Acessibilidade / Reportar erro

Chile: a democracia e os limites do consenso

Chile: democracy and the limits of consensus

Resumos

A capacidade do governo presidido por Ricardo Lagos de promover as reformas exigidas por seus eleitores é examinada contra o pano de fundo dos pesados obstáculos que o legado do regime autocrático de Pinochet coloca no seu caminho. Se falhar, argumenta-se, a coalizão de centro-esquerda que governa o Chile há urna década corre o risco de esgotar-se e o crescimento da direita poderá tornar-se irrefreável.

Chile; Chile


The ability of President Ricardo Lagos government to promote the reforms claimed for by its supporters is examined against the background of the heavy obstacles put in its way by the legacy of Pinochets autocratic regime. If it does not succeed, it is argued, the center-left coalition that governs Chile since 1990 runs the risk of exhausting itself, with the consequent growth of the Right.

Chile; Chile


AMÉRICA LATINA

Chile: a democracia e os limites do consenso

Chile: democracy and the limits of consensus

Renato Martins

Doutorando em ciência política na USP, onde prepara tese sobre a participação sindical no processo de redemocratização do Brasil e do Chile

RESUMO

A capacidade do governo presidido por Ricardo Lagos de promover as reformas exigidas por seus eleitores é examinada contra o pano de fundo dos pesados obstáculos que o legado do regime autocrático de Pinochet coloca no seu caminho. Se falhar, argumenta-se, a coalizão de centro-esquerda que governa o Chile há urna década corre o risco de esgotar-se e o crescimento da direita poderá tornar-se irrefreável.

Palavras-chave: Chile, reformas democráticas; Chile, perspectivas políticas.

ABSTRACT

The ability of President Ricardo Lagos government to promote the reforms claimed for by its supporters is examined against the background of the heavy obstacles put in its way by the legacy of Pinochets autocratic regime. If it does not succeed, it is argued, the center-left coalition that governs Chile since 1990 runs the risk of exhausting itself, with the consequent growth of the Right.

Keywords: Chile, democratic reforms; Chile, political perspectives.

A vitória de Ricardo Lagos no segundo turno das eleições presidenciais significa que a Concertación por la Democracia, coalizão de centro-esquerda que governa o Chile desde 1990, terá mais uma oportunidade, ao longo dos próximos seis anos, para promover as mudanças reclamadas pela maioria do país. A julgar pela expressiva votação do direitista Joaquim Lavin, esta poderá ser a última chance da frente governista liderada pelos socialistas e os democratas. Se as mudanças políticas pendentes desde a transição forem mais uma vez postergadas, o crescimento da direita poderá tornar-se irrefreável. Aliás, o prazo do novo presidente é bastante curto, já que as próximas eleições legislativas ocorrerão em 2001. é verdade que Lagos tem pouco a ver com o ex-presidente Salvador Allende, último socialista a governar o país. Se, por um lado, a imagem de Lagos está associada à luta anti-autoritária, à defesa dos direitos humanos e ao apoio às mobilizações que puseram fim à ditadura do general Augusto Pinochet, por outro ele representa a continuidade de um governo que não foi capaz de promover as transformações exigidas pela maioria da população, ao preservar as bases do modelo econômico herdado do período militar. Em razão dessa herança o Chile tornou-se o segundo país mais desigual da América Latina, só perdendo para o Brasil. Dados da CEPAL indicam que a concentração de renda nos últimos 10 anos aumentou continuamente entre os chilenos. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a desigualdade, em termos globais, não mudou no Chile durante os governo civis.

Apesar do crescimento acelerado dos últimos anos (média de 8% ao ano), o Chile vive uma crise econômica que se tornou mais aguda desde a crise asiática. Ao final de 1999 o índice oficial de desemprego chegou a 12%. Para alguns institutos independentes essas taxas são muito mais elevadas, podendo chegar a 30% da população economicamente ativa. A questão que os chilenos se colocam é a seguinte: se durante 14 anos de crescimento contínuo não se resolveram os problemas da pobreza e da injustiça social, como o próximo governo poderá resolvê-los se não se alteram as bases do modelo econômico, num contexto de perda de dinamismo da economia? Lagos, todavia, não incorporou ao seu programa propostas de mudanças econômicas que possam levar à redução das desigualdades entre ricos e pobres. O imobilismo em face dessas desigualdades poderá custar caro à Concertación.

Não são menores os desafios do governo Lagos no terreno político-institucional. Dos países do Cone Sul, o Chile foi o único em que os militares ingressaram na transição em uma posição realmente de força, o que lhes possibilitou impor as regras da transição e garantir importantes prerrogativas sob o novo regime. Isto foi possível porque o Exército encontrava-se unido, o regime autoritário contava com o apoio de uma parcela significativa da sociedade e a economia voltara a crescer. Analistas chilenos chamam de legislação de amarre as restrições legais impostas de última hora após a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988. Essa legislação está baseada em três instituições que se reforçam mutuamente: o sistema eleitoral binominal, os senadores designados e as rígidas normas para a reforma da Constituição de 1980.

Lagos terá de enfrentar de uma vez por todas os problemas dos chamados enclaves autoritários e, para atender aos eleitores que o escolheram, ele deve vencer as resistências dos empresários - que votaram maciçamente em Lavin - dos partidos de direita e dos militares, contrários a qualquer mudança na Constituição. Em contrapartida, ele contaria com o apoio de importantes setores da sociedade civil, mesmo de grupos mais à esquerda, que optaram por apoiá-lo no segundo turno diante da ameaça de retrocesso representada por Lavín. O sindicalismo, aglutinado em torno da Central Unitaria de Trabajadores, também deseja mudanças, uma vez que a atual legislação cerceia a negociação coletiva e restringe o papel dos sindicatos. O novo governo precisa demonstrar disposição para acabar rapidamente com esse tipo de restrição. Sem a eliminação definitiva das heranças do período militar, é muito difícil imaginar a modernização política do país.

Analisam-se neste artigo as bases da transição chilena, cujas características ajudam a esclarecer as dificuldades que o governo Lagos terá pela frente. O que teria levado os principais partidos de oposição a aceitar as regras da transição negociada imposta por Pinochet? Quais foram as conseqüências dessa opção para a democracia chilena? Por que a "democracia protegida" acabou prevalecendo sobre as demais perspectivas de mudança do regime autoritário? Qual foi o papel das mobilizações sociais contra o governo autoritário e como se operou a rearticulação dos partidos políticos no contexto da transição? Essas são algumas questões discutidas a seguir.

CONSTITUIÇÃO AUTORITÁRIA E DEMOCRACIA PROTEGIDA

As iniciativas da ditadura chilena no campo institucional foram bem particulares, principalmente quando comparadas às demais experiências autoritárias dos países da região. Na realidade, elas constituem uma das principais heranças do regime autoritário1 1 O destaque conferido ao modelo econômico implantado pela ditadura acabou deixando de lado a dimensão institucional da experiência chilena. Na realidade, isso faz parte da maneira equivocada como o Chile é interpretado em outros países. Além disso, o êxito econômico do período autoritário, muito elogiado pelos defensores do neoliberalismo, deve ser relativizado. O crescimento médio do PIB durante o governo militar foi de apenas 3,2% ano, bastante inferior ao crescimento, por exemplo, dos "tigres asiáticos", aos quais o país foi freqüentemente associado. . Pela primeira vez na história da América Latina um governo militar recorreu a princípios jurídicos para perpetuar uma ordem autoritária. Desde sempre os militares lançaram mão de artifícios legais na busca de soluções de curto prazo. Em algumas experiências, como no caso brasileiro, os instrumentos jurídicos, revestidos de um caráter de exceção, assumiram a forma de atos institucionais. Jamais se conseguiu, por meio dessa legislação, conferir legitimidade para regimes implantados por golpes de estado, muitas vezes violentos, contra a ordem democrática. Esses regimes jamais lograram se legitimar e somente contaram com algum apoio popular nos momentos de forte crescimento econômico. A experiência chilena é distinta nesse aspecto e, como lembra Luiz Maira, "a idéia de uma ditadura 'com Constituição', capaz de se beneficiar dos princípios do ordenamento jurídico, logrando um prolongamento de sua hegemonia na sociedade para além do término do regime autoritário, simplesmente não tinha precedentes na América Latina, onde os velhos e novos ditadores sempre coincidiram com o uso instrumental das normas do direito"2 2 Luiz Maira A. Los tres Chile de la segunda mitad del siglo XX. Santiago, LOM, 1998, p. 33. .

De fato, a Constituição de 1980 deu início a uma experiência de ruptura e continuidade da ordem autoritária sem precedentes na América Latina. Aprovada em plebiscito fraudulento realizado sem a supervisão de tribunais independentes, numa das fases de maior repressão do governo militar, a Constituição representou a institucionalização do regime autoritário. Segundo resultados oficiais, 67% dos chilenos foram "a favor" da nova Constituição, conferindo legitimidade para o governo prosseguir o seu projeto de reestruturação da sociedade chilena. Salvaguardas constitucionais, introduzidas no texto sob a forma de "disposições transitórias", atribuíam poderes autocráticos ao presidente, que passou a contar com a possibilidade legal de decretar estado de emergência e estado de sítio, declarar guerra, indicar as autoridades militares de acordo com a Junta de governo e remover prefeitos. A aprovação da Constituição representou a "eleição" de Pinochet, que a partir de então se viu fortalecido para enfrentar as condenações internacionais às violações dos direitos humanos e prosseguir as mudanças políticas e econômicas que vinham sendo impostas desde o golpe3 3 A própria Assembléia Geral da ONU aprovou, com o voto contrário dos EUA, uma resolução condenando o governo chileno por violação dos direitos humanos. .

Por meio da Constituição também foram definidos o itinerário da abertura tutelada, as regras e os prazos para a sua conclusão. Segundo as novas regras, Pinochet se manteria à frente do governo por um período de oito anos com poderes excepcionais atribuídos pelas disposições transitórias. Concluída esta fase as autoridades militares indicariam, por unanimidade, um substituto, que seria submetido a plebiscito sucessório. Em caso de aprovação teria início um período de mais oito anos de governo, ao final do qual se convocariam eleições livres. Em caso de reprovação, eleições presidenciais seriam convocadas no prazo de um ano. Como se verá adiante, o processo de amarre ocorreu justamente no interregno entre a derrota de Pinochet no plebiscito sucessório, realizado em 5 de outubro de 1988, e a posse de Patricio Aylwin, ocorrida em 11 de março de 1990.

Para Tomás Moulian, o período que se inaugura com a Constituição e se estende até a derrota do governo no plebiscito sucessório(1980 - 1988) corresponde a uma "ditadura constitucional", distinta da fase de "ditadura terrorista" iniciada com o golpe e caraterizada pela prática do terror de Estado. Para ele, trata-se de uma etapa em que convivem uma Constituição real e outra virtual. Por um lado, encontram-se as bases legais de um virtual sistema semi-representativo com a participação de partidos políticos, a realização de eleições, a garantia de direitos individuais (habeas corpus) e coletivos (educação, saúde e meio ambiente). Por outro lado, há as disposições transitórias, que concentram de fato poderes extraordinários nas mãos de Pinochet. A Constituição seria a expressão acabada do projeto de modernização formulado pelos militares e que consistia, basicamente, no estabelecimento de uma ordem autoritária sustentada: "a) num sistema político de democracia protegida, materializada através de um Executivo forte; de um Parlamento com composição mista; da tutela das Forças Armadas sobre a ordem constitucional e os 'objetivos permanentes da nação'; da autonomia de funcionamento das Forças Armadas; e da exclusão dos grupos e das 'doutrinas totalitárias'; b) numa estrutura socioeconômica com proteção constitucional, realizada através do fortalecimento do direito de propriedade, a restrição dos direitos trabalhistas e a autonomia do Banco Central, e, c) um sistema constitucional muito difícil de modificar legalmente".4 4 Tomás Moulian, Chile actual: anatomía de un mito. Santiago, LOM, 1997.

"Democracia protegida" ou "nova democracia" eram, na linguagem da ditadura, as metas a serem alcançadas no processo de abertura. Essa utopia autoritária foi sendo construída como parte da estratégia de liberalização tutelada pelas Forças Armadas. é preciso assinalar que o processo de liberalização levado a cabo no Chile não corresponde inteiramente a algumas das principais experiências estudadas por Guillermo O'Donnell.5 5 Guillermo O'Donnell, "Notas para el estudio de procesos de democratización política a partir del Estado Burocrático-Autoritário". in Contrapuntos: ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Buenos Aires, Paidós, 1997. No Chile não se verificou uma "coalizão liberalizante" formada por setores "brandos" do governo e a oposição moderada. Os "brandos" chilenos eram "duros", no sentido de que eles também não abriam mão da institucionalização do regime autoritário. A liberalização chilena foi realizada com o claro objetivo de perpetuar a ordem autoritária, e não de encontrar uma saída honrosa para ela. Esse plano começou a se delinear bem antes da aprovação da Constituição, e a primeira referência a um regime liberalizado feita por Pinochet, em 1977, já estabelecia as etapas da futura transição política.6 6 A primeira vez que se define um itinerário de liberalização foi no discurso proferido por Pinochet no Cerro de Chacarillas, em 1977. A transição para a democracia protegida se concluiria em três etapas: "recuperação", até 1980; "transição", até, 1985 e, finalmente, "normalidade", de 1985 em diante. O discurso de Chacarillas é a expressão de correntes institucionalizadoras presentes no interior do governo.

O ideal da "democracia protegida" projetava a implantação de uma ordem pública na qual o processo decisório estivesse subordinado à racionalidade econômica. As decisões políticas deveriam ser tomadas de forma análoga às do mercado, ou seja, sem interferência da vontade ou intencionalidade dos atores políticos. A vontade popular deveria se subordinar aos requisitos do equilíbrio macroeconômico. Com a autolimitação da vontade se evitaria o caos das democracias populistas, nas quais as decisões estão sujeitas a compromissos e são adotadas em função de demandas e mobilizações de massas. Como nota Moulian, na democracia protegida as decisões políticas e legislativas deveriam ser concebidas "como a produção técnico-científica (...) antípoda da política/vontade popular da democracia de massas, já que esta só pode ser uma vontade média, constituída por critérios de contingência e assediada pela contaminação de interesses particulares em luta". O projeto autoritário estava baseado numa democracia sem incertezas, na qual a contingência seria banida e as mudanças não poderiam significar transformação do modelo econômico instaurado sob a "revolução capitalista".

CRISE ECONÔMICA E PROTESTAS SOCIAIS

Desde 1980, portanto, as regras, o objetivo e o itinerário da transição negociada estavam estabelecidos. As primeiras ameaças aos planos de liberalização do governo surgiram com a crise econômica que atingiu o país em 1982 e a eclosão das mobilizações de massas contra a ditadura, que ficaram conhecidas como protestas.

Com relação à situação econômica deve-se notar que o programa de reformas implementado após o golpe consistiu basicamente na liberalização dos mercados, na abertura comercial e na privatização de empresas e serviços públicos.7 7 Podem-se mencionar, entre outras medidas adotadas pelo governo, a redução da tarifa média de importação de 105%, em 1973, para 36% em 1976 e 10% em 1979; a estatização da dívida externa (em 1981, 64% da dívida correspondiam ao setor privado, em 1987, apenas 14%); eliminação do controle de preços e estabelecimento do câmbio fixo. Sobre a política econômica da ditadura ver Cecilia Montero. La revolucion empresarial chilena. Santiago, 1997. A autora subdivide a implementação das políticas neoliberais em três fases: "normalização" (1973-1975), a fase mais ortodoxa de abertura radical (1976-1982) e a fase pragmática 1983-1989). Em 1973, o Estado controlava 229 empresas e, ao término do regime, apenas 6 permaneciam totalmente nas suas mãos.8 8 Comparando-se o programa de privatizações no Chile e na Inglaterra verifica-se que em quatro anos o Chile privatizou o dobro do que a Inglaterra em oito anos. Ver Antonio Manuel Garretón, "Reforma del Estado e Cambio en la Matriz Sociopolítica". in Hacia una Nueva Era Política. O choque provocado pelas reformas não tardou a produzir vulnerabilidades externas e fortes desequilíbrios produtivos e financeiros internos. Em 1982 e 1983 uma crise decorrente do ajuste neoliberal lançou o país numa recessão sem precedentes. Nesses anos, o Produto Interno Bruto registrou um recuo de 13,4% e 3,5%, respectivamente; as taxas de desemprego atingiram 26,4% e 30,4%, isto é, um em cada três chilenos que procuravam emprego não encontrava ocupação; os salários reais tiveram uma queda de 10% e o salário mínimo sofreu uma redução de 25%. A inflação foi de 20%, o dobro da registrada no princípio dos anos oitenta, e o número de falências e fechamentos de empresas, em 1982, foi maior do que o verificado nos três anos seguintes ao golpe. 9 9 Ver Enrique Cañas Kirby. Processo Politico en Chile: 1973-1990. Santiago, Editorial Andres Bello, 1997.

Em 1983, alguns dias depois de firmado um acordo com o FMI, o governo liquidou três bancos e interveio em outras cinco instituições financeiras, transferindo recursos públicos da ordem de 25% do PIB para salvar o setor financeiro privado. Com a crise econômica o dogma das políticas neoliberais foi abalado, e as verdades que vinham sendo pregadas pelo governo se tornaram duvidosas e relativas. O exemplo do cambio fixo é ilustrativo. A defesa intransigente dessa política neutralizou as críticas que atribuíam grande parte das dificuldades econômicas à sobrevalorização da moeda e ao déficit externo. O governo foi incapaz de enxergar os próprios sinais emitidos pelo mercado e postergou de forma irresponsável as mudanças na política cambial. Quando se decidiu pelo ajuste do câmbio era tarde demais. Em junho de 1982 o Banco Central foi forçado a fazer uma maxidesvalorização de 18% seguida de desvalorização mensal de 0,8%. A crise se tornou pública, despertando o desejo de mudança por parte da sociedade. Sob o impacto das dificuldades econômicas surgiram as primeiras manifestações de oposição social ao regime.

As protestas foram a principal reação de massas contra Pinochet.10 10 Para uma análise das protestas ver Fabiana de Souza Fredrigo. Ditadura e resistência no Chile: da democracia desejada à transição possível. UNESP-Franca, 1998. A partir da sua eclosão, em maio de 1983, o país ingressou numa conjuntura favorável às oposições, que passaram a ser guiadas pela lógica do confronto. Ainda sob o impacto da crise econômica, o governo foi surpreendido pela maré de protestos nacionais e a ofensiva de movimentos sociais, associações de bairro, sindicatos, organizações estudantis, setores da igreja e partidos semiclandestinos que passaram a reclamar a volta à democracia. Até 1986 ocorreram inúmeras manifestações de oposição ao regime que podem ser incluídas no ciclo das protestas. No princípio, essas manifestações se revestiram de um caráter pacífico e multiclassista, consistindo basicamente na demonstração do descontentamento social através de métodos participativos como acionar buzinas dos automóveis, apagar as luzes, não mandar os filhos à escola ou bater panelas durante a noite. A presença das organizações sindicais como um dos polos articuladores das manifestações pode ser notada pelo papel desempenhado pelo Comando dos Trabalhadores do Cobre - CTC, responsável pela convocação das primeiras protestas. O crescente número de greves e principalmente de grevistas registrado no período também é indicativo da presença sindical no contexto das protestas.

A atuação do CTC não só contribuiu para o reconhecimento nacional das primeiras manifestações como também fortaleceu o caráter pacífico das ações propostas, capazes de ser aceitas e executadas por amplos setores. Para o setor sindical o saldo organizativo das primeiras protestas foi a criação do Comando Nacional de Trabalhadores (CNT), constituindo o núcleo de rearticulação sindical que viria, em agosto de 1988, promover a criação da Central Unitária de Trabajadores (CUT). Não só os mineiros ou os setores mais pobres das poblaciones aderiram aos protestos nacionais realizados naquele ano. A classe média e média alta, os pequenos comerciantes e pequenos empresários juntaram-se aos sindicalistas e estudantes nas manifestações contra Pinochet.

Inicialmente, as protestas se revestiram de um caráter pacífico e multiclassista, mas diante da brutalidade do governo elas foram se tornando cada vez mais violentas, o que provocou o afastamento das classes médias. Nas poblaciones, bairros pobres da periferia, elas assumiam um caráter de classe e a ação dos carabineiros, além de reprimir as manifestações políticas, tinha o objetivo de aterrorizar as classes populares. Aos poucos as protestas se tornaram uma manifestação apenas dos grupos de esquerda. O caráter espontâneo e festivo das primeiras protestas foi substituído pela rotina das manifestações organizadas. Através da repressão o governo conseguiu isolar os grupos militantes da massa dos manifestantes, que recuaram diante da truculência do governo. Centenas de mortes ocorreram nestes anos de confronto. A escalada da violência revela que o governo não estava disposto a ceder à pressão política das mobilizações sociais. Mesmo diante das dificuldades causadas pela recessão, pelo desemprego e pelas manifestações de rua, Pinochet não abria mão do itinerário da transição estabelecido pela Constituição.

O governo reagiu com extrema violência contra as protestas. As primeiras mortes ocorridas em 1983 foram uma espécie de "acidente de trabalho" causado pela ação dos carabineiros. Depois da terceira protesta as mortes deixaram de ser acidentais. A partir de então, disparos aleatórios passaram a ser feitos propositadamente contra as multidões. O objetivo era espalhar o terror e inibir a adesão de distintos setores sociais às manifestações. Como nota Tomás Moulian, a "morte probabilística" provocada pelos disparos aleatórios contra a multidão não visava o militante ou o líder dos grupos de esquerda. Qualquer um poderia ser atingido; todos, portanto, deveriam ter medo. Dessa forma, o governo conseguiu que o movimento regredisse, contendo as protestas e retomando o controle da situação política. O saldo da violência foi trágico:

Esses anos de confronto mostram para as oposições que o governo detinha uma capacidade de resistência muito acima do que se supunha. Em 1986, após uma greve geral que resultou em 6 mortos, 50 feridos e mais de 600 detidos, a descoberta de arsenais pertencentes à Frente Patriótica Manuel Rodriguez e o frustrado atentado contra Pinochet, o governo decretou estado de sítio, desencadeando uma intensa repressão e finalmente retomando o controle da situação. No auge do cerco das oposições o ditador teria declarado: "la Constitución no se altera!".

A REARTICULAÇÃO DOS PARTIDOS POLÍTICOS

Esses anos de mobilização social também foram anos de rearticulação dos partidos políticos. Grosso modo pode-se distinguir três blocos ou coalizões no interior das oposições democráticas, constituídas pela Alianza Democrática (AD), o Movimiento Democrático Popular (MDP) e o Bloco Socialista.11 11 Ver Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, Parlamento Latino Americano, 1997, pp. 113 a 130.

A Alianza Democrática, de centro, é uma coalizão hegemonizada pelo Partido Democrático Cristão que assume um papel de destaque entre as forças de oposição moderada ao governo. A constituição dessa coalizão corresponde à primeira tentativa de Concertación política entre setores das oposições. Além do PDC e da Social Democracia, encontram-se na AD partidos de direita que se opõem ao governo e alguns grupos do socialismo democrático. Sua estratégia consiste na articulação de um amplo leque oposicionista capaz de conjugar a mobilização social com a possibilidade de diálogo com o governo e, por meio de uma via pacífica, promover a reinstitucionalização do país.

O Movimiento Democrático Popular, da esquerda confrontacionista, agrupa o Partido Comunista, o Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR) e o setor ortodoxo do Partido Socialista. Esses partidos se orientavam por uma ruptura com o governo, privilegiavam a mobilização social e não descartavam "todas as formas de luta" contra o regime, como pregava o PC. As tendências agrupadas no MDP não descartavam a perspectiva de um levante popular de caráter revolucionário para derrubar o governo. Entre os dois blocos se situavam as várias organizações socialistas. Desde 1970 o Partido Socialista estava dividido em duas correntes principais, o PS-Almeyda, de orientação ortodoxa marxista/leninista e o PS-Altamirano, de corte reformista. Esse bloco socialista, fragmentado entre várias tendências menores que atuavam no interior dos dois agrupamentos anteriores, buscava se rearticular e adquirir uma fisionomia própria diante dos setores mais radicalizados da esquerda e do aliancismo do PDC.

Os partidos de direita também se reúnem em agrupamentos, sendo os principais a Unión Democrática Independiente (UDI), o Movimiento de Unidad Nacional (MUN), a Renovación Nacional (RN) e o Movimiento de Acción Nacional (MAN). De modo geral, trata-se de setores que adotam um discurso antimarxista e apoiam o itinerário de abertura definido pelo governo. Entre eles, o MUN foi o que mais se distanciou de Pinochet. Em 1985, o MUN viria a assinar, juntamente com demais partidos de oposição, o Acordo Nacional para a Transição Plena à Democracia, que constituiu a primeira tentativa de passar da situação de confronto à negociação da transição. Mas a principal mudança política verificada nesse período não se dá entre os partidos de direita, e sim entre os partidos de esquerda, especialmente no Partido Socialista. Foram as reorientações de ordem tática e estratégica processadas no interior desse partido que permitiram o deslocamento da aliança PC-PS, predominante nos tempos da Unidad Popular, para uma aproximação de setores "renovados" do PS com a Democracia Cristã. A criação do Partido por la Democracia -PPD, com raízes nos setores moderados do PS, corresponde às reorientações ocorridas no campo socialista. A redefinição para o centro deixou o Partido Comunista e o MIR isolados na extrema esquerda.

Apesar de importantes divergências políticas, ideológicas e táticas entre os partidos de oposição, todos eles adotam uma lógica maximalista com relação ao curso da transição. Como nota Enrique Cañas, o avanço das mobilizações sociais e o recuo temporário do governo estimulam uma exagerada autoconfiança nas oposições, que passam a acreditar na possibilidade de reinstitucionalização do país com a saída imediata de Pinochet. Se, por um lado, não há acordo entre os partidos de centro - esquerda com relação aos métodos que deveriam prevalecer, por outro, registra-se um consenso de que o caminho para a democracia passava pela constituição de um Governo Provisório e a convocação de uma Assembléia Constituinte.

Com a fadiga das mobilizações e os primeiros sinais de recuperação econômica, ainda em 1986, a situação volta a ser favorável ao governo, que se mantém aferrado ao itinerário institucional e começa a tomar providências para a realização do plebiscito sucessório. Ante a resistência de Pinochet, os setores moderados das oposições ensaiam as primeiras mudanças de ordem tática, que viriam representar o abandono da lógica maximalista e a convergência para a participação no plebiscito. O "Acordo Nacional para a Transição à Plena Democracia", assinado em agosto de 1985; a constituição da "Assembléia da Civilidade", em abril de 1986; e a formulação do documento sobre as "Bases de Sustentação do Regime Democrático", de agosto de 1986 foram as primeiras tentativas de Concertación política e social realizadas por esses setores. Os partidos do MDP não assinaram o Acordo Nacional e tampouco aceitavam essa mudança de orientação. Em 2 de fevereiro de 1988, treze partidos de oposição concordam em participar a favor do Não no plebiscito sucessório, dando origem à Concertación de Partidos por el NO.12 12 Ver Enrique Cañas Kirby, op. cit. especialmente "El Acuerdo Nacional y el 'rupturismo' atemperado" , pp. 193 e segs.

DUAS FASES DA CONCERTACIÓN

O plebiscito sucessório não tinha relação com o de 1980, por meio do qual se aprovou a Constituição chilena. àquela altura os partidos estavam proscritos, não eram permitidas propagandas políticas e não havia registros eleitorais que pudessem confirmar o resultado do pleito. Agora a Justiça Eleitoral operava com autonomia relativa e o próprio governo tinha interesse em garantir a credibilidade da votação, uma vez que a legitimidade de um (provável) futuro "mandato" de Pinochet estava em jogo.

Ao ser indicado pela Junta como o futuro presidente no caso da aprovação do Sim, Pinochet deu inicio a uma intensa propaganda das realizações do governo. A estratégia do governo consistiu em mostrar um Chile moderno e próspero, resultado das políticas econômicas implementadas desde o golpe. Buscava-se passar a imagem de que todos os chilenos foram seus beneficiários. "Somos milhões" e "Democracia Sim" foram alguns dos slogans criados pelos "marqueteiros" de Pinochet. A oposição, por sua vez, concentrou a sua estratégia numa massiva campanha em favor da inscrição dos registros eleitorais. Avaliava-se que os setores favoráveis a Pinochet se mobilizaram primeiramente, embora os não inscritos constituíssem a maioria pelo Não. A campanha pela inscrição se estendeu de norte a sul no país num processo de crescente mobilização eleitoral. O resultado desse esforço foi o número mais elevado de inscritos em toda a história eleitoral do país, chegando próximo a 92% do número potencial de eleitores.

A CUT participou ativamente da campanha em favor do Não, conclamando os trabalhadores a votarem contra uma ditadura "que eliminou direitos elementares e benefícios adquiridos ao largo de muitos anos de dura luta"; "quebrou um grande número de empresas nacionais provocando os maiores níveis de desemprego"; "diminuiu brutalmente o poder aquisitivo dos salários, em benefício dos patrões e prejuízo dos trabalhadores"; "impôs uma legislação laboral que ampara os interesses dos empresários"; "perseguiu os sindicalistas e trabalhadores". A CUT exortava os trabalhadores a não se deixarem enganar pela propaganda do governo: "O triunfo popular não significará o caos. é Pinochet que representa o caos, a morte, a destruição de famílias e do convívio social".13 13 Diego Olivares, vice-presidente da CUT, discurso pronunciado em 27 de setembro, em Santiago. Em sintonia com a Concertacíon de Partidos por el NO, pedia aos trabalhadores uma atitude vigilante para combater possíveis fraudes e uma conduta responsável em face da vitória: "O triunfo popular abrirá as portas para a alegria, que transbordará as casas, as ruas e os povos. Será a alegria de haver derrotado a violência e o ódio. Por isso, será uma alegria expressada com ordem, maturidade e responsabilidade".

Em 5 de outubro de 1988 o regime foi rechaçado por uma maioria de votos Não, que alcançou 54,7% das preferências, contra 43% de votos Sim, a favor da continuidade de Pinochet. Vitoriosa, a Concertación de Partidos por el NO inicia a sua transformação na Concertación de Partidos Por la Democracia, uma ampla coligação de centro-esquerda que viria apresentar um candidato único das oposições para disputar as eleições presidenciais de dezembro de 1989. Abandona-se a idéia de exigir a saída de Pinochet e a convocação de eleições imediatas, como originalmente havia se planejado como condição para a participação no plebiscito. Pinochet reconhece a derrota eleitoral, age como vitorioso e lembra que as condições institucionais devem ser respeitadas. O moderado Patricio Aylwin é indicado o candidato único das oposições nas eleições presidenciais de dezembro de 1989, cujos resultados confirmaram a vitória sobre a ditadura.

Juntamente com as eleições presidenciais realizaram-se eleições para o Congresso Nacional, para as quais se apresentaram três listas: a Concertación de Partidos por Ia Democracia, de centro-esquerda; Democracia y Progreso, de direita, e Unidad por la Democracia, de esquerda. Das 158 vagas em disputa - 120 na Câmara dos deputados e 38 no Senado - a Concertación ficou com 93, Democracia y Progresso 64, e Unidad por la Democracia com 2. Segundo defensores da alternativa negociada, a vitória de Aylwin foi possível graças à atuação moderada da Concertación. Angel Flisfich 14 14 Angel Flisfisch. "La gestión estratégica de un proceso de transición y consolidación: el caso chileno". Proposiciones, 25, Santiago, 1994. salienta que a Concertación soube conjugar as pressões sociais em favor das mudanças à manutenção dos equilibrios econômicos herdados do governo militar. A Concertación teria agido com eficiência sobre duas ordens de problemas relacionados: a necessidade de neutralizar os riscos de uma regressão autoritária, impedindo a recomposição das forças de sustentação do antigo regime (Forças Armadas, empresários e partidos de direita) e a criação de condições de governabilidade para o futuro governo democrático por meio da preservação das condições favoráveis ao crescimento econômico que se registrava desde 1985. Isso foi possível porque a Concertación definiu uma aliança de governo (e não de mera oposição) e soube se guiar por uma conduta racional e estratégica, "arquivando utopias" que poderiam colocar em risco a consolidação democrática.

Para os críticos da escolha negociada, a Concertación significou o esquecimento por parte da oposição de sua conduta de rejeição do regime político autoritário e seu modelo econômico. A opção estratégica de aliança com setores da direita representou o abandono, "sem explicações plausíveis, das críticas realizadas à gestão macroeconômica, à modalidade das políticas sociais, aos papéis restringidos do Estado nesta área (...) e às políticas trabalhistas". 15 15 Tomás Moulian. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile", Proposiciones 25, Santiago, 1994. Até hoje, a falta de acordo sobre o caráter da transição chilena na literatura política contrasta com o consenso ou a simulação do consenso que a tornou possível na prática.

O PROCESSO DE AMARRE E OS LIMITES DA TRANSIÇÃO

Juan Linz e Alfred Stepan observam que "a fórmula constitucional que mais restrições coloca para um novo governo democrático é aquela na qual o governo que toma posse é obrigado a aceitar uma Constituição autoritária, construída pelo governo autoritário em vias de deixar o poder".16 16 Juan J. Linz e Alfred Stepan. A transição e consolidação da democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. Paz e Terra, 1999, p. 244. O caso chileno parece confirmar essa hipótese. Dos países do Cone Sul, o Chile foi o único em que os militares ingressaram na transição em uma posição de força, o que lhes possibilitou impor as regras institucionais que deveriam prevalecer durante a transição e após a instauração do novo regime. Isso ocorreu porque o Exército encontrava-se unido, o regime autoritário contava com o apoio de uma parcela significativa da sociedade civil e a economia voltara a crescer.

Mesmo derrotado no plebiscito sucessório de 1988, o general Pinochet prosseguiu impondo a agenda política. Nem o calendário, nem as regras, nem o itinerário da transição consentida seriam alterados. Após o pleito, o ditador reafirma que não aceita nenhuma mudança na Constituição de 1980 e, por meio de legislação ordinária, promove a regulamentação de vários de seus aspectos com o objetivo de resguardar prerrogativas das Forças Armadas e preservar o modelo econômico neoliberal. As únicas reformas constitucionais negociadas com a oposição foram as que aboliram a proscrição dos partidos marxistas, permitiram o aumento do número de senadores eleitos de 26 a 38 e estabeleceram a redução do mandado do presidente eleito em 1989 de oito para quatro anos. Essas reformas seriam aprovadas num referendo realizado em 30 de julho de 1989, conferindo uma legitimidade ainda maior à Constituição de 1980, que foi essencialmente preservada. Entre as mudanças legislativas de urgência impostas após o plebiscito destacam-se um conjunto de leis e medidas administrativas garantindo a autonomia do Banco Central, a independência do Conselho Nacional de Televisão em relação ao poder Executivo, a proibição de investigação das violações dos direitos humanos, a permanência dos seguidores de Pinochet nos cargos públicos, o papel das Forças Armadas e a agilização das privatizações de serviços e empresas públicas.

O objetivo dessas iniciativas, que ficaram conhecidas como medidas de amarre, foi o de preservar as bases do modelo econômico neoliberal livre das incertezas da democracia como também o de perpetuar o papel tutelar das Forças Armadas sobre a sociedade e o futuro Estado democrático. Para alguns analistas políticos, as restrições impostas ao novo regime por intermédio da legislação de amarre representaria, na prática, a instauração da "democracia protegida" projetada pela ditadura desde 1977. Segundo Luis Maira, o processo de amarre teve o seu núcleo básico em três instituições que se reforçam mutuamente: o sistema eleitoral binominal, os senadores designados e as rígidas normas para a reforma da Constituição de 1980.

Por meio do sistema eleitoral binominal assegurou-se uma forte representação da primeira minoria opositora. A fórmula foi empregada na Polônia no princípio dos anos 80, quando o general Jaruselski se viu obrigado pelo movimento sindical e social a convocar eleições não controladas pelo Partido Comunista. Pelo sistema binominal o país foi dividido em sessenta distritos e dezenove circunscrições. A Câmara de deputados é composta por cento e vinte membros eleitos por quatro anos nos sessenta distritos. As duas vagas de cada distrito são repartidas entre as duas listas mais votadas. Para que uma lista ocupe as duas vagas é necessário que ela obtenha no mínimo o dobro dos votos da segunda. O Senado é composto por trinta e oito membros eleitos e nove membros designados. Os primeiros são eleitos nas dezenove circunscrições, mediante o mesmo sistema binominal, por um período de oito anos, com renovação da metade de seus membros a cada quatro anos. O mandato dos senadores designados também é de oito anos. As forças políticas que ficam abaixo das listas mais votadas não obtém representação.17 17 Sobre detalhes do sistema binominal ver Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, 1997. Como nota Luis Maira, "dessa maneira, basta às forças de direita um pouco mais de 30% para conseguir um deputado e um senador na maioria dos distritos se atuam unidas na mesma lista. Isto tende a ser cada vez mais evidente na composição do Senado, a câmara chave no desenho desta engrenagem de amarre, ao ponto que a Concertación de Partidos por Ia Democracia, que obteve a maioria absoluta dos votos nas três eleições parlamentares realizadas até agora, viu decrescer sua representação de 22 senadores, eleitos em 1989, para 21 em 1993, e 20 em 1997. Desse modo tudo parece indicar que se tende progressivamente para um empate na representação lograda pela Concertación e a direita no Senado, quando a diferença de votos entre ambas as forças oscilou entre 15 e 20% do total do eleitorado".

Com respeito aos senadores designados, dois são nomeados pelo presidente da República, três pela Suprema Corte, e quatro são militares: um ex-Comandante em Chefe do Exército, um ex-Comandante da Armada; um ex-Comandante da Força Aérea e um ex-Diretor Geral dos Carabineiros, nomeados pelo Conselho de Segurança Nacional. Em 1989, Pinochet nomeou todos os senadores designados. A presença desses senadores, como observa Luiz Maira, "converte a maioria em minoria ao decidir o virtual empate da representação eleitoral em favor dos partidos de direita". Embora os partidos da Concertación de Partidos por Ia Democracia tenham um percentual de votos que varia de 51% a 56% do eleitorado, eles não obtiveram maioria em nenhuma das votações importantes no Senado, sempre vencidas pelos partidos de direita, que têm o apoio de 32% a 36% dos eleitores.

Como notam Juan Linz e Alfred Stepan, "a Concertación, de fato, fez 22 dos 38 senadores eleitos (em 1989), o que significa que, em circunstâncias normais, faltar-lhe-ia apenas um único voto para atingir os 60% exigidos. Mas, com os nove senadores designados, em um Senado de quarenta e sete membros, passaram a faltar à Concertación dois votos para atingir a maioria simples, e seis votos para atingir os vinte e oito necessários para aprovar as grandes mudanças na Constituição, que teriam como objetivo retirar do texto suas características não democráticas". Até agora, isso garantiu a perpetuação das bases institucionais autoritárias da democracia chilena.

O sistema de amarre se completa com os obstáculos para a realização das reformas constitucionais. Não bastasse a presença dos senadores designados e a exigência de 60% de aprovação na Câmara e no Senado, qualquer mudança na Constituição ou nas leis orgânicas constitucionais, antes de ser promulgada deve ser aprovada pelo Tribunal Constitucional - organismo composto por sete membros indicados por Pinochet e inamovíveis até completarem 75 anos de idade. Na prática, isso inviabiliza qualquer reforma constitucional.

Além do tripé sustentado no sistema eleitoral binominal, nos senadores designados e na rigidez para reformar a Constituição, existem outras restrições à consolidação da democracia no Chile. Entre essas restrições podem-se mencionar: a) a reorganização da Suprema Corte no final da ditadura com a nomeação de sete membros fiéis a Pinochet; b) a inamovibilidade do general Pinochet como Comandante em Chefe do Exército para o período 1990-1998, função que exerceria até ser indicado senador vitalício; c) inamovibilidade dos três membros da Junta, pertencentes à Marinha, à Aeronáutica e aos Carabineiros; d) o fim do direito do presidente decretar a aposentadoria dos oficiais das Forças Armadas; e) a composição do Conselho de Segurança Nacional, em que quatro dos oito membros são militares; f) a inamovibilidade dos funcionários designados durante a ditadura; g) a proibição de investigação dos crimes praticados contra os direitos humanos durante a ditadura; h) a dissolução dos organismos de segurança, basicamente da Central Nacional de Informações (CNI), sucessora da Direção de Inteligência Nacional (DINA), organismo ligado diretamente a Pinochet e responsável pelo terrorismo de Estado nos primeiros anos após o golpe; i) a manutenção dos prefeitos nomeados; j) a proibição de que o orçamento militar fosse inferior ao do ano de 1989; k) a destinação de 10% dos recursos obtidos com a venda do cobre para as Forças Armadas.

Tais restrições são absolutamente incompatíveis com a vigência de um regime democrático. A perpetuação desses enclaves impede que o Chile seja considerado uma democracia consolidada. Segundo Juan Linz e Alfred Stepan, para que uma transição seja considerada completa três condições devem ser preenchidas: ''primeiro, que o governo tem que estar no poder em resultado de eleições livres e populares; segundo, que esse governo tenha autoridade para gerar novas políticas; e, terceiro, que os poderes executivo, legislativo e judiciário gerados pela nova democracia não tenham que, de jure, compartilhar poder com outras entidades".

De acordo com esses critérios, quando o presidente Aylwin concluiu o seu mandato" apenas a primeira condição tinha sido atendida. Os partidos de centro esquerda, coligados na Concertación de Partidos por Ia Democracia, não desconheciam as regras impostas pela ditadura e suas conseqüências práticas para o novo governo democrático. Várias tentativas foram feitas para que o itinerário e o desfecho da transição fosse diferente, desde as primeiras protestas até a Assembléia da Civilidade. Ao cabo de inúmeras tentativas frustradas de derrubar Pinochet, pareceu claro que a única alternativa possível consistia em participar do plebiscito, mesmo que isso significasse a legitimação da Constituição e suas regras. Como já se disse, seria fácil - e inútil -julgar os partidos políticos que lutaram por uma ou por outra alternativa. Ao final prevaleceu a alternativa consentida. Isso não quer dizer que os partidos ou a oposição foram débeis. Como nota Luis Maira, o regime encabeçado por Pinochet é que era forte, pois "contava com o respaldo de 100% das Forças Armadas e havia obtido 43% de apoio no plebiscito de outubro de 1988, muitíssimo mais do que qualquer outra cúpula militar da sub-região teria recebido se houvesse embarcado em um intento semelhante".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Serei presidente de todos. Dos chilenos que são do centro, da esquerda e da direita. De civis e militares". Com estas palavras o presidente Ricardo Lagos assumiu a presidência deixando claro que deseja ser o terceiro presidente da Concertación e não o segundo presidente socialista a governar o país. Assim, Lagos marcou a distância com relação a imagem do ex-presidente Allende, que sentenciou justamente o contrário: "Não sou o presidente de todos os chilenos". Seja qual for a imagem que o atual presidente queira adotar, o certo é que ele terá que enfrentar as tarefas pendentes da transição. No passado recente, Lagos foi um crítico da forma como os presidentes Patricio Aylwin e Eduardo Frei enfrentaram este tema. Para ele, a transição somente estará concluída quando existir uma nova Constituição aprovada verdadeiramente por todos os chilenos. De fato, este é o principal desafio do novo governo: realizar as reformas políticas e livrar o país dos enclavres autoritários herdados do período militar. Porém, há um outro risco. As prerrogativas constitucionais são tão convenintes para a tarefa de administrar o país que o novo governo poderá cair na tentação de não revogá-las plenamente. Neste caso, assistiríamos ao que Antonio Manuel Garreton chama de consolidação de um regime democrático incompleto, isto é, de um regime no qual, ao lado das instituições democráticas, também se consolidam as instituições autoritárias. Juan Linz e Alfred Stepan lembram que Miterrand, quando estava na oposição, costumava chamar a Constituição da Quinta República de "um golpe de Estado permanente". A ironia é que, ao ser eleito presidente, ele viria legitimar a Constituição de De Gaule. Se Lagos cometer a mesma imprudência, não será apenas uma ironia. O fracasso de Lagos em promover as mudanças democráticas também poderá representar o fim da Concertación.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. Unesp, São Paulo, 1993.

CAÑAS KIRBY, Enrique. Processo político en Chile: 1973-1990. Editorial Andres Bello, Santiago, 1997.

ECHEVERRÍA, Fernando. "Movimiento Sindical en la Transición Democratica: sindicalización e institucionalidad laboral". Santiago, abril 1991, mimeo.

FLISFISCH, Angel. "La gestión estratégica de un proceso de transición y consolidación: el caso chileno". Proposiciones , 25, Santiago, 1994.

GUILLAUDAT, Patrick y MOUTERDE, Pierre. Los movimientos sociales en Chile 1973-1993. Ed. LOM, Santiago, 1998.

LINZ, Juan J. e STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. Paz e Terra, 1999.

MAIRA A., Luiz. Los tres Chile de la segunda mitad del siglo XX. LOM, Santiago, 1998.

MONTERO, Cecilia. La revolución empresarial chilena. Cieplan/Dolmem Ediciones. Santiago, 1997.

MOULIAN, Tomás. Chile actual: Anatomía de un mito. Chile, LOM Ediciones, Chile, 1997.

MOULIAN, Tomás. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile". Proposiciones 25, Santiago, 1994.

O'DONNELL, Guillermo. Contrapuntos: Ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Ed. Paidós, Buenos Aires, 1997.

OIT (varios autores). Chile: crecimiento, empleo y el desafío de la justicia social. Genebra, 1998.

OLIVARES, Diego. "Posición de la CUT frente al plebiscito". CUT, mimeo. s/d.

  • AGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experięncia chilena. Unesp, Săo Paulo, 1993.
  • CAÑAS KIRBY, Enrique. Processo político en Chile: 1973-1990. Editorial Andres Bello, Santiago, 1997.
  • ECHEVERRÍA, Fernando. "Movimiento Sindical en la Transición Democratica: sindicalización e institucionalidad laboral". Santiago, abril 1991, mimeo.
  • FLISFISCH, Angel. "La gestión estratégica de un proceso de transición y consolidación: el caso chileno". Proposiciones , 25, Santiago, 1994.
  • GUILLAUDAT, Patrick y MOUTERDE, Pierre. Los movimientos sociales en Chile 1973-1993. Ed. LOM, Santiago, 1998.
  • LINZ, Juan J. e STEPAN, Alfred. A transiçăo e consolidaçăo da democracia: a experięncia do sul da Europa e da América do Sul. Paz e Terra, 1999.
  • MAIRA A., Luiz. Los tres Chile de la segunda mitad del siglo XX. LOM, Santiago, 1998.
  • MONTERO, Cecilia. La revolución empresarial chilena. Cieplan/Dolmem Ediciones. Santiago, 1997.
  • MOULIAN, Tomás. Chile actual: Anatomía de un mito. Chile, LOM Ediciones, Chile, 1997.
  • MOULIAN, Tomás. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile". Proposiciones 25, Santiago, 1994.
  • O'DONNELL, Guillermo. Contrapuntos: Ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Ed. Paidós, Buenos Aires, 1997.
  • OIT (varios autores). Chile: crecimiento, empleo y el desafío de la justicia social. Genebra, 1998.
  • OLIVARES, Diego. "Posición de la CUT frente al plebiscito". CUT, mimeo. s/d.
  • 2 Luiz Maira A. Los tres Chile de la segunda mitad del siglo XX. Santiago, LOM, 1998, p. 33.
  • 4 Tomás Moulian, Chile actual: anatomía de un mito. Santiago, LOM, 1997.
  • 5 Guillermo O'Donnell, "Notas para el estudio de procesos de democratización política a partir del Estado Burocrático-Autoritário". in Contrapuntos: ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Buenos Aires, Paidós, 1997.
  • 7 Podem-se mencionar, entre outras medidas adotadas pelo governo, a reduçăo da tarifa média de importaçăo de 105%, em 1973, para 36% em 1976 e 10% em 1979; a estatizaçăo da dívida externa (em 1981, 64% da dívida correspondiam ao setor privado, em 1987, apenas 14%); eliminaçăo do controle de preços e estabelecimento do câmbio fixo. Sobre a política econômica da ditadura ver Cecilia Montero. La revolucion empresarial chilena. Santiago, 1997.
  • 8 Comparando-se o programa de privatizaçőes no Chile e na Inglaterra verifica-se que em quatro anos o Chile privatizou o dobro do que a Inglaterra em oito anos. Ver Antonio Manuel Garretón, "Reforma del Estado e Cambio en la Matriz Sociopolítica". in Hacia una Nueva Era Política.
  • 9 Ver Enrique Cañas Kirby. Processo Politico en Chile: 1973-1990. Santiago, Editorial Andres Bello, 1997.
  • 10 Para uma análise das protestas ver Fabiana de Souza Fredrigo. Ditadura e resistęncia no Chile: da democracia desejada ŕ transiçăo possível. UNESP-Franca, 1998.
  • 11 Ver Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, Parlamento Latino Americano, 1997, pp. 113 a 130.
  • 14 Angel Flisfisch. "La gestión estratégica de un proceso de transición y consolidación: el caso chileno". Proposiciones, 25, Santiago, 1994.
  • 15 Tomás Moulian. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile", Proposiciones 25, Santiago, 1994.
  • 16 Juan J. Linz e Alfred Stepan. A transiçăo e consolidaçăo da democracia: a experięncia do sul da Europa e da América do Sul. Paz e Terra, 1999, p. 244.
  • 17 Sobre detalhes do sistema binominal ver Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, 1997.
  • 1
    O destaque conferido ao modelo econômico implantado pela ditadura acabou deixando de lado a dimensão institucional da experiência chilena. Na realidade, isso faz parte da maneira equivocada como o Chile é interpretado em outros países. Além disso, o êxito econômico do período autoritário, muito elogiado pelos defensores do neoliberalismo, deve ser relativizado. O crescimento médio do PIB durante o governo militar foi de apenas 3,2% ano, bastante inferior ao crescimento, por exemplo, dos "tigres asiáticos", aos quais o país foi freqüentemente associado.
  • 2
    Luiz Maira A.
    Los tres Chile de la segunda mitad del siglo XX. Santiago, LOM, 1998, p. 33.
  • 3
    A própria Assembléia Geral da ONU aprovou, com o voto contrário dos EUA, uma resolução condenando o governo chileno por violação dos direitos humanos.
  • 4
    Tomás Moulian,
    Chile actual: anatomía de un mito. Santiago, LOM, 1997.
  • 5
    Guillermo O'Donnell, "Notas para el estudio de procesos de democratización política a partir del Estado Burocrático-Autoritário". in
    Contrapuntos: ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización. Buenos Aires, Paidós, 1997.
  • 6
    A primeira vez que se define um itinerário de liberalização foi no discurso proferido por Pinochet no Cerro de Chacarillas, em 1977. A transição para a democracia protegida se concluiria em três etapas: "recuperação", até 1980; "transição", até, 1985 e, finalmente, "normalidade", de 1985 em diante. O discurso de Chacarillas é a expressão de correntes institucionalizadoras presentes no interior do governo.
  • 7
    Podem-se mencionar, entre outras medidas adotadas pelo governo, a redução da tarifa média de importação de 105%, em 1973, para 36% em 1976 e 10% em 1979; a estatização da dívida externa (em 1981, 64% da dívida correspondiam ao setor privado, em 1987, apenas 14%); eliminação do controle de preços e estabelecimento do câmbio fixo. Sobre a política econômica da ditadura ver Cecilia Montero.
    La revolucion empresarial chilena. Santiago, 1997. A autora subdivide a implementação das políticas neoliberais em três fases: "normalização" (1973-1975), a fase mais ortodoxa de abertura radical (1976-1982) e a fase pragmática 1983-1989).
  • 8
    Comparando-se o programa de privatizações no Chile e na Inglaterra verifica-se que em quatro anos o Chile privatizou o dobro do que a Inglaterra em oito anos. Ver Antonio Manuel Garretón, "Reforma del Estado e Cambio en la Matriz Sociopolítica". in
    Hacia una Nueva Era Política.
  • 9
    Ver Enrique Cañas Kirby.
    Processo Politico en Chile: 1973-1990. Santiago, Editorial Andres Bello, 1997.
  • 10
    Para uma análise das
    protestas ver Fabiana de Souza Fredrigo.
    Ditadura e resistência no Chile: da democracia desejada à transição possível. UNESP-Franca, 1998.
  • 11
    Ver
    Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, Parlamento Latino Americano, 1997, pp. 113 a 130.
  • 12
    Ver Enrique Cañas Kirby, op. cit. especialmente "El Acuerdo Nacional y el 'rupturismo' atemperado" , pp. 193 e segs.
  • 13
    Diego Olivares, vice-presidente da CUT, discurso pronunciado em 27 de setembro, em Santiago.
  • 14
    Angel Flisfisch. "La gestión estratégica de un proceso de transición y consolidación: el caso chileno".
    Proposiciones, 25, Santiago, 1994.
  • 15
    Tomás Moulian. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile",
    Proposiciones 25, Santiago, 1994.
  • 16
    Juan J. Linz e Alfred Stepan.
    A transição e consolidação da democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. Paz e Terra, 1999, p. 244.
  • 17
    Sobre detalhes do sistema binominal ver
    Manual de los Partidos Políticos de América Latina. Madrid, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br