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Desenvolvimento sustentado e problemática ambiental

Sustained development and the environmental question

Resumos

O projeto político de institucionalização da problemática ambiental é reconstruído no contexto da Conferência do Rio-92. Examinam-se as negociações visando essa institucionalização e se analisa, por esse ângulo, a idéia de desenvolvimento sustentado.


The political project of the institutionalization of the environmental question is reconstructed against the background of the Rio-92 Conference. The negotiations towards that institutionalization are examined and the idea of sustained development is analysed from this angle.


EQÜIDADE COSMOPOLITA

Desenvolvimento sustentado e problemática ambiental

Sustained development and the environmental question

Marcos Nobre

Professor no IFCH da Unicamp e pesquisador do CEBRAP

RESUMO

O projeto político de institucionalização da problemática ambiental é reconstruído no contexto da Conferência do Rio-92. Examinam-se as negociações visando essa institucionalização e se analisa, por esse ângulo, a idéia de desenvolvimento sustentado.

ABSTRACT

The political project of the institutionalization of the environmental question is reconstructed against the background of the Rio-92 Conference. The negotiations towards that institutionalization are examined and the idea of sustained development is analysed from this angle.

No que diz respeito ao conceito de "desenvolvimento sustentável" (DS), o caminho de "explorar contradições", de apontar fraquezas e imprecisões, de pretender fornecer contornos mais nítidos à noção, parece-me não só já trilhado como infrutífero. Ao contrário, acredito ser mais produtivo levarmos a sério a caracterização do conceito feita pela própria Gro Harlem Brundtland ao apresentar à Assembléia Geral da ONU o relatório da comissão que coordenou1 1 Publicado, como se sabe, com o título de Nosso Futuro Comum, também conhecido como "Relatório Brundtland". : trata-se de um conceito "político", um "conceito amplo para o progresso econômico e social"2 2 Environmental Policy and Law, 17/6, 1987, p. 222. .

Podemos então avançar mais um pouco nessa direção. Na sua mesma apresentação de 1987 do Relatório da comissão que presidiu, Gro Brundtland enuncia os objetivos pretendidos com o conceito de DS e que resumo aqui sob a denominação de "projeto de institucionalização da problemática ambiental". Tal projeto tem duas faces mais visíveis, duas etapas estratégicas em vista da institucionalização buscada: elevar a problemática ambiental ao primeiro plano da agenda política internacional e fazer com que as preocupações ambientais penetrem a formulação e implementação de políticas públicas em todos os níveis nos Estados nacionais e nos órgãos multilaterais e de caráter supranacional.

No que diz respeito à primeira etapa do projeto, Gro Brundtland nos dizia em 1987 que "a idéia de sustentabilidade e as questões interligadas do meio ambiente e do desenvolvimento elevaram-se agora ao topo da agenda política internacional. Nossas preocupações comuns quanto ao futuro podem criar o impulso para uma transformação"3 3 Id, ib. . Mas, em 1987, estava ainda por realizar a segunda etapa do projeto: "Nosso relatório tem por objetivo aumentar o nível de conscientização dos governos, agências de auxilio e outras que se ocupam com o desenvolvimento quanto à necessidade de integrar considerações ambientais no planejamento e nas tomadas de decisão econômicas em todos os níveis"4 4 Id., ib. . É, portanto, no âmbito dessa "segunda etapa", penso, que devemos localizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento de 1992, a Rio-92.

É importante notar, entretanto, que a posição privilegiada que passou a ocupar desde então o conceito de DS no debate e na prática ambientais se deve justamente ao fato de ele ser "deliberadamente vago e inerentemente contraditório" (O'Riordan, 1993, p. 7, grifos meus). Neste sentido, as "contradições" e "imprecisões" já fartamente documentadas pela literatura sobre o tema não constituem a fraqueza, mas a força do conceito. Isto quer dizer também que o conceito de DS é, de saída, vazio; tem por pressuposto uma única idéia fundamental, uma idéia que delimita a arena no interior da qual aqueles que aceitam os seus termos travarão a disputa política em torno do sentido que deverá assumir o próprio conceito. Esta idéia é: desenvolvimento (no sentido de "crescimento econômico") e meio ambiente (no sentido de "estoque de recursos naturais" e de "capacidade de absorção do ecossistema humano") não são contraditórios.

Tais considerações preliminares nos permitem também interpretar retrospectivamente as tentativas anteriores de formulação de conceitos ambientais de caráter global (como o de "ecodesenvolvimento", por exemplo) como projetos de institucionalização que não conseguiram atingir seus objetivos principais. Duas outras conseqüências se seguem daí. Em primeiro lugar, podemos caracterizar o DS, por contraste com as tentativas anteriores, como uma estratégia exitosa de institucionalização da problemática ambiental, ainda que caiba ainda qualificar melhor qual seja esse "êxito", o que se fará a seguir a propósito da Rio-92. Em segundo lugar, pode-se já interpretar os debates e disputas políticas em torno da problemática ambiental do final da década de 1960 e de toda a década seguinte em vista desses projetos de institucionalização, vale dizer: o tornar-se internacional da problemática ambiental coincide com a sua formulação sob a forma de projetos de institucionalização, o que me parece ser, portanto, um viés e um ponto de partida necessários quando se analisa o debate ambiental do período5 5 Para um maior detalhamento de todas essas observações sobre a história do debate ambiental nas décadas de 1960 e 1970 e sobre o surgimento do conceito de DS, ver minhas contribuições ao Relatório Final de Pesquisa "Desenvolvimento capitalista e meio ambiente: um balanço crítico da bibliografia internacional e um estudo de caso no Brasil", convênio Ibama/Cebrap, 1999. .

INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Nesse sentido, o DS é para mim o nome da estratégia inicial adotada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) e seus aliados para institucionalizar a problemática ambiental, dando-lhe o estatuto de issue de primeiro time na agenda política internacional e procurando fazer dele referência central para políticas públicas em todos os níveis. Visto desta perspectiva, o DS significa, de um lado, a concretização de alianças em torno de um consenso mínimo a respeito da problemática ambiental (frente aos impasses típicos das discussões da década de 1970), e, de outro, a arguta tentativa de aproveitar um ambiente mundial de relativa distensão e de intensa mobilização social em torno das questões ecológicas (que se puderam observar na segunda metade da década de 1980) para levar a questão ambiental para o primeiro plano da agenda política internacional6 6 Note-se que a noção de "ecodesenvolvimento", por exemplo, propunha-se a desempenhar um papel semelhante. Não o conseguiu por várias razões, dentre as quais cabe destacar exatamente o ambiente internacional marcado pelo confronto entre as "superpotências" (como se dizia então). . Também não é casual que essa tentativa busque ancorar a institucionalização da problemática ambiental no sistema ONU: esta organização via na brecha aberta pela desagudização da Guerra Fria a oportunidade de se reformar e de se fortalecer. Como se sabe, nada mais "global" do que um problema ambiental; e nada mais "natural" do que uma instituição como a ONU para acolher o debate e o encaminhamento de soluções de problemas ambientais.

Tal tentativa do UNEP não apenas coincide com os desafios então (e até hoje) postos para a ONU como instituição, mas também parecia ser um dos mais frutíferos encaminhamentos na direção da nova con figuração do sistema de mecanismos internacionais de regulação. Mas tal processo tem por pressuposto exatamente a obsolescência dos organismos internacionais pós-1945, inadequação agravada pela derrocada do chamado "socialismo real" e pelas transformações econômicas, políticas e sociais abreviadas sob o rótulo "globalização". Neste contexto, exige-se da ONU o que ela não pode dar, ao mesmo tempo em que não se dá condições para que a ONU se torne o que se quer que ela seja. Como se expressou o então Secretário Geral das Nações Unidas, B. Boutrous Ghali, no Royal Institute of International Affairs, em julho de ONU sofre de excesso de credibilidade, e é chamada por vários governos a resolver conflitos complexos, para cuja solução não dispõe nem da autoridade política nem dos recursos necessários (apud Grubb et al., 45).

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em junho de 1992 no Rio de Janeiro, foi o ponto máximo deste projeto de institucionalização da problemática ambiental. Trata-se, portanto, de um importante ponto de inflexão, já que não apenas se institucionalizou a problemática ambiental, como também foram definidas as bases da institucionalização, vale dizer, foram estabelecidos os termos em que se deveria dar a institucionalização. Esta primeira definição das amarras institucionais não significa o fim da luta pela atribuição de sentido ao DS; mas indica a partir daquele momento não apenas onde se dá o conflito, mas igualmente quais os seus termos.

Neste sentido, é altamente significativo que a posição original do UNEP (dirigido por Mostafa Tolba) e do Secretário Geral da Conferência, Maurice Strong, tenha sido basicamente derrotada na Rio-1992. O UNEP, em aliança (precária, é verdade) com os países do Sul e com muitas ONGs importantes, tem a pretensão de colocar na pauta e de encaminhar o problema do endividamento dos países pobres, bem como regular as transferências de recursos no eixo Norte-Sul. Com isto, na perspectiva do UNEP e do Secretariado da Conferência, a questão ecológica estaria posta nos termos do desenvolvimento desigual do Norte e do Sul, terreno que já havia sido preparado com cautela pelo Relatório Brundtland. O mecanismo que deveria operacionalizar esta estratégia deveria provir fundamentalmente do incremento de fundos da Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA): "No relatório preparado para o Rio, o secretariado da UNCED sugere que a ODA deve mais que duplicada dos atuais U$ 55 bilhões por ano, devendo alcançar cerca de 0.7% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países industrializados. Também devem ser envidados esforços para reduzir as cargas impostas pelo pagamento da dívida e do serviço da dívida dos países em desenvolvimento"7 7 Environmental Policy and Law, 22/4, 1992, p. 217. . Com isto, os programas da família ONU teriam controle sobre a maior parte dos projetos.

Esta aliança com os países do Sul não impediu, entretanto, que estes tivessem suas próprias propostas, que expressavam claramente seus interesses de maior autonomia e poder de decisão quanto à implementação dos projetos. Nasceu daí, por exemplo, a proposta da constituição de um "Fundo Verde" para financiar a implementação da Agenda 21, apresentada pelo Grupo dos 77 (G-77)8 8 Embora conhecido como G-77, este grupo de países em desenvolvimento contava cerca de 130 "participantes". e pela China. Tratava-se da idéia de que "deveria ser estabelecido um mecanismo apropriado para permitir que o financiamento adicional para a implementação da Agenda 21 fosse separado dos compromissos assumidos pelos países em desenvolvimento quanto aos objetivos do âmbito da ODA. A direção de um tal fundo - o assim chamado ´Fundo Verde' - deveria incluir critérios que zelassem por sua transparência, pela sua natureza democrática, com direitos a voz iguais para todos, bem como pelo acesso e recebimento de fundos para todos os países em desenvolvimento, sem qualquer condicionante"9 9 Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217. .

Também muitas ONGs importantes estabeleceram alianças sobre pontos específicos tanto com a posição de Maurice Strong quanto do G-77, mas mantiveram posições cautelosas quanto aos objetivos gerais de institucionalização propostos. Suas preocupações concerniam diretamente às relações entre Estado e sociedade civil, relações assinaladas inclusive geograficamente, pela distância entre a sede da Conferência oficial e o Forum Global. Jean Chesneaux sublinha esta ordem de questões invocando as análises de Martin Khor, principal animador do Third World Network: "A questão chave posta por Martin Khor em seu balanço geral do Rio é a seguinte: é possível democratizar o sistema econômico Norte-Sul, incluindo as instituições financeiras herdadas da Segunda Guerra Mundial, o FMI, o Banco Mundial, o GATT? É preciso escapar da lógica de 1945, quer dizer, um dólar, um voto. Mas é igualmente impossível se satisfazer com a lógica das Nações Unidas (um Estado, um voto), porque isto significa dar aos Estados uma espécie de monopólio de organização da sociedade internacional e da democracia internacional. E como passar à lógica plenamente democrática, um homem, um voto, num mundo de 6 bilhões de seres humanos?"10 10 Jean Paul Déléage, "Bilan de Rio. Entretien avec Jean Chesneaux", Écologie Politique 3-4, 1992, pp. 16-17.

Todas essas diferentes concepções encontraram forte resistência por parte dos chamados "países doadores", que, durante as negociações da Agenda 21, apesar de sublinharem com insistência a urgente necessidade de recursos adicionais, "conseguiram apagar qualquer referência a tais recursos, argumentando que o desenvolvimento sustentável não poderia mais ser considerado separadamente do auxílio padrão de desenvolvimento"11 11 Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217. . Os "países doadores" não só não se comprometeram com a meta de 0,7% dos seus PIBs, como procuraram vincular toda transferência de recursos ao Global Environment Facility (GEF), um fundo criado em 1990 e composto pelo UNEP, pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) e pelo Banco Mundial. Com isto, diminuiu-se sensivelmente a força dos programas da família ONU e fortaleceu-se o papel a ser desempenhado pelo Banco Mundial. Falando em nome da Comunidade Européia, Carlos Borrego (Portugal) declarou que a "Comunidade Européia e seus Estados-Membros consideram que o GEF, adaptado às novas exigências, deve desempenhar um papel de liderança como o mecanismo multilateral de financiamento a fornecer recursos financeiros novos e adicionais por intermédio de uma mistura de financiamentos grant e concessional dos custos adicionais acordados para alcançar os benefícios ambientais globais acordados. O GEF deveria financiar programas e projetos dirigidos pelos países e consistentes com as prioridades nacionais indicadas para apoiar o desenvolvimento sustentável"12 12 Id. ib., p. 234. .

A posição dos "países doadores" na Rio-92 pode ser considerada amplamente vitoriosa se se tem por parâmetro os resultados institucionais e diplomáticos do evento. Vamos nos concentrar a partir de agora em mostrar o sentido desta "vitória" e as conseqüências disto para a problemática ambiental em geral e para o destino do DS em particular. Não sem antes considerar brevemente o contexto internacional em que se consolidou a questão ambiental e que informou os debates da própria Rio-92.

CONTEXTO

O ano de 1987 é de grande significado para a problemática ambiental. Marca não apenas a publicação de Nosso futuro comum, o chamado "Relatório Brundtland", mas é também o ano do estabelecimento do Protocolo de Montreal para proteção da camada de ozônio, sucessor da Convenção de Viena de 1985 e primeiro protocolo ambiental de caráter plenamente "global". Mas é igualmente significativo que 1987 marque a assinatura do Tratado de Armas Nucleares de Médio Alcance, um marco no declínio da Guerra Fria. Neste sentido, o espaço aberto pela distensão entre as superpotências vai ser rapidamente ocupado pela problemática ambiental, antes em grande parte restrita a ONGs e organizações intergovernamentais (cf. Thomas 1993, pp. 6-8). Um exemplo claro deste movimento é a bandeira da paz lançada por M. Gorbatchev, que continha um importante componente ambiental: "Somos todos passageiros a bordo de um barco, a Terra, e não podemos permitir que ele vá a pique. Não haverá uma segunda Arca de Noé (Gorbatchev 1988, p. 12; apud Thomas 1993, p. 8).

Esse processo de distensão, entretanto, tem um ponto de inflexão decisivo na derrocada do chamado "socialismo real", cujos efeitos mais imediatos são a mudança do eixo das relações internacionais de Leste-Oeste para Norte-Sul e um alargamento do processo dito de "globalização", que passa potencialmente a uma dimensão planetária. Com isto, a margem de manobra para as estratégias de desenvolvimento nacionais se estreitam, fato que torna ainda mais dramática a situação dos países do Sul, já gravados com os sérios problemas advindos da crise da dívida. Esta a razão pela qual a discussão na Rio-92 será essencialmente marcada pela divisão Norte-Sul e terá sua forma máxima de expressão na discussão sobre os mecanismos de financiamento e de transferência de tecnologia com vistas à implementação dos objetivos ambientais acordados pelos diversos países.

O resultado mais geral desse cruzamento de linhas de ação permite dizer que "a crise ambiental - que é evidentemente uma crise de desenvolvimento - será enfrentada com a manutenção das mesmas práticas e políticas que a causaram em primeiro lugar, ainda que talvez numa forma ligeiramente modificada. Os relatórios de impacto ambiental, por exemplo, farão pouco para amenizar o caráter destrutivo das políticas de ajuste estrutural do FMI/Banco Mundial que devastam sociedades e países em todo o mundo" (Thomas 1993, p. 2). Já vemos aqui, portanto, o significado profundo da discussão sobre os mecanismos de financiamento durante e após a Rio-92, e as implicações de uma definição do GEF como mecanismo por excelência de tal financiamento, já que este programa tem uma clara hegemonia do Banco Mundial. Por outro lado, como ainda veremos, este movimento indica que a problemática ambiental é institucionalizada como constraint secundário e passa rapidamente a um papel também secundário na "agenda política internacional".

Deste modo, o mesmo movimento de distensão internacional e de declínio da Guerra Fria que permitiu que a questão ambiental passasse ao primeiro plano da agenda impede que o tema mantenha esta sua posição de centralidade. Neste sentido, vale a pena ouvirmos a avaliação de Peter Tacher, figura central do UNEP e um dos diretores de programa que preparou a Conferência de Estocolmo em 1972: "Agora que o fim da Guerra Fria enfraqueceu a motivação política para a 'ajuda externa', uma nova base é requerida se se pretende que os níveis da ODA sejam mantidos ou aumentados (...). Entrementes, é mais difícil defender a ajuda externa, e grande parte dos países doadores acham cômodo fiar-se em programas bilaterais - nos quais eles têm completo controle - e naquelas instituições multilaterais nas quais o voto é pesado de acordo com as contribuições, principalmente as organizações de Bretton Woods e Trust Funds em que possam ser feitos arranjos especiais. Ao mesmo tempo em que a Agenda 21 apela para um aumento do financiamento para fortalecer a capacidade do sistema ONU no apoio às atividades acordadas, uma porção declinante da ODA está disponível para ser desembolsada por meio do sistema ONU" (Tacher 1992, p. 122).

O que, por sua vez, parece confirmar a hipótese geral de Steve Smith sobre a posição da questão ambiental na agenda política internacional: "a centralidade das questões ambientais pode depender da natureza de desenvolvimentos políticos e econômicos mais amplos. Posto de maneira crua, o meio ambiente pode ser mais importante durante períodos de menor tensão internacional, mas tem muito menos importância se a velha agenda 'de alta política' se reafirma. O destino das preocupações ambientais durante a Guerra do Golfo de 1990-1991 é um caso ilustrativo disto; quando a guerra está em causa, as preocupações ambientais não adquirem uma posição central" (Smith 1993, p. 38). Não há aí nenhuma pretensão de que as questões ambientais devam permanecer na periferia no debate político internacional, mas simplesmente a constatação de que esta foi e deverá ser a posição da problemática ambiental no arranjo político internacional.

É desta perspectiva, acredito, que devemos refletir sobre os objetivos ambiciosos postos para a Rio-92 pelo, digamos, "bloco" UNEP-Países do Sul-ONGs. Tratava-se nada menos do que realizar o movimento duplo e simultâneo de lançar as bases de uma nova ordem político-econômica mundial e de pôr a problemática ambiental no reto caminho, tudo isto sob o bordão "desenvolvimento sustentável". Não é de espantar, portanto, que mesmo os mais próximos envolvidos no processo tenham esperado muito mais do que realmente foi alcançado no Rio (cf. Grubb et al. 1993, p. 55). Mas, segundo Smith, devemos considerar a problemática ambiental em sua devida magnitude. Trata-se de uma questão entre várias outras no cenário político internacional, que não vai alterar os mecanismos existentes por mais que se ponha e se diga como "global": "A história da capacidade do sistema de Estados para lidar com outras questões de alcance mundial, notadamente as armas químicas e biológicas e a fome, não é de bom augúrio. Em resumo, é possível que o meio ambiente seja apenas a mais recente de uma série de questões, não parecendo ter melhores chances de transcender as limitações do sistema de Estados do que suas predecessoras históricas" (Smith 1993, p. 32).

DISPUTA POLÍTICA

No caso da Rio-92, os limites políticos estavam justamente nos dois elementos do "desenvolvimento sustentável" levantados pelo Secretariado da Conferência, pelos países do Sul e pelas ONGs: na relação entre meio ambiente e desenvolvimento e na relação entre desenvolvidos e não-desenvolvidos. Estes dois trade-off significam que colocar questões ambientais no centro do debate político internacional implicaria pôr em questão (Smith 1993, pp. 38-39): 1) a relação entre proteção ambiental e crescimento econômico nas economias do Norte, ou, visto de outro ângulo, a relação entre proteção ambiental e padrões de vida; 2) a relação Norte-Sul, em que, por exemplo, "o Norte produz algo como 90 por cento de todas as emissões de dióxido de carbono e só pode reabsorver 10 por cento delas. Mas o Sul produz algo como 10 por cento das emissões de dióxido de carbono e reabsorve 90 por cento delas" (Middleton et al. 1993, p. 5).

Este último problema, como já vimos foi uma questão pervasiva nos debates no Rio, sendo que o primeiro, ainda que sob fogo cerrado de ONGs importantes (Greenpeace à frente), recebeu pouca atenção. As divisões típicas do debate da década de 1970 ressurgem, ainda que em um novo patamar. Não se trata mais da ameaça (pois assim os países pobres interpretavam então a posição dos países ricos) de impedir o crescimento, mas de definir: 1) quem deve pagar pelo desenvolvimento sustentável?; 2) quem determina (e como determina) o que deva ser um desenvolvimento autenticamente sustentável?

À maneira de uma primeira aproximação, pode-se dizer que a problemática ambiental, apresentada sob o invólucro do DS, não é mais primariamente a da disputa política em torno do quê seja o DS. A questão primeira passa a ser: quem é o DS? Mais precisamente: dá-se agora que o processo de institucionalização da problemática ecológica - capitaneada pela noção-síntese do DS - determina previamente os termos em que será discutido, definido e operacionalizado o conceito de DS. Por outras palavras, a disputa política em torno do que seja o DS é de antemão limitada por uma disputa política que a precede e enforma: a da definição do espaço institucional legítimo de decisão.

Um tal projeto de institucionalização não é evidente nem "natural". Se por ele militam também os "países doadores", é porque com ele pretendem garantir para si o controle das discussões e decisões (embora o discurso oficial diga respeito apenas à eficiência na alocação dos recursos), é porque com ele pretendem neutralizar ao máximo a instabilidade do cenário político provocada pela ação de ONGs importantes (que, com a institucionalização, são chamadas a colaborar), é porque com ele pretendem responder às demandas e pressões dos diferentes públicos nacionais.

De outro lado, o projeto de institucionalização do UNEP e do Secretariado da Rio-92 tem em vista, como objetivo mais geral, um fortalecimento da ONU e, mais especificamente, uma ampliação do espaço institucional da issue ambiental no interior do sistema ONU, bastando para demonstrá-lo lembrar a proposta inicial de que a Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CSD) a ser criada fosse instituída como órgão da Assembléia Geral da ONU (e não, como ficou enfim estabelecido, como uma comissão no interior do Conselho Econômico e Social, o ECOSOC). Para tanto, os organizadores da Rio-92 colocaram como ponto central da agenda as relações Norte-Sul e a questão da transparência e da representatividade dos fóruns de discussão e de decisão sobre políticas ambientais, de modo a lançar com isto as bases de uma aliança com os países do Sul e com muitas ONGs.

A estratégia de institucionalização da problemática ambiental traçada pelo UNEP e pelo Secretariado da Conferência do Rio pode ser depreendida já na primeira sessão substantiva do Comitê Organizador (PrepCom 1) da Conferência, ocorrida em Nairobi em agosto de 1990. Nela, o Diretor-Executivo do UNEP, Mostafa Tolba, destacou as questões que ele acreditava serem as principais e que iriam exigir maior atenção por parte do Comitê, "se se pretende resolvê-las antes do Brasil: a) a necessidade dos países em desenvolvimento de recursos financeiros adicionais aos fluxos atuais, permitindo-lhes lidar com seus principais problemas ambientais; b) determinar metodologias concretas para integrar considerações ambientais em cada passo do planejamento do desenvolvimento econômico; e a questão gêmea da correção dos mecanismos de preço, de modo a que reflitam o custo do dano ao meio ambiente e aos recursos naturais no preço dos bens e serviços negociados no mercado"13 13 Environmental Policy and Law, 20/4-5, 1990, p. 129. .

Esta posição foi reiterada por Maurice Strong em 1992, quando afirmou que a "questão de recursos financeiros novos e adicionais que permitam aos países em desenvolvimento implementar a Agenda 21 é crucial e pervasiva. Esta, mais do que qualquer outra questão, irá claramente testar o grau de vontade política e de compromisso de todos os países para com os propósitos e objetivos fundamentais desta Cúpula da Terra"14 14 Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 243. . Neste sentido, também a proposta de que o GEF fosse o responsável por este financiamento é vista com suspeição pelo Secretário-Geral da Conferência, que faz eco às críticas dos países do Sul: dos "países em desenvolvimento é também de se esperar que continuem a pressionar por reformas substantivas no Global Environmental Facility, antes de o aceitarem como o principal canal de financiamento"15 15 Id., p. 205 .

Os países do Sul, de seu lado, já haviam formulado os princípios que iriam nortear sua ação na Rio-92 desde pelo menos um ano antes: "Duas considerações estratégicas devem guiar a posição de negociação do Sul (...): (a) assegurar que o Sul tenha o 'espaço ambiental' adequado para seu desenvolvimento futuro, e (b) reestruturar as relações econômicas globais de tal maneira que o Sul obtenha os recursos e tecnologia requeridos e acesso a mercados (...). Nas negociações da UNCED propriamente ditas, o Sul deve (...) insistir em fazer pender a balança na direção do desenvolvimento e das considerações da reforma econômica global, de modo a que seja oferecida ao Sul alguma esperança de ser capaz de seguir um caminho de desenvolvimento sustentável. As questões a respeito das quais o Sul deve receber compromissos firmes por parte do Norte são: (i) alívio do débito; (ii) aumento da ODA; (iii) (...) acesso à liquidez internacional; (iv) estabilização e aumento do preço de commodities; e (v) acesso a mercados no Norte" (South Centre 1991; apud Grubb et al. 1993, p. 26).

Os países do Sul estavam empenhados, portanto, em garantir o maior montante de recursos financeiros e tecnológicos e a maior liberdade possível na sua aplicação, de modo que acenavam simultaneamente para uma aliança com o projeto do UNEP, para uma posição cada vez mais independente (passando da idéia do incremento da ODA para a proposta do "Fundo Verde") e para uma negociação a mais vantajosa possível nos termos ditados pelos "países doadores", utilizando-se igualmente do potencial de pressão de muitas ONGs no sentido de obter concessões.

É o que podemos observar, por exemplo, no discurso do Ministro das Relações Exteriores de Bangladesh, Mostafizur Rahman. Inicialmente, o diagnóstico: "É natural esperar que aqueles que são primariamente responsáveis pela depleção e poluição dos recursos mundiais devam assumir uma responsabilidade correspondentemente maior nos custos do ajuste. Devem comprometer-se a mudar seus próprios padrões de produção e consumo para modelos de desenvolvimento favoráveis à ecologia. Seria errado se devesse parecer que a proteção ambiental se tenha tornado um instrumento para ditar políticas de desenvolvimento. Os países em desenvolvimento dificilmente poderão arcar com condicionamentos adicionais"16 16 Id., p. 227. . Encontramos aqui reunidos vários dos elementos característicos das posições do G-77: a relação Norte-Sul como ponto central da discussão, os mecanismos de "compensação ecológica" a serem exigidos pelos países do Sul dos países doadores, a recusa de um aumento da ingerência nas políticas de desenvolvimento nacionais dos países pobres e, por fim, a exigência de uma transformação dos padrões de desenvolvimento e consumo dos países ricos, uma exigência que era ponto central da pauta de ONGs importantes.

Do ponto de vista da implementação, o representante de Bangladesh desenha a seguinte proposta institucional: "É importante que os países em desenvolvimento devam desempenhar o papel devido na gestão dos novos recursos financeiros. É nossa crença que os recursos financeiros novos e adicionais seriam melhor administrados por um Fundo Verde separado, que deveria ser usado para implementar as atividades aprovadas por esta Conferência. O Fundo deveria ser gerido democratica mente, com voz igual para todos os membros no estabelecimento de prioridades, na identificação de projetos e na tomada de decisões sobre desembolsos. Enquanto o Global Environmental Facility (GEF) pode ser um mecanismo apropriado para financiar programas globais, ele não pode se aplicar ao problemas nacionais, para os quais um Fundo separado será essencial. As instituições de financiamento existentes, como o Banco Mundial e o FMI, também deveriam ser reformadas para que se encarreguem de suas responsabilidades ampliadas (...). Também o GEF necessita ser reformado, se se pretende que os países em desenvolvimento tenham a percepção de uma participação equânime, não apenas no corpo gestor que deveria se ocupar de policy making em sentido amplo, mas também da administração do dia-a-dia"17 17 Id., p. 227.

Vemos aqui que a proposta do Secretariado da Conferência sobre o incremento da ODA não é sequer mencionada. O que significa simplesmente que, se o G-77 não se opunha a ela, também considerava que a idéia de escapar ao controle dos países doadores para se submeter aos imperativos burocrático-institucionais da ONU não era a melhor solução. Deste modo, lançou-se a idéia do "Fundo Verde", ao mesmo tempo em que se deixava aberta a porta para negociar no âmbito do GEF, ainda que com severas restrições, restrições que se estendiam - como pudemos ler - ao Banco Mundial e mesmo ao FMI.

Do ponto de vista dos "países doadores", além dos problemas de administração decorrentes dos fenômenos já mencionados do chamado processo de globalização, da derrocada do socialismo de estado e da conseqüente mudança do eixo das relações internacionais, há que se considerar as circunstâncias específicas em que se deu a Conferência do Rio. Como sintetizam Grubb et al. (1993, p. 24), a Conferência teve lugar "num tempo de recessão global e com as negociações do GATT em um estado de animação suspensa perturbador. A administração Bush consistentemente manifestava pouca simpatia por questões de desenvolvimento ou de meio ambiente internacional, e, naquele momento, estava obsecada primariamente com questões domésticas, em vista das eleições presidenciais de 1992. A Comunidade Européia, que fazia ajustes para preencher o vácuo de liderança deixado pela posição americana, enveredou por dificuldades internas complexas no processo de integração e na conseqüente harmo nização de políticas de meio ambiente e de desenvolvimento. O Japão, talvez o único país que parecia disposto a oferecer aumentos substanciais em ajuda internacional, estava (e ainda está) procurando seu lugar no mundo, preocupado em se distanciar demais dos Estados Unidos ou de ser visto como uma fonte monetária internacional geral. O governo japonês também estava envolvido em dificuldades internas, e o Primeiro Ministro Miyazawa não pôde ir ao Rio".

Visto desta perspectiva, entende-se por que Michael Grubb e seus colaboradores avancem as seguintes razões de Realpolitik para entender as frustações de expectativas da Conferência do Rio. Em primeiro lugar, muitos países em desenvolvimento superestimaram o poder de barganha que pensaram lhes fosse dado pela problemática ambiental. Além disso, em muitos pontos importantes, as exigências dos países em desenvolvimento eram pouco claras e inespecíficas. Em terceiro lugar, os países em desenvolvimento não souberam avaliar devidamente as limitações políticas enfrentadas pelos países desenvolvidos e os requisitos políticos que poderiam tornar possíveis mudanças ou transferências em larga escala (Cf. Grubb et al. 1993, pp. 27-29). De outro lado, na avaliação de Middleton et al. (1993, p. 5), "o mundo em desenvolvimento foi pela primeira vez chamado a ser um parceiro em igualdade de condições em um desafio de dimensões mundiais precisamente porque a ênfase foi deslocada das necessidades dos pobres. Apresentando uma agenda ambiental, o Norte uma vez mais concentrou-se em seus próprios interesses e os chamou 'globalismo'".

Seja como for, penso que já é possível agora tentar uma síntese figurativa de alguns dos problemas centrais que viemos enfrentando. O quadro 1 foi retirado de G. Simonis (1993, p. 23):


Analisando este quadro, podemos retomar as discussões feitas anteriormente e tentar avançar na caracterização do "ponto de inflexão" representado pela Rio-92. Neste sentido, parece-me que é Andrew Jordan quem nos fornece as ferramentas de análise mais interessantes. Dois são os pontos que interessam mais diretamente. Em primeiro lugar, a Conferência do Rio consagrou uma separação das questões da mudança ambiental global e do desenvolvimento sustentável, que, embora relacionadas, foram tratadas no Rio como quase independentes (Jordan 1994, p. 23). Em segundo lugar, a problemática ambiental passou a se caracterizar pela divisão Norte-Sul.

No que diz respeito à caracterização da problemática ambiental pela divisão Norte-Sul, podemos lembrar os desenvolvimentos apresentados até agora neste artigo, recordando como a noção mesma de "desenvolvimento sustentável" significou um ponto de inflexão na discussão ambiental e estabeleceu novas bases para o debate e a implementação de políticas de desenvolvimento. A visão de Jordan destes resultados é a seguinte: "No início dos anos 1990, o debate meio ambiente-desenvolvimento amadureceu e poderia ser caracterizado como se segue. Para os países em desenvolvimento do Sul, a demanda imediata é pela mitigação da pobreza, pela segurança alimentar e por crescimento no sentido moderno. Se restrições ambientais se impõem por sobre tal caminho de crescimento modernizado, então o Sul sente dispor da justificação moral e política para solicitar alguma forma de compensação do Norte, seja acesso a nova tecnologia ou a recursos financeiros. Entrementes, no Norte, sustentabilidade é quase exclusivamente interpretada como uma forma pós-moderna de gestão ambiental que diz respeito à necessidade de introduzir as mudanças tecnológicas apropriadas para afastar a ameaça da mudança ambiental global, mas não questiona as premissas filosóficas e os valores fundamentais de uma sociedade moderna industrializada. Em muitos aspectos, muitos dos conflitos e contestações que surgiram no Rio estão relacionados, em parte, a estas diferentes interpretações do conceito de sustentabilidade"(Id., p. 24).

No que diz respeito ao outro ponto levantado por Jordan, o da separação das questões do desenvolvimento sustentável e dos riscos da mudança ambiental global, basta lembrar que a questão dos recursos foi tratada diferentemente no caso das convenções ambientais globais e do desenvolvimento sustentável (essencialmente, Agenda 21). Em um caso, o Secretariado da Conferência "supôs (de maneira um tanto arbitrária) que a implementação da Agenda 21 iria requerer a provisão de recursos 'novos e adicionais' substanciais. O Secretariado estimou os custos da implementação da Agenda 21 em U$ 600 bilhões por ano, dos quais o Norte precisaria contribuir com U$125 bilhões por ano, por meio de empréstimos grant e concessional adicionais - aproximadamente o dobro do patamar atual" (Id., pp. 27-28). A este respeito, já acompanhamos os resultados práticos negativos dessa estratégia. De outro lado, no caso das convenções ambientais globais sobre a mudança do clima e a biodiversidade, "a abordagem foi ligeiramente diversa. O Norte comprometeu-se a fornecer recursos 'novos e adicionais' suficientes para financiar os 'custos adicionais acordados' das medidas de responsabilidade dos países em desenvolvimento para que pudessem se desincumbir de suas responsabilidades para com as convenções" (Id., p. 28).

Encontramos aqui a consolidação de um importante elemento na história da problemática ambiental. Operou-se uma fragmentação desta problemática, de modo que as negociações que avançam são certamente "globais", mas dizem respeito a problemas específicos, cuja delimitação, aliás, é uma das primeiras dificuldades. No dizer de Grubb et al. (1993, p. 57), a história da política internacional ambiental (e outras políticas ainda) sugere que pressões gerais provenientes das instituições internacionais têm impacto modesto quando o que está em causa são os diferentes interesses nacionais. Com isto, concluem os autores, "medidas mais substantivas para enfrentar problemas emergirão caso a caso. As questões mais significativas levantadas na Agenda 21 poderão ser pinçadas uma a uma em convenções internacionais ulteriores, ou -como protocolos para convenções existentes, como desastres individuais, ou como o impacto cumulativo dos acontecimentos - mover problemas para o alto do espectro político".

Cabe lembrar aqui que a noção de DS se caracterizou sempre por demarcar uma arena de conflito que definia antes do mais os limites de uma disputa política e simbólica em torno dos destinos da questão ambiental na agenda internacional. É assim que, da perspectiva hegemônica até 1992, a noção de DS deveria servir de ponta de lança de um projeto de institucionalização da problemática ambiental capitaneado pelo UNEP. Tal projeto de institucionalização se consubstanciou desde a primeira reunião de organização da Conferência, realizada em 1990, e tinha como pontos fundamentais o ancoramento da política ambiental internacional nos órgãos da família ONU e o estabelecimento de mecanismos de transferências massivas de recursos financeiros e tecnológicos do Norte para o Sul.

RESULTADOS

Tal projeto, como vimos, sofreu uma severa derrota na Conferência do Rio. A institucionalização da problemática ambiental resultante da Rio-92 não foi a pretendida pelo UNEP e pelo Secretariado Geral da Conferência. Outros foram os resultados. Podemos tentar sintetizá-los da seguinte maneira. Em primeiro lugar, a tentativa de institucionalização no âmbito da ONU coincide com uma profunda crise das instituições de regulação internacionais do pós-guerra, de modo que tal projeto esbarrava na necessidade de reformulação da própria ONU, um processo ainda em curso e cujo fim não parece estar à vista. Em segundo lugar, o desaparecimento da Guerra Fria e o processo dito de globalização dificultam em muito a defesa de um aumento da "ajuda externa" por parte dos "países doadores", que, em vista dos arranjos internacionais precários, preferem se fiar "em programas bilaterais - nos quais têm completo controle - e naquelas instituições multilaterais nas quais o voto é pesado de acordo com as contribuições" (Tacher 1992, p. 122).

Como conseqüência disso, a discussão ambiental sofre uma refração em que, de um lado, consagra-se a separação entre negociações em torno de acordos ambientais globais e aquelas referentes à implementação de projetos de desenvolvimento sustentável de âmbito nacional (essencialmente: Agenda 21). A primeira observação a fazer a este respeito é certamente a de que a noção de DS perde o caráter "totalizante" que a marcou desde o seu nascimento, ou seja, a característica de ser um cruzamento de ações que caberia a ela concatenar e dirigir. Uma segunda observação a fazer diz respeito exatamente ao fato de que as negociações e acordos globais tendem a ser pontuais, não obstante o quão "globais" possam ser os temas em discussão. Por fim, cabe observar que as policies ambientais reunidas sob o rótulo geral de "desenvolvimento sustentável" passam a ser, no essencial, negociadas no plano internacional no âmbito do GEF. Neste sentido, mesmo aqueles projetos que não são implementados no âmbito do GEF tendem a respaldar suas formulações em padrões e critérios estabelecidos por aquele programa; vale dizer: o Banco Mundial passa a ter hegemonia na fixação de parâmetros de financiamento, auditoria e controle de projetos em escala planetária18 18 "Seria desprovido de sentido analisar a operação do GEF sem reconhecer o papel central desempenhado pelo Banco Mundial. O GEF foi estabelecido pelo Banco, por uma resolução do Banco adotada por seus Diretores Executivos. Este acordo foi então endossado pelas outras agências de implementação. O Facility é administrado pelo Banco de acordo com seus Artigos e seus Estatutos; o Banco preside as reuniões dos doadores; fornece a parte mais importante dos recursos de secretaria e é responsável pela aprovação dos desembolsos da maior parte dos fundos" (Jordan 1994, pp. 29-30). Nesta passagem, o artigo de Jordan se vale do trabalho de I. Shihata, The World Bank in a Changing World. Martinus Nijhoff, Boston, 1992. São três as "agências de implementação" (implementing agencies) do GEF a que se refere Jordan: Banco Mundial, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP). Note-se que a mesma avaliação foi também apresentada pelo Greenpeace no calor da hora, cf. Vorfelder 1992, pp. 48-49. . Note-se que tal hegemonia significa também a prevalência da teoria econômica ambiental de extração neoclássica na determinação do que seja o desenvolvimento sustentável19 19 "O Banco está sob a influência de três grupos de atores sociais ou profissionais que interagem: economistas, engenheiros e ambientalistas. Não cabe dúvida de que o Banco é dominado por economistas. Este fenômeno é visto em particular nas divisões operacionais e de políticas (...). A maneira de pensar dos economistas e suas percepções do desenvolvimento e dos problemas ambientais são largamente influenciadas pela economia neoclássica" (GAN 1993, p. 202). .

Tais observações não significam, evidentemente, que a luta pela atribuição de sentido à noção inicialmente "vazia" de DS se tenha encerrado. Tome-se como exemplo disto a "primeira sessão substantiva" (14-25/06/1993) da - então - recém-criada Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CSD). No item "Compromissos financeiros iniciais, fluxos financeiros e arranjos", a Comissão observou que "apesar dos objetivos acordados refletidos no capítulo 33 da Agenda 21, respeitantes à necessidade de que os recursos financeiros sejam adequados, previsíveis, novos e adicionais, tais objetivos ainda não foram cumpridos. Por conseguinte, a Comissão enfatizou a necessidade da implementação efetiva e rápida de todos os compromissos contidos no capítulo 33 da Agenda 21, incluindo aqueles relativos à meta da ONU de 0,7% do PIB para a Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA)"20 20 Environmental Policy and Law 23/5, 1993, p. 227. . Observamos aqui que não apenas a Comissão toma a Agenda 21 como um "compromisso" (quando ela é apenas - do ponto de vista formal - uma declaração de intenções que não obriga), como retoma a proposta ("derrotada" na Conferência) de um incremento da ODA em 0,7% do PIB dos "países doadores".

Vemos, portanto, que a disputa pela definição - material, concreta, mas também teórica - do que seja o DS prossegue. Ocorre que os termos em que se dá a disputa se alteraram sobremaneira depois da Conferência do Rio. Trata-se agora de uma disputa no interior de instituições determinadas, uma disputa, portanto, com regras e limitações de poder bem definidas. Deste modo, os recursos extra- ou inter-institucionais de que se possa dispor têm de ser convertidos em poder institucional, no âmbito das instituições em causa a cada vez. O que significa, portanto, que a pesquisa sobre a problemática ambiental - tendo o DS como carro-chefe - desloca-se para uma investigação de instituições e policies específicas. Mas significa também, por exemplo, que as diversas ONGs ambientais são chamadas cada vez mais a colaborar na implementação de programas e a desempenhar um papel de "sintonia fina" das decisões institucionais, tendendo, portanto, cada vez mais a se especializar e/ou a manter divisões especializadas em suas estruturas organizativas. O que significa ainda que o debate público em torno da sustentabilidade tende a ser enformado por e dirigido a instituições com poder de decisão sobre a implementação de programas ambientais. Estas conclusões me parecem decisivas para se estabelecer qualquer pauta de investigação sobre problemas ambientais tais como se configuram no momento atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VORFELDER, J. - "GEF - Die Verwalter des Elends". Greenpeace Magazin, no. 3, 1992

* Este texto se insere no contexto muito mais amplo de uma pesquisa recém-concluída no Cebrap em convênio com o Ibama.

  • BRUNDTLAND, G. H. - "Sustainable Development: The Challenges Ahead". The European Journal of Development Research, vol. 3, no. 1, 1991
  • DÉLÉAGE, J. P. 1992 - "Bilan de Rio. Entretien avec Jean Chesneaux". Écologie Politique, 3-4 Environmental Policy and Law 1987, 17/6; 1990,20/4-5; 1992,22/4; 1993,23/5
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  • SIMONIS, G. - "Der Erdgipfel von Rio - Versuch einer kritischen Verortung". Peripherie 51/52, 1993
  • SMITH, S. - "Environment on the Periphery of International Relations: An Explanation". Environmental Politics, vol. 2, no. 4, 1993
  • SOUTH CENTRE - Environment and Development: Towards a Common Strategy of the South in the UNCED Negotiations and Beyond. Genebra/Dar-es-Salaam, novembro de 1991
  • TACHER, P. S. - "Evaluating the 1992 Earth Summit - an Institutional Perspective". Security Dialogue, vol. 23, no. 3, 1992  
  • THOMAS, C. - "Beyond UNCED: An Introduction". Environmental Politics, vol. 2, no. 4, 1993
  • VORFELDER, J. - "GEF - Die Verwalter des Elends". Greenpeace Magazin, no. 3, 1992
  • 2Environmental Policy and Law, 17/6, 1987, p. 222.
  • 5 Para um maior detalhamento de todas essas observações sobre a história do debate ambiental nas décadas de 1960 e 1970 e sobre o surgimento do conceito de DS, ver minhas contribuições ao Relatório Final de Pesquisa "Desenvolvimento capitalista e meio ambiente: um balanço crítico da bibliografia internacional e um estudo de caso no Brasil", convênio Ibama/Cebrap, 1999.
  • 7Environmental Policy and Law, 22/4, 1992, p. 217.
  • 9Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217.
  • 10 Jean Paul Déléage, "Bilan de Rio. Entretien avec Jean Chesneaux", Écologie Politique 3-4, 1992, pp. 16-17.
  • 11 Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217.
  • 13Environmental Policy and Law, 20/4-5, 1990, p. 129.
  • 14Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 243.
  • 18 "Seria desprovido de sentido analisar a operaçăo do GEF sem reconhecer o papel central desempenhado pelo Banco Mundial. O GEF foi estabelecido pelo Banco, por uma resoluçăo do Banco adotada por seus Diretores Executivos. Este acordo foi entăo endossado pelas outras agęncias de implementaçăo. O Facility é administrado pelo Banco de acordo com seus Artigos e seus Estatutos; o Banco preside as reuniőes dos doadores; fornece a parte mais importante dos recursos de secretaria e é responsável pela aprovaçăo dos desembolsos da maior parte dos fundos" (Jordan 1994, pp. 29-30). Nesta passagem, o artigo de Jordan se vale do trabalho de I. Shihata, The World Bank in a Changing World. Martinus Nijhoff, Boston, 1992.
  • 20Environmental Policy and Law 23/5, 1993, p. 227.
  • 1
    Publicado, como se sabe, com o título de
    Nosso Futuro Comum, também conhecido como "Relatório Brundtland".
  • 2
    Environmental Policy and Law, 17/6, 1987, p. 222.
  • 3
    Id, ib.
  • 4
    Id., ib.
  • 5
    Para um maior detalhamento de todas essas observações sobre a história do debate ambiental nas décadas de 1960 e 1970 e sobre o surgimento do conceito de DS, ver minhas contribuições ao Relatório Final de Pesquisa "Desenvolvimento capitalista e meio ambiente: um balanço crítico da bibliografia internacional e um estudo de caso no Brasil", convênio Ibama/Cebrap, 1999.
  • 6
    Note-se que a noção de "ecodesenvolvimento", por exemplo, propunha-se a desempenhar um papel semelhante. Não o conseguiu por várias razões, dentre as quais cabe destacar exatamente o ambiente internacional marcado pelo confronto entre as "superpotências" (como se dizia então).
  • 7
    Environmental Policy and Law, 22/4, 1992, p. 217.
  • 8
    Embora conhecido como G-77, este grupo de países em desenvolvimento contava cerca de 130 "participantes".
  • 9
    Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217.
  • 10
    Jean Paul Déléage, "Bilan de Rio. Entretien avec Jean Chesneaux",
    Écologie Politique 3-4, 1992, pp. 16-17.
  • 11
    Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 217.
  • 12
    Id. ib., p. 234.
  • 13
    Environmental Policy and Law, 20/4-5, 1990, p. 129.
  • 14
    Environmental Policy and Law 22/4, 1992, p. 243.
  • 15
    Id., p. 205
  • 16
    Id., p. 227.
  • 17
    Id., p. 227.
  • 18
    "Seria desprovido de sentido analisar a operação do GEF sem reconhecer o papel central desempenhado pelo Banco Mundial. O GEF foi estabelecido pelo Banco, por uma resolução do Banco adotada por seus Diretores Executivos. Este acordo foi então endossado pelas outras agências de implementação. O Facility é administrado pelo Banco de acordo com seus Artigos e seus Estatutos; o Banco preside as reuniões dos doadores; fornece a parte mais importante dos recursos de secretaria e é responsável pela aprovação dos desembolsos da maior parte dos fundos" (Jordan 1994, pp. 29-30). Nesta passagem, o artigo de Jordan se vale do trabalho de I. Shihata,
    The World Bank in a Changing World. Martinus Nijhoff, Boston, 1992. São três as "agências de implementação"
    (implementing agencies) do GEF a que se refere Jordan: Banco Mundial, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP). Note-se que a mesma avaliação foi também apresentada pelo Greenpeace no calor da hora, cf. Vorfelder 1992, pp. 48-49.
  • 19
    "O Banco está sob a influência de três grupos de atores sociais ou profissionais que interagem: economistas, engenheiros e ambientalistas. Não cabe dúvida de que o Banco é dominado por economistas. Este fenômeno é visto em particular nas divisões operacionais e de políticas (...). A maneira de pensar dos economistas e suas percepções do desenvolvimento e dos problemas ambientais são largamente influenciadas pela economia neoclássica" (GAN 1993, p. 202).
  • 20
    Environmental Policy and Law 23/5, 1993, p. 227.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
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