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Brasil: aspectos políticos da crise econômica

Brazil: political aspects of the economic crisis

Resumos

Um exame do período pós-autoritário permite ao autor reconstruir o entrelaçamento das grandes linhas de desenvolvimento nos níveis da política e da economia, para formular algumas conjecturas sobre as tendências atuais e as perspectivas para os próximos anos. Não é um quadro dramático em termos políticos, sustenta ele. Não há razões para visões catastróficas, mas tampouco se justificam grandes esperanças no tocante ao alcance das reformas e ao aprofundamento da democracia.

Brasil; Brasil


An examination of the post-authoritarian period in Brazil allows the author to reconstruct the interlacing of the main lines of development on the political and economic levels, in order to formulate some conjectures about present trends and perspectives for the next years. It is not a dramatic picture in political terms, he holds. There is no room for catastrophic visions, but neither are great hopes justified concerning the scope of the reforms and the deepening of democracy.

Brazil; Brazil


AMÉRICA LATINA

Brasil: aspectos políticos da crise econômica

Brazil: political aspects of the economic crisis

Sebastião C. Velasco e Cruz

Professor no Departamento de Ciência Política do IFCH/UNICAMP

RESUMO

Um exame do período pós-autoritário permite ao autor reconstruir o entrelaçamento das grandes linhas de desenvolvimento nos níveis da política e da economia, para formular algumas conjecturas sobre as tendências atuais e as perspectivas para os próximos anos. Não é um quadro dramático em termos políticos, sustenta ele. Não há razões para visões catastróficas, mas tampouco se justificam grandes esperanças no tocante ao alcance das reformas e ao aprofundamento da democracia.

Palavras-chave: Brasil, 1979-2000; Brasil, perspectivas

ABSTRACT

An examination of the post-authoritarian period in Brazil allows the author to reconstruct the interlacing of the main lines of development on the political and economic levels, in order to formulate some conjectures about present trends and perspectives for the next years. It is not a dramatic picture in political terms, he holds. There is no room for catastrophic visions, but neither are great hopes justified concerning the scope of the reforms and the deepening of democracy.

Keywords: Brazil, 1979-2000; Brazil, perspectives

Registre-se, para começar, a ironia contida neste paralelo. Em 1979 o Brasil ingressava em um período novo e extremamente rico de sua vida política. Os militares continuavam de plantão, é certo, mas o general que acabava de galgar a Presidência da República encontrava um país muito diferente daquele entregue aos cuidados de seu antecessor. Se em 1974 o general Ernesto Geisel assumia o governo sob o mutismo produzido por anos de repressão, censura e pelo medo provocado por uma onda inédita de sequestros e desaparecimentos de opositores, cinco anos depois seu escolhido, o general Figueiredo, ia ao encontro de uma sociedade que vibrava na exploração dos limites móveis de uma liberdade recém-conquistada. Já então os presídios políticos estavam quase inteiramente vazios; manifestações ocorriam em todo o país pela anistia; movimentos populares pipocavam em bairros e favelas; trabalhadores organizados irrompiam na cena nacional detonando a primeira onda de greves no país desde 1964, ao mesmo tempo em que, por suas lideranças, lançavam-se na busca da identidade própria com a qual se fariam presentes na arena política. Tudo isso nos quadros de uma Constituição reformada, que permitia a decretação de estado de emergência, mas não mais convivia com o seu contrário, os famigerados atos institucionais. E embora tenha chefiado a agência central de inteligência do regime - Serviço Nacional de Informação, o temido SNI - o general presidente não parecia incomodar-se muito com isso. Pelo contrário, tendo sido abertamente contestado em suas pretensões sucessórias por oficiais de extrema-direita, o general Figueiredo conquistara amplo apoio nos meios civis, inclusive em muitos setores da oposição, com uma plataforma adaptada aos novos tempos. "Abertura, o termo que a sintetizava, buscava exprimir ao mesmo tempo a situação que vivíamos e seu telos. Estávamos "em trânsito" - todos o reconheciam. Trânsito: de uma ditadura, um regime autoritário com dominância militar, para algo distintamente concebido por diferentes atores, mas que atendia pelo nome de democracia.

No âmbito da economia também a plataforma do novo mandatário contemplava algumas mudanças. E não podia ser diferente. Desde 1977, pelo menos, as condições externas começavam a se tornar ingratas para o plano de desenvolvimento em curso. E havia ainda a memória viva do súbito ativismo político dos empresários, os quais durante quase dois anos, entre 1975 e 1976, criticaram publicamente, com insistência, o governo pelo que identificavam como ameaça de estatização da economia. Mas, apesar das reações que chegaram a suscitar em vários segmentos do universo empresarial, as alterações anunciadas tinham alcance reduzido - resumiam-se basicamente no compromisso com a austeridade fiscal e com uma gestão mais rigorosa da política monetária e creditícia. A configuração institucional da economia brasileira e o padrão de intervenção do Estado não estavam em pauta. As grandes novidades localizavam-se no terreno da política.

Dezesseis anos depois, na gestão Fernando Henrique Cardoso, as novidades se distribuem em outra ordem. Com efeito, seu programa de governo inclui uma proposta de reforma política. Mas ela é sumamente modesta. As instituições da democracia representativa estão aí e não são contestadas. No passado, com seu partido, o PSDB, o então senador Fernando Henrique Cardoso batera-se pelo parlamentarismo. Mas depois da esmagadora derrota sofrida por essa proposta no plebiscito de 1993, o tema saíra da agenda. Ademais, a larga vitória eleitoral - sua e de seus aliados - ajudava a reconciliação com o presidencialismo da tradição nacional. Com o forte mandato recebido das urnas, a ampla maioria com que contava no Congresso e o apoio de quase todos os governadores de estados, não estranha a debilidade do ímpeto reformista. Naturalmente, a multiplicidade de partidos e a sua disciplina duvidosa incomodavam. Seria bom mudar isso. Mas, de forma alguma, esse desejo deveria afastar da mira o objetivo principal.

Este sim, era enorme. Pois a tarefa que o presidente fixava para o seu governo não era a de realizar uma boa administração. O que prometia era alterar em profundidade a forma como historicamente o capitalismo esteve organizado entre nós. Desfazer 50 anos em cinco, enterrar a "era Vargas"... é verdade, esse programa não era exatamente de Fernando Henrique Cardoso, e não esperou por ele para começar a ser aplicado. Desde o final dos anos 80, estava na fala dos bem-pensantes, que encontraram em Fernando Collor de Mello um advogado ruidoso, de má reputação, mas nem por isso de todo ineficaz (além da intensa campanha ideológica, verdadeira lavagem cerebral que desencadeou, é o governo Collor que lança verdadeiramente o programa de privatização e conduz a abertura externa da economia brasileira, no plano financeiro e comercial). Contudo, não estava à altura de Collor levar a bom termo a tarefa. Dois anos depois da crise do impeachment as finanças públicas continuavam desorganizadas, a inflação batia redordes, e o pretérito ainda atava o presente num emaranhado de fios constitucionais. Abrir amplamente o caminho para mudança, projetar as formas do novo, construir as instituições requeridas, fundar uma outra ordem: essa a missão que Fernando Henrique Cardoso se atribuía.

1979, 1995. Em que pese a diferença no tocante ao alcance das mudanças contempladas - apesar de tudo, a abertura de Figueiredo era um ensaio controlado de reforma política, ao passo que "as reformas" de Cardoso são vendidas como um novo começo, um corte radical com o nosso passado (mas, seguindo o passo de um autor hoje fora de moda, caberia perguntar: que passado? Que herança é rejeitada? Não tanto o passado industrial, não tanto a noção do Estado como ente regulador da economia ... nesse particular, a ruptura no Brasil é muito menor do que a que se deu no Chile ou na Argentina) - o primeiro aspecto do paralelo entre os dois governos está aí, no fato de combinarem em seus respectivos programas elementos fortes de inovação e de continuidade.

O outro aspecto é mais óbvio. Em momentos distintos de seus respectivos mandatos, ambos os governos foram abalados por graves crises financeiras internacionais. No caso de Figueiredo, o golpe veio mais rápido. Com efeito, já no final de 1979 ele era atingido pela brutal elevação da taxa primária de juros ditada por Paul Volker, que acabava de assumir a presidência do Federal Reserve Bank - o Banco Central americano -, e pelo segundo choque do petróleo (aumento de cerca de 500% no contexto de crise vivida no Oriente Médio). Em meio à profunda recessão mundial precipitada pela combinação desses dois fatores, a economia brasileira ainda conheceu um ano de crescimento alto, mas logo a seguir viria a sofrer uma inflexão drástica: tendo se expandido a uma taxa de 7,9% em 1980, em 1981 o índice de crescimento do PIB fica abaixo de zero. Era a primeira vez que isso acontecia no país, desde a Segunda Guerra (queda de 5,5%, em 19421 1 Cf. R. M. Zerkowski e M. A. G. Veloso, "Seis décadas de economia brasileira através do PIB". Revista Brasileira de Economia, 36 (3), 1982. ). A primeira, mas infelizmente não a última: com desempenho um pouco melhor no ano seguinte, em 1983 de novo o produto interno volta a contrair-se. No intervalo entre um ano e outro, como se sabe, alguns fatos dramáticos. A moratória do México, a crise da dívida (Argentina, Chile, Brasil, Coréia...), o acordo com o FMI, e a necessidade imperativa de gerar mega-superavits comerciais a fim de custear o serviço da divida...

No gestão Fernando Henrique Cardoso, as perturbações financeiras internacionais vieram até antes, se descontarmos o período de ano e meio durante o qual exerceu efetivamente funções de chefe de governo como ministro da Fazendo de Itamar. De fato, mal acabava de assumir a Presidência quando sobreveio a queda do peso mexicano - de novo o México... Desta feita, porém, os desdobramentos da crise seriam diferentes. Com o socorro pronto do Executivo americano, que abriu ao país vizinho uma linha de crédito de 50 bilhões de dólares, foi possível limitar as perdas para os investidores que tinham apostado na modernidade do governo Salinas Gortari e conter o pânico que já começava a se alastrar. A história não se repete ... Na América Latina, a Argentina - amarrada ao rígido sistema da convertibilidade - foi mais duramente atingida, tendo conhecido uma seqüência de falências bancárias. O Brasil, apenas indiretamente ancorado no dólar através do sistema de banda e com um grau de abertura financeira consideravelmente menor2 2 O grau de abertura financeira varia de acordo com a maior ou menor facilidade de residentes operarem com ativos e passivos denominados em moeda estrangeira e com a maior ou menor facilidade de acesso de não-residentes ao mercado financeiro doméstico. Cf. Daniela Magalhães Prates, "Investimentos de portfolio no mercado financeiro doméstico", in Maria Cristina Penido de Freitas (org.), Abertura do sistema financeiro no Brasil nos Anos 90. São Paulo, Edições Fundap/Papesp/IPEA, 1999, pp. 17-60. , sofreu impacto consideravelmente menor. Conhecemos também quebras espetaculares de bancos - o Econômico, em julho de 1995, e poucos meses depois o Nacional. Mas elas não resultavam das perturbações cambiais. O fator decisivo, em nosso caso, foi a incapacidade de alguns dos maiores bancos nacionais de se adaptar ao novo ambiente criado com a estabilização monetária, que lhes retirava subitamente a seiva dos ganhos inflacionários. No Brasil, a falência dos bancos é um aspecto do ajuste que se processa nos mais diversos segmentos da economia. Com a intervenção vertical da autoridade monetária e com a ajuda do PROER, o setor bancário logo reencontraria a normalidade, ainda que agora mais concentrado e com presença muito mais destacada de grupos internacionais3 3 Para uma análise política da intervenção do Estado na contenção da crise bancária que se esboçava, cf. Jacques Mick, A Globalização financeira e as mudanças na regulamentação do sistema financeiro nacional (1994-1996). Um estudo sob a perspectiva da hegemonia financeira. Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, 1998. .

A volatilidade, porém, é um traço marcante da economia financeira internacional pós Bretton Woods. A crise mexicana foi apenas um prenuncio: dois anos e meio depois abria-se a seqüência que começou com a Tailândia, logo alcançou a Malásia, pouco depois levou de roldão a Indonésia, derrubou a fortaleza coreana, passou como um vendaval pela Rússia, e veio bater com toda força em nossa porta. Em setembro de 1998, na etapa decisiva do processo eleitoral que punha em jogo a representação parlamentar em plano federal e estadual, os executivos de todos os estados e a Presidência da Republica. Os fatos são bem conhecidos: com os capitais em fuga desenfreada, as reservas esvaindo-se, a ameaça da débacle do Real crescendo a cada dia, o governo brasileiro ergue a bandeira branca e vem a ser socorrido por um esquema de salvamento organizado pelo Tesouro americano, que envolve a criação de fundo de emergência de 40 bilhões de dólares e um acordo draconiano com o FMI. Não foi o bastante para aplacar o temor geral dos investidores e o apetite especulativo de alguns. Em janeiro de 1999, dois eventos menores - uma derrota circunstancial no plenário da Câmara e a moratória decretada por um governo de Estado - deram o sinal para a debandada: em poucos dias o Brasil passava ao regime de câmbio flutuante e o Real chegava a perder mais de 50% de seu valor vis-à-vis o dólar.

Os dados estão postos. Um mesmo país; dois governos com programas de reformas; duas crises financeiras internacionais com efeitos desestabilizadores sobre os equilíbrios internos. Num caso e em outro, quais conseqüências mediatas do choque?

Começo pelo primeiro deles por razões óbvias. No plano político, todos sabemos, as coisas não se passaram conforme o projetado. Em 1982 a oposição conquistava o governo dos principais estados do país, no primeiro pleito direto para esse fim desde os idos de 1966; ganhava também maioria no Congresso. Fortalecida por esses resultados, e encorajada pelas manifestações cada vez mais amplas de descontentamento que as medidas de política econômica geravam, os políticos de oposição - muito dos quais donos de uma moderação que raiava o adesismo - passam a exibir um sentido de independência inédita, e chegam a derrotar o governo, em um projeto de alto interesse da equipe econômica. Foi um anúncio. O debate sucessório já lançado, alguns meses depois o Brasil era sacudido por imensa campanha popular pela aprovação de emenda constitucional estabelecendo eleições diretas para a Presidência da República. A campanha das "Diretas Já" não alcançou o seu objetivo. Mas cindiu definitivamente a base de apoio do regime e criou as condições para a vitória do candidato de oposição, Tancredo Neves, no colégio eleitoral adrede montado para ratificar a escolha efetuada pelos detentores do poder. O próximo mandato presidencial seria disputado através do voto popular. Então, o Brasil já estava dotado de uma nova Constituição, e a cena política não era mais batida pela sombra da caserna.

Mesmo esse mais do que breve relato deixa entrever que a crise econômica afetou significativamente o processo de abertura política. Mas não foi o fator decisivo na derrota do projeto dos mentores do regime de manter sob seu estrito controle o processo de reforma. Seria possível argumentar, ex-post, que esse projeto era autocontraditório, irrealista, fadado portanto ao insucesso. Mas não é preciso ir tão longe. Basta registrar que ele sofreu desde o início a oposição decidida de facções militares de extrema-direita, que se dispunham a tomar o caminho do terrorismo para fazer valer sua vontade. A bomba do Rio Centro explodiu o projeto político do governo Figueiredo. Isto aconteceu em maio de 1981. Dois meses depois, o general Golbery do Couto e Silva - eminência parda do regime e estrategista da política de abertura - pedia demissão de seu cargo de ministro de Estado. A partir daí o governo Figueiredo perde o rumo. O processo de abertura, em seu dinamismo próprio, avança; mas o governo não tem mais uma linha coerente de ação para lidar com ele - seja para contê-lo, seja para o guiar.

EFEITOS DA CRISE

Dito isso, vale chamar a atenção para dois efeitos indiretos da crise, que, estes sim, tiveram enorme importância como propulsores da mudança política e das mobilizações sociais que a acompanharam.

O primeiro deles diz respeito à aceleração do processo inflacionário. Ele vinha ganhando ímpeto desde 1979, quando, sob pressão de fortes movimentos grevistas que adquiriam conotação crescentemente política, foi adotada a regra de reajustes semestrais de salários. A partir de 1981, com o agravamento dos problemas nas contas externas, e particularmente depois de 1982, quando tornou-se absolutamente imperativo gerar mega-superavits na balança comercial para custear o serviço da dívida externa, a equipe econômica depreciou fortemente o câmbio, como parte do esforço exportador em que se empenhava. Simultaneamente, reduziam-se ao mínimo as importações em conseqüência do efeito-preço das desvalorizações cambiais sucessivas, e por força dos rígidos controles diretos adotados - procedimentos administrativos que inibiam a internalização de produtos, lista de itens com importação vedada. No calor da crise, a equipe econômica produziu um drástico fechamento da economia brasileira aos produtos importados, numa política de corte neomercantilista que ela adotava, não de livre escolha, mas forçada pelos fatos. Ora, em uma economia altamente oligopolizada como a brasileira, o impacto nos custos industriais provocado por esse duplo condicionamento era sistematicamente repassado aos preços praticados, e, dada a norma da indexação que regia todos os contratos, logo se propagava pelo conjunto da economia. Nas condições políticas vigentes, que excluíam o uso generalizado da força para conter movimentos reivindicatórios, os trabalhadores tinham grande incentivo a se mobilizar em defesa do poder de compra de seus salários. Como os índices de reajuste salarial eram estatutariamente fixados, essas mobilizações tendiam a ser canalizadas diretamente para a esfera política, onde se traduziam em pressão para que a "correção salarial" seguisse mais de perto o movimento dos preços. A resultante era mais inflação. Mas no auge da crise externa - de 1983 a 1984 - este fato não incomodava demasiadamente, nem mesmo aos campeões da ortodoxia. Refletindo as prioridades dos credores, o FMI estava interessado fundamentalmente na capacidade de pagamento da economia brasileira, e aceitava com estudado ar de contrariedade as sucessivas cartas de intenção que a equipe econômica assinava, uma vez descumpridas as metas de inflação e déficit público contidas na precedente.

Déficit, crise fiscal, desorganização das finanças públicas: o segundo aspecto a salientar é a dimensão redistributiva desses fenômenos. Com efeito, alteradas brutalmente as condições externas, o Estado passa a operar como camada protetora do setor privado da economia, absorvendo no essencial o impacto da crise. Alguns aspectos são triviais: 1) os subsídios generalizados comprimem a arrecadação, que se vê ainda mais reduzida pela depreciação da moeda verificada entre o fator gerador do imposto e sua cobrança efetiva (o que os economistas chamam de "efeito Tanzi"); 2) para evitar novas pressões altistas, as autoridades econômicas - nos dois governos, Figueiredo e Sarney - passam a manejar as empresas públicas como instrumentos de política macroeconômica, achatando sistematicamente as tarifas dos serviços de utilidade pública, com o que adicionavam um novo elemento à equação do déficit. Para fazer face a compromissos inadiáveis, o governo recorria então ao mecanismo da dívida pública, cujo giro tornava-se cada vez mais acelerado, e cujo peso relativamente ao PIB mais do que dobraria no período - de cerca de 24% em 1981 a 45% em 1986, tendo atingido o pico de 54% em 1984 4 4 Cf. Ana Cláudia Além e Fábio Giambiagi, "Dívida pública em 1999: um ponto de inflexão?". Jornal dos Economistas, n. 127, nov., 1999, pp. 8-9. .

Convém assinalar a funcionalidade, do ponto de vista de segmento privado, do mecanismo da dívida pública. Ante a elevação dos juros bancários, a retração das vendas e às incertezas reinantes na economia - a par da compressão de seus custos salariais, pela via das demissões e do achatamento do salário real -, a grande empresa brasileira reagiu à crise reduzindo drasticamente seus estoques, interrompendo investimentos em expansão da capacidade produtiva e reorientando suas aplicações de capital em direção a ativos não operacionais, com destaque para as aplicações em títulos da dívida pública.5 5 Cf. Júllio Gomes de Almeida, "Empresas livres na economia brasileira: mudanças patrimoniais e rentabilidade (1978-1984)", in José Antonio Ortega, Financiamento e desempenho financeiro das empresas industriais do Brasil. Texto para Discussão n. 112, Instituto de Economia Industrial, UFRJ, março, 1987.

No decorrer de pouco tempo, o resultado desses mecanismos são drásticos. Subitamente obrigada a transferir para o exterior o equivalente a 6% de seu produto interno bruto, a economia brasileira, no complexo das relações de força que a constituem, distribui muito desigualmente o ônus de semelhante encargo: de 1973 a 1983 a participação da renda líquida disponível do setor público no PIB sofre uma queda de cerca de 50% (de 16,84 a 8,67%), ficando intocada a renda líquida do setor privado, que chega mesmo a se elevar no decorrer do período - de 82,24 a 85,64% do PIB6 6 Rogério Furquim Werneck, "Poupança estatal, dívida externa e crise financeira do setor público", em sua coletânea Empresas Estatais e Política Macroeconômica, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1987. .

Esse quadro, que se traduzia imediatamente em compressão da folha de salários dos órgãos públicos e em cortes expressivos nos gastos sociais, acarretava duas respostas típicas de todo previsíveis: 1) intensificação dos movimentos reivindicatórios dos funcionários públicos, os quais a partir de 1985 passam a gozar de fato - e com a Constituição de 88, também de jure - do direito de sindicalização: em abril de 1989, momento de pico do ciclo de greves que se estende por todo esse período, das 72,5 milhões de jornadas perdidas por motivos de paralização, mais de 60% (44,45 milhões) ocorreram no setor público.7 7 Dados tabulados gentilmente fornecidos por Eduardo Garuti Noronha, a quem o autor agradece. 2) pressões organizadas e difusas sobre os agentes da administração pública pela melhoria dos serviços prestados, seguidas de crescente frustração, dada a incapacidade dos mesmos de responder positivamente às demandas de que eram alvo. A interação desses dois efeitos reforçava-os mutuamente, e, no conjunto, agravavam ainda mais o quadro de crise em que estava mergulhado o Estado. Que a essa altura não era mais de natureza simplesmente fiscal, mas uma crise geral de legitimidade.

E foi em torno dela, no embate pela definição de seu significado profundo e das formas de superá-la, que se travaram as principais batalhas políticas do período - durante o longo processo constituinte, que se estendeu de março de 1987 a outubro de 1988, e no instante dramático da eleição presidencial.

POSIÇÕES OPOSTAS

Esquematizando ao extremo, na polêmica duas posições diametralmente opostas se confrontavam. No discurso dominante na mídia, entre os empresários, na opinião conservadora em geral, a crise do Estado é endógena, interna, e se afigura como a razão principal das dificuldades que afligem nossa economia e nossa sociedade. O Estado vai mal porque gasta descontroladamente, porque intervém em excesso, porque é incapaz de gerir adequadamente suas atividades. Empreguismo, déficit, rigidez e incúria burocrática são termos de uso corrente para designar essas realidades. A uma avaliação tão simples correspondem soluções algo simplórias. A idéia básica é a de que o mercado é o lugar por excelência do dinamismo e da liberdade e que, por esse motivo, deve caber a ele o papel de organizar o conjunto da sociedade. "Menos governo, menos miséria": austeridade, corte de gastos, desregulamentação, liberdade de iniciativa, transferência de funções ao setor privado. Para se contar com um Estado mais operativo e mais forte, é preciso ter um Estado menor.

No discurso de esquerda ou progressista, no campo popular, diagnóstico e propostas são de outra ordem. Para começar, há a recusa de encarar o Estado como uma entidade discreta, separada, distante e acima da sociedade. Daí que a origem e a natureza de sua crise não podem ser buscadas no interior mesmo das instituições estatais, mas devem ser rastreadas nas relações que estas mantêm com as classes, frações de classe e grupos que compõem o tecido da sociedade. O Estado está em crise, mas na raiz desta estão comportamentos e estratégias difundidos entre os atores sociais. Por outro lado, para além das diferenças que possam existir na maneira de conceber o mercado, reconhece-se que, ademais de um mecanismo de coordenação econômica, ele é um espaço onde se nutrem relações de dominação e se cristalizam desigualdades. O mercado deve, portanto, ser socialmente regulado, e é preciso que o Estado tenha meios para desincumbir-se dessa tarefa. Nessa perspectiva, ao invés de reclamar menos governo e maior latitude para a realização dos interesses privados, o que se propõe é a recuperação, a reconstrução da esfera pública e a desprivatização do Estado.

Como pano de fundo desse debate, ou como terreno comum onde os contendores se encontravam para travar a batalha, estava a compreensão mais ou menos generalizada de que, tendo na falência do Estado sua manifestação mais patente, a crise expressava o esgotamento do padrão que pautara a economia brasileira por muitas décadas. Em conseqüência disso, em direções distintas, as alternativas propostas por cada um dos campos rompiam com aspectos básicos daquele legado. Pela esquerda, impugnava-se o caráter excludente deste, a natureza autoritária das relações sociais em que se fundava, a garantia que nele encontravam as frações econômica e socialmente mais retrógradas das classes dominantes de que sua voz seria sempre ouvida e seus privilégios respeitados. Pela direita, o que ficava posto em xeque era o ethos nacional-estatista da tradição republicana pós-Vargas; a noção de que o poder público deveria imiscuir-se nos meandros das relações entre os atores privados, com o fim de aplacar/sufocar conflitos e assegurar o equilíbrio social; a idéia de que ao Estado caberia atuar, através de suas agências regulatórias e de suas empresas, como organizador e árbitro dos compromissos entre os grupos locais e o capital internacional. Reconhecemos facilmente aí as linhas dominantes do programa de governo de Fernando Collor de Mello e, passados já dez anos, os temas que ainda compõem a agenda política brasileira na atualidade.

No período que se abre com a posse do general Figueiredo o Brasil perfaz um trajeto longo e surpreendente, quando observado em perspectiva histórica. Politicamente, acelera-se e ganha profundidade o processo mudança política já em andamento, a tal ponto que leva, no curto espaço de uma década, um dirigente sindical destituído momentaneamente de seu cargo por força de intervenção decretada pelo Ministério do Trabalho às portas da Presidência da República em eleições intensamente disputadas. Nesse interregno, o país se dotara de nova Constituição, que aposentava a doutrina de Segurança Nacional, alterava fortemente as relações entre o governo federal e os Estados, assegurava direitos civis e sociais avançados e consagrava mecanismos de participação direta inéditos na história nacional.

No plano econômico, as transformações foram ainda maiores. Tendo voltado a crescer já em 1984, a economia brasileira apresentou nessa que ficou conhecida como "a década perdida" um comportamento errático, onde todos os indicadores macroeconômicos exibiam enorme instabilidade. O aparelho produtivo fora preservado, o capital privado fora poupado de avarias mais sérias, e alguns segmentos industriais chegaram a manifestar dinamismo, lançando-se em empreendimentos ambiciosos - sob a proteção garantida pela Política Nacional de Informática, depois de se implantarem solidamente no setor, três importantes grupos nacionais - dois deles centrados no capital bancário - chegavam em 1990 com projetos orçados em centenas de milhões de dólares com o propósito de entrar no segmento decisivo da produção de micro-processadores8 8 Cf. Wilson Suzigan (coord.), Estratégia e desenvolvimento de C & T nas empresas nacionais. UNICAMP, 1989. Discuti o significado da indústria nacional de informático e outras manifestações de dinamismo da indússtria brasileira em artigo que questiona o senso comum impícito na metáfora da década perdida, salientando o caráter contraditório das tendências que marcam a situação de crise vivida pela economia brasileira nessa época. Cf. Fragmentos do novo? Brasil: empresariado e crise no limiar dos 90. Trabalho elaborado com base na comunicação apresentada no Seminário Internacional "O Novo Empresariado na América Latina". GT "Empresarios y Estado" do CLCSO, Santiago, Chile, 14-17 de novembro de 1990, e publicado na coletânea de minha autoria O presente como história: Economia e política no Brasil pós-64. IFCH/UNICAMP, 1997, pp. 131-159. . Mas o quadro de desorganização e de elevada incerteza vigente impedia que essas e outras manifestações de vitalidade tivessem conseqüências maiores. Predominavam em todos os agentes econômicos as reações defensivas, ao passo em que se difundia o sentimento de que apenas um corte com o passado poderia evitar a catástrofe.

Nada de igualmente dramático parece aguardar o Brasil nesta virada de século, quando Fernando Henrique Cardoso encerra o primeiro ano de seu segundo mandato. Contrariando os prognósticos aterradores dos advogados da política de atrelamento do Real ao dólar, e superando de longe o esperado pelos mais otimistas de seus críticos - que denunciavam a política de juros altos indispensável para manter aquela regra e a enorme vulnerabilidade a que a mesma expunha a economia brasileira -, desconfirmando as expectativas de ambos, pois, o Real sofreu forte depreciação desde a passagem ao regime de câmbio flutuante (sua cotação, que rondava a casa de 1,21 ao dólar em janeiro, chega a ultrapassar a marca dos 2/1 em várias ocasiões), sem que, por isso, ocorresse a explosão inflacionaria tida como certa pelos primeiros, nem a severa recessão aceita pelos segundos como o preço a pagar durante curto espaço de tempo para desmanchar a "armadilha do câmbio". O impacto da desvalorização sobre a saúde financeira das empresas nem de longe replicou o caso asiático (onde as empresas, operando dentro de um regime de acumulação fundado no crédito, saíam de um período de sobre-investimento e estavam, em conseqüência, cobertas de dívidas9 9 Cf. Wade, Robert, "The Asian debt-and-development crisis of 1997. Causes and consequences". World Development, vol. 26, no. 8, 1998, pp. 1535-1553. ; condições muito distintas das que prevaleciam no universo empresarial brasileiro no início de 1999). Os mais otimistas entrevêem, inclusive, a possibilidade de um novo surto de crescimento, baseado em produção interna substitutiva e no aproveitamento mais intenso de um parque industrial que se modernizou enormemente mediante a incorporação de equipamentos e métodos de gestão mais avançados.

Decerto, seria possível contrabalançar esta visão com dados menos animadores: os resultados da balança comercial continuam frustrantes; o desequilíbrio financeiro do setor público permanece crítico, e sob muitos aspectos foi agravado (aumento explosivo do custo da dívida); a momentânea estabilização da taxa de câmbio tem resultado da entrada de investimento de curto prazo e, portanto, sobremaneira voláteis. Visto por esse ângulo, a economia brasileira poderia, até, atingir uma posição de equilíbrio. Mas este seria eminentemente instável e teria como correlato um desempenho medíocre.

Seja como for, para efeito do exercício que se faz aqui o que importa é o grau relativamente baixo do impacto da crise externa, em nada comparável ao que se viveu no Brasil na década passada, nem ao que se viu ainda há pouco no caso da Rússia e de vários países asiáticos.

Outro tanto poderia ser dito a respeito dos efeitos políticos da crise. Pelo desgaste que o descontrole cambial, em nome do qual dezenas de bilhões de dólares em divisas foram queimadas, impunha à sua imagem; pela sucessão de escândalos que antecedem de pouco e acompanha o período crítico de mudança na política econômica; pela evidência, enfim, de que as promessas de dar absoluta prioridade ao desemprego em seu segundo mandato não seriam cumpridas - por esses e outros motivos os índices de aprovação a Fernando Henrique Cardoso, nas pesquisas de opinião pública, despencaram. Por outro lado, o empenho em perseguir as metas de ajuste fiscal acordadas com o FMI traduziu-se imediatamente em tensões agudas na relação do poder central com os governos estaduais, gerando indisfarçavel mal-estar mesmo em casos de governos exercidos por aliados. Com a posição do presidente assim fragilizada, e no quadro de incerteza que passou a cercar o seu futuro, as dissenções entre partidos e notáveis da coalizão governante se acentuaram, o cálculo de todos parecendo ter como horizonte, já agora, a próxima disputa pela Presidência da República. Caberia mencionar também os atritos entre os governos subnacionais em torno da distribuição da receita tributária, e da política a que muitos se entregam, de atrair investimentos para os seus respectivos estados através da concessão de generosos incentivos fiscais. Fala-se em refazer o "pacto federativo", e a reiterada não-decisão quanto ao projeto de reforma tributária dá uma medida das dificuldades aí envolvidas. Haveria que dizer ainda uma palavra sobre as tensões no relacionamento entre os poderes da República - o Executivo com o Legislativo, e ambos com o Judiciário. O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso anuncia-se claramente mais espinhoso do que o primeiro, no plano das interações políticas.

Nem por isso parece estar fadado a viver comoções comparáveis às que sacudiram o governo do general Figueiredo, ou mesmo o de seu sucessor, o pacato José Sarney, dissidente de última hora que compôs com Tancredo Neves a chapa de oposição no colégio eleitoral e acabaria, para grande espanto seu, na Presidência da República. Apesar de tudo - elevado nível de desemprego, perdas salariais importantes, disparidades sociais enormes - o nível de mobilização social no país continua baixo, as greves são relativamente pouco numerosas, de pequeno alcance e duração reduzida. Aqui e ali, uma surpresa, como o movimento de caminhoneiros que, em meados de 1999, paralisou as estradas em todo o país e forçou o governo a pagar, pela volta à normalidade, o preço de concessões expressivas. A única força social organizada capaz de desafiar sustentadamente o governo tem sido o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Com sua estratégia de ocupação de propriedades rurais improdutivas, a participação organizada em saques para obtenção de alimentos em regiões atingidas pela seca e um trabalho permanente de mobilização política, o MST tem logrado impor-se como interlocutor obrigado de um governo que tem motivos de sobra para lhe votar franca hostilidade. Mas, apesar do apoio que encontra em vários setores, o impacto do MST na cena política continua restrito. A competição eleitoral continua regendo o cálculo dos atores políticos relevantes, num contexto geral em que a apatia dá a nota.

Como interpretar essas duas séries de fatos? Quão permanentes são as tendências nelas desenhadas? Como ajuizá-las, do ponto de vista da democracia? Não tenho respostas prontas para essas perguntas, mas acredito poder formular algumas conjecturas, que ofereço ao leitor para alimentar o debate.

Começo pela primeira, que é também a mais fácil. Como entender a diferença na intensidade do impacto provocado pela crise financeira desses últimos dois anos? Parte da resposta deve ser buscada no contraste entre as condições predominantes na economia política internacional em um e outro momento. Em 1979/82 a economia capitalista mundial atravessava o momento mais delicado da transição que ela vem operando, sob a reafirmada hegemonia americana, nos últimos vinte anos. Já tive ocasião de referir um aspecto fundamental desse movimento: a mudança de orientação do Banco Central americano, que lançou os juros às alturas, precipitou a economia internacional em sua recessão mais profunda desde o pós-guerra, e pôs um termo ao que os franceses denominam "a economia do endividamento", que prevalecia desde o final dos anos 6010 10 A literatura sobre o tema é enorme. Cito apenas alguns títulos particularmente ricos e/ou úteis. Cf. Rapport du CEPII, Économie Mondiale: la Montée des Tensions. Paris, Économica, 1983; Stephen A. Marglin e Juliet B. Schor (eds.) The Golden Age of Capitalism. Reinterpreting the Postwar Experience, Oxford, Clarendon Press, 1990; Philip Armstrong, Adrew Glyn e John Harrison. Capitalism Since World War II. The Making and Breakup of the Great Boom. London, Fontana Paperbacks, 1984; Giovani Arrighi, The Long Twentieth Century, London e New York, Verso Books, 1994, destacando, por sua grande acuidade prospectiva, o artigo de Maria da Conceição Tavares, "A retomada da hegemonia norte-americana", que veio à luz originalmente, em 1985, na Revista de Economia Política, e foi republicado na coletânea editada pela autora e por José Luis Fiori Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização. Petrópolis, Editora Vozes, 1997, pp. 27-54. . O outro aspecto crucial diz respeito ao abandono da política de détente e a abertura do período caracterizados pelos analistas das relações internacionais como a Segunda Guerra Fria11 11 Esta dimensão é salientada em estudo recente de minha autoria. Cf. Desencontros: o Brasil e o mundo no limiar dos anos 80. IFCH/UNICAMP, Primeira Versão, n. 88, novembro, 1999. . No contexto de máxima liberdade de movimentos para a circulação de capitais de curto prazo criado sob a égide dessa hegemonia, as crises financeiras tendem a se tornar recorrentes: os últimos episódios foram apenas os mais excitantes da série. Mas até aqui a intervenção das autoridades monetárias norte-americanas, com o respaldo do Japão e da Europa, instrumentada pelo FMI, tem logrado evitar que os centros nervosos do sistema sejam mais seriamente afetados. Dado o desempenho exuberante da economia norte-americana" logo os investidores abandonam os temores e voltam a se entregar à euforia dos ganhos fáceis - ainda que deslocando os seus haveres para outras praças e deixando para trás muitos "emergentes" em sérios percalços.

O contexto internacional, a natureza e a profundidade da crise nesse âmbito: este o primeiro elemento a destacar. O outro tem a ver com as mudanças estruturais da economia brasileira ao longo de uma década de reformas. Não tenho tempo nem espaço para me alongar sobre esse aspecto, de resto perceptível a olho nu para qualquer observador minimamente informado. O que, sim, desejo assinalar é a maneira como o caminho percorrido orienta os passos seguintes, limitando severamente o campo das possibilidades. Abertura comercial e financeira, privatizações - para o conjunto dos atores relevantes essas mudanças aparecem sob o signo da irreversibilidade. Já fora assim na conjuntura de 1992, e esta é a chave para entender o caráter afinal de contas pouco traumático da deposição de Collor12 12 Desenvolvi esse argumento no artigo "O impeachment: uma crise singular", escrito em 1992 e publicado na coletânea O presente como história, op. cit., pp. 401-16. O que estamos assistindo hoje é a um segundo teste. A situação nos anos 80 era inteiramente outra: no final da década o caminho se bifurcara, e a luta para decidir o rumo a seguir fazia parte da crise, como um de seus ingredientes básicos. Mutatis mutandi, esse comentário vale para a dimensão econômica e política, que naquele momento chegavam a se confundir e que já por ocasião do episódio do impeachment estavam de novo diferenciadas.

Este comentário me remete à segunda pergunta. Qual o grau de permanência provável das tendências que podemos observar agora? Dito de outra forma, qual a probabilidade de que venhamos a ter em futuro próximo deslocamentos econômicos e políticos de envergadura equivalente àqueles que presenciamos tão pouco tempo atrás?

O argumento esboçado em resposta à primeira pergunta me leva a inferir que essa probabilidade é baixa, embora não de todo descartável. Por um lado, o contexto internacional continua sendo algo menos que consolidado. A crise financeira dos últimos anos deixou patente as divergências entre os grandes do mundo sobre o formato adequado a imprimir ao sistema financeiro internacional, e os desencontros que inviabilizaram o lançamento da Rodada do Milênio da OMC deram uma mostra da magnitude e a intensidade dos interesses em jogo na etapa atual do processo de reestruturação econômica em escala mundial. Que encaminhamento receberão esses conflitos? Como poderão vir a se refletir no desempenho da economia internacional? Em termos mais imediatos, o que se passará com a economia americana? Qual o tamanho do risco de que o boom que ela conhece ainda hoje termine por desembocar em uma queima gigantesca de ativos, inaugurando um período de recessão prolongada? Afastada a hipótese de grandes alterações nessas áreas - e desconsiderado o tema da integração hemisférica, com a ALCA, que poderia ter forte impacto sobre os equilíbrios sociais e políticos no país - o mais provável é que, embora importantes, as mudanças no Brasil tenham, digamos assim, alcance médio. Isto é, que tenhamos, em proporções variáveis dentro de limites não muito dilatados, a combinação de persistência e mudança tão cara à tradição nacional.

Chego, finalmente, à terceira pergunta: se é assim, como avaliar perspectivas de futuro, do ponto de vista do estalão democrático? A dificuldade aqui reside no caráter "essencialmente contestável" desse padrão de medida. Aqueles que entendem a democracia como o jogo rotineiro de seleção de dirigentes através do mecanismo da competição eleitoral, garantidas naturalmente as condições mínimas para que a mesma não se converta em mera farsa, podem se regozijar com o cenário projetado aqui. Se o argumento tiver validade, a democracia no Brasil, assim entendida, andará bem, obrigado. Mas essa é uma concepção estreita e dificilmente sustentável de democracia - se queremos preservar neste termo uma relação ainda que tênue com o seu sentido original. Não é preciso recorrer aos modelos mais exigentes da "democracia participativa" ou da "democracia deliberativa" para perceber que mesmo uma definição minimalista do termo solicita um conjunto de condições sociais que a sociedade brasileira continua muito longe de ostentar13 13 Cf. Guillermo O'Donnell, "Poliarquia e a (in)efetividade da lei na América Latina". Novos Estudos, n. 51, 1998, p. 37-61. . E o que é mais grave, nada indica que a continuidade das tendências predominantes, hoje, no plano econômico e político venha a mudar significativamente esse quadro.

Fica ao leitor que preza a democracia a escolha entre três das possibilidades seguintes: 1) inclinar-se pela concepção criticada, e encontrar algum conforto nela; 2) aceitar a objeção esboçada e fazer a aposta pascaliana de que o campo do possível venha a se expandir acentuadamente no futuro, por algumas das razões discutidas ou por outras não consideradas; 3) descartar os resultados do exercício, julgando ter sido este mal conduzido e equivocado. Mas, então, na ocorrência do encontro imaginário suposto, os papéis se invertem: o autor toma o lugar do ouvinte céptico, e cabe a este expor as razões que justificariam o seu gesto.

  • 1 Cf. R. M. Zerkowski e M. A. G. Veloso, "Seis décadas de economia brasileira através do PIB". Revista Brasileira de Economia, 36 (3), 1982.
  • 2
    2 O grau de abertura financeira varia de acordo com a maior ou menor facilidade de residentes operarem com ativos e passivos denominados em moeda estrangeira e com a maior ou menor facilidade de acesso de não-residentes ao mercado financeiro doméstico. Cf. Daniela Magalhães Prates, "Investimentos de portfolio no mercado financeiro doméstico", in Maria Cristina Penido de Freitas (org.), Abertura do sistema financeiro no Brasil nos Anos 90. São Paulo, Edições Fundap/Papesp/IPEA, 1999, pp. 17-60.
  • 3
    3 Para uma análise política da intervenção do Estado na contenção da crise bancária que se esboçava, cf. Jacques Mick, A Globalização financeira e as mudanças na regulamentação do sistema financeiro nacional (1994-1996). Um estudo sob a perspectiva da hegemonia financeira. Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, 1998.
  • 4
    4 Cf. Ana Cláudia Além e Fábio Giambiagi, "Dívida pública em 1999: um ponto de inflexão?". Jornal dos Economistas, n. 127, nov., 1999, pp. 8-9.
  • 5
    5 Cf. Júllio Gomes de Almeida, "Empresas livres na economia brasileira: mudanças patrimoniais e rentabilidade (1978-1984)", in José Antonio Ortega, Financiamento e desempenho financeiro das empresas industriais do Brasil. Texto para Discussão n. 112, Instituto de Economia Industrial, UFRJ, março, 1987.
  • 6
    6 Rogério Furquim Werneck, "Poupança estatal, dívida externa e crise financeira do setor público", em sua coletânea Empresas Estatais e Política Macroeconômica, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1987.
  • 8 Cf. Wilson Suzigan (coord.), Estratégia e desenvolvimento de C & T nas empresas nacionais. UNICAMP, 1989.
  • Discuti o significado da indústria nacional de informático e outras manifestações de dinamismo da indússtria brasileira em artigo que questiona o senso comum impícito na metáfora da década perdida, salientando o caráter contraditório das tendências que marcam a situação de crise vivida pela economia brasileira nessa época. Cf. Fragmentos do novo? Brasil: empresariado e crise no limiar dos 90. Trabalho elaborado com base na comunicação apresentada no Seminário Internacional "O Novo Empresariado na América Latina". GT "Empresarios y Estado" do CLCSO, Santiago, Chile, 14-17 de novembro de 1990,
  • e publicado na coletânea de minha autoria O presente como história: Economia e política no Brasil pós-64. IFCH/UNICAMP, 1997, pp. 131-159.
  • 9 Cf. Wade, Robert, "The Asian debt-and-development crisis of 1997. Causes and consequences". World Development, vol. 26, no. 8, 1998, pp. 1535-1553.
  • 10 A literatura sobre o tema é enorme. Cito apenas alguns títulos particularmente ricos e/ou úteis. Cf. Rapport du CEPII, Économie Mondiale: la Montée des Tensions. Paris, Économica, 1983;
  • Stephen A. Marglin e Juliet B. Schor (eds.) The Golden Age of Capitalism. Reinterpreting the Postwar Experience, Oxford, Clarendon Press, 1990;
  • Philip Armstrong, Adrew Glyn e John Harrison. Capitalism Since World War II. The Making and Breakup of the Great Boom. London, Fontana Paperbacks, 1984;
  • Giovani Arrighi, The Long Twentieth Century, London e New York, Verso Books, 1994,
  • destacando, por sua grande acuidade prospectiva, o artigo de Maria da Conceição Tavares, "A retomada da hegemonia norte-americana", que veio à luz originalmente, em 1985, na Revista de Economia Política,
  • e foi republicado na coletânea editada pela autora e por José Luis Fiori Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização. Petrópolis, Editora Vozes, 1997, pp. 27-54.
  • 11 Esta dimensão é salientada em estudo recente de minha autoria. Cf. Desencontros: o Brasil e o mundo no limiar dos anos 80. IFCH/UNICAMP, Primeira Versão, n. 88, novembro, 1999.
  • 13 Cf. Guillermo O'Donnell, "Poliarquia e a (in)efetividade da lei na América Latina". Novos Estudos, n. 51, 1998, p. 37-61.
  • 1
    Cf. R. M. Zerkowski e M. A. G. Veloso, "Seis décadas de economia brasileira através do PIB".
    Revista Brasileira de Economia, 36 (3), 1982.
  • 2
    O grau de abertura financeira varia de acordo com a maior ou menor facilidade de residentes operarem com ativos e passivos denominados em moeda estrangeira e com a maior ou menor facilidade de acesso de não-residentes ao mercado financeiro doméstico. Cf. Daniela Magalhães Prates, "Investimentos de portfolio no mercado financeiro doméstico", in Maria Cristina Penido de Freitas (org.),
    Abertura do sistema financeiro no Brasil nos Anos 90. São Paulo, Edições Fundap/Papesp/IPEA, 1999, pp. 17-60.
  • 3
    Para uma análise política da intervenção do Estado na contenção da crise bancária que se esboçava, cf. Jacques Mick,
    A Globalização financeira e as mudanças na regulamentação do sistema financeiro nacional (1994-1996). Um estudo sob a perspectiva da hegemonia financeira. Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, 1998.
  • 4
    Cf. Ana Cláudia Além e Fábio Giambiagi, "Dívida pública em 1999: um ponto de inflexão?".
    Jornal dos Economistas, n. 127, nov., 1999, pp. 8-9.
  • 5
    Cf. Júllio Gomes de Almeida, "Empresas livres na economia brasileira: mudanças patrimoniais e rentabilidade (1978-1984)", in José Antonio Ortega,
    Financiamento e desempenho financeiro das empresas industriais do Brasil. Texto para Discussão n. 112, Instituto de Economia Industrial, UFRJ, março, 1987.
  • 6
    Rogério Furquim Werneck, "Poupança estatal, dívida externa e crise financeira do setor público", em sua coletânea
    Empresas Estatais e Política Macroeconômica, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1987.
  • 7
    Dados tabulados gentilmente fornecidos por Eduardo Garuti Noronha, a quem o autor agradece.
  • 8
    Cf. Wilson Suzigan (coord.),
    Estratégia e desenvolvimento de C & T nas empresas nacionais. UNICAMP, 1989. Discuti o significado da indústria nacional de informático e outras manifestações de dinamismo da indússtria brasileira em artigo que questiona o senso comum impícito na metáfora da década perdida, salientando o caráter contraditório das tendências que marcam a situação de crise vivida pela economia brasileira nessa época. Cf.
    Fragmentos do novo? Brasil: empresariado e crise no limiar dos 90. Trabalho elaborado com base na comunicação apresentada no Seminário Internacional "O Novo Empresariado na América Latina". GT "Empresarios y Estado" do CLCSO, Santiago, Chile, 14-17 de novembro de 1990, e publicado na coletânea de minha autoria
    O presente como história: Economia e política no Brasil pós-64. IFCH/UNICAMP, 1997, pp. 131-159.
  • 9
    Cf. Wade, Robert, "The Asian debt-and-development crisis of 1997. Causes and consequences".
    World Development, vol. 26, no. 8, 1998, pp. 1535-1553.
  • 10
    A literatura sobre o tema é enorme. Cito apenas alguns títulos particularmente ricos e/ou úteis. Cf. Rapport du CEPII,
    Économie Mondiale: la Montée des Tensions. Paris, Économica, 1983; Stephen A. Marglin e Juliet B. Schor (eds.)
    The Golden Age of Capitalism. Reinterpreting the Postwar Experience, Oxford, Clarendon Press, 1990; Philip Armstrong, Adrew Glyn e John Harrison.
    Capitalism Since World War II. The Making and Breakup of the Great Boom. London, Fontana Paperbacks, 1984; Giovani Arrighi,
    The Long Twentieth Century, London e New York, Verso Books, 1994, destacando, por sua grande acuidade prospectiva, o artigo de Maria da Conceição Tavares, "A retomada da hegemonia norte-americana", que veio à luz originalmente, em 1985, na
    Revista de Economia Política, e foi republicado na coletânea editada pela autora e por José Luis Fiori
    Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização. Petrópolis, Editora Vozes, 1997, pp. 27-54.
  • 11
    Esta dimensão é salientada em estudo recente de minha autoria. Cf.
    Desencontros: o Brasil e o mundo no limiar dos anos 80. IFCH/UNICAMP,
    Primeira Versão, n. 88, novembro, 1999.
  • 12
    Desenvolvi esse argumento no artigo "O impeachment: uma crise singular", escrito em 1992 e publicado na coletânea
    O presente como história, op. cit., pp. 401-16.
  • 13
    Cf. Guillermo O'Donnell, "Poliarquia e a (in)efetividade da lei na América Latina".
    Novos Estudos, n. 51, 1998, p. 37-61.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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