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Harbermas e a questão do trabalho social

Habermas and the question of social work

Resumos

Tomando a questão do trabalho como referência básica, analisa-se a obra de Habermas conforme três aspectos básicos: a relação entre sua obra e a de Marx; a relação entre sua teoria e a Teoria Crítica da Sociedade; a crítica ao conceito habermasiano de sociedade. Argumenta-se que, ao colocar-se fora da esfera do trabalho, a análise de Habermas permanece prisioneira da forma histórica particular do trabalho no capitalismo.


Taking the question of work as a basic reference the work of Habermas is examined according to three basic features: the relationship between his work and that of Marx; the relationship between his theory and the Critical Theory of Society; the critique of the Habermasian concept of society. It is argued that by putting itself outside the domain of work the analysis proposed by Habermas remains imprisoned in the historically particular capitalist form of work.


IDÉIAS E DEBATES

Harbermas e a questão do trabalho social

Habermas and the question of social work

Wolfgang Leo Maar

Professor de Filosofia na Universidade Federal de São Carlos

RESUMO

Tomando a questão do trabalho como referência básica, analisa-se a obra de Habermas conforme três aspectos básicos: a relação entre sua obra e a de Marx; a relação entre sua teoria e a Teoria Crítica da Sociedade; a crítica ao conceito habermasiano de sociedade. Argumenta-se que, ao colocar-se fora da esfera do trabalho, a análise de Habermas permanece prisioneira da forma histórica particular do trabalho no capitalismo.

ABSTRACT

Taking the question of work as a basic reference the work of Habermas is examined according to three basic features: the relationship between his work and that of Marx; the relationship between his theory and the Critical Theory of Society; the critique of the Habermasian concept of society. It is argued that by putting itself outside the domain of work the analysis proposed by Habermas remains imprisoned in the historically particular capitalist form of work.

"A principal deficiência de todo materialismo até hoje (...) está em apreender a realidade efetiva, a realidade dos sentidos unicamente sob a forma de objeto ou representação; e não como atividade humana sensível, praxis (...); não subjetivamente. Por isto o lado ativo seria desenvolvido de modo abstrato e oposto ao materialismo, pelo idealismo — que naturalmente não conhece a atividade real efetiva, conforme a realidade dos sentidos."

Marx, Primeira tese sobre Feuerbach

TESES SOBRE HABERMAS

1. A subscrição habermasiana da tese relativa ao 'fim da sociedade do trabalho' tem como referência efetiva a consolidação da configuração da sociedade segundo uma forma social do trabalho social: reafirmar o trabalho nas condições capitalistas de produção vigentes.

2. A insistência em se apresentar como herdeiro e continuador da vertente 'crítica', articulada ao endosso do enunciado do fim da sociedade do trabalho, implica em subtrair o plano do 'trabalho', ou a esfera da produção, do âmbito de abrangência da crítica. Isto é: significa a naturalização da lógica da produção existente como 'fatalidade natural', a ser necessariamente levada em conta no curso do processo histórico, tal como a lei da gravitação universal ... Eis a função ideológica em sua forma presente.

3. Por outro lado, em sua obra - como transparece em especial na Teoria do Agir Comunicativo - Habermas procura redefinir o espaço para a crítica fora da abrangência da esfera do trabalho social, mais especificamentre no que seria segundo aquele autor um plano da formação discursiva da vontade, mantendo contudo o ponto de vista do trabalho presente na 'crítica' de modo cifrado.

Habermas efetiva um sucedâneo de crítica no plano da aparência que torna mais difícil a própria crítica efetiva, do que quando esta era contrariada pelas forças direta e imediatamente provedoras da ordem existente.

4. A pretensa crítica assume uma. função afirmativa. Cria-se no plano da interação a ilusão da crítica - pois seu pressuposto é justamente não se referir ao trabalho enquanto produção - mas o próprio plano da interação é mediatizado socio-historicamente nos termos da produção material; deste modo o que parece crítica efetivamente revela sua função afirmativa.

Por esta via transversa e ao contrário do que manifesta — uma vez que se proclama um crítico do capitalismo que atualiza os ideais de emancipação — se revela que o referente positivo da proposta da teoria social de Habermas é o modo de produção capitalista. Seus "ganhos de diferenciação (leia-se: Estadosocial -WLM) precisam ser reconhecidos, embora sem recusar ou tomar como naturais os custos que a economia capitalista representa". (Habermas 1995, p. 145)

5. Também nas formas da comunicação, formalistas e abstratas, de seu 'paradigma da comunicação' e de sua ética do discurso, se mantém de modo cifrado a concepção produtivista do trabalho caracterizado em sua forma social vigente. Assim Habermas só aparentemente critica o trabalho, mas efetivamente o universaliza inclusive no âmbito da interação e da sua apreensão da comunicação. Afinal, em sua visão a resposta à pergunta 'qual é a sociedade da comunicação livre?' é: a "duradoura sociedade do bem-estar" (Habermas 1981, vol.2, p. 505). A sociedade do bem-estar como sociedade do consumo de massas é efetivamente a sociedade apreendida nos termos formais abstratos da interação, ou seja, à maneira da equivalência abstrata e da generalidade correspondentes ao trabalho abstrato, mercantilizado e mercantilizante.

6. Contra a posição de Habermas, não há que se insistir numa defesa do 'trabalho', mas sim numa superação realmente efetiva da forma determinada e historicamente específica da produção social que procura se perpetuar nos termos do capital e da forma social que nela assume o trabalho.

A própria sociedade precisa ser apreendida tal como deformada nos termos da reprodução das relações sociais de produção capitalistas e não como trajeto de formação de uma intersubjetividade em processo de diferenciação e individuação, afetada pela intervenção sistêmica configurada na sociedade do trabalho, e a ser emancipada dos entraves desta colonização pelo dinheiro e pelo poder.

7. Em suma: Habermas oferece uma interpretação de Marx no que se refere ao que seria a apreensão do trabalho na perspectiva marxiana. Esta interpretação de Marx será a seguir confrontada com o que seria a contribuição de Marx em sua concepção do trabalho social. Como conclusão cabe apontar ao que seria a função ideológica desta interpretação habermasiana: consolidação da formação social vigente, imunizando-a em sua materialidade sócio-histórica pela reconstrução comunicativo-cultural do âmbito da crítica.

TRÊS ASPECTOS BÁSICOS

A obra de Habermas inegavelmente confere destaque à discussão do trabalho. O tema se apresenta de modo diverso no decorrer do seu trajeto intelectual, acompanhando-o porém de modo permanente como referência central; contudo a sua apreensão adequada no contexto da obra demanda uma perspectiva de totalidade.Trabalho' e 'interação' -bem como, posteriormente à Teoria da Ação Comunicativa, 'paradigma da produção' e 'paradigma da comunicação' - correspondem a concepções distintas de 'racionalidade'. Com efeito, para Habermas é a opção por uma concepção de racionalidade que determina sua focalização do trabalho. Se não for levada em devida conta esta ordem não se poderá examinar de maneira apropriada a localização da questão do trabalho na obra habermasiana.

Para Habermas o efetivamente substantivo é dispor de uma concepção de racionalidade em que a reprodução material do modo de produção capitalista pode ser apreendida como uma racionalização progressiva, como uma diferenciação estrutural do mundo da vida e não basicamente como uma reificação regressiva nos moldes da alienação atinente à racionalidade baseada nas relações de produção, em suma, nos moldes do trabalho.

Importaria distinguir entre reificação e diferenciação, entre alienação e individuação nos fenômenos sociais da sociedade moderna. O principal demérito da obra marxiana neste sentido estaria em impossibilitar uma tal distinção, exatamente por sustentar-se no paradigma da produção para sua concepção de racionalidade.

A tese habermasiana acima assinalada implica um importante corolário: a história é apreendida por Habermas como um processo de emancipação do homem como ser genérico. Em vista deste corolário, cabe destacar duas importantes conclusões:

Em primeiro lugar, a focalização habermasiana corresponde aos moldes de uma filosofia da história - com a correspondente retomada do prisma da formação (Habermas, 1984, p. 483). Em conseqüência, impõe-se a necessidade da crítica à formação nos termos efetivados por Marx mediante a sua distinção entre realização e alienação, tal como posta na famosa distinção entre estranhamento objetivador e estranhamento alienante no trabalho social. Esta distinção sustenta o edifico da crítica de Marx a Hegel, mas agora seria utilizada por Habermas em sentido inverso: para recompor a perspectiva 'formadora' - diferenciação, individuação - a partir do trabalho social alienado.

Em segundo lugar, a perspectiva de Habermas se contrapõe radicalmente ao enfoque da Teoria Crítica da Sociedade e sua concepção da história como resultante da luta de classes no âmbito das relações sociais de produção material. Por esta via evidencia-se o peso distinto que reveste o trabalho em Habermas e Marx ou Adorno, por exemplo. Para estes últimos há uma presença determinante embora muitas vezes cifrada do trabalho social em todas as esferas da formação social, caracterizada pela conversão de trabalho concreto em mercadorias abstratas. Por outro lado, em Habermas o trabalho se identifica a uma ação instrumental estratégica no âmbito das formações sociais em sua trajetória histórica, onde se verifica uma perturbação das formas de vida tradicionais mas também uma modernização, uma potencialização positiva de condições de vida pela organização e administração públicas facultadas pelo trabalho conforme relações de produção capitalistas.

Em uma entrevista não tão recente mas que certamente permanece elucidativa do pensamento de Habermas, o anteriormente referido se expõe com clareza:

Certamente os fundamentos teóricos da crítica do capitalismo de Marx estão superados. Mas hoje necessitamos mais do que nunca de uma análise fria dos efeitos simultaneamente libertários e desenraizadores, produtivos e destrutivos de nossa organização econômica sobre o mundo da vida. Hoje as conquistas sociais de mais de cem anos de movimento operário europeu devem ser colocadas em disponibilidade para adequar os postos de trabalho nativos ao nível dos custos do trabalho assalariado dos países de baixa remuneração do trabalho" (Habermas 1995, p.92)

Esta citação é sumamente interessante por envolver o problema primordial da perspectiva habermasiana, a saber a interrelação, que lhe soa inexplicável, entre modernização e regressão. Inexplicável porque a sua apreensão da formação social precede - em termos teóricos - a sua apreensão do trabalho, ou melhor, da produção social. Por isto, antes de mais nada "a crítica do capitalismo de Marx" estaria superada, para poder distinguir a sociedade européia diferenciada e moderna, de "conquistas sociais" e a sociedade não diferenciada, do trabalho "de baixa remuneração". Porém, feita esta distinção - que corresponde ao telos emancipatório de sua filosofia da história - como explicar a enfermidade, a patologia que é esta colonização representada pela adequação, pela subordinação das conquistas sociais, da realização objetiva à alienação, aos baixos custos do trabalho assalariado? Ou seja: por que as conquistas devem ser postas em disponibilidade?

O enigma se soluciona na medida em que - conforme a perspectiva de Marx não desfigurada pela leitura habermasiana a ser seguida neste estudo - se apreende tanto a sociedade européia do Welfare State quanto as formações capitalistas periférico-retardatárias nos termos da produção social, como formas sociais determinadas da sociedade capitalista em seu processo de totalização.

Em resumo, três aspectos merecem destaque:

O primeiro aspecto refere-se à relação com Marx; a rigor Habermas não desenvolve uma crítica do pensamento marxiano no que este se refere à questão do trabalho, mas propõe, isto sim, uma interpretação do pensamento de Marx - apreendendo o trabalho estritamente como trabalho concreto nos termos sócio-históricos do atual modo de produção, uma forma social determinada do trabalho social.

O segundo aspecto diz respeito à sua própria apreensão não dialética da Teoria Crítica: o mundo da vida sofre os efeitos produtivos e destrutivos da organização econômica, caracterizando a relação de exterioridade entre ambas as esferas, embora a formação do mundo da vida se constitua como referência.

O terceiro aspecto coloca em cena o conceito habermasiano de sociedade, pressuposta como formação social determinada e não nos termos de um modo de produção alienante e deformador em sua efetividade formativa. Assim, por exemplo, as conquistas sociais se referem à sociedade européia, por exemplo, e a baixa remuneração a países do capitalismo periférico. Esta abordagem permite a Habermas vincular ao trabalho individuações e diferenciações - no âmbito da sociedade em que o movimento operário gerou conquistas - que nos países periféricos se revelam momentos de reifícação e alienação.

O objetivo do presente estudo consiste em apresentar em primeiro lugar em breves traços a acima caracterizada abordagem da questão do trabalho conforme o prisma habermasiano.

Num segundo momento, em contraposição a esta interpretação redutora se apresentará a questão do trabalho na obra marxiana por uma perspectiva que se pretende mais calcada na conceituação marxiana. Isto é, trabalho produz: 1. mais-valia; 2. a sociedade em sua totalidade, inclusive os indivíduos como seres sociais.

Por fim, à guisa de conclusão, há uma tentativa de explicitação da configuração social determinada a que corresponde a perspectiva de Habermas enquanto nova função ideológica legitimadora. Aqui a meta é examinar a contribuição habermasiana à luz das suas consequências no próprio processo de reprodução da sociedade. Não se trata de criticar a posição de Habermas mas apenas de mostrar como ela se insere numa função de legitimação conservadora.

A DUPLA REDUÇÃO DO TRABALHO SOCIAL

Para Habermas a substituição do 'paradigma da produção' pelo 'paradigma da comunicação' seria imperativa como solução dos impasses verificados no projeto crítico. Ao denunciar uma ideologização totalizante, a Teoria Crítica incorreria na situação paradoxal de também ela subordinar-se ideologicamente, estando portanto desprovida das condições necessárias para uma apreensão teórica (Habermas 1981, vol.l, p. 512).

Nesse contexto se localiza o nervo da proposição habermasiana: aqui ele confirmaria sua apreensão da 'teoria' avessa à dialética. Ou seja, uma teoria incapaz de conhecer essa 'ideologização' a partir de si mesma, a partir de critérios imanentes, num processo contraditório em que as diferentes configurações são ordenadas e produzidas, gerando a verdadeira ciência essencial. Esse procedimento de auto-avaliação fora apresentado por Hegel na Fenomenologia do Espírito mediante a chave conceituai do "absoluto como sujeito" e seria implementado na dialética do trabalho social por Marx. Ao afirmar que Hegel, pela primeira vez, propusera o trabalho como processo de 'auto-realização' humana, ele tinha em mente precisamente a relação de imanência dialética entre o processo e seus meios, suas condições de realização. No âmbito em que se produz a ideologia, apresenta-se simultaneamente o movimento pelo qual se estabeleceria o exame desta configuração ideológica; trata-se de uma teoria apta a examinar a si mesma, para o que portaria sua própria medida. Por isto apresentação e crítica se fundem no método da Crítica da Economia Política de Marx. Tal noção estaria na gênese da elaboração da própria Teoria Crítica, quando em História e Consciência de Classe Lukács apreende "teoria como conhecimento de si da realidade efetiva" (Lukács, 1983, p. 81).

Habermas, contudo, não prescinde da exterioridade do critério, de uma existência autêntica para medir, seja a cientificidade do saber, seja a sua característica ilusória, ideológica. Necessita assim 'objetivar' os planos de representação para fornecer à teoria os critérios normativos da ação. Eis o cerne de sua proposta de substituição da dialética do trabalho social pelo par conceituai 'trabalho' e 'interação'.

Nesta medida no plano da ideologização total a esfera produtiva seria vista estritamente enquanto trabalho concreto, objetivado e o projeto crítico também se desenvolveria num plano em que parece reduzido ao âmbito interativo-objetivo, obstruindo-se a apreensão da dialética do trabalho social e de sua praxis: eis a causa do 'paradoxo'. Para escapar desse 'paradoxo' caberia abandonar o 'paradigma da produção' - e sua aparente redução de praxis a técnica - em prol de uma racionalidade do 'paradigma da comunicação', onde se localizaria em sua autenticidade não contaminada a nossa "existência cultural" (Habermas, 1969, p. 91) e, portanto, também haveria que localizar as formas de alienação e da praxis emancipatória. Uma tal mudança dos referenciais do 'paradigma da produção' ao 'paradigma da comunicação' resultaria assim numa redefinição do espaço para a crítica fora da abrangência da esfera da produção, esfera a que se reduzira o trabalho social.

O fundamento do programa habermasiano se sustenta, portanto, claramente na desarticulação entre a materialidade da produção e a ação crítica da comunicação. Isto é, na desvinculação entre os âmbitos da produção e da dominação, ou entre trabalho e formação, tal como esta se constitui desde a leitura marxiana de Hegel. Respondendo a seus críticos, Habermas explicita: o que nos distingue hoje de Marx seria "precisamente uma classe identificável (...) como representante de um interesse geral prejudicado"; a ausência da concretização do universal, ainda que negativo. Em outros termos: "a perda do modelo da alienação do trabalho social" (Habermas, 1984, p. 479; 1985, p.82). Ou seja: a dialética do trabalho social estaria obsoleta. Localizando o que se refere à alienação e à emancipação sociais — e portanto o próprio processo de socialização — num âmbito extra-produtivo, desarma-se a crítica em sua materialidade: "A leitura habermasiana examina as transformações da formação social pelo prisma duma antropologia positiva. Doravante o 'gênero humano' encontra-se afetado". (Maar, 1999, p.68).

Nestes termos a ruptura com a dialética do trabalho social resulta, portanto, na perda da efetividade material-histórica.

Para levar em frente seu programa Habermas procede a uma dupla redução no plano do 'trabalho' contraposto à 'interação'. Ele seria restrito como trabalho concreto e não trabalho social interativo, apreendido apenas positivamente em sua forma social vigente nas relações capitalistas de produção, como trabalho equivalente e geral. Além disso, limitado também como trabalho formal, e não como atividade material efetiva por cujo intermédio os homens se produzem como seres materiais históricos efetivos. Isto representa, por outro lado, a consolidação de uma forma social, a do trabalho nas relações capitalistas de produção vigentes, como 'sociedade'. Isto é, significa uma 'eternização' do capital, uma naturalização da lógica do modo de produção existente enquanto curso desenvolvido pelas 'forças produtivas'.

Assim Habermas contempla a produção e reprodução da sociedade fora do plano da praxis material - levando Anthony Giddens (1982, p. 149) a criticar nele a ausência de enfoque da produção da sociedade. Mas a crítica de Giddens erra o alvo apesar de bem intencionada; o problema está mais em baixo. Habermas efetivamente sugere uma 'produção' da sociedade, mas sem relação ao modo de produção material; ou, o que dá no mesmo: pressuposta — como produto feito — nos termos sócio-materiais vigentes. Por isto Habermas distinge analiticamente 'ação' de 'sistema de ações', localizando neste último âmbito o que apreende como 'sociedade' (Habermas, 1984, p. 546). O problema não é deixar de propor a produção da sociedade, mas está em obstruir a apreensão histórica da mesma ao consolidar como a sociedade uma forma social da mesma .

Por sua vez a crítica se restringe ao âmbito da interação, do mundo da vida em sua colonização sistemicamente induzida no plano dos meios do poder e do dinheiro: ela seria redefinida no plano fetichizado. Isto é: a crítica opera fora da abrangência da materialidade efetiva do trabalho social, de 'relações de produção' apreendidas como metaeconômicas.

Nestes termos Habermas procura convalidar para a prática crítica - o que seria a 'sua' práxis - um sucedâneo como aparência de crítica, como função afirmativa no plano da reprodução das formas sociais fetichizadas, reificadas, da produção social.

Localizando a crítica emancipatória no plano formal-comunicativo e assim consolidando a dominação na esfera material-produtiva, Habermas apresenta uma proposta de 'crítica afirmativa', um fetiche da crítica, pelo qual se oculta a função crítica efetiva da transformação social-material numa prática formalista, juridiscista.

Essa aparência de prática crítica torna incomparavelmente mais difícil a própria crítica efetiva; muito mais do que ocorria quando a crítica era simplesmente contrariada pelas forças da ordem. Agora a aparente crítica se converte em crítica ilusória: seu efeito é o contrário. Nesses termos, esta aparência de crítica voltada às reificações redefinidas enquanto "patologias sistêmicamente induzidas do mundo da vida" (Habermas, 1981, vol.2, p. 293) constitui a nova forma ideológica do modo de produção capitalista. Por esta via se consolida uma forma de sociedade como socialização extra-produtiva, subtraindo da abrangência social as relações de produção em que esta é gerada e reproduzida: as relações de produção existentes apareceriam como fatalidade, ao mesmo tempo em que se proclama o fim da sociedade do trabalho.

O PRISMA DO TRABALHO SOCIAL

Nos termos anteriores, claramente se trata de evitar a articulação entre os planos da crítica e do trabalho; isto é, relacionar-se ao 'trabalho' positivamente enquanto trabalho concreto na determinada forma social vigente.

(...) A transição de um paradigma ligado à produção para um paradigma ligado à comunicação que advogo, significa naturalmente que a teoria crítica da sociedade não precisa mais se fiar nos conteúdos normativos do modelo expressivista da alienação e a reapropriação de forças essenciais. Este modelo o jovem Marx emprestou da estética produtiva de Kant, Schiller e Hegel. A mudança de paradigmas, de uma atividade voltada a um fim a uma ação comunicativa, não significa porém que eu abandone a reprodução material do mundo da vida como referência privilegiada de análise. Continuo a explicar o modelo seletivo da modernização capitalista e as correspondentes patologias de um mundo da vida unilateralmente racionalizado nos termos de um processo de acumulação capitalista amplamente desvinculado de qualquer orientação por valores de uso. (Habermas 1987, p. 94)

Em outras palavras: apreender "materialisticamente" a sociedade "nos termos de um processo de acumulação capitalista", em que ocorre "a reprodução material do mundo da vida", transcorrendo conforme um "modelo seletivo de modernização capitalista" — com patologias interruptoras — desprovido do 'telos' por valores de uso — os objetos que o trabalho produz — ou seja, conforme um procedimento evolutivo de 'seleção natural' mediante um procedimento que 'permanece' natural, permanência esta absolutamente necessária, pois por ela se produz a história como 'produto'.

Segundo este enfoque, a reprodução material produz resultados, mas ela própria não constitui resultado; exatamente como o 'trabalho', que produz por uma 'atividade voltada a um fim' na sociedade, mas cuja presença nesta sociedade não é produzida, nem o é a própria 'sociedade'. Enfim, nem trabalho nem sociedade têm história. Isto é: não se relaciona este domínio do 'trabalho' — na verdade, capital, como veremos — a qualquer dependência em relação ao 'trabalho' social — ou não natural — em que se verifica uma alienação de "forças essenciais", e poderia portanto haver também uma "reapropriação de forças essenciais", mais precisamente: as da luta de classes histórica. Para Habermas, as Relações de Produção não seriam Relações Sociais de Produção, mas Relações Sociais de Produção; isto é, seriam extra-econômicas, modos extra-produtivos de regular as forças produtivas. (Habermas, 1981, vol.2, p. 252)

Nesses termos para Habermas o mundo 'da vida' e as suas 'patologias' (reificações) seria produzido, embora não 'produza', isto é, não seria formativo e produtor no sentido histórico-material, real-efetivo, diria Marx na primeira tese sobre Feuerbach que constitui a epígrafe do presente estudo.

A principal deficiência de todo materialismo até hoje (inclusive aquêle de Feuerbach) está em apreender a realidade efetiva, a realidade dos sentidos, a coisa material unicamente sob a forma do objeto ou da representação', e não como praxis, atividade humana no plano da realidade material sensível', não subjetivamente. Por isto o lado ativo seria desenvolvido de modo abstrato e oposto ao materialismo, pelo idealismo - que naturalmente não conhece a atividade real efetiva, conforme a realidade dos sentidos. Feuerbach quer objetos no plano da realidade sensível — efetivamente distintos dos objetos mentais: mas ele não apreende a atividade humana ela própria como atividade efetivamente objetiva. Assim na Essência do Cristianismo ele considera apenas o comportamento teórico como sendo o autenticamente humano, enquanto a praxis seria apreendida e fixada apenas sob a forma de sua aparência baixa judaica. Por isso ele não concebe o significado da atividade 'revolucionária', 'prático-crítica'. (Marx, primeira tese sobre Feuerbach, 1966,I, p. 51; Marx, 1978, p. 139)

Aqui abordamos uma questão básica: a articulação entre trabalho e formação material, efetiva. Ou, para sermos mais precisos: a questão da relação entre trabalho social e história.

Em sua obra de maturidade, Marx apreendeu a produção material-histórica efetiva como processo de acumulação ampliada, isto é, enquanto processo de subsunção real do trabalho ao capital. A redução capitalista do processo, o processo produtivo e as condições e relações de produção seriam nesses termos parte do processo de reprodução material efetivo.

(...) os economistas circunscritos nos limites das representações capitalistas sem dúvida percebem como se produz 'no interior' da relação capitalista, mas não percebem como esta 'relação' ela própria é produzida e ao mesmo tempo nela são produzidas as condições materiais de sua dissolução, eliminado-se assim sua 'justificativa histórica' como 'forma necessária' do desenvolvimento econômico, da produção da riqueza social.

Mas nós vimos não apenas como o capital produz, mas como o capital é produzido (...) Por um lado ele (o capital) transforma o modo de produção; por outro lado esta forma transformada do modo de produção e um estágio particular do desenvolvimento das forças produtivas materiais constituem o fundamento e a condição - o pressuposto de sua própria configuração. (...) Não só as condições objetivas do processo de produção surgem como seu resultado; mas igualmente seu caráter 'especificamente social'; as relações sociais e portanto a posição social dos agentes da produção uns em relação aos outros, as próprias 'relações de produção' são produzidas, constituem resultado continuamente renovado do processo. (Marx 1969, p. 89; Marx 1971, p. 106)

A citação que encerra o inédito capítulo VI de O Capital exemplifica a diferença entre os empreendimentos de Habermas e a Crítica da Economia Política. A operação empreendida pelo primeiro traduz o que Marx denominou subsunção real do trabalho ao capital. "O produto da produção capitalista não é somente 'mais-valia', mas é 'capital'. (Marx 1969, p. 84; Marx 1971, p. 101)

Se a subsunção formal é a extração da mais-valia, a subsunção real é a reprodução do capital. Este processo real se dá conforme dois momentos. Em primeiro lugar — pela compra e venda no processo de circulação da mercadoria força de trabalho — oculta-se sob a forma mediadora do contrato monetário de troca, sob a aparência de mera relação entre proprietários de mercadorias — trabalho e capital — a "submissão do trabalho vivo como mero meio para a conservação e multiplicação do trabalho 'objetivo' autonomizado frente ao trabalho vivo" (Marx 1969, p. 87; Marx 1971, p. 105).

Em segundo lugar, com base na subsunção formal se desenvolve um modo de produção especificamente transformado, que por um lado gera novas forças produtivas materiais, e, por outro lado, se desenvolve somente a partir destas, criando assim, com efeito, novas condições reais para si. Assim se instala uma completa revolução econômica, que por um lado gera, completa e fornece a forma adequada às condições reais para a dominação do capital sobre o trabalho, e por outro lado cria nas forças produtivas do trabalho, nas condições de produção e nas relações de interação, desenvolvidas em contraposição ao trabalhador, as condições reais de um novo modo de produção que suprime a forma àquele contraposta do modo de produção capitalista, gerando assim a base material de um processo social de vida de nova configuração e, por esta via, de uma nova formação social. (Marx 1969, p.88; Marx 1971, p. 106)

O 'trabalho' por esta via não resulta apenas em 'produtos', mas produtos 'produtores'; isto é, resulta na reprodução das condições em que 'produz' e 'se produz'.

O capital não sai do processo tal como entra no mesmo. Só 'no' próprio processo o capital se transformou em capital efetivo, em valor autogerador de valor (Marx, 1969, p. 85; Marx, 1971, p. 107).

A subsunção real implica efetivamente uma reconstrução da sociedade em todos os seus aspectos, em termos que correspondem à reprodução do capital. Nessa reprodução da sociedade, nesses termos, se transformam todas as realidades objetivas e subjetivas, sejam condições de produção, sejam os próprios homens em suas determinações subjetivas. Marx se detém neste aspecto numa passagem importante dos Grundrisse.

No ato da reprodução ela própria não se alteram apenas as condições objetivas - por exemplo, a aldeia se converte em cidade, a mata virgem se transforma em área de plantio, mas os produtores se transformam, na medida em que se apresentam novas qualidades, se desenvolvem a si mesmos através da produção, formam novas forças e novas representações, novos modos de intercâmbio, novas necessidades e nova linguagem. (Marx s/d, p. 394; Marx 1973, p. 494)

Marx retoma aqui uma questão já colocada na Ideologia Alemã (Marx & Engels, 1974, p.28) e que diz respeito à sua divergência em relação à distinção entre a lógica das necessidades e a lógica do trabalho proposta por Hegel na Filosofia do Direito. Para Marx o próprio processo de trabalho gera necessidades sociais, opondo-se por esta via à concepção da natureza humana exterior à dialética das relações entre homem e natureza.

Tal produção de necessidades (Adorno 1986, p. 393) constitui peça central no processo de reprodução do capital em sua circulação ampliada. As próprias formas da consciência seriam nestes termos produzidas por este mecanismo gerado pelo capital em seu processo de auto-reprodução com intenção totalizante. Existe portanto uma presença mediatizada do capital - e portanto do trabalho social em sua determinação sócio-histórica capitalista - em todas as dimensões da sociedade, seja na cultura, seja na constituição individual e nas formas de interação etc.

Por esta via Marx apreende o processo formativo como práxis histórica de um modo em que, para usar a terminologia habermasiana, o 'agir comunicativo' inclusive seria o âmbito da expressão social concreta do que Marx denomina 'fetiche do capital'. Agora o capital já não exerce sua dominação pelo 'trabalho abstrato', mas pela 'abstração do trabalho', ou pelo 'trabalho da abstração'. Revive assim — precisamente para corresponder também a seu antigo referente à época de Hegel, a Sociedade civil-burguesa' — o 'trabalho do espírito' na configuração hegeliana. Por esta via, Habermas apreenderia a formação social não mais na referência ao trabalho social, mas ao trabalho da 'abstração do trabalho social', ao trabalho da 'interação'.

A essa altura já seria claro que para Marx o trabalho seria apreendido não unicamente enquanto processo técnico de produção, mas sobretudo como atividade social da produção e dos homens que participam da mesma. Entre as inúmeras passagens explicitando a questão, uma é particularmente didática.

Na produção os homens não agem unicamente em relação à natureza, mas também uns em relação aos outros. Eles só produzem na medida em que, de uma maneira determinada agem de modo comum e trocando entre si sua atividade. Para produzir eles estabelecem entre si determinadas condições e relações, e somente no âmbito destas condições e relações sociais ocorre sua atuação em relação à natureza, ocorre a produção. (Marx & Engels s/d, p.69)

Assim o valor do produto do trabalho não é resultante da produção material natural, mas resulta das condições e relações determinadas estabelecidas entre os produtores no processo produtivo, depende da forma social do trabalho, o qual assim não é mais produção técnico material, mas é trabalho social. Entretanto isto não aparece deste modo aos produtores. Conforme um trecho por demais famoso do capítulo primeiro d'O Capital:

O misterioso da forma mercadoria consiste simplesmente em que reflete para os homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como se fossem propriedades objetivas, de coisas relativas aos produtos do trabalho ele próprio, como propriedades naturais sociais destas coisas, motivo pelo qual a relação social dos produtores com o trabalho coletivo também parecer uma relação entre coisas, exterior a eles. (Marx, 1967, vol.I, p. 86; Marx, 1981, vol.I, p. 81)

Portanto o trabalho como ação formativa histórica é oculto. Ora, à teoria caberia justamente o conhecimento desta ocultação, dessa realidade e do processo real que promove a ocultação: o eclipse da dialética do trabalho social. Nesses termos, Lukács desenvolveria no início do trajeto crítico ainda seminal, seu projeto de consciência de classe: a esta caberia justamente retomar este conhecimento, ideologicamente limitado. Por isto em História e Consciência de Classe se definia a teoria como conhecimento de si da realidade. Conforme nossa exposição, porém, a teoria da ação comunicativa habermasiana é uma inflexão neste propósito.

Agora não caberia mais ocupar-se do conhecimento, da ocultação na história, mas subtrair à teoria esse papel, transferindo-a ao plano extra-produtivo da racionalidade comunicativa. Eis o que significaria a obsolescência do 'paradigma da produção' e a transição ao 'paradigma da comunicação' para a elaboração teórica. Neste último paradigma, a 'racionalidade' seria não-técnica; haveria referenciais normativos, existiria praxis ainda que 'colonizada sistêmicamente'. Em outras palavras: estaríamos face a uma formação já pronta, formada, sintetizada, a ser interpretada. A crítica se refere ao que 'existe' e é criticável: o controle 'fatal' pelo 'mundo da economia'. Ela omite que o que para Habermas é síntese, na verdade é resultado histórico. Este mundo é resultado, e por isto, resultante, e passível de transformação.

Ou seja: a crítica se instala em uma história já feita — inclusive por outros meios que não os que constituem os meios da crítica — e não numa história por fazer, onde a crítica, portanto, interfere no plano do próprio fazer da história, e não somente na interpretração da história.

Nestes termos, a crítica na proposta habermasiana seria formal e abstrata. E neste sentido, também, aprendemos mais uma vez por que, em Marx, crítica e apresentação se confundem!

Habermas não questiona — como faria seu modelo Weber, por exemplo — como 'esta' chamada 'racionalidade' se constituiu; ela 'já estaria lá', ainda que desfigurada sistêmicamente. Por esta sua auto-limitação, a apresentação comunicativa, intersubjetiva, é operacional, performática; abdica de ser efetivamente praxis.

Neste sentido, cabe aqui recordar a advertência do prefácio da Dialética do Esclarecimento, perfeitamente atual após transcorrido meio século:

(...) o pensamento se vê privado não só do uso afirmativo da linguagem conceitual científica e cotidiana, mas igualmente da linguagem da oposição (...) o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. (Adorno & Horkheimer 1985, pp. 12-13)

A CRÍTICA SEGUNDO MARX

Os pensadores frankfurtianos haviam se baseado nos termos da crítica ideológica imanente tal como esta fora apresentada por Marx, pela qual se apresentam as formas da ideologia e com isto, se abre a perspectiva da praxis. Citemos uma vez mais as famosas referências da primeira parte da Ideologia Alemã que sustentam o edifício que conduz da crítica cultural à práxis e vice-versa.

A produção das idéias, representações, da consciência se encontra antes de mais nada entrelaçada na atividade material e no intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real efetiva. O representar, pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda (destaque WLM) como expressão direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, metafísica etc... de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, idéias etc., mas os homens realmente efetivos, atuantes, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e do intercâmbio correspondente até alcançar suas formações mais amplas. A consciência nunca pode ser algo outro que não o ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida real efetivo. Se no conjunto da ideologia os homens aparecem de cabeça para baixo como numa câmera obscura, este fenômeno deriva de seu processo de vida histórico da mesma forma que a inversão dos objetos na retina deriva de seu processo de vida físico.

(...)A moral, religião, metafísica e ideologia restante e as formas correspondentes da consciência nestes termos não mantém mais a aparência de independência. Elas não tem história, elas não tem desenvolvimento, mas os homerns que desenvolvem sua produção material e seu intercâmbio material com esta sua realidade efetiva transformam também seu pensamento e o produto de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida determina a consciência. (Marx & Engels 1966, vol.I, p.90; Marx & Engels 1974, p. 25)

A dialética propriamente se instala a partir da experiência da autonomização da cultura na vida intelectual. No contexto alemão, as idéias que constituem o conteúdo cultural aparecem 'descentradas', como se fossem 'fora de seu lugar'; por isto mesmo se expõem como idéias que refletem uma determinada situação material-histórica, como ideologia: de sintomas que eram passam a apontar também a solução pela via da crítica ideológica. Ou, ao contrário: o que é uma situação efetiva de nexo entre vida material e vida espiritual.se reflete — pela via do descentramento — como dialética no plano cultural, da vida espiritual. Eis a chave da crítica ideológica marxiana:

A partir deste instante a consciência 'pode' efetivamente imaginar ser algo outro que não a consciência da práxis vigente, representar 'efetivamente' algo sem representar algo de efetivamente real (destaque WLM) — a partir desse instante a consciência está apta a se emancipar do mundo e transitar à formação da teoria 'pura', teologia, filosofia, moral etc. (Marx & Engels 1966,I, p.90; 1974, p.25)

Aqui a ideologia aparece como realidade, aparência objetiva socialmente necessária, produzida socialmente. Pela contradição assim instalada entre representações que se autonomizam e o 'representado' que, como se viu na citação anterior, se 'representa' de outro modo, se remete ao plano material histórico, pela mediação da crítica ideológica. É o que se deprende do trecho em que Marx e Engels destacam como, mesmo havendo uma contradição entre estas formas da consciência e as relações vigentes, isto só ocorre porque as relações sociais vigentes entraram em contradição com a capacidade produtiva, o que inclusive pode acontecer num determinado âmbito nacional de relações não porque a contradição se instala neste âmbito nacional, mas entre a consciência nacional e a praxis de outras nações, i. é., entre a consciência nacional e a consciência geral de uma nação. (Marx & Engels 1966, vol.I, p. 96; Marx & Engels 1974, p.33)

Na situação em pauta para Marx e Engels, este seria o caso da filosofia na Alemanha, país que caracterizaria tal descompasso contraditório entre consciência nacional e consciência geral. Mas, para nós agora interessa o processo: que se instala uma cunha entre a atualidade que corresponderia à teoria (da ação comunicativa) e a atualidade efetiva, cunha esta que não pode ser equacionada nos termos da referida teoria. Para Marx e Engels trata-se de explicar as formações de idéias a partir da praxis material: "(...) as formas e produtos da consciência não são dissolvidas pela crítica espiritual (...) mas apenas pela ruptura prática das relações sociais reais". (Marx & Engels, 1966, vol.I, p. 103; 1974, p. 40)

Contudo esta situação de ruptura prática apareceria — e esta é a peculiariedade alem㠗 no plano de uma contradição 'teórica', entre consciência nacional e consciência geral; em outras palavras: como dilacera-mento da vida espiritual. Da mesma forma, a ruptura prática apareceria como movimento cultural, enquanto alienação e superação da alienação. (Ou então enquanto comunicação sistemicamente colonizada e superação desta situação. Este é o efeito denunciado na crítica da ideologia alemã. Contudo não se trata apenas de rearrumar o que se encontra invertido, mera troca de sinais.

Como já se alertou anteriormente ao citar a primeira Tese sobre Feuerbach, não se trata de uma mera inversão no plano da teoria, mas de um movimento de formação da teoria como abstração e portanto de uma transição entre o plano da praxis material e sua representação abstrata. Assim o que chamávamos 'dilaceramento da vida espiritual' é forma cifrada do plano material-concreto. Na obra posterior de Marx o problema adquire contornos mais nítidos justamente na teoria do valor. O próprio trabalho social aparece como social ao mesmo tempo em que se apresenta de modo invertido: abstrato e geral. Assim o próprio valor seria uma forma cifrada do fundamento material efetivo na produção social capitalista.

O FEITIÇO DO CAPITAL E A CRÍTICA ENCANTADA

Na formação capitalista, o trabalho não aparece imediatamente como social. Ele se socializa apenas na medida da troca entre produtores privados que parecem produzir individualmente. Na verdade a forma social específica assumida pelo trabalho no modo de produção capitalista é indiferente em relação ao trabalho determinado: é trabalho geral e equivalente.

Por esta via, o trabalho social parece mediado pelo capital, que deste modo adquire seu fetiche. Marx examinara as condições em que se dá o trabalho social na formação capitalista, nos termos de determinadas formas sociais. Em conseqüência da mistificação nos termos da reificação e do fetichismo anteriormente expostos, oculta-se por trás de uma existência reificada, enquanto constituindo meios de produção, máquinas etc., a apreensão do capital como sendo uma forma social historicamente determinada de produção, isto é, que ele é uma relação social de produção. Esta ocultação — conseqüência da reificação — por sua vez provocaria a inversão de papéis, característica do fetichismo que atribui às coisas resultantes da reificação um papel de agentes e produtoras: assim na reprodução ampliada, os meios de produção parecem colocar-se do lado do capital e a produção parece ser decorrente dos mesmos e do processo de produção. Esta é uma configuração complexa. O trabalho vivo, que constitui a substância do capital, parece ser progressivamente degradado em apêndice do mesmo, trabalho objetivado no passado, pois valor e quantidade dos meios de produção movimentados pelo trabalho vivo aumentam com o aumento da produtividade do trabalho; este por sua vez se reduz quando comparado ao aumento progressivo da massa de capital. Conforme os Grundrisse:

O capital surge a partir da circulação, situando o trabalho como trabalho assalariado; forma a ciculação ampliada como tal (...) Mas fica claro que procedendo assim apenas gera o trabalho assalariado como seu pressuposto. (Marx s/d, p. 189; Marx 1973, p. 278)

Uma vez gerado, o capital obscurece ao teórico da economia política a apreensão da gênese das relações capitalistas. Obnubilado pela aparência objetiva no ponto de confluência entre circulação simples e capital, ele inverte a superfície como se fosse pré-história do capital — como o estado mais ou menos paradisíaco de indivíduos livres e iguais.

Surge assim a aparência objetiva ilusória da autoconservação e autovalorização do capital. A forma da troca entre trabalhador e capitalista mistifica o conteúdo da mesma. A forma salário parece pagar todo o trabalho, embora apenas formalmente se troquem equivalentes. Trata-se de uma troca apenas aparente, já que o trabalho vivo produz o salário com que ele é 'pago'. De fato a parte do capital trocada pela força de trabalho ela mesma é apropriação de um trabalho alheio, que não só será substituída pelo produtos, a capacidade (força) de trabalho, mas ainda será reposta com mais-valia. Além disto, como se viu, ao gerar capital, o trabalho vivo também conserva capital: isto é, transforma em capital cada vez maior todo o maquinário resultante do desenvolvimento técnico, assim resultando propriamente no que se chama reprodução ampliada. Embora a máquina seja também produto do trabalho vivo, nesta relação de reprodução ampliada se opõe ao trabalhador — ou melhor: à mercadoria força de trabalho — como correspondendo ao capital. Além de ele produzir os meios da acumulação, as máquinas, estas por seu intermédio tornam-se progressivamente mais valiosas, ao mesmo tempo em que ele perde valor. Nesta medida o trabalho vivo produz a si mesmo como mercadoria, mas através dos bens de capital produz também a relação capitalista e sua própria dependência da mesma. Pelo fetiche do capital, o trabalhador coletivo, social, aparece dominado em todas as suas dimensões; inversão que, já insistimos, corresponde ao próprio objeto em causa:

Na expressão 'valor do trabalho' o conceito de valor não só é totalmente dissolvido, mas invertido em seu contrário. Trata-se de uma expressão imaginária, como por exemplo valor da terra. Mas estas expressões imaginárias surgem das próprias relações de produção. São categorias para formas fenomênicas de relações essenciais. Que no fenômeno as coisas se apresentam freqüentemente invertidas, isto é lugar comum em praticamente todas as ciências, menos na economia política.(...) A economia política clássica derivou do cotidiano sem qualquer crítica a categoria "preço do trabalho" para após indagar como este preço é determinado. (Marx 1967,1, p. 559; Marx 1981,1, p. 619)

Nesta ocultação e inversão operadas pela reificação fundamenta-se inclusive a forma social dos elementos super-estruturais:

Assim compreendemos a importância decisiva da transformação de valor e preço da força de trabalho na forma do salário ou em valor e preço do trabalho ele próprio. Nesta forma fenomênica, que torna a relação efetiva invisível e revela justamente o seu contrário, se baseiam todas as idéias de justiça do trabalhador bem como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as besteiras apologéticas da economia vulgar. (Marx 1967, I , p.562;Marx 1981,:I, p. 623)

Por esta via se estabelece uma totalização das condições. A aparência do mundo invertido adquire abrangência total. As pessoas envolvidas se sentem inteiramente à vontade nesta situação. Todas as concepções jurídicas originam-se disto.

Mesmo os melhores de seus representantes, como não poderia ser diferente para o ponto de vista burguês, permanecem mais ou menos presos ao mundo da aparência que desvendaram criticamente, e por isto todos caem mais ou menos em inconseqüências, meias verdades e contradições não resolvidas. Por outro lado, é igualmente natural que os agentes efetivos da produção se sintam inteiramente em casa nestas formas alienadas e irracionais de capital-juros, terra-renda, trabalho-salário, pois trata-se justamente das figuras da aparência em que se movem e com as quais se relacionam cotidianamente. (Marx 1967, III, p. 838; Marx 1981, III, p. 953)

São trocas livremente feitas por ambos os contraentes, e em termos de aparente equivalência; o trabalhador fica satisfeito com o salário. A totalização se completa inclusive no plano das representações intelectuais, no nível dos pensamentos. Espontaneamente estes se movem no mundo da inversão e ocultação.

Para a forma fenomênica "valor e preço do trabalho", ou "salário", ao contrário da relação essencial que aparece, o valor e preço da força de trabalho, vale tudo aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e seu fundamento oculto. As primeiras se reproduzem espontaneamemente de imediato, como formas usuais do pensamento, e a outra precisa primeiro ser descoberta mediante a ciência. (Marx, 1967, I, p. 564; Marx, 1981,I, p. 625)

Só a "ciência" — a Crítica da Economia Política — pode fazer a leitura que permitiria romper esta aparência objetiva, que requer uma aproximação pela qual se desfaçam todas as restrições ao conhecimento correto em todas as suas determinações.

A economia política analisou, embora de modo incompleto, o valor e a quantidade de valor, descobrindo o conteúdo oculto nestas formas. Mas nunca sequer se questionou por que este conteúdo assume aquela forma, por que portanto o trabalho se apresenta no valor e a medida do trabalho é apresentada pelo tempo de sua duração na quantidade do valor do produto do trabalho? Fórmulas que tem escrito na testa que pertencem a uma formação social, onde o processo de produção domina os homens e os homens ainda não dominam o processo de produção (destaque WLM), têm para sua consciência burguesa significado igual ao que teriam se fossem necessidades naturais tão evidentes como o próprio trabalho produtivo. (Marx, 1967,1, p. 94; Marx, 1981,I, p. 89)

Assim parece evidente e "natural" que o trabalho social seja resultante do processo produtivo. Do mesmo modo a própria organização social parece se dar apenas nos temos de um modo de produção estabelecido, quando, como se viu, este é apenas uma determinada forma social de relações de produção. Os homens até mesmo enquanto trabalhadores parecem ser frutos do capital. Este efetivamente aparece sob a forma de um trabalhador coletivo, organizado nos termos do capital.

No capítulo VI, inédito, de O Capital, Marx descreve como "mais e mais uma capacidade social combinada de trabalho se torna o verdadeiro funcionário do processo conjunto (...) constituindo a máquina produtiva conjunta, participando de modo diverso (...) um com a cabeça, outro com a mão" (Marx 1969, p. 66; Marx 1971, p. 79).

O trabalhador coletivo, contudo, seria determinado de acordo com o processo de trabalho social em que se insere, no que mostraria suas qualidades e as combinações econômicas que estabelece com o mesmo processo. Haveria que atentar a uma rearticulação social do trabalhador coletivo, a uma nova combinação do mesmo em seu conjunto, nos termos de um trabalho social não mediatizado pelas relações de produção capitalistas, partindo da crítica às formas sociais da reificação e do fetichismo imanentes às mesmas. Assim, por exemplo, nos termos da transformação de ciência e técnica em força produtiva na forma social historicamente determinada da acumulação capitalista, o trabalhador intelectual aparece como fazendo parte do capital, enquanto se objetiva no processo produtivo que parece ser conduzido pelo capital. De fato, enquanto trabalhador organizado autonomamente, ele poderia fazer parte de um trabalhador coletivo alternativo, ao lado do trabalhador manual, constituindo um coletivo do ponto de vista de crítica ao capital, onde a ciência e a tecnologia estariam a seu dispor e não integrados ao capital.

Nestes termos, como queria Marx nos Grundrisse, efetivamente, se as forças produtivas e as relações sociais — ambas como lados distintos do desenvolvimento do indivíduo social — só aparecem como meios de produção para produzir a partir da restrita base do modo de produção capitalista, é certo que na verdade constituem os materiais para explodir a mesma. Embora — no que se manifesta uma importante diferença em relação aos Grundrisse — conforme o Capital não ocorra um fim economicamente previsível para o capital, que permanentemente gera efeitos e dinamismos com o objetivo de evitar seu próprio colapso. Há, contudo, um potencial emancipatório na ciência e na técnica como forças produtivas sociais num nexo de relações sociais de produção no plano de um trabalhador coletivo crítico, sustentado no trabalho vivo.

TÉCNICA E CIÊNCIA COMO CAPITAL FIXO

A crítica, reduzida por Habermas ao plano da esfera da ação comunicativa e sua colonização sistêmica, se revela assim um fetiche, sucedâneo da crítica efetiva. Essa crítica aparente, contudo, tem uma nova configuração.

Com efeito ela é real: se volta contra as falsas formas produzidas. Ela se volta contra o plano econômico, contra a situação do indivíduo "que se vê completamente anulado pelo poder econômico." Neste sentido, a crítica aparece como crítica efetiva. Contudo por ela se critica o produto, e não se incide na produção material-histórica do mesmo. Esta impotência seria assumida como fatalidade. Tal seria, então, a nova forma ideológica que transparece no discurso.

Em outros termos: esta crítica oculta aos mais desavisados que eles constituem os seus próprios algozes, por serem os sujeitos produtores, inclusive, do capital que se autonomiza aparentemente como processo que se reproduz por si, como perpetuam mobile da expropriação. Como sujeito automático ou então monstro global da fatalidade, que diz respeito ao modo de produzir empresarial-capitalista, que, como até André Gorz propaga, constituiria o 'único' modo de organizar o trabalho e de produzir que os homens conhecem.

A ideologia hoje não acoberta, não esconde mais à expropriação, mas encobre o conhecimento de sua produção material, o tratar-se de resultados onde se apresenta, ainda que de modo cifrado, a história. As forças produtivas não são técnicas; mas são sociais, isto é, não são apenas resultados de uma 'interação social', mas simultaneamente constituem um plano social em que se configura um modo de pensar, de refletir, de agir, de 'esclarecimento', ou então, de um referencial 'normativo'.

Habermas, em seu propósito, 'critica' a esfera da produção pelo que seria seu déficit de referencial normativo. A 'ausência' deste referencial, contudo, constitui o referencial normativo efetivo: a aparência de naturalização do processo, sua 'reconstrução' como desprovido de referencial normativo: sua normativização absoluta, universal.

Habermas só aparentemente - o que potencializa seu poder ideológico -faz a crítica do 'trabalho', enquanto efetivamente consolida o mesmo, nos termos do produtivismo. Cabe a nós, por outro lado, não insistir na 'defesa' do 'trabalho' ou até do 'paradigma da produção', mas fazer de fato a crítica do produtivismo do capital, do trabalho em sua forma concreta, expropriada, alienada no capitalismo. Pretende-se de fato o fim desta sociedade do trabalho. Mas não nos termos em que Habermas, Offe, Gorz colocam a questão. Assim, as forças produtivas produzem um tempo impregnado de 'relações sociais de produção', que não são apenas um invólucro que pode ser despido.

Neste sentido, não há como concordar com a tese do 'fim da sociedade do trabalho' (como o fazem Claus Offe e Jürgen Habermas) Ela só pode ser compreendida se se considera a hipótese contrária: a centralidade da concepção do trabalho na dimensão que lhe é conferida no âmbito da análise marxista do capital. Ou seja: a tese do 'fim da sociedade do trabalho' é a forma atual do fetiche do capital, ideologia da moderna sociedade da industrialização avançada, assim como a 'utopia do trabalho' foi o fetiche do capital no início do capitalismo. Tem função ideológica.

Na verdade a tese do 'fim da sociedade do trabalho' é a tese da 'universalização' da sociedade do trabalho, na forma social que o mesmo trabalho assume no âmbito do processo de valorização do capital. A tese do fim da sociedade do trabalho é um produto da sociedade do trabalho. (Maar 1995, pp. 85/86)

E poderíamos acrescentar: a principal função ideológica da tese do fim da sociedade do trabalho seria a de ocultar que os homens, interagindo entre si, são os sujeitos deste processo. A tese do fim do trabalho é a tese pela qual o capital aparece como sujeito de um processo pelo qual os homens seriam emancipados, libertos do jugo do trabalho. Neste sentido, quando Marx se refere às máquinas da grande industria, o faz negativamente: deplora como, pela difusão do uso das máquinas, estas não se destinam a diminuir o esforço, o jugo do trabalho, mas a aumentá-lo, correspondendo à lógica do capital. A diminuição do trabalho, sabe-se, não se destina a aumentar o tempo livre, mas a manter o processo de acumulação face à oposição de classe dos trabalhadores que limita o tempo físico de exploração. Ao se concretizar no maquinádo, contudo, esta lógica do capital — contingente, generalização acessória de uma situação particular — se oculta por trás da necessidade inevitável das determinações naturais; se converte em fatalidade. Eis o fetiche da crítica, a crítica que se mantém restrita fora do âmbito da fatalidade, a reafirmação da fatalidade. A aparência social da 'eternização do capital'. As máquinas, contudo, alerta Marx, não se esgotam nas formas sociais em que se apresentam como capital, mas constituem efetivamente um valor de uso expropriado pelo mesmo, nos termos de um processo de trabalho, de um trabalhador coletivo na perspectiva do capital. Isto é, no curso de um processo no qual os homens se expro-priaram uns aos outros, constituindo as relações sociais de produção capitalistas, que agora não só aparentemente, mas efetivamente precisam ser criticadas por eles próprios. As máquinas, como formas sociais do capital, ou seja, do trabalho social, configuram uma oportunidade para Marx explicitar a plenitude de seu empreendimento crítico.

São de extrema valia, neste sentido, as páginas dedicadas à discussão das máquinas no "capítulo sobre o capital" relativos a processo de circulação, capital fixo, reprodução e maquinário, nos cadernos VI e VII dos Grundrisse.

O processo produtivo cessou de ser processo de trabalho no sentido em que o trabalho se sobrepõe ao mesmo como a unidade que o determina. Ele (o trabalho) aparece apenas como órgão consciente, em vários pontos do sistema mecânico em trabalhadores singulares vivos; disperso, subsumido sob o processo geral da maquinaria ela própria, apenas, cuja unidade não existe nos trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que aparece frente a sua atividade isolada, insignificante, contraposto como poderoso organismo (...)

O desenvolvimento do meio de trabalho em maquinário não é acidental para o capital, mas é a transformação histórica do meio de trabalho tradicionalmente assumido, transformado de maneira adequada ao capital. A acumulação do conhecimento e da habilidade, das forças produtivas gerais, da inteligência social, coloca-se assim frente ao trabalho como absorvido pelo capital, e por isto aparece como propriedade do capital, e de modo mais determinado, do capital fixo (...) a máquina aparece como a forma mais adequada do capital fixo e o capital fixo (...) como a forma mais adequada do capital (...) a forma social do trabalho se apresenta no capital e não no trabalho (...) O conhecimento aparece na máquina como algo alheio em seu exterior; e o trabalho vivo aparece como subsumido sob o trabalho objetivado que atua de modo autônomo. O trabalhador aparece como supérfluo, na medida em que sua ação não é condicionada pela necessidade do capital. O desenvolvimento pleno do capital ocorre apenas — ou o capital só situou o modo de produção que lhe corresponde — tão logo o meio de trabalho não seja apenas determinado formalmente como capital fixo, mas superado em sua forma imediata, e o capital fixo aparece no âmbito do processo produtivo frente ao trabalho como máquina; e todo o processo produtivo não apenas como subsumido sob a habilidade imediata do trabalhador, mas como aplicação tecnológica da ciência. A tendência do capital, por isto, é conferir caráter científico à produção e por isto reduzir o trabalho imediato a um simples momento deste processo. (Marx s/d, pp. 585-586; Marx 1973, pp. 693-694)

Eis a descrição da naturalização do trabalho social. Mas trata-se de um processo histórico:

Mas quando o capital assume uma forma adequada — como valor de uso no processo produtivo - na máquina e em outras formas materiais de existência (locomotivas etc.) isto não quer dizer que este valor de uso seja capital. Ou que sua existência como máquina é idêntica à sua existência como capital. (...) A máquina não perde seu valor de uso assim que cessa de ser capital. (...) a subsunção à relação social do capital não é a melhor e derradeira relação de produção social para a aplicação da máquina. (Marx s/d, p. 587; Marx 1973, p.702)

Ou seja: é preciso distinguir o que é máquina do que é capital fixo, recuperando aquela para o lado do trabalho vivo. Esta seria a crítica à totalização negativa do capital:

Só na imaginação dos economistas o emprego das máquinas se dá em benefício do trabalhador individual (...) Não se aplica onde a força (capacidade) de trabalho está em falta, mas para reduzi-la à sua medida onde se encontra disponível em massa (...) Faz parte do conceito de capital que a força produtiva multiplicada do trabalho como multiplicação de sua força é posta fora dele, como seu enfraquecimento. O meio de trablho torma o trabalhador independente — colocando-o como proprietário. A máquina — como capital fixo — coloca-o como dependente, situa o mesmo como apropriado. Este efeito da máquina só vale enquanto é determinada como capital fixo, e só é determinada como capital fixo pelo fato de o trabalhador ser determinado como trabalhador assalariado e o indivíduo ativo se relaciona com a mesma como mero trabalhador. (Marx s/d, pp. 589-590; Marx 1973, p. 702)

O aparente fim da sociedade do trabalho constitui conseqüência lógica de relações sociais de produção caracterizadas por não se apresentarem elas próprias como relações sociais, mas enquanto relações reificadas, coisificadas que ocultam a práxis social efetiva. Há nestes termos uma alienação da sociedade, que aparece no capital.

Estas estruturas se reproduzem de forma ampliada em níveis diferentes, conforme os vários regimes de acumulação do capital, e significam a permanência do domínio do valor sobre o valor de uso. E, também, do valor sobre a ciência. Assim como o trabalho, também a ciência subordinada ao valor mostra sua essência social apenas quando coisificada, como força produtiva materializada na máquina. Que, por sua vez, se apresenta como capital, que parece ser o sujeito do processo.

A ciência como produto intelectual em geral do desenvolvimento social, apresenta-se do mesmo modo, como incorporada ao capital (sua aplicação como ciência separada do saber e da destreza dos operários considerados individualmente, no processo material de produção); e o desenvolvimento geral da sociedade — porquanto é usufruído pelo capital contrapondo-se ao trabalho e opera como força produtiva do capital contrapondo-se ao trabalho — apresenta-se como desenvolvimento do capital; e isso tanto mais porque, para a grande maioria, esse desenvolvimento corre paralelamente ao esvaziamento da força de trabalho. (Marx, 1969, p. 79; 1971, p. 95) .

Analisando a questão Napoleoni (1986, p. 111) mostra como esta ciência encontra-se desvinculada da consciência do trabalhador, por corresponder a um conhecimento da natureza que estaria fora do plano do trabalho. Assim também as condições subjetivas de produção — que constituiriam o suporte do trabalho coletivo — estariam caracterizadas por uma estranheza e contraposição ao trabalho. Poderemos reconhecer aqui a caracterização da perda da socialização pelo trabalho, tal como descrita por Claus Offe (1985) em seu polêmico ensaio Trabalho: categoria sociológica chave?. Mas a estranheza referida diz respeito a este trabalho, mas não ao processo de trabalho social coletivo, não limitado pelas relações de produção capitalistas, pelo domínio do valor. Sob o domínio do processo de valorização, a essência, a substância do trabalho aparece necessariamente como coisa geral e equivalente: trabalho abstrato. Assim: ciência é saber fora do 'trabalho' na forma social dada. Por isto, terminaria ressaltando mais ainda a conclusão aparente, pela qual a relação com o capital seria essencial à produtividade do trabalho.

Assim seria possível pensar nos termos do fetiche do capital as novas formas ideológicas, as formas de mistificação da formação social presente. As relações sociais de produção aparecem como sendo a sociedade; ou, inversamente, o que parece sociedade na verdade são determinadas e históricas relações sociais de produção. Para concluir, portanto: o chamado fim da sociedade do trabalho, pela leitura acima, se revela como sociedade do capital, isto é, sociedade das relações sociais de produção capitalistas, determinadas e circunscritas no tempo, generalização arbitrária de um modo acidental de produzir socialmente. No dizer de Adorno: este seria um todo falso.

E o que seria então, a sociedade, o trabalho social coletivo do ponto de vista do trabalho vivo e não do trabalho abstrato?

A análise marxiana contém implícita a resposta: a máquina, no dizer de Marx, não perde seu valor de uso quando não é mais capital fixo. Nesta forma passaria a ser um meio para o trabalho, e não — como enquanto é capital fixo — um meio de controle do trabalho.

Afinal, "técnica e ciência como ideologia" somente no plano das relações sociais de produção capitalistas!

  • Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio, Zahar
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  • Napoleoni, Claudio (1981). Lições sobre o capítulo sexto (inédito) de Marx. São Paulo, Ciências Humanas
  • Offe, Claus (1985). O Capitalismo Desorganizado. São Paulo, Brasiliense

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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