Acessibilidade / Reportar erro

Diversidade cultural e cosmopolitismo

Cultural diversity and cosmopolitism

Resumos

Num mundo globalizado a diversidade cultural deve ser pensada de um ponto de vista cosmopolita. Somente uma visão universalista pode valorizar realmente o que denominamos "diferença".


In a globalized world cultural diversity should be conceived from a cosmopolitan viewpoint. Only an universalist view is able to actually value "difference".


EQÜIDADE COSMOPOLITA

Diversidade cultural e cosmopolitismo* * Uma versão resumida deste texto foi apresentada no encontro "La Dimensión Cultural y Educativa dela Integración Regional: Situaciones y Perspectivas en el Mercosur", organizado pelo Centro de Formación para la Integración Regional, Montevideo, Uruguai, dezembro 1997. O presente texto foi também publicado Nueva Sociedad, n° 155/1998

Cultural diversity and cosmopolitism

Renato Ortiz

Professor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas — IFCH da UNICAMP

RESUMO

Num mundo globalizado a diversidade cultural deve ser pensada de um ponto de vista cosmopolita. Somente uma visão universalista pode valorizar realmente o que denominamos "diferença".

ABSTRACT

In a globalized world cultural diversity should be conceived from a cosmopolitan viewpoint. Only an universalist view is able to actually value "difference".

1. O debate sobre a diversidade cultural se faz hoje sob o signo de uma contradição aparente. Afirmam-se simultaneamente conceitos que muitas vezes parecem ser excludentes: integração/diferença, globalização/localização. Alguns analistas de marketing não hesitam em preconizar a existência de um planeta homogêneo, unidimensional, unificado apenas pelos vínculos da sociedade de consumo1 1 Penso em Theodore Levitt, teórico do marketing global. Ver "The globalization of markets", Harvard Busines Review, may-june 1983. . Em todos os sítios os indivíduos teriam as mesmas necessidades básicas, alimentar-se, vestir-se, deslocar-se pela cidade, ir ao cinema, fazer compras, etc. Caberia ao mercado e aos bens materiais padronizados satisfazê-las. Uma visão antagônica encontra-se entre aqueles que sobrevalorizam os movimentos étnicos (seja para firmá-los como elementos de construção das identidades locais, seja para rejeitá-los como uma ameaça a qualquer proposta de unificação). O declínio do Estado-nação teria inaugurado uma era de fragmentação social, salutar ou perigosa, de acordo com os prognósticos mais ou menos otimistas. Por isso a metáfora da "balcanização" se generalizou. O mundo contemporâneo seria constituído por espaços desconexos, por fragmentos diversos (alguns dizem "fractais") independentes uns dos outros. No contexto da formação dos blocos econômicos, por exemplo a Comunidade Européia e o Mercosul, a mesma polaridade analítica se reproduz. No início a ênfase é colocada no primeiro termo, a integração. Privilegia-se assim a dimensão da expansão das fronteiras - moeda única européia, mercado comum, livre circulação das pessoas, intercâmbio entre os países, etc. Porém, uma vez considerado este aspecto integrador, como se por receio, retorna-se imediatamente à premissa anterior: a diferença cultural (especificidade das regiões, riqueza das culturas locais, variedade dos povos e do patrimônio nacional). O debate oscila desta forma da "totalidade" à "parte", da "integração" à "diferença", da "homogeinização" à "pluralidade". Tem-se a impressão de encontrar-se diante de um mundo esquizofrênico: por um lado pós-moderno, multifacetado ao infinito, por outro uniforme, idêntico em todos os lugares.

Esta bipolarização ilusória se agrava quando é rebatida no plano ideológico. Totalidade e parte deixam de ser momentos da análise intelectual para se transformarem em pares antagônicos de posições políticas. De um lado teríamos o "todo", apressadamente assimilado ao totalitarismo, de outro as "diferenças", ingenuamente celebradas como expressão genuína do espírito democrático. Modernidade x pósmodernidade, Habermas x Lyotard, direita x esquerda, razão x irracionalismo; escolher uma dessas trincheiras torna-se um imperativo de sobrevivência epstemológica2 2 Refiro-me ao texto de François Lyotard, O pós-moderno. Rio Janeiro, José Olympio, 1986; e ao de Habermas, "A modernidade como projeto inacabado", Arte em Revista, n.° 5. . Como se vivêssemos uma Guerra Fria no plano dos conceitos. "Tomar partido" esta seria a única maneira de se superar a contradição aparente entre integração e diferenciação, cada um encolhendo-se no universo seguro de um desses compartimentos estanques. Mas seriam as sociedades passíveis de serem compreendidas desta forma? Este pensamento dicotômico, que lembra as classificações primitivas estudadas por Durkheim e Mauss, é realmente convincente?

2. Duas disciplinas nos ajudam a pensar a problemática da diversidade cultural. A primeira é a Antropologia. Ela surge no final do século XIX sublinhando a radicalidade do outro. Ao se debruçar sobre as sociedades primitivas ela desvenda tipos de organizações sociais fundamentalmente distintas das sociedades industrializadas (relações de parentesco, crenças mágicas, explicações mitológicas, etc). Para alguns autores esta distância é tal que torna-se até mesmo impossível compreendê-las (é o caso de Levy Bruhl, quan do define a mentalidade primitiva como algo ininteligível para o pensamento científico). Certamente para o conjunto da disciplina esta orientação é logo abandonada (não faria sentido uma área de conhecimento se constituir a partir da negação do que se propõe estudar). De qualquer maneira, nos dois casos, o que está em pauta é o entendimento de grupos distantes no espaço e no tempo, isto é, um conjunto de formações sociais que teriam florescido à sombra da história dos mundos "civilizados" (europeu, chinês, islâmico). Em princípio cada uma delas constituiria um lugar à parte. Possuiria uma identidade e uma centralidade própria. Toda cultura deveria portanto enraizar-se num território específico. Ela possuiria um centro e fronteiras bem delimitadas. Fora de seu alcance se encontraria o caos, a desordem, o estranho, o perigoso. Por isso os povos primitivos aprimoraram uma série de mecanismos purificatórios e exorcizadores para se relacionar com o estrangeiro. Este será sempre concebido, como nos mostra Van Gennep, como um elemento potencial de perturbação da ordem, social ou mitológica3 3 Van Gennep, Os Ritos de Passagem, Petrópolis, Vozes, 1978. . As fronteiras, simbólicas e geográficas, devem ser respeitadas para que a integridade cultural possa ser mantida.

A Antropologia nos ensina portanto que os povos dispersos pelo planeta constituiriam uma série diversificada de culturas. Cada uma delas com suas características intrínsecas e irredutíveis. Não é por acaso que o debate sobre o relativismo cultural atravessa o pensamento antropológico deste o seu início. Apesar da existência de correntes mais universalistas (o estruturalismo é uma delas) predominou na Antropologia clássica uma compreensão da unicidade de cada cultura. Os estudos se voltam para o entendimento de uma totalidade que expressaria de forma inequívoca o "caráter" de um povo (para falarmos como os culturalistas norte-americanos4 4 Por exemplo Ruth Benedict em seu livro Padrões de Cultura, Lisboa, Livros do Brasil. Visão que a autora retoma em seu estudo sobre a sociedade japonesa. Ver The Crysanthemum and the Sword, Houghton Mifflin Company, 1989. ). A ênfase sobre diferença se manifesta até mesmo quando os antropólogos começam a se interessar pelas sociedades modernas, deslocando o método da observação participante para um novo contexto. Ao analisarem objetos como o folclore e a cultura popular eles se voltam para aspectos que em princípio escapam à lógica da "modernização", da "civilização ocidental", da "modernidade", da "cultura burguesa"5 5 Um texto representativo deste tipo de estratégia é o de Robert Redifield, The Folk Culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago Press, 1941. . Os qualificativos importam pouco. Utilizo-os para demarcar o horizonte trabalhado pelo olhar antropológico. O mundo seria então constituído por uma miríade de povos, cada um com sua modalidade e seu território específico.

A segunda disciplina é a história. Ela nos fala da multiplicidade de povos e de civilizações que se interpenetram e se sucedem ao longo do tempo - egípcios, sumérios, gregos, romanos, chineses, árabes. Quadro que se transforma incessantemente da Antigüidade à Idade Média. Muitas civilizações desaparecem, alimentando a crença de alguns historiadores que as sociedades humanas seriam análogas aos organismos vivos. Spengler e Toynbee vulgarizaram a concepção de que cada civilização necessariamente experimentaria um momento de ascensão e outro de declínio, de vida e de morte6 6 O. Spengler, La Decadencia de Occidente, Madrid, Espasa Calpe, 1958; A. Toynbee publicou vários volumes a este respeito na série Estudio de la Historia. Madrid, Alianza Editorial. . Postuladas pela metáfora organicista, suas forças vitais se extinguiriam com o tempo. De qualquer maneira, o que me interessa sublinhar, ao falarmos de civilizações, é que também as idéias de centro e de limites podem ser retomadas. Com seus costumes, seus deuses, sua língua, suas conquistas, as civilizações se enraizariam num lugar determinado. Não mais a tribo, unidade demasiadamente pequena, mas a cidade-estado, o reino ou o império. Extensões que podem variar do mundo chinês ao feudo europeu ou japonês. Por isso floresce entre os historiadores toda uma corrente dedicada ao estudo do contato entre as civilizações. Cada uma delas com sua lógica, procurando porém projetar-se para além de seus marcos (conquistas romanas e islâmicas). Neste sentido diversidade cultural significa diversidade de civilizações.

Mas a história nos revela ainda um movimento de integração que difícilmente poderíamos apreender se nos restringíssemos apenas à perspectiva antropológica. Sabemos que a partir do século XVI o capitalismo emergente numa parte da Europa Ocidental tende a ser cada vez mais abrangente, suas ambições transbordam para o além mar. A época dos descobrimentos e das grandes navegações dá início a um outro ritmo de interação entre os povos. Capitalismo que na forma de colonialismo chega até a América e a Ásia. Raiz de um fenômeno que hoje discutimos: a globalização. Fica porém uma dúvida. Qual a amplitude deste movimento integrador? Envolveria ele "todos os povos do planeta" como pretende uma visão que o identifica a um "world-system"? Teria ele esta abrangência sistêmica? Aqui os pontos de vistas se dividem. Para uma corrente de pensadores (penso em Immanuel Wallerstein) o capitalismo já era capitalismo desde o século XVI7 7 I. Wallerstein, The Modern World System (2 vol.), N. York, Academic Press, 1976 e 1979. . O que temos é apenas a expansão de um sistema que já se encontrava definido em seus traços estruturais. A história seria uma ajustamento temporal às suas exigências sistêmicas. Outros autores procuram sublinhar a importância da Revolução Industrial. O termo capitalismo seria mais apropriado para designar um tipo de sociedade que nasce nesta época. A Revolução Industrial é o ponto de ruptura e não o século XVI. Não pretendo alongar-me neste debate, recupero-o na medida em que ele nos remete à temática que estamos discutindo. Penso que os intelectuais do século XIX (de Saint Simon a Marx) tinham razão quando afirmavam a especificidade do modelo industrial. Olhando a história deste ponto de vista (como o fazem por exemplo Jack Goody e Eric Wolf8 8 Jack Goody, The East in the West, Cambridge, Cambridge University Press, 1996; Eric Wolf, Europe and the People Without History. Berkeley, University of California Press, 1982. ) de fato a Revolução Industrial é um divisor de águas. O mundo colonial, apesar da força e da ganância das metrópoles não era único, convivia a contragosto com outras "economias-mundos" (China e norte da África). Na verdade, até mesmo na índia o domínio britânico não ultrapassava as regiões costeiras, tendo dificuldade de se implantar no interior do continente9 9 Carlo Cipolla argumenta que o predomínio europeu na Ásia se limita a costa marítima. A conquista e o controle de vastos territórios no interior do continente se realiza mais tarde como -subproduto da Revolução Industrial. Ver Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Européia', 1400-1700. Lisboa, Gradiva, 1989. . Também a América Latina pode ser vista como um espaço no qual a presença espanhola e portuguesa, mesmo sendo hegemônica, não consegue integrar dentro de um mesmo molde civilizatório a população negra e indígena.

Quero com isso dizer que o mundo anterior à Revolução Industrial, apesar dos movimentos integradores, encerrava ainda muito de diversidade. Diversidade num duplo sentido. Primeiro de civilizações. O poderio dos impérios europeus — Inglaterra, França, Espanha, Portugal — é certamente efetivo quando considerado do ponto de vista do continente americano. Estados Unidos, América portuguesa e espanhola são extensões dos projetos metropolitanos. Deslocando-se porém nosso olhar para a realidade do mundo asiático ou islâmico é necessário pontuar as limitações impostas à expansão ocidental. Um exemplo: o Japão. Do século XVI a meados do XIX este conjunto de ilhas, unificada sob o domínio Tokugawa, permanece fora da órbita comercial européia (os contatos restritos se fazem através de uma modesta presença holandesa no extremo oeste do país: Nagasaki). Existem, é claro, influências de origem estrangeira (por exemplo a introdução das armas de fogo se faz com a chegada, dos portugueses) mas à "civilização japonesa", ainda muito voltada para o império celestial chinês, se desenvolve ao abrigo dos interesses europeus10 10 Consultar The Cambridge History of Japan, volumes 3 e 4 Cambridge, Cambridge University Press, 1990 e 1991. . O mesmo pode ser dito em relação ao mundo islâmico11 11 Consultar A. Miquel, L'Islam et la Civilisation. Paris, Colin, 1968; Bernard Lewis, O Oriente Médio. Rio Janeiro, Zahar, 1996. . Até o momento das invasões napoleônicas ele possuía uma dinâmica inteiramente independente das potências ocidentais. Mas a diversidade anterior à Revolução Industrial é parte ainda das sociedades do Antigo Regime. Apenas de um ponto de vista genérico os estados europeus podem ser qualificados como racionais e técnicos. É bem verdade que a racionalidade do capital mercantil predomina junto aos empreendimentos dos ricos comerciantes. Trata-se porém de um domínio restrito. Apesar do desenvolvimento científico, cujas raízes datam do Renascimento, das premissas do Iluminismo, da gestão burocrática do aparelho estatal, durante os séculos XVII e XVIII prevalecem as forças da tradição — aristocracia, religiosidade popular, crenças mágicas, economia agrícola, estamentos sociais, etc12 12 Muito desta tradição se prolonga por todo o século XIX. Ver Arno Mayer, A Força da Tradição. S. Paulo, Cia das Letras, 1987. . Na verdade, as sociedades européias constituem um verdadeiro arquipélago de "mundos regionais" pouco integrados uns aos outros. Dito de outra forma, se é possível encontrarmos nos séculos anteriores alguns traços de um fenômeno que hoje chamamos de globalização, a meu ver a emergência e consolidação deste processo somente irá se constituir qualitativamente com o advento da modernidade.

3. Revolução Industrial e modernidade caminham juntos. Elas trazem consigo um processo de integração até então desconhecido: a constituição da nação. Diferentemente da noção de Estado (muito antiga na história os homens) a nação é fruto do século XIX. Ela pressupõe que no âmbito de um determinado território ocorra um movimento de integração econômica (emergência de um mercado nacional), social (educação de ''todos" os cidadãos), política (advento do ideal democrático como elemento ordenador das relações dos partidos e das classes sociais) e cultural (unificação lingüística e simbólica de seus habitantes). A nação secreta por tanto uma consciência e uma cultura nacional, isto é, um conjunto de símbolos, condutas, expectativas, partilhados por aqueles que vivem em seu território. Processo que se consolida no século XIX e durante o XX se alastra para todos os países. Em cada um deles, ao sabor de suas histórias particulares, surge uma cultura nacional. Não devemos imaginar a construção das nações como algo natural, uma necessidade teleológica, como pensavam vários autores do XIX (acreditava-se que na cadeia evolutiva das sociedades a nação seria o tipo mais perfeito de formação social). Ela é conflitiva, envolve interesses contraditórios, disputas e dominações. Muito da memória nacional é uma invenção simbólica, as tradições são ideologicamente veiculadas como se tivessem existido de todo o sempre. Resulta no entanto que cada país se vê como uma unidade específica. Como dizia Herder a nação é um "organismo vivo", modal, distinto da vida existente em outros lugares. Diversidade tem portanto um novo significado. O mundo seria a somatória dos encontros e desventuras das culturas nacionais diversificadas.

4. A modernidade avança com as revoluções industriais, agora não apenas a inaugural, mas a segunda (final do século XIX) e a terceira (meados do século XX), secretando um movimento integrador que curto circuita as diversidades étnicas, civilizatórias e nacionais. Ao se expressar enquanto modernidade-mundo ela as atravessa, situando-as no quadro de uma "sociedade global" (para falar como Octávio Ianni13 13 Octavio Ianni, A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993. ). As relações sociais já não se limitam mais aos indivíduos que vivem no contexto desta ou daquela cultura, elas se apresentam cada vez mais como "desterritorializadas", isto é, como realidades mundializadas. Contrariamente ao argumento antropológico que fixava a cultura num lugar geograficamente definido, ou às premissas nacionais que enraizavam as pessoas no solo fixo de um território, temos agora um "desencaixe" das relações sociais em nível planetário14 14 Sobre a relação entre o processo de mundialização da cultura e a constituição dos lugares ver Renato Ortiz, "Espaço e territorialidades" in Um Outro Território. S. Paulo, Olho d'Agua, 1996. . A idéia de que toda cultura possua um centro, a tribo, a civilização ou a nação, delimitando fisicamente um entorno bem preciso é colocada em xeque. A modernidade-mundo atravessa as diversas formações legadas pela história, dos povos primitivos aos países industrializados.

Pensar a modernidade-mundo como um movimento integrador não significa considerá-la como algo homogêneo. Os sociólogos mostram que a modernidade é sempre diferenciadora. Vinculada ao modo de produção industrial ela se funda num processo de individuação e de autonomia crescente. Racionalização do conhecimento como queria Weber — emancipação do pensamento científico em relação à religião e às crenças mágicas; subdivisão do campo da ciência e constituição de disciplinas distintas (Física, Sociologia, Antropologia, Psicologia). A especialização dos saberes torna-se uma exigência das sociedades modernas. Diferenciação que atinge os valores tradicionais, liberando os indivíduos das malhas da coesão comunitária. A Sociologia nasce privilegiando esses temas. Durkheim busca na divisão do trabalho a chave explicativa dessa diferenciação social. A passagem da solidariedade mecânica para uma solidariedade orgânica refletiria justamente este aspecto. Movimento que pode inclusive adquirir uma feição "patológica", com a fragmentação social e a anomia dos indivíduos. Tönnies retoma a mesma problemática através dos pares conceituais "sociedade" e "comunidade". A cidade torna-se assim o lugar privilegiado das relações anônimas e impessoais, em contraposição aos agrupamentos rurais, o vilarejo, nos quais os contatos "face a face" favoreceriam os traços de coerção. Por isso Simmel considera a cidade como o locus no qual "explodem as diferenças", isto é, afirma-se a irredutibilidade do indivíduo.

A modernidade-mundo carrega consigo um elemento diferencia-dor. Esta é a sua natureza. Isso significa que a mundialização é simultaneamente uma e diversa. Uma, como matriz civilizatória cujo alcance é planetário. Neste sentido parece-me impróprio falar em "modernidade japonesa", "modernidade européia", "modernidade latino-americana", como se tratassem de estruturas inteiramente distintas. Uma matriz não é um modelo econômico no qual as variações se fazem em função dos interesses em jogo ou das oportunidades de mercado. Capitalismo, desterritorialização, formação nacional, racionalização do saber e das condutas, industrialização, urbanização, avanços tecnológicos, são elementos partilhados por todas essas "modernidades". Os sociólogos podem então considerá-las como parte de um tronco comum, revelando assim os seus nexos constitutivos. No entanto, a modernidade é simultâneamente diversa. Primeiro, atravessa de forma diferenciada cada país ou formação social específica. Sua realização se faz segundo as histórias dos lugares. As nações são diversas porque cada uma delas atualiza de maneira diferenciada os elementos de uma mesma matriz. A modernidade varia portanto de acordo com as situações históricas (possui uma especificidade na América Latina, outra no Japão ou nos Estados Unidos). Segundo, contém em seu interior um movimento de diferenciação que envolve os grupos, classes sociais, gêneros e indivíduos.

5. Se meu raciocínio é correto pode-se dizer que o termo diversidade se aplica de forma indiferenciada a fenômenos de naturezas diversas. Primeiro a tipos de formações sociais radicalmente distintas — tribos indígenas, etnias, civilizações passada e nações. Sublinho este aspecto, um tanto ausente no debate contemporâneo. Mesmo considerando o eixo hegemônico da expansão da modernidade-mundo é preciso reconhecer a existência de um legado da história. Civilizações, etnias, tribos indígenas não são um anacronismo, algo "fora" do tempo. A não ser que acreditemos numa ideologia do progresso na vulgata popularizada pelo pensamento evolucionista do século XIX. Mundo islâmico, sociedades indígenas, grupos étnicos (na África ou na Europa central) não são testemunho de "atraso" ou sinais de bárbarie. Trata-se de formações sociais plenamente inseridas na atualidade (isto é, imersas nas relações de forças que as determinam). Pensá-las como vestígios é desconhecer que a história é também presente, momento de entrelaçamento de tempos não contemporâneos. Segundo, enquanto diferenciação intrínseca à própria modernidade-mundo: indivíduo, movimento feminino, homossexual, negro, crise de identidades, etc. Movimento que tem se acelerado ao ponto de muitos o perceberem como sintoma de uma nova fase histórica, de uma pós-modernidade.

Tudo se passa no entanto como se qualitativamente essas diferenças se equivalessem. Entretanto, qualquer antropólogo conhece a especificidade dos povos indígenas. A rigor, a própria noção "povo" é inadequada para descrevê-los. O coletivo só faz sentido quando o contrapomos às sociedades industriais. A idéia de miríade parece-me mais apropriada para apreender sua realidade. Não há "indígenas" a não ser no singular, eles devem ser sempre qualificados, são Kamayurá, Suruí, Cintá-Larga, etc. (basta olhar a diversidade das línguas indígenas para se dar conta da multiplicidade do que o pensamento postula como homogêneo). Cada unidade possui uma centralidade e um território que se articulam e se contrapõem às tentativas de integração. É isso que trama a questão da terra (isto é, das fronteiras) importante. Perdê-la seria desencaixar-se, o que aconteceu com o camponês na Europa, e na América Latina durante o processo de industrialização, com vários grupos indígenas. Os chamados povos primitivos, sob pena de desaparecerem, devem se defender da expansão das fronteiras, sejam elas nacionais ou mundiais.

Diversidade significa aqui a afirmação de uma modalidade social radicalmente outra. O caso das sociedades islâmicas (e é preciso não esquecer que elas são heterogêneas) é de outra natureza. A civilização que afirmam encontra boa parte de seu sentido nos princípios religiosos do Alcorão, mas seria incorreto imaginá-las como inteiramente à parte da modernidade. As transformações ocorridas durante os séculos XIX e XX, mesmo apontando para um fracasso da "modernização", indicam a existência de sociedades que absorveram da Revolução Industrial alguns de seus aspectos (não apenas o progresso tecnológico, como se costuma dizer). O dilema do mundo islâmico é como equilibrar, isto é, como conter os elementos de modernidade no quadro de um Estado e de uma sociedade civil nos quais o código religioso pretende ser ainda a última fonte de legitimidade15 15 A interpretação do fundamentalismo proposta por Olivier Roy é sugestiva. Para o autor não se trata de uma "fuga" da modernidade, mas de uma resposta à modernização incompleta e desigual dos países árabes e uma crítica às instâncias religiosas tradicionais (os umelás). Ver Genealogía del Islamismo. Barcelona, Ediciones Belletarra, 1996. . Inteiramente distinta é a questão feminista. Ela emerge como uma reivindicação no interior da matriz modernidade. Luta-se pela igualdade de oportunidade e de tratamento entre os sexos. Identificar os movimentos indígenas ao das mulheres, classificando-os como minorias é confortavelmente confundir as coisas. Afirma-se é claro um princípio de "boa intenção", mas isso em nada nos ajuda a compreender ou a equacionar o problema. A construção de identidade nos movimentos de gênero é resultado dos ideais e da organização interna das sociedades modernas. A oposição entre masculino e feminino não é algo insuperável. Homens e mulheres, malgrado suas sensibilidades diferenciadas, vivem num mesmo universo. Reforço o termo utilizado: insuperável. No caso das sociedades indígenas toda "superação", seja ela no sentido hegeliano ou não, implicaria o seu desaparecimento. A separação é a razão de ser dessas culturas. Estou portanto sugerindo que na discussão sobre a diversidade é necessário distinguir qualitativamente entre as diferenças. Postulá-las como equivalentes (como o faz o discurso pós-moderno) é um equívoco.

6. A diversidade cultural não pode ser vista apenas como uma "diferença", isto é, algo que se define em relação a, nos remete a alguma coisa outra. Toda "diferença" é produzida socialmente, ela é portadora de sentido simbólico e de sentido histórico. Uma análise, tipo hermenêutica, que considere unicamente o sentido simbólico corre o risco de isolar-se num relativismo pouco conseqüente. Tudo se passaria como se a cultura fosse realmente um texto cada qual com seu significado próprio. A leitura decorreria então de uma intenção arbitrária: p posicionamento do leitor. Não haveria pois uma relação necessária entre os textos, sua existência se vincularia unicamente ao olhar interessado que o decodificaria. Na sua irredutibilidade as culturas seriam incompatíveis, indiferentes umas às outras. Afirmar o sentido histórico da diversidade cultural é submergi-la na materialidade dos interesses e dos conflitos sociais (capitalismo, socialismo, colonialismo, globalização). A diversidade se manifesta portanto em situações concretas. Pode-se é claro fazer uma leitura textual das culturas primitivas (este é em parte o objetivo da Antropologia) considerando-as porém dentro de um horizonte mais amplo. Uma coisa é lermos as sociedades primitivas como um texto (o que significa que "Os Argonautas do Pacífico" de Malinowsky é uma entre as várias interpretações possíveis de um mesmo dado empírico) outra no entanto, é entender o destino dos habitantes das ilhas de Trobriand. Neste caso é impossível apreender as mudanças que os atingem sem imergi-las no fluxo do tempo, sem as considerarmos no quadro de uma "situação colonial"16 16 Lembro que o conceito de "situação colonial" foi introduzido por Georges Balandier justamente com o intuito de escapar ao relativismo do culturalismo norte-americano. Ver Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire. Paris, PUF, 1971. . O texto "povos trobriandeses", com sua mitologia, seu potlach, suas crenças, será redefinido, transformado pela presença do comércio, do cristianismo, das autoridades coloniais. Da mesma forma eu diria que hoje o contexto mudou. A globalização é o elemento situacional prevalecente. Ela reordena nosso quadro de entendimento. O relativismo é uma visão que pressupõe a abstração das culturas de suas condições reais de existência, tem-se assim a ilusão de que cada uma delas seria inteiramente autocentrada, ou melhor, um texto. Na verdade, este estatuto, postulado pelo raciocínio metodológico, é negado pela história. No mundo dos homens as sociedades são relacionais mas não relativas. Suas fronteiras se entrelaçam e muitas vezes ameaçam o território vizinho. A discussão sobre a diversidade não se restringe portanto a um argumento lógico-filosófico, ela necessita ser contextualizada pois o sentido histórico das "diferenças" redefine o seu próprio sentido simbólico.

Dizer que a "diferença" é produzida socialmente nos permite distingui-la da idéia de pluralismo. A meu ver traduzir o panorama histórico-sociológico em termos políticos é enganoso, pois estaríamos pressupondo que cada uma dessas múltiplas unidades possuiria a mesma vali dade social. Dentro desta perspectiva a questão do poder se esvai. Não há hierarquia ou dominação. A rigor estaríamos aceitando implícitamente a tese de que o contexto histórico, ou não interferiria junto às diversidades, ou que em última instância ele próprio seria pluralista, democrático, o que é um contra-senso (ou melhor só tem sentido quando pensamos o mundo ideologicamente). Desenvolveu-se recentemente toda uma literatura que gira em torno da passagem do "homogêneo" para o "heterogêneo". Vamos encontrá-la entre os economistas, sociólogos, administradores de empresas e divulgadores científicos (penso nos escritos de Alvin Tofler)17 17 Alvin Toiler, The Third Wave. New York, Bantam Books, 1980. . A história é apreendida em termos dicotômicos como se estivéssemos no umbral de uma nova era, de uma "terceira onda". Para este tipo de perspectiva o passado teria sido uniforme, unívoco, privilegiado os "grandes relatos", em contrapartida o presente se caracterizaria pela disseminação das diferenças, pelos "pequenos relatos", pela multiplicidade das identidades. Aplicada ao mercado esta visão otimista assimila o homogêneo ao fordismo, à produção em série e de massa, e o heterogêneo, o diverso, ao capitalismo flexível deste final de século. O mundo atual seria múltiplo e plural. Diferenciação e pluralismo tornam-se assim termos intercambiáveis, e o que é mais grave, ambos se fundem no conceito de democracia.

Há nesta operação mental algo de ideológico. Trata-se primeiro de uma inverdade histórica. Não resta dúvida de que as sociedades modernas são mais diferenciadas do que as formações sociais anteriores, cidade-estado, civilizações, tribos indígenas. O processo de diferenciação, vinculado à divisão do trabalho, é intrínseco à modernidade. Esquece-se porém, do ponto de vista civilizatório, que a diversidade existente antes do século XV era certamente mais ampla da que hoje conhecemos. Inúmeras culturas, línguas, economias-mundo, economias regionais, costumes, desapareceram no movimento de expansão do colonialismo, do imperialismo, e da sociedade industrial. Tenho às vezes a impressão que o discurso sobre as diferenças lida com dificuldade com esses fatos. Diante da inexorabilidade da modernidade-mundo tem-se a necessidade de se imaginar o passado como se ele representasse o domínio da indiferenciação e da uniformidade. Talvez pudéssemos dizer do mundo contemporâneo o que Máxime Rodinson pondera para as sociedades islâmicas de alguns séculos atrás18 18 Maxime Rodinson, "La notion de minorité et l'Islam" in L'Islam: politique et croyance. Paris, Fayard, 1993. . As especificidades religiosas, no caso a convivência num mesmo território do islamismo com o judaísmo e o cristianismo, longe de participarem de um quadro de tolerância (como pretendem alguns historiadores), eram parte de um "pluralismo hierarquizado". Ou seja, a diversidade era ordenada segundo as relações de força ditadas pelo código islâmico. As idiossincrasias do mercado ou das identidades não existem enquanto "textos" autônomos, elas participam de um "pluralismo hierarquizado" administrado pelas instâncias dominantes no contexto da modernidade-mundo.

Como corolário do argumento anterior pode-se dizer que as "diferenças" também escondem relações de poder. Por exemplo o racismo: ele afirma a especificidade das raças para em seguida ordená-las segundo uma escala de autoridade e poder. Por isso é importante compreender os momentos em que o discurso sobre a diversidade oculta questões como a da desigualdade. Sobretudo quando nos movemos num universo no qual a assimetria entre países, classes sociais e etnias é insofismável. A imagem de que o mundo seria "multicultural", constituído por um conjunto de "vozes" (muito empregada pelos organismos internacionais tipo UNESCO), é insatisfatória. O lema da "unidade na diversidade" (hoje comum entre aqueles que falam da Comunidade Européia) pode ser um lenitivo quando enfrentamos problemas para os quais não temos ainda respostas mas sua validade sociológica é altamente duvidosa. Durante todo o século XX esta foi a palavra de ordem das elites latino-americanas. O mestiço, o sincrético (voltamos hoje, com o pós-modernismo, a uma apologia da mestiçagem), torna-se o símbolo da superação dos antagonismos sociais. Por isso um autor como Gilberto Freyre pode apreender a história brasileira em termos de "democracia racial". O país seria o produto do cruzamento harmônico, da aculturação de europeus, negros e índios19 19 Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941. . A diversidade étnica se exprimiria em uníssono na unidade nacional. O inconveniente é que essas "teorias", não necessariamente brasileiras (encontram-se espalhadas por toda América Latina), omitem justamente o contexto no qual se desenrola a interação cultural. Fundadas numa perspectiva culturalista elas retiram a "diferença" da história, reificando os indivíduos numa visão idílica da sociedade (ou seja, conveniente às elites dominantes)20 20 É interessante notar que a Antropologia culturalista norte-americana teve um papel importante no processo de construção das imagens nacionais. Isso não se passou apenas na América Latina, onde os estudos de Herskovitz, Robert Redfield, Margaret Mead e Ruth Benedict tiveram grande influência. O mesmo ocorreu no Japão. O culturalismo colocava à disposição um conjunto de conceitos apropriados para a elaboração da "diferença nacional". A esse respeito consultar Harumi Befu, "A Critique of the Group Model of Japanese Society", Social Analysis, vol. 5, n° 6, 1980. . A desigualdade pode ser então absorvida enquanto diferença, ela se anula diante da contribuição específica de cada uma das partes.

Dentro da perspectiva que estou desenvolvendo o mundo dificilmente poderia ser visto, na metáfora freqüentemente utilizada por vários autores, como um caleidoscópio. Instrumento no qual os fragmentos coloridos se combinam de maneira arbitrária em função do deslocamento do olho do observador. As interações entre as diversidades não são arbitrárias. Elas se organizam de acordo com as relações de forças manifestas nas situações históricas. Existem ordem e hierarquia. Se as diferenças são produzidas socialmente isso significa que à revelia de seus sentidos simbólicos elas serão marcadas pelos interesses e pelos conflitos definidos fora do âmbito de seu círculo interno. Dito de outra forma, a diversidade cultural é diferente e desigual porque as instâncias e as instituições que as constróem possuem distintas posições de poder e de legitimidade (países fortes x países fracos; transnacionais x governos nacionais; civilização "ocidental" x mundo islâmico; Estado nacional x grupos indígenas).

7. No contexto da modernidade-mundo uma instituição social adquiriu um peso desproporcional. Refiro-me ao mercado. Trata-se de uma instância não apenas econômica, como imaginam às vezes os economistas. Ele é também produtor de sentido. Longe de ser homogêneo, como pensavam os teóricos da comunicação de massa, o mercado cria diferenças e desigualdades21 21 Para uma discussão sobre o conceito de massa e sua inadequação para o entendimento da problemática da mundialização da cultura ver Renato Ortiz "Cultura, comunicação e massa" in Um Outro Território, op. cit. . Basta olhar o universo do consumo e dos estilos de vida. Os indivíduos, através dos objetos consumidos, exprimem e reafirmam suas posições de prestígio ou de subalternidade. O consumo requer disponibilidade financeira e capacidade de discernimento (há uma educação para o consumo). As marcas dos produtos não são meros rótulos ela agregam aos bens culturais um sobrevalor simbólico consubstanciado na griffe que o singulariza em relação à outras mercadorias. Em termos da sociologia de Pierre Bourdieu eu diria que o mercado é fonte de distinção social, reforçando a separação entre grupos e classes sociais22 22 Pierre Bourdieu, La Distinction. Paris, Ed. Minuit, 1979. . Redimensiona-se assim o que se entende por valor cultural — sobretudo quando estamos tratando das indús trias culturais. Como o mercado tem uma amplitude globalizada ele desloca as outras instâncias de legitimidade que conhecíamos, por exemplo, a grande arte ou as tradições populares. Estabelece-se portanto uma hierarquização entre as diversas produções culturais, assegurando àquelas que se ajustam à sua lógica um lugar de destaque. Por isso, qualquer discussão sobre a diversidade que deixe de lado este aspecto mercadológico acaba por ser inócua. Não que a cultura tenha se tornado uma mercadoria (não creio que este conceito se aplique, a não ser como metáfora, aos universos simbólicos). Entretanto, no conjunto das relações das forças mundializadas, devidos aos interesses em jogo, o mercado cultural adquiriu uma dimensão da qual não desfrutava até então. Para aqueles que discutem integração, sobretudo no marco de uma política de formação de blocos — Nafta, Mercosul, Comunidade Européia — é crucial que o debate ultrapasse os interesses econômicos imediatos. Sem o que o quadro da reflexão estaria atrofiado, circunscrito aos temas legitimados pelo status quo.

8. Num mundo globalizado a diversidade cultural deve ser pensada de um ponto de vista cosmopolita. Somente uma visão universalista pode valorizar realmente o que denominamos "diferença". Isso exige, queiramos ou não, relativizar a maneira como estávamos habituados a pensar a cultura nacional. Os ideais do Iluminismo europeu preconizavam que o universal se realizaria através da nação. Liberdade, igualdade e democracia foram princípios que nortearam a emergência das nações (digo isso mesmo sabendo que eles nunca se realizaram por inteiro). A própria luta anticolonialista se fundamentava nessas premissas. Para existirem enquanto povos livres foi necessário aos países colonizados romper com as metrópoles e constituírem-se em nações independentes. No entanto, a relação entre nação e universal se rompeu. A modernidade-mundo recoloca o problema em outras bases. Diante do surgimento de uma sociedade globalizada a nação perde a primazia em ordenar as relações sociais. Seu território é atravessado por forças que a transcendem. As formações nacionais constituem-se agora em diversidades (e não em ponto terminal da história como queriam os pensadores do século XIX), o que significa dizer que as culturas nacionais adquirirem um peso relativo. Passam a ser vistas no âmbito das outras diversidades existentes.

Sei que a história do universalismo encerra inúmeros percalços. Da razão instrumental, como dizia Adorno, ao etnocentrismo arrogante. Não tenho por esse presente/passado da "razão ocidental" nenhuma predileção ou nostalgia (associar a idéia de razão à de ocidentalidade é um tour de force eurocêntrico; alimenta-se, como se faz nos departamentos de Filosofia, o mito da razão grega como ponto de origem de todo pensamento racional, deixando-se de lado a riqueza das outras culturas: chinesa, árabe, indiana23 23 Ver Samin Amin L'Eurocentrisme. Paris, Anthropos, 1988. ). O universal não existe em abstrato, espécie de a-priori kantiano cuja presença seria imanente à mente humana. Foi necessário que as sociedades passassem por profundas transformações para que a universalidade do pensamento pudesse se exprimir. Uma delas foi o advento da escrita. Como sublinha Jack Goody ela possibilitou às culturas um grau de abstração e de transcendência que lhes permitiu escapar às imposições locais (dos deuses, poderes e crenças)24 24 Jack Goody, A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade. Lisboa, Edições 70, 1986. Consultar também Walter J. Ong, Oralidad y Escritura: tecnologias de la palabra. Ciudad de México, Fondo de Cultura Económica, 1987. . Por isso Weber considera como universais as religiões que se fundamentam em textos escritos: budismo, confucionismo, islamismo, bramanismo, cristianismo. Como as "diferenças", o que denominamos universal encontra-se sempre situado historicamente.

Neste sentido, também o debate sobre o universalismo não se reduz a uma postura teórica, a um jogo de argumentos em contraposição a outros (por exemplo, ao relativismo). As instituições sociais, sejam as religiões, os Estados, ou as transnacionais, carregam com elas elementos de universalidade (religiosa, política ou mercadológica). No entanto, mesmo admitindo que o universal seja um constructo histórico (muitos filósofos pensam de outra forma), não posso deixar de compreender que esta é a única via possível para que os ideais de liberdade e de democracia venham a se concretizar. Apenas uma perspectiva cosmopolita pode afirmar, por exemplo, o direito dos povos indígenas de possuírem suas terras. Ao reconhecê-los como diferentes e não iguais (o que é distinto de desiguais) eu lhe atribuo, por causa dos ideais anteriores, uma prerrogativa de direito. Não estou pois me referindo ao universal colonizador de nossos antepassados. Apenas uma perspectiva cosmopolita permite-me criticar a pretensão do mercado em se constituir como única universalidade possível. De nada adianta considerarmos a categoria "totalidade" como um anátema (um sinal de totalitarismo). Historicamente as "diferenças" só podem existir quando recortadas por forças integradoras que as englobam e as ultrapassam. O mercado, independente de o considerarmos como perversão ou realização do "projeto da modernidade", por sua dimensão planetária, transcende as fronteiras e os povos. Daí sua vocação para se constituir num "grande relato", isto é, um discurso no qual sua universalidade é conveniente apenas para os grandes grupos econômicos e financeiros. Por isso o debate sobre a diversidade cultural tem implicações políticas. Se quisermos escapar à retórica do discurso ingênuo, que se contenta em afirmar a existência das diferenças, esquecendo-se que elas se articulam segundo interesses diversos, é preciso reivindicar que se dê a elas os meios efetivos para se expressarem e se realizarem enquanto tal. Ideal político que não pode evidentemente se circunscrever ao horizonte deste ou daquele país, deste ou daquele movimento étnico, desta ou daquela "diferença". Ele vislumbra uma sociedade civil que ultrapassa o círculo do Estado-nação e que tem o mundo como cenário para o seu desdobramento.

  • * Uma versăo resumida deste texto foi apresentada no encontro "La Dimensión Cultural y Educativa dela Integración Regional: Situaciones y Perspectivas en el Mercosur", organizado pelo Centro de Formación para la Integración Regional, Montevideo, Uruguai, dezembro 1997. O presente texto foi também publicado Nueva Sociedad, n° 155/1998
  • 1 Penso em Theodore Levitt, teórico do marketing global. Ver "The globalization of markets", Harvard Busines Review, may-june 1983.
  • 2 Refiro-me ao texto de François Lyotard, O pós-moderno. Rio Janeiro, José Olympio, 1986;
  • e ao de Habermas, "A modernidade como projeto inacabado", Arte em Revista, n.° 5.
  • 3 Van Gennep, Os Ritos de Passagem, Petrópolis, Vozes, 1978.
  • 4 Por exemplo Ruth Benedict em seu livro Padrőes de Cultura, Lisboa, Livros do Brasil.
  • Visăo que a autora retoma em seu estudo sobre a sociedade japonesa. Ver The Crysanthemum and the Sword, Houghton Mifflin Company, 1989.
  • 5 Um texto representativo deste tipo de estratégia é o de Robert Redifield, The Folk Culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago Press, 1941.
  • 6 O. Spengler, La Decadencia de Occidente, Madrid, Espasa Calpe, 1958;
  • A. Toynbee publicou vários volumes a este respeito na série Estudio de la Historia. Madrid, Alianza Editorial
  • 7 I. Wallerstein, The Modern World System (2 vol.), N. York, Academic Press, 1976 e 1979.
  • 8 Jack Goody, The East in the West, Cambridge, Cambridge University Press, 1996;
  • Eric Wolf, Europe and the People Without History. Berkeley, University of California Press, 1982.
  • 9 Carlo Cipolla argumenta que o predomínio europeu na Ásia se limita a costa marítima. A conquista e o controle de vastos territórios no interior do continente se realiza mais tarde como -subproduto da Revolução Industrial. Ver Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Européia', 1400-1700. Lisboa, Gradiva, 1989.
  • 10 Consultar The Cambridge History of Japan, volumes 3 e 4 Cambridge, Cambridge University Press, 1990 e 1991.
  • 11 Consultar A. Miquel, L'Islam et la Civilisation. Paris, Colin, 1968;
  • Bernard Lewis, O Oriente Médio. Rio Janeiro, Zahar, 1996.
  • 12 Muito desta tradiçăo se prolonga por todo o século XIX. Ver Arno Mayer, A Força da Tradiçăo. S. Paulo, Cia das Letras, 1987.
  • 13 Octavio Ianni, A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilizaçăo Brasileira, 1993.
  • 14 Sobre a relaçăo entre o processo de mundializaçăo da cultura e a constituiçăo dos lugares ver Renato Ortiz, "Espaço e territorialidades" in Um Outro Território. S. Paulo, Olho d'Agua, 1996.
  • 15 A interpretaçăo do fundamentalismo proposta por Olivier Roy é sugestiva. Para o autor năo se trata de uma "fuga" da modernidade, mas de uma resposta ŕ modernizaçăo incompleta e desigual dos países árabes e uma crítica ŕs instâncias religiosas tradicionais (os umelás). Ver Genealogía del Islamismo. Barcelona, Ediciones Belletarra, 1996.
  • 16 Lembro que o conceito de "situação colonial" foi introduzido por Georges Balandier justamente com o intuito de escapar ao relativismo do culturalismo norte-americano. Ver Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire. Paris, PUF, 1971.
  • 17 Alvin Toiler, The Third Wave. New York, Bantam Books, 1980.
  • 18 Maxime Rodinson, "La notion de minorité et l'Islam" in L'Islam: politique et croyance. Paris, Fayard, 1993.
  • 19 Gilberto Freyre, Interpretaçăo do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941.
  • 20 É interessante notar que a Antropologia culturalista norte-americana teve um papel importante no processo de construçăo das imagens nacionais. Isso năo se passou apenas na América Latina, onde os estudos de Herskovitz, Robert Redfield, Margaret Mead e Ruth Benedict tiveram grande influęncia. O mesmo ocorreu no Japăo. O culturalismo colocava ŕ disposiçăo um conjunto de conceitos apropriados para a elaboraçăo da "diferença nacional". A esse respeito consultar Harumi Befu, "A Critique of the Group Model of Japanese Society", Social Analysis, vol. 5, n° 6, 1980.
  • 21 Para uma discussăo sobre o conceito de massa e sua inadequaçăo para o entendimento da problemática da mundializaçăo da cultura ver Renato Ortiz "Cultura, comunicaçăo e massa" in Um Outro Território, op. cit.
  • 22 Pierre Bourdieu, La Distinction. Paris, Ed. Minuit, 1979.
  • 23 Ver Samin Amin L'Eurocentrisme. Paris, Anthropos, 1988.
  • 24 Jack Goody, A Lógica da Escrita e a Organizaçăo da Sociedade. Lisboa, Ediçőes 70, 1986.
  • Consultar também Walter J. Ong, Oralidad y Escritura: tecnologias de la palabra. Ciudad de México, Fondo de Cultura Económica, 1987.
  • *
    Uma versão resumida deste texto foi apresentada no encontro "La Dimensión Cultural y Educativa dela Integración Regional: Situaciones y Perspectivas en el Mercosur", organizado pelo Centro de Formación para la Integración Regional, Montevideo, Uruguai, dezembro 1997. O presente texto foi também publicado
    Nueva Sociedad, n° 155/1998
  • 1
    Penso em Theodore Levitt, teórico do marketing global. Ver "The globalization of markets",
    Harvard Busines Review, may-june 1983.
  • 2
    Refiro-me ao texto de François Lyotard,
    O pós-moderno. Rio Janeiro, José Olympio, 1986; e ao de Habermas, "A modernidade como projeto inacabado",
    Arte em Revista, n.° 5.
  • 3
    Van Gennep,
    Os Ritos de Passagem, Petrópolis, Vozes, 1978.
  • 4
    Por exemplo Ruth Benedict em seu
    livro Padrões de Cultura, Lisboa, Livros do Brasil. Visão que a autora retoma em seu estudo sobre a sociedade japonesa. Ver
    The Crysanthemum and the Sword, Houghton Mifflin Company, 1989.
  • 5
    Um texto representativo deste tipo de estratégia é o de Robert Redifield,
    The Folk Culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago Press, 1941.
  • 6
    O. Spengler,
    La Decadencia de Occidente, Madrid, Espasa Calpe, 1958; A. Toynbee publicou vários volumes a este respeito na série
    Estudio de la Historia. Madrid, Alianza Editorial.
  • 7
    I. Wallerstein,
    The Modern World System (2 vol.), N. York, Academic Press, 1976 e 1979.
  • 8
    Jack Goody,
    The East in the West, Cambridge, Cambridge University Press, 1996; Eric Wolf,
    Europe and the People Without History. Berkeley, University of California Press, 1982.
  • 9
    Carlo Cipolla argumenta que o predomínio europeu na Ásia se limita a costa marítima. A conquista e o controle de vastos territórios no interior do continente se realiza mais tarde como -subproduto da Revolução Industrial. Ver
    Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Européia', 1400-1700. Lisboa, Gradiva, 1989.
  • 10
    Consultar
    The Cambridge History of Japan, volumes 3 e 4 Cambridge, Cambridge University Press, 1990 e 1991.
  • 11
    Consultar A. Miquel,
    L'Islam et la Civilisation. Paris, Colin, 1968; Bernard Lewis, O Oriente Médio. Rio Janeiro, Zahar, 1996.
  • 12
    Muito desta tradição se prolonga por todo o século XIX. Ver Arno Mayer,
    A Força da Tradição. S. Paulo, Cia das Letras, 1987.
  • 13
    Octavio Ianni,
    A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.
  • 14
    Sobre a relação entre o processo de mundialização da cultura e a constituição dos lugares ver Renato Ortiz, "Espaço e territorialidades" in
    Um Outro Território. S. Paulo, Olho d'Agua, 1996.
  • 15
    A interpretação do fundamentalismo proposta por Olivier Roy é sugestiva. Para o autor não se trata de uma "fuga" da modernidade, mas de uma resposta à modernização incompleta e desigual dos países árabes e uma crítica às instâncias religiosas tradicionais (os umelás). Ver
    Genealogía del Islamismo. Barcelona, Ediciones Belletarra, 1996.
  • 16
    Lembro que o conceito de "situação colonial" foi introduzido por Georges Balandier justamente com o intuito de escapar ao relativismo do culturalismo norte-americano. Ver
    Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire. Paris, PUF, 1971.
  • 17
    Alvin Toiler,
    The Third Wave. New York, Bantam Books, 1980.
  • 18
    Maxime Rodinson, "La notion de minorité et l'Islam" in
    L'Islam: politique et croyance. Paris, Fayard, 1993.
  • 19
    Gilberto Freyre,
    Interpretação do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941.
  • 20
    É interessante notar que a Antropologia culturalista norte-americana teve um papel importante no processo de construção das imagens nacionais. Isso não se passou apenas na América Latina, onde os estudos de Herskovitz, Robert Redfield, Margaret Mead e Ruth Benedict tiveram grande influência. O mesmo ocorreu no Japão. O culturalismo colocava à disposição um conjunto de conceitos apropriados para a elaboração da "diferença nacional". A esse respeito consultar Harumi Befu, "A Critique of the Group Model of Japanese Society",
    Social Analysis, vol. 5, n° 6, 1980.
  • 21
    Para uma discussão sobre o conceito de massa e sua inadequação para o entendimento da problemática da mundialização da cultura ver Renato Ortiz "Cultura, comunicação e massa" in
    Um Outro Território, op. cit.
  • 22
    Pierre Bourdieu,
    La Distinction. Paris, Ed. Minuit, 1979.
  • 23
    Ver Samin Amin
    L'Eurocentrisme. Paris, Anthropos, 1988.
  • 24
    Jack Goody,
    A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade. Lisboa, Edições 70, 1986. Consultar também Walter J. Ong,
    Oralidad y Escritura: tecnologias de la palabra. Ciudad de México, Fondo de Cultura Económica, 1987.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br