, capítulo 3.
  • 25 I. Figŕ Talamanca. "La violenza contro le dorme"
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  • 1
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
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