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Venezuela: o projeto de refundação da república

Venezuela: the project of a second founding of the republic

Resumos

O governo de Hugo Chávez representa uma transição política, cujo significado mais fundo consiste no rompimento do pacto das elites que governaram a Venezuela até a chegada ao poder desse militar controvertido. Está em jogo um processo de circulação de elites, cujo alcance e profundidade são discutidos.

Venezuela; Venezuela


Hugo Chaves"s government represents a political transition whose deeper meaning consists in the breaking of the pact within the elite groups that have governed Venezuela until the arrival to power of this controversial military officer. A process of elite circulation is going on, whose range and depth are discussed.

Venezuela; Venezuela


AMÉRICA LATINA

Venezuela: o projeto de refundação da república

Venezuela: the project of a second founding of the republic

Rafael Duarte Villa

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e doutor em Ciência Política pela USP

RESUMO

O governo de Hugo Chávez representa uma transição política, cujo significado mais fundo consiste no rompimento do pacto das elites que governaram a Venezuela até a chegada ao poder desse militar controvertido. Está em jogo um processo de circulação de elites, cujo alcance e profundidade são discutidos.

Palavras-chave: Venezuela, governo Chávez; Venezuela, elites.

ABSTRACT

Hugo Chaves"s government represents a political transition whose deeper meaning consists in the breaking of the pact within the elite groups that have governed Venezuela until the arrival to power of this controversial military officer. A process of elite circulation is going on, whose range and depth are discussed.

Keywords: Venezuela, Chávez government; Venezuela, elites.

A recente emergência do tenente-coronel Hugo Chávez na política venezuelana tem suscitado, senão uma atenção muito especial, ao menos a curiosidade sobre a novidade que esta figura política apresenta para a América Latina. Chávez surge levantando esperanças e desconfianças. Digamos que mais desconfianças do que esperanças, dadas algumas similaridades de métodos em relação, a outras figuras políticas latino-americanas como Fernando Collor de Mello o Alberto Fujimori. No entanto, as análises se apressam em ressaltar que, além do conteúdo autoritário que sua figura pode representar para a política venezuelana, este ator, vindo das fileiras militares, encarna um processo de transição que está demolindo as elites tradicionais que dominaram o país nos últimos trinta anos através de um pacto bem sucedido de governabilidade. A tese principal deste trabalho é que mais que de uma revolução pacífica, como alguns têm chamado a este processo, o chavismo representa uma transição, através da qual se opera uma circulação de elites na Venezuela. Não se ocupa este artigo, entretanto, de identificar quais seriam essas novas elites, mas de analisar quais são os processos simbólicos e públicos através dos quais se estão criando as condições necessárias para esse projeto de circulação de elites, assim como da análise de alguns constrangimentos estruturais a esse desenvolvimento.

DO PACTO DAS ELITES À EMERGÊNCIA DE CHÁVEZ

A primeira coisa importante a considerar é que não se pode compreender a história política venezuelana do século XX sem referir-se a dois fatos importantes: a relação entre o Estado e os militares e a relação entre o Estado e o petróleo. Cem relação ao primeiro aspecto, referir-se ao Estado venezuelano significa referir-se a uma realidade que encontra sua consolidação político-territorial nas três primeiras décadas do século XX. Ao contrário de algumas outras experiências latino-americanas, como o caso brasileiro, o Estado venezuelano como "uma associação política que reivindica com sucesso o monopólio legítimo da violência dentro dos limites de um território"1 1 Max Weber. Economía y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1944. Pp. 44-5. é de estruturação bastante tardia. Até as primeiras décadas desse século o fenômeno do caudilhismo repartia o país em feudos. A concretização da fórmula weberiana do "monopólio legítimo da violência" só se daria com a chegada ao poder do ditador militar Juan Vicente Gómez (1908-1935). é com este militar que se início ao surgimento de um Estado moderno no que respeita à consolidação de uma burocracia civil e militar. E é com outro militar, Marcos Pérez Jiménez (1951-58) que o poder público completa seu processo de expansão a todo o território.

Em relação ao segundo e mais decisivo aspecto (a relação Estado-petróleo), sempre que o nome de Venezuela é lembrado fora de suas fronteiras tende-se a estabelecer uma rápida identificação com seu principal produto de exportação, o petróleo. é a riqueza gerada por este recurso um elemento fundamental para compreender a vida política e econômica venezuelana no século XX. Ao mesmo tempo o petróleo teve significativa influência na delimitação do formato institucional do Estado e na sua relação com a sociedade. A existência do petróleo condicionou a forma de intervenção do Estado na economia, independentemente de que o regime fosse democracia ou ditadura, e condicionou a relação do Estado com os demais atores políticos, como partidos, sindicatos, Forças Armadas e setor privado. E necessário sublinhar esta premissa: não se pode compreender a vida política venezuelana dos anos da democracia que se inicia em 1958, sem compreender o papel desenvolvido pelo recurso petrolífero, e não se pode compreender a vida econômica do país sem entender o papel protagonista do Estado. No final das contas, é o Estado o único proprietário do petróleo.

Porém, o petróleo operou como uma espécie de espada de Damocles no caso da Venezuela. De um lado, transformou o país numa espécie de novo rico (ou "emergente") que pouco sabia o que fazer com os imensos recursos que lhe chegavam, ao mesmo tempo que proporcionou, na década de 60, os recursos com os quais se sustentou o pacto de elites (partidos, empresários, igreja e militares) que sustentou a democracia venezuelana dos últimos 40 anos. De outro lado, a má administração e a falta de um plano estratégico de desenvolvimento inibiu a possibilidade de que com seus imensos rendimentos petrolíferos o país gerasse um parque industrial diversificado. Também esses rendimentos permitiram sustentar nos anos da democracia alguns governos populistas, baixos níveis de inflação e manter no mesmo patamar durante 25 anos o câmbio da moeda venezuelana (o bolívar) frente ao dólar. Durante esses anos de democracia os país exibiu um razoável grau de estabilidade política e uma capacidade de redistribuição da renda que o colocavam fora das discussões sobre o problema da governabilidade na América Latina.

A dinâmica Estado-petróleo têm seu ponto de inflexão numa variável política: o fato do Estado ter-se constituído no principal centro de construção dos pactos políticos nos anos da democracia, devido à sua capacidade de distribuição da renda. Sob a égide do Estado e seus imensos recursos, os atores políticos que emergem em 58 construíram um pacto de governabilidade que colocava como objetivos prioritários da agenda dar estabilidade às instituições democráticas e a modernização política e econômica do país.

Com a queda da última ditadura venezuelana (a de Marcos Pérez Jiménez em 1958), os partidos emergem como os principais sustentáculos desse pacto de governabilidade, constituindo-se desde então no principal canal de comunicação das demandas que se agregam na sociedade civil em relação ao Estado. Como sugere Alfredo Ramos Jiménes, nos últimos 40 anos "o acesso ao governo na Venezuela sempre foi mediado pelo partido. Isso explica em parte a estabilidade do aparato estatal frente às opções desestabilizadoras e também o fato de quase nunca existir conflito entre o Estado e o partido no governo" 2 2 Alfredo Ramos Jiménez. Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Lattina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997. P. 126. .

Entretanto, o pacto de governabilidade ou de elites não se limitava só aos partidos. E certo que os partidos políticos venezuelanos, sobretudo a social democracia, representada pela Ação Democrática (AD), e a democracia cristã, através do Comitê Eleitoral Partidário Yndependente (COPEY), tinham um alto grau de institucionalização, formando com o correr dos anos um sólido sistema bipartidário. Porém outros atores, como as Forças Armadas, a igreja, os empresários e os sindicatos também haviam evoluído no sentido de sua institucionalização e na agregação de interesses sociais e corporativos Portanto, qualquer tentativa de elaboração de um pacto de hegemonia não podia desconhecer a existência dos mesmos. Politicamente, as regras do funcionamento do sistema político venezuelano foram estabelecidas no chamado Pacto de Punto Fijo: " O pacto reconheceu que a existência de diversos partidos e as naturais divergências entres estes podiam ser canalizadas no marco das pautas de convivência e que existiam interesses comuns na sobrevivência do sistema." 3 3 Aníbal Romero. "Situación y perspectivas del sistema político venezolano". In: Manuel Vicente Magallanes (org.) Sistema político venezolano, clubes franceses y tendencias electorales. Caracas, Consejo Supremo Electoral, 1989. Pp. 25-6.

Para as Forças Armadas o pacto significou garantias de superação institucional, de autonomia quase absoluta no tratamento dos assuntos militares, especialmente na compra de armamentos, de que o comando do Ministério de Defesa fosse sempre exercido por militares e de uma atenção especial, em termos salariais, para o pessoal de carreira. A inclusão das Forças Armadas no pacto, além de reconhecer o peso relativo deste ator, tinha também um evidente efeito profilático: prevenir o sistema político contra uma possível recaída golpista e subordinar as Forças Armadas ao poder civil4 4 Este modo de relacionamento civil-militar revelou-se tão eficaz que somente em 1989, no segundo governo de Carlos Andrés Peres, a institucionalidade do sistema viu-se questionada por uma tentativa de golpe de setores nacionalistas das Forças Armadas, inconformadas com os novos rumos neoliberais que começavam a tomar a política e a economia venezuelanas. .

Em síntese, uma das características que marcaram profundamente o sistema político venezuelano que surge em 58 foi o compromisso entre elites em função da estabilidade do regime. Isso fez desse pacto "um dos mais notáveis casos em qualquer sistema político quanto à formalização de regras de jogo, e, ao mesmo tempo, mostrava a lucidez da elite dos partidos políticos venezuelanos"5 5 Juan Carlos Rey. Problemas socio-políticos de América Latina. Caracas, Editorial Ateneo y Editoría Jurídica Venezolana, 1980. P. 315. .

Esse pacto de elites começa a se desmoronar na década de 80. Certamente esses foram para a Venezuela, como para o resto para América Latina, uma década perdida, como se tem dito. A situação foi agravada ainda muito mais pela queda internacional dos preços do petróleo e pela quarta maior dívida latino-americana, atrás do Brasil, México e Argentina. O significado político disso era que o pacto de governabilidade teria que ser revisado, o que não demoraria a acontecer, com perdas para todos os atores. A lição era amarga: dado que os tempos da "Venezuela saudita" haviam passado sem que isso significasse a consolidação de um modelo industrial, existia a necessidade tardia de construí-lo, só que agora com recursos mais escassos. Este era o preço a ser pago pela falta de visão de suas elites, que subordinaram e condicionaram o modelo de desenvolvimento à estabilidade pactuada do sistema político.

Foi nessas condições que, em 1989, voltou ao exercício do governo Carlos Andrés Perez, do partido Ação Democrática. Esse ano é emblemático para compreender o desenrolar do processo político venezuelano contemporâneo. A volta de Carlos Andrés Pérez se deu muito na base da nostalgia e dos anseios de muitos venezuelanos que pensaram num replay das políticas populistas de seu primeiro período de governo (1974-79). Entretanto, os tempos haviam mudado e o novo governo acabou negociando com o FMI um pacote que incluía medidas de choque para enfrentar a crise. A tentativa de aplicar essas medidas e de elevar os preços da gasolina, aspecto muito sensível para os venezuelanos, desencadeou numa revolta popular nas ruas de Caracas em fevereiro de 1989, que mataria mais de 300 pessoas, segundo as próprias fontes oficiais.

Esse trágico episódio expôs a fragilidade do modelo econômico venezuelano sustentado nos rendimentos de petróleo, por sua vez, era o sintoma mais evidente de que o consenso das elites em torno do pacto de governabilidade começava a esfacelar-se. O enfraquecimento desse consenso foi operado, na sua etapa inicial, no interior das próprias instituições beneficiárias do pacto. Isso foi notório no seio de um dos atores fundamentais desse pacto: as Forças Armadas. Uma corrente nacionalista do Exército questionou fortemente o papel essa repressivo desempenhado por essa instituição no cruento episódio e a eficácia e os desdobramentos para a autonomia do país da ortodoxia do Fundo Monetário Internacional O primeiro desfecho da perda de consenso das elites se manifestou numa tentativa frustrada de golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez, encabeçada pelo então tenente-coronel Hugo Chávez Frías em fevereiro de 1992. No entanto, nos anos seguintes Chávez manteve uma postura de baixo perfil político.

A figura de Chávez reemergeria no ano de 1998, quando se realizaram eleições presidenciais. E daí em diante o processo político venezuelano se confunde com a figura de Chávez. Nessa reemergência desempenharam papel importante tanto os erros de alguns de seus adversários como o profundo sentimento de rejeição aos partidos tradicionais que manifestavam os venezuelanos. Em relação a estes dois pontos, o exemplo mais notável é a carismática aspirante presidencial Irene Sáez. Essa ex-miss Universo, formada em Ciência Política na Universidade Central da Venezuela, havia realizado nos anos 90 duas gestões administrativas bastantes aceitáveis como prefeita do município de Chacao, um dos vários nos quais se divide a capital Caracas. Este retrospecto político a qualificava como uma candidata de peso, o que rapidamente se expressou nos altos índices atingidos nas pesquisas eleitorais, que encabeçou durante mais de um ano. Ciente de que não podia concorrer sem o apoio de uma organização política, Irene cometeu o erro de aceitar o apoio do partido COPEY. O efeito foi devastador: em poucos meses sua candidatura ruiu. O julgamento popular evidentemente não foi feito à candidata e sim aos partidos tradicionais. Colocou-se em questionamento se a candidata teria a suficiente força e vontade política para romper com os partidos do pacto de elites, AD e COPEY, julgados como os principais responsáveis da crise social e política do país. Sua queda nas pesquisas não podia ser creditada necessariamente ao surgimento de um sentimento anti-partido ou antipolítico e sim como os anseios tanto das classes médias como dos setores populares de uma renovação dos partidos e da classe política. Ou, para usar a expressão de Pareto, de um anseio de circulação das elites.

A questão colocada para o chavismo era: quais os mecanismos e com que discurso poderia ser atingido a criação de condições políticas para o projeto de circulação das elites? A resposta a esta questão passava pelo clássico problema político da definição dos meios mais eficazes. é nesse sentido que Hugo Chávez mostrou toda sua virtu, ao se separar e se distanciar do resto de seus adversários, mesmo de alguns políticos emergentes. Estes meios foram formulados de uma maneira simples, em duas direções: uma cobertura simbólica do discurso e um desmonte do pacto das elites que sustentara a governabilidade nos últimos trinta anos, mediante o enfraquecimento de alguns atores que dele formavam parte, redefinido o papel de outros e projetando uma refundação ou um "novo começo" para as instituições públicas.

O SÍMBOLO COMO SINALIZADOR DE NOVAS ELITES

Sempre que na América Latina aparece uma figura com as características de Hugo Chávez, é muito tentador qualificá-la a priori como populista ou nacionalista, ou uma combinação de ambas as coisas. Este militar venezuelano não tem sido a exceção, sendo identificado como uma emulação de algumas lideranças populistas do passado, também de extração militar, como Juan Domingo Perón na Argentina ou Velazco Alvarado no Peru. Para caracterizar Chávez como uma liderança populista imediatamente se recorre ao clássico instrumental weberiano, que o caracterizaria como portador de dons carismáticos, espécie messiânica, que estabelece um contato direto com as massas prescindindo das mediações de partidos ou de outras organizações. Viveria assim Chávez da "acumulação de forças em torno do mito que expressa e das aspirações que só ele pode canalizar" 6 6 Leonardo Vivas. Chávez: a última revolución del siglo. Caracas: Planeta, 1999. Pp. 96-7. . Ou também o chavismo seria uma sorte de populismo renovado, ou neopopulismo, que "combina elementos de dominação e de manipulação das classes populares com experiências que incluem um alto conteúdo identificador"7. No lado nacionalista, seria Chavéz uma espécie de outsider, reencarnação da mais velha e arcaica espécie do caudilho latino-americano que surge novamente para saldar contas com um modernismo que acumulou um longo e pesado débito social com massas cada vez mais empobrecidas e excluídas. Ou seria uma figura política que expressaria um pesado nacionalismo intransigente e estatatista, que poderia condenar o país ao ísolacionismo ao remar contra a corrente da globalização homogeneizadora.

Essas teses tem seu valor analítico. Evidentemente existe, no caso de Chávez, uma identificação do povo com a liderança. Mas a dinâmica política que o leva ao poder e que o sustenta é muito mais complexa. Chávez não chega ao poder simplesmente por ser populista e uma liderança carismática. Chega também porque foi o melhor intérprete do desejo popular de mudança da classe política tradicional, o que necessariamente não significa um desejo de ruptura profunda. Não teve Hugo Chávez que interpretar nenhum sentimento profundo da alma coletiva, como às vezes se afirma pomposamente, mas simplesmente interpretar o sentimento de descontentamento com as elites que brotava à flor da pele de parte do povo. Ou como expressou um comentarista, "as pessoas não desejam que Chaves invente nada novo; as pessoas querem é que Chávez faça funcionar de novo o sistema populista de maneira eficaz"8 8 Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximação ao fenómeno Chávez" (mimeo.) Universidade de los Andes (Venezuela), 2000. P. 7. . Pode se explicar então porque a base social do chavismo é bastante ampla. A sua cruzada justiceira e reivindicatória contra as figuras políticas tradicionais e a oligarquia dos partidos, alerta-nos outro atento comentarista, se somam não só os setores mais populares mas também a classe média afetada pela crise e aqueles setores que no jargão mercadológico se conhece como classes A e B 9 9 Aníbal Romero. Decadencia y crisis de la democracia. A donde va la democracia venezoelana. 3a. edição. Caracas, Editorial Panapo, 1999. P. 155. . A linguagem dura com que Chávez costuma dirigir-se a seus adversários nos seus longos discursos é o idem sentire de tudo aquilo que essa base social gostaria ter expressado para as elites nestas duas últimas décadas perdidas.

Sem minimizar a importância de seus dotes populistas e carismáticos, Chávez chega ao poder também porque teve a especial habilidade de transformar um ato de força (a tentativa de golpe do ano de 1992) em um ato heróico, explorando-o simbolicamente como um feito em sacrifício das massas de excluídos. E sobretudo teve Chávez a precaução especial de ter se afastado dos partidos tradicionais, que o povo foi demonizando nestes últimos anos.

Da mesma forma não é Chávez uma liderança basicamente imprevisível, como acontece com a liderança tradicional populista e carismática. Quem ler os documentos políticos dos insurretos do ano 92 não pode deixar de concluir que alguns atos políticos do presente, como a Constituinte e a democracia plebiscitária, já se encontravam amadurecidos em tais escritos. Em tal sentido, não se pode considerar o chavismo como um movimento que se sustenta na base de um outsider político que gera o fato político ipso facto e com freqüência.

De todas essas diferenças com a figura populista e carismática tradicional quiçá a maior contribuição que faz esse ator político individual seja a maneira de construir o discurso e manipular os recursos simbólicos mediante os quais tenta dar forma a seu projeto de poder. Já a partir de sua tentativa golpista de 1992 Chávez mostrava-se um político de vocação pouco comum para um homem oriundo da racional e fria instituição castrense venezuelana. Na oportunidade, ao anunciar sua rendição em cadeia nacional e com toda a atenção da mídia voltada para sua pessoa e seu discurso, nada de anedótico teve sua célebre frase "companheiros por enquanto nossos objetivos não foram cumpridos", com que iniciou o discurso no qual conclamou a seus companheiros de empreitada a depor as armas. Nessa aparente figura de retórica política ("por enquanto") Chávez já sinalizava o amadurecimento de um projeto político de intenções de longo prazo. Com efeito, como revela o trabalho de Angela Zago que compila os documentos fundadores do chavismo, nada de acaso parecia ter a tentativa golpista do 4 de fevereiro de 199210 10 Leonardo Vivas. Chávez: a última revolución del siglo. Op. cit., p. 108. . Ao que tudo indica, um projeto de ação política que passava pela possibilidade de assumir o poder já vinha sendo discutido pelo grupo de Chávez no interior do Exército mesmo na época em que seus membros eram oficiais de mais baixa hierarquia. A possibilidade de existência desse projeto ex facto poderia ser levantada como hipótese para explicar uma experiência singular que na história da instituição castrense latino-americana têm poucos momentos iguais: ao contrário da maioria das inciativas castrenses na América Latina que tentaram assumir sem sucesso o poder no passado através das vias de fato, o grupo de Chávez não fica só na tentativa de golpe: irrompe com suceso na vida política dentro das regras da concorrência eleitoral.

O político de vocação se afirma mais uma vez em Chávez nas intenções e a forma estratégica que o discurso e o legado bolivariano adquirem no seu projeto. O uso da figura de Bolívar permite que tal símbolo da nacionalidade venezuelana se transforme numa fonte de legitimidade e de autoridade de um ator político individual. Nessa estratégia transcende o simples apelo para o ancestralismo que caracterizaria, segundo versões conhecidas, a cultura política latino-americana. Essa estratégia permite que seu discurso se posicione além da versão simplificada de que o processo político venezuelano contemporâneo estaria ressuscitando o valor de um Simon Bolívar (e de outros heróis do passado) como "altar de uma nova religião cívico-militar"11 11 Angela Zago. La rebelión de los angeles. Los documentos del movimiento. 4a. edição. Caracas, Impresores Micabil, 1998. .

Essa recuperação e rejuvenescimento do discurso bolivariano para um país onde a figura e o exemplo de Bolívar continuam moldando muito a nacionalidade têm uma eficácia política importante, na medida que dá a um discurso abstrato um sentido concreto. Chávez tem feito do discurso bolivariano um instrumento concreto de ação política. Assim, o discurso bolivariano deixa de ser só um elemento supra-histórico aglutinador da nacionalidade venezuelana para se transformar em um instrumento concreto de política, em nome da qual se combate a imensa corrupção das instituições venezuelanas, em nome da qual se justifica o ataque frontal aos partidos tradicionais e se ameaça com fechar instituições como o Congresso e o Judiciário. Traduzindo para fórmulas weberianas, essa recriação do discurso permite que se legitime uma certa ética da responsabilidade pelo apelo a uma certa ética dos fins últimos. Dessa maneira, nessa estratégia discursiva o chavismo se propõe atingir o consentimento com base de alguns recursos simbólicos que proporcionam à sua tarefa de procura do "bem comum" certas características quase metapolíticas12 12 Leonardo Vivas. Chávez: a última revolución del siglo. Op. Cit., p. 101 .

É claro que existe nesse resgate do discurso bolivariano um componente importante presente em todos os homens provenientes de instituições castrenses hispano-americanas: a importância que para a instituição assume o discurso dos heróis libertadores que participaram das guerras de libertação nacional. Para as Forças Armadas na Venezuela e na Argentina, por exemplo, os discursos de Bolívar e San Martin tem uma clara funcionalidade enquanto elementos de coesão interna da instituição. Entretanto, o que se deve frisar no caso de Chávez na Venezuela, e que o diferencia de outras experiências, é que o apelo ao símbolo bolivariano é incorporado diretamente ao jogo político e não tido como uma entidade supra-moral ou reserva moral à qual se apela em momentos de perigo de desintegração da instituição.

Entretanto, o uso dos símbolos não fica limitado só à figura de Bolívar mas incursiona também na religiosidade do venezuelano, um povo de profundas convicções cristãs. Chávez é mostrado constantemente como um homem crente nos dogmas da religião cristã e como praticante desta. Assim não é raro encontrar em meio de suas alocuções trechos bíblicos, com os quais pretende legitimar algumas de suas propostas públicas ou mesmo o combate a seus adversários. De novo aqui se percebe uma clara funcionalidade do discurso. Da tal maneira que tanto o apelo para o discurso bolivariano quanto para a religiosidade do venezuelano tem, para recorrer a Lévi-Strauss, uma clara eficácia simbólica. A frase de Chávez "Deus é o supremo comandante, seguido por Bolívar e por mim"13 13 Cf., Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximación al fenómeno Chávez" . Op. Cit. P. 1. não revela só uma maneira personalista de conceber a política. Atenta também para a mobilização da simbologia política em torno de uma tríade que permite estabelecer uma vinculação entre o eu do político secular e racional e duas esferas da nacionalidade venezuelana bastante importantes: o mito bolivariano e seu espírito cristão14 14 Time. Latin American Edition. "The Chávez revolution", (August, 1999). P. 17. .

Essa legitimidade do chavismo através do uso do discurso é complementada com uma ação política concreta dirigida a reformar as instituições, desfazendo o velho pacto de governabilidade, distribuindo novas funções e criando as condições institucionais para a circulação das elites. De novo aqui se colocava o problema dos meios mais eficazes para sustentar tal objetivo.

A DESESTRUTURAÇÃO DO PACTO DAS ELITES

O programa político através do qual Hugo Chávez ascende ao poder em 1998 pode ser resumido em dois pontos: minar as bases dos partidos políticos tradicionais (AD e COPEY) e convocar uma Constituinte para elaborar uma nova Constituição em substituição àquela de 1961. Nesses dois partidos alicerces do pacto das elites, que permitiram a governabilidade nas últimas três décadas do século XX, Chávez interpretou com sucesso um sentimento coletivo que os responsabilizava não só pela perda de legitimidade do sistema político senão também pelos amplos níveis de corrupção de instituições como o Judiciário e o Legislativo. Adicionalmente, Chávez identificava as bases legais dessa distorção da finalidade pública do Estado na Constituição de 61, pelo amplo poder de barganha que dava aos partidos tradicionais. Colocou-se então para Chávez a possibilidade de aplicar à história política do país nos últimos trinta anos uma espécie de folha em branco, teoria tão prezada pelo pensamento iluminista do oitocentos e novecentos segundo a qual era necessário esquecer o passado de desigualdade e reconstruir a história a partir de sujeitos que se concebiam como livres e iguais. Evidentemente sem ter a grandiosidade desse pensamento, a idéia de refundar a República passou a ser o núcleo do programa político de Chávez. Com esse discurso Chávez claramente quer atingir o objetivo de marcar a diferença entre o antigo regime e aquele que ele quer propor como novo e, por sua vez, faz recair toda a responsabilidade pelo descalabro do passado nas elites que mal conduziram a Venezuela democrática das últimas décadas. Assim começaria a tomar forma na sociedade uma grande rejeição da política tradicional e de suas instituições. Isso se traduz num voluntarioso fazer do passado uma tábua rasa, que aparecia no candidato Chávez como o argumento mobilizador dos novos tempos, tempos de refundação da nova república, da V República15 15 Para um estudo mais aprofundado do aspecto simbólico no chavismo pode se consultar: Luis José Uzcategui. Chávez el mago de las emociones. Análisis psicosocial de un fenómeno político. Caracas, Lithopolar, 1999. . E o instrumento dessa refundação foi imaginado por Chávez na convocação de uma Constituinte, que deveria orientar sua ação em relação a duas grandes linhas mestras. De um lado, repensar os poderes públicos estatais, elaborando uma nova Constituição. Quanto a esta última, a "Constituição será para os atores políticos emergentes esse símbolo cultural do novo começo político (...)" 16 16 Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo", op., cit., p. I .17 17 Ibid., p. 3. . De outro, iniciar o grande objetivo de desestruturar o pacto das elites através de um ataque político direto a instituições tais como os partidos tradicionais, o Congresso e o Judiciário assim como de reformular o papel das Forças Armadas e incorporar novos atores políticos na condução do Estado e com isso criar condições institucionais para a circulação das elites.

No início do segundo semestre de 1999 a Constituinte já havia sido convocada e seis meses depois a nova Constituição já havia sido referendada em consulta popular. Para além dos resultados eleitorais que favoreciam amplamente ao chavismo, os desdobramentos mais interessantes do processo que leva à Constituinte podem ser passíveis de algumas leituras. Primeiro, o processo da Constituinte permitiu fazer do país um laboratório político no qual a consulta popular ou democracia plebiscitária passou a ser utilizado como um mecanismo quase rotineiro. Em menos de um ano foram feitos três referendos e a nova Constituição estabelece uma ampla gama de matérias que deverão ser submetidas ao prebiscito popular. Até que ponto tudo isso pode ser considerado uma expressão de democracia em sentido substantivo ou um instrumento de pedagogia política é um aspecto para ser discutido, mas não deixa de ter sua eficácia política na medida que cria no cidadão venezuelano a impressão de que a chamada refundação da República se faz através de um esforço coletivo que tem por guia a figura quase ungida de Chávez.

Segundo, a instauração desse mecanismo de democracia plebiscitaria permite, por sua vez, outro desdobramento: coloca em movimento o mecanismo de desmanche do pacto de governabilidade das elites tradicionais e consolida seu projeto de refundação dos poderes públicos. Os alvos privilegiados, evidentemente, foram os partidos tradicionais. Fora das imputações que se fazem sobre as tendências autoritárias da figura e do governo Chávez (suspeitas essas aumentadas pela sua particular extração militar e pela sua tentativa frustrada de golpe no ano de 1992) tem sido esse mecanismo que tem permitido minar o espaço político e eleitoral dos partidos do pacto de elites e de algumas individualidades políticas tradicionais. Um caso emblemático foi a eleição para a Assembléia Constituinte: apenas três ou quatro constituintes formavam parte dos partidos tradicionais. Desta maneira, o mecanismo da democracia plebiscitária tem uma dupla funcionalidade: mina os partidos tradicionais e enfraquece o argumento de seus adversários políticos na medida em que lhes dificulta a sustentação da tese de que Chávez estaria procedendo de acordo com métodos autoritários: todas as vitórias de Chávez nos dois últimos anos foram atingidas dentro do marco das regras do jogo eleitoral. E na Constituinte, para aprovar seu projeto de Constituição bolivariana, simplesmente se orientou segundo o princípio guia de qualquer democracia representativa: governa e decide quem tem a maioria. Olhando a ação política a partir dessa perspectiva mais realista é impossível imaginar uma democracia parlamentarista ou presidencialista onde o processo decisório não se oriente de acordo com a regra da maioria. E se bem é certo que a teoria política reserva a possibilidade do veto à minoria, essa condição só é possível para minorias de força política e eleitoral expressiva, que não é o caso da atual oposição venezuelana.

Outro desdobramento importante é que o processo da Constituinte não só permitiu a redação de uma nova Constituição senão que possibilitou também a demolição de outro poder público constituído, o Congresso, com o qual se acelerou o movimento de desmonte do pacto de elites 18 18 Na oportunidade da posse na presidência não perdeu Chávez a oportunidade de sinalizar suas intenções ao declarar ante uma platéia cheia de estadistas estrangeiros que fazia seu juramento perante uma "moribunda Constituição".Esse objetivo de refundar a república é recolhido normativamente no preâmbulo da nova Constituição. . Essa dinâmica ficou bem delimitada no embate político entre a Assembléia Constituinte e o Congresso. Só para orientar o leitor: o Congresso venezuelano havia sido eleito em novembro de 1998 e ainda exprimia uma certa hegemonia das velhas forças políticas tradicionais, sobretudo de AD. Entretanto, na eleição na qual resulta posteriormente eleita a Constituinte, a presença de tais partidos é praticamente inexistente. Essa ausência das forças políticas tradicionais na Constituinte significava, no mínimo, que o comportamento eleitoral do venezuelano estava sinalizando uma mudança drástica no que respeita à formação da sua vontade política. Desta forma, se recolocava a velha questão que por vezes complementa ou que por vezes opõe legitimidade e legalidade na ação política dos atores. O problema poderia ser formulado da seguinte maneira: o Congresso continuava sendo uma força legalmente estabelecida mas a vontade do eleitor na eleição da Constituinte não sinalizava para um esvaziamento de sua legitimidade? Isto é, enquanto existia uma simetria entre legalidade e legitimidade no comportamento do eleitor em relação à Constituinte começava a se manifestar uma certa assimetria nos mesmos aspectos em relação ao Congresso. Essa perda de legitimidade do Congresso levou rapidamente a enfrentamentos entre Constituinte e Congresso e reavivou as hipóteses daqueles que apostavam que Chávez, por via da Constituinte, estava preparando uma ruptura institucional, ou golpe branco, similar à de Alberto Fujimori no Peru durante seu primeiro mandato. Porém, a posterior autodissolução do Congresso nacional e a intervenção subseqüente nas assembléias legislativas estaduais, face à sua evidente perda de legitimidade e à assunção de suas funções pela Constituinte, evitou a possibilidade dessa saída. Na verdade o que ficava claro era que a Constituinte estava consolidando o objetivo do chavismo de refundação das instituições estatais e isso passava, como primeiro passo, pela intervenção velada ou aberta dos poderes constituídos e do enfraquecimento dos partidos tradicionais. Como assinalou um comentarista, "a Assembléia Constituinte passou a ter uma missão de caráter bicéfalo: de um lado, discutir, conceber e aprovar uma Constituição. Em segundo lugar, refundar o Estado, ratificar ou não os podres públicos e definir o rumo da política na Venezuela (...) 19 19 Ver Carlos Romero. "Venezuela: del ordem a la incertidumbre". Carta Internacional. Ano VII, No. 79(1999). P. 15 .

Minados os partidos políticos tradicionais, autodissolvido o Congresso, restava só para o chavismo se encarregar do outro grande poder público das democracias contemporâneas: o Judiciário. Frente a este poder se tratava de apresentar a efeito de demonstração como o novo governo pretendia tratar o problema da corrupção. Tido como um dos principais focos de corrupção da administração pública venezuelana, a Constituinte o elegeu como um dos alvos principais de seu poder de intervenção. A restruturação se operou nos vários níveis, atingindo inclusive seu órgão superior (a Corte Suprema de Justiça). Centenas de juizes foram destituídos de seus cargos e abertos contra eles processos administrativos e penais. A tarefa não foi difícil de ser justificada perante a população, porque tanto a nomeação dos magistrados da Corte Suprema de Justiça como a de muitos juizes tinha sua origem nos acordos políticos feitos pelos partidos políticos tradicionais no Congresso ou nas assembléias estaduais. A combinação dessa escassa margem de legitimidade e as suspeitas bem fundadas de ser, quiçá, o poder público mais corrompido administrativamente, deixaram o Judiciário com poucas possibilidades de sobrevivência nos antigos moldes.

Como ficavam as Forças Armadas dentro desse propósito de refundação do Estado? Como foi apontado, este era outro ator que formava parte do pacto de governabilidade, beneficiando-se bastante do mesmo na medida que conservava um certo grau de autonomia de ação em relação ao poder civil. Quanto às Forças Armadas, não houve uma refundação propriamente dita deste poder mas uma redefinição de suas funções. Basicamente essa redefinição da atuação das Forças Armadas se operou em duas direções: através de uma presença mais ativa de militares na administração pública estatal e a formulação de uma função social para as Forças Armadas. Quanto ao primeiro aspecto, não existe nenhuma novidade sobre a presença de militares na administração pública na América Latina. Porém, haverá de se lembrar que esse papel ativo se deu principalmente no marco de governos militares de fato. é muito possível que a origem militar de Chávez tenha influído para a presença de um número significativo de militares no governo. Porém, deve ser destacado que essa presença não se dá em todos os níveis da administração pública senão naqueles postos chaves nos quais os volumes de fundos manejados sejam muito altos: "Onde quer que existam cargos que representam decisões sobre o destino de recursos (ou de sua administração) ou igualmente a administração de pessoal, o governo designou principalmente a ex-militares ou militares em exercício, alguns participantes nos golpes de 1992, ou outros que se foram convencendo no caminho"20 20 Ibid., idem. . Como é quase óbvio inferir, essa seletividade do lugar exato das funções militares na administração pública venezuelana está vinculada à desconfiança que gera no setor castrense a forma como os civis administraram os recursos públicos nos últimos trinta anos. De maneira velada se deixa também transparecer a crítica de que os militares frente à coisa pública tem uma maneira de agir menos patrimonialista, no que diz respeito à racionalidade de seus métodos e ao sentido de moralidade que imprimem às suas ações públicas.

Um outro aspecto no qual se procurou imprimir um novo papel para as Forças Armadas refere-se à sua chamada função social, o que muito possivelmente constitui uma experiência inédita na América Latina. Algumas das funções das Forças Armadas passaram a se incluir no que foi definido como "teatros de operação social". Nesses teatros guarnições militares passaram a administrar feiras populares, nas quais os preços de alguns produtos são mantidos a preços baixos, e colocou-se as Forças Armadas no comando de um programa que visa gerar mais de 400.000 novos empregos na construção civil através do investimento em locais para escolas, hospitais e casas populares. Nos últimos anos tem-se apontado repetidamente a idéia de que, com a falência dos socialismos reais, as Forças Armadas latino-americanas estão à procura de novas funções que justifiquem sua existência. Para as Forças Armadas da região até agora se tem pensado algumas saídas, dentre as quais destaca-se principalmente o combate ao narcotráfico. Ao que parece também está na estratégia do chavismo diferenciar-se nesse aspecto em relação a alguns países da região, como a Colombia e o Perú. Durante sua gestão, mesmo quando o país passou a constituir um ponto importante dentro da rede do comércio internacional das drogas ilegais, o combate ao mesmo não pode ser incluído dentro dos temas prioritários de sua agenda. Com isso Chávez pretende apontar para dois objetivos: sinalizar uma certa autonomia de sua política em relação aos Estados Unidos e envolver outros atores, no caso as Forças Armadas, dentro da chamada racionalização das funções sociais do Estado. Isto é, pretende-se que dentro da reforma do Estado, a descentralização das funções sociais não tenha só como protagonistas o governo central, os governos regionais e municipais, senão que também inclua as Forças Armadas. Desta maneira, se o cálculo político não falha, fornece um novo papel para as Forças Armadas, com a vantagem de que esse novo papel traz um apelo social, o que se poderia traduzir em mais apoio popular e, por sua vez, acaba criando uma imagem positiva das mesmas frente à população, dado que neutraliza o imaginário consensual de instrumento de repressão que sempre as acompanhou. Assim "o chavismo não emerge como expressão guerreira clássica": recolhe os descontentamentos e ressentimentos populares abafados que procuram ser canalizados "por alguém sem vínculo com o sistema político estabelecido. Consequentemente, o militarismo das origens se impregnará de tonalidades civis, embora conserve a linguagem militar [agressiva] para disputar com os inimigos"21 21 Leonardo Vivas. Chávez: a última revolución del siglo. Op. cit., Pp. 158-59 .

O novo papel que Chávez tem imprimido nas Forças Armadas na Venezuela poderia não passar de outro de seus experimentos no laboratório político no qual tem transformado o país. O temor aqui é que o feitiço acabe virando contra o feiticeiro e isso acabe levando a uma militarização do Estado e da sociedade venezuelana. Sem dúvida, o tema gera essa questão, No entanto, fora essa hipótese pessimista, o experimento é interessante, e constitui uma novidade na qual os arquitetos políticos que pensam a reforma do Estado na América latina e seus possíveis arranjos de engenharia institucional pouco tinham atentado até agora. De alguma maneira despoja a tradição militar venezuelana de seu papel quase entediante de defesa da soberania interna do país.

Finalmente, deve ser destacado também que o projeto de "novo começo" minando as elites tradicionais ou alocando-as para esse fim num novo papel não se limita somente ao núcleo duro do Estado. Amplia-se também para a sociedade, e aqui os principais alvos são os partidos e os sindicatos vinculados aos dois grandes partidos tradicionais22 22 Ibid.,. p.. 110. . Quanto aos partidos não tradicionais, Chávez desenvolve uma estratégia de inclusão, sobretudo da esquerda mais expressiva. Já se tem dito que as sucessivas vitórias eleitorais enfraqueceram o espaço político eleitoral dos outrora poderosos partidos AD e COPEY. Desta forma, o país passa por um período de transição quanto à reorganização de seu sistema partidário. Sem oposição forte, a vida partidária gravita em torno do Polo Patriótico, espécie de guarda-chuva político que agrupa tanto aos partidários diretos de Chávez e alguns partidos de esquerda. Nesse estrutura amorfa, Chávez aparece como o elemento suprapartidário que mantém a unidade da frente. Por isso mesmo, e desde o ponto de vista das tipologias clássicas de partidos popularizadas por Duverger e Sartori, ainda é muito cedo para se falar na existência de um partido hegemônico no estilo do PRI mexicano. Entretanto, essa presença da esquerda é um dos elementos a se destacar. A aliança entre um setor militar e a esquerda na Venezuela não causa espécie, dado que já existia uma antiga aproximação, que remonta aos anos da guerrilha na década de 60. Durante essa época alguns quartéis se fizeram sensíveis aos apelos socialistas e anti-imperialistas da esquerda em armas. Daí que o fenômeno Chávez adquira uma importância fundamental para a esquerda na medida em que a recoloca como um ator importante no cenário político venezuelano. Em contrapartida, a esquerda garante para Chávez uma aliança a partir da qual possa impulsar o projeto de relegitimação dos poderes públicos. Essa revitalização e aliança com os partidos de esquerda e a criação de seu próprio partido (o Movimento V República) diferencia também a experiência venezuelana de uma experiência como a de Fujimori no Peru, "que preferiu apoiar-se na força armada, erigida em autêntico government party do fujimorismo"23 23 Em relação aos sindicatos o efeito da ação do chavismo não tem sido tão fulminante como o foi em relação a outras instituições que formavam parte do pacto de governabilidade. Quando se fala em sindicatos na Venezuela está-se falando da Confederação de Trabalhadores da Venezuela. Foi essa organização o elo entre trabalhadores e elites nos últimos 50 anos. E, como quase todas as experiências latino-americanas, o sindicalismo venezuelano viveu guarnecido pela sombra do corporativismo estatal. Os principais sindicatos nomeavam seus representantes nas empresas estatais, onde negociavam regalias, vantajosos contratos e recebiam volumosos salários. A ação da Constituinte, enquanto poder originário, se dirigiu contra os sindicatos exatamente em direção a este ponto: destitui os representantes sindicais nas empresas estatais, instituindo um mecanismo de eleição direta para os representantes sindicais no futuro. De outro lado, como a CTV é ligada, desde seu nascimento, à social-democracia venezuelana, o enfraquecimento desta significou também o enfraquecimento dessa central sindical. Ou, dito de outra forma, ainda quando o governo não conseguiu intervir diretamente como era seu desejo, nem por isso deixou de miná-la também, como ao resto dos atores do pacto de elites. . Chávez, como já vimos, não despreza o apoio das Forças Armadas mas seu government party é um mosaico civil-militar.

Como demonstra a história de todas as frentes políticas, muito poucas delas acabam sobrevivendo aos interesses e conflitos internos que vão amadurecendo ao longo do tempo ou mesmo à lei de ferro das oligarquias de Michels. Provavelmente com o chamado Pólo Patriótico isso não será diferente. Entretanto, o que merece ser destacado no caso desse agrupamento político é que provalmente será a partir dele que será gestado um novo sistema partidário para o país. E aqui de novo a figura de Chávez procurou não deixar um aspecto tão importante da dinâmica política às forças cegas do acaso. No capítulo IV da nova Constituição, que trata sobre os direitos políticos e o referendo popular, pode se ler que as organizações políticas que concorram a cargos de eleição popular terão de eleger seus candidatos com a participação de seus membros. Em outras palavras, se institucionaliza a figura das eleições primárias, com o qual se assegura a circulação das elites no interior dos partidos, barrando as possibilidades de retorno das velhas figuras políticas.

Chávez chega ao poder oferecendo uma reforma política sobre a base de dois pontos: eleição de uma Constituinte e demolição do pacto de governabilidade do antigo regime. Uma avaliação preliminar pode sustentar sem muito esforço que nesses dois pontos foi muito bem sucedido. E essas metas as atingiu sem a necessidade de quebrar a institucionalidade. A combinação desses dois elementos (reforma política dentro das regras do jogo institucional) representa a maior vitória de Chávez no marco de sua chamada revolução pacífica. Se leva-se em conta que muitas experiências políticas latino-americanas vieram ruir sua legitimidade na base das promessas não cumpridas da democracia que ofereciam (para usar a famosa expressão de Bobbio) não resta dúvida que a sincronia entre o candidato que oferece e o presidente que faz confere a Chávez e seu governo, até agora, uma altíssima legitimidade e credibilidade política na população venezuelana.

AS PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Bem sucedido politicamente, qual é o ponto fraco do projeto de Chávez? A debilidade intrínseca do chavismo parece passar pela sustentação de projetos para o desenvolvimento econômico e social do país. à clareza do projeto político não se segue igual clareza no projeto econômico. Este tem permanecido submergido pelo discurso político ou pelo esforço concentrado nas reformas políticas. A formulação de um projeto econômico também não se vislumbra nas prioridades de sua agenda. Entretanto, a eficácia do discurso e das reformas políticas, mesmo que substantivas, tem uma eficácia delimitada pelo tempo. Se concordamos em reproduzir o discurso dos atores e em que se está efetivando uma mudança significativa no sistema político venezuelano chamado pelo chavismo de revolução pacífica, haveríamos de frisar também que tal acontecimento é singular na história política latino-americana pelo papel secundário que nesse processo adquirem as potenciais transformações econômicas. Esta seria uma diferença fundamental. Em relação à "longa lista de revoluções do século XX, articuladas na sua maior parte (...) em torno da famosa transformação dos meios de produção (...)"24 24 Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximação ao fenómeno Chávez" . Op., cit., p. 4. .

Com a desgraça produzida pelo desastre natural das enchentes que sepultaram milhares de venezuelanos nas proximidades de Caracas no final de 1999, o adiamento na definição deste projeto viu-se justificada. Diríamos que afortuna perversa veio em socorro, de alguma maneira, do político de virtú. Porém, passado o trauma e a posição compreensiva de muitos venezuelanos, a questão volta a ser colocada para sua definição no curto prazo. Essa urgência se sustenta no fato de que nas últimas duas décadas o nível de vida do venezuelano conheceu um processo de deterioração crescente, manifestado na desvalorização da moeda e no aumento dos níveis de desemprego. Embora esses indicadores econômicos de nenhuma maneira sejam monopólio dos venezuelanos, no seu caso desempenham um papel muito importante, na medida em que o inconformismo do venezuelano, seu ódio pelas elites tradicionais e suas atitudes que o levaram a fazer uma opção política tida como radical têm por origem a "sensação de prosperidade perdida". Na sensação de que a democracia política era acompanhada por uma democracia social consistia, em parte, a legitimidade o sistema político venezuelano do antigo regime, ao menos até finais de 70. Como recuperar essa percepção de existência de uma democracia política que acompanha a democracia social e como fazer desta última um objetivo substantivo é um tema que aparece muito pouco objetivado na revolução pacífica de Chávez. A definição deste projeto passa por dar respostas para a velha questão que pode ser chamada de estrutural: qual é o papel do Estado e do petróleo na economia política do pais?

Essa questão nos coloca ante dois cenários possíveis. Primeiro cenário: para concretizar seu projeto econômico o Estado cede às forças da globalização, deixando que a "exuberância irracional do mercado" complete a industrialização inacabada, diversifique a economia e realize a democracia social. Se a nova Constituição oferece algumas pistas sobre o projeto econômico de Chávez - e ela parece oferecer - poderemos apreciar que este horizonte não está colocado na perspectiva do projeto do chavismo. Propositadamente os constituintes venezuelanos redigiram um capítulo da Constituição que trata da "función del Estado en la economia" no qual se lê claramente que o Estado, tendo por coadjuvante o setor privado, tem a seu cargo a direção do processo econômico, visando "fortalecer Ia soberania económica del país". O esclarecimento desse cenário é importante porque a experiência venezuelana está sendo seguida com atenção no resto da América Latina, na medida que se trataria de uma experiência alternativa que rema contra a normativa da ortodoxia liberal hegemônica, isso apesar de que Chávez tem prometido manter privatizado o que já está privatizado. O esclarecimento do papel do Estado na economia, dentro do projeto chavista, é importante também porque levanta uma questão que não deixaria de inquietar as elites latino-americanas: e se a política econômica do chavismo, mesmo remando contra a onda liberal, se mostrasse bem sucedida? O que aconteceria? Nessa hipótese, não estaria América Latina propensa a repetir, num efeito dominó, similares revoluções silenciosas? Ou numa hipótese mais pessimista, como a que levanta o importante trabalho de Hirst e Thompson, "esses nacionalismos introspectivos realmente existem e continuarão a se desenvolver, mas à medida que seus projetos políticos têm êxito, eles têm o efeito de marginalizar suas sociedades "25. Em outras palavras, o sucesso político do chavismo não estaria gerando o paradoxo de seu isolamento internacional?

Um segundo cenário da política econômica de Chávez é que o petróleo continue no mesmo papel que desempenhou na Venezuela democrática do pacto das elites. Desta maneira não se haverá avançado muito na possibilidade de uma diversificação da economia, na criação do parque industrial e a possibilidade de uma inserção internacional mais competitiva do país (não necessariamente liberal). Esse é um tema velho na Venezuela democrática, que merece algumas breves considerações. Além do pacto de governabilidade, o outro grande objetivo das elites que chegam ao poder em 58 foi a modernização econômica, prescrita para ser atingida através das fórmulas cepalinas de substituição de importações via industrialização e diversificação da economia. Ora, a concretização desse projeto já nasce com algumas distorções. E a principal é que a classe dirigente venezuelana concentrou seus esforços no sentido de desenvolver a indústria petrolífera e seus derivados. Em outras palavras, a diversificação do parque industrial se resumiu à diversificação da própria industria petrolífera.

Concomitantemente, o dinamismo da industria petrolífera a transformaria numa das principais fontes geradoras de empregos, com a notável característica de que estes empregos passaram a ser melhor remunerados em relação àqueles de outras atividades econômicas. Desta forma, nas suas origens se manifesta uma assimetria no desenvolvimento do parque industrial, ao coexistir um setor dinâmico, de alta produtividade e sofisticação tecnológica (a industria petrolífera) ao lado de setores industriais de baixa produtividade. Esta assimetria nos níveis de desenvolvimento industrial reforçou uma cultura empresarial do mínimo esforço nos níveis estatais. O raciocínio era que, existindo tantos dólares no mercado que podiam ser adquiridos a preços baixos, ambos os fatos produtos da riqueza petrolífera, não haveria necessidade de diversificar a economia no imediato. Era uma interpretação bastante cínica da teoria clássica das vantagens comparativas: posto que podia produzir petróleo tão eficazmente e a um custo relativamente barato, então era melhor importar o resto. Desta maneira, a ponte de comunicação ou maneira de inserção com o circuito econômico mundial passou a dar-se quase que exclusivamente através um único produto: o petróleo.

Na Venezuela democrática do presente o petróleo já não tem o mesmo efeito dinamizador sobre a economia que tinha duas décadas e meia atrás, quando os países da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) foram capazes de elevar os preços internacionais do produto a níveis nunca antes conhecidos. Entretanto, o Estado continua se empenhando em fazer dele o elemento central de seu desenvolvimento econômico. A nova Constituição parece reforçar essa dependência da economia venezuelana dos destinos do petróleo, ao definir como único detentor dessa indústria o Estado, "por razões de soberania nacional, política e de estratégia nacional". Desta maneira conjuga-se nacionalismo econômico com ausência de alternativas cujo fracasso poderiam fazer do chavismo uma experiência a mais sem nenhuma ressonância na América Latina.

Esses dois cenários, ambos pessimistas e não necessariamente corretos, decorrem da nebulosidade do projeto econômico chavista. Pode-se até se pensar num terceiro cenário, espécie de terceira via tropical, que conjugue competitividade internacional ( que supõe participação ativa do setor privado nacional e internacional) com presença do Estado. Mas nesse caso já se avança para a normatividade ou para os modelos ideais. A normatividade não é perniciosa em si, desde que se tenha mais clareza de quais são os meios a serem utilizados para atingir suas finalidades. Essa definição de meios, tão clara na proposta política, é a maior deficiência no projeto econômico chavista. A questão a se formular seria: qual é o fôlego que o discurso e as bem-sucedidas reformas políticas têm para que o venezuelano continue suportando com paciência suas penúrias econômicas? A inabilidade do chavismo em diagnosticar esse momento pode fazer com que o ódio social voltado contra as velhas elites se vire contra ele mesmo.

UMA CONSIDERAÇÃO FINAL

A América Latina vive um momento importante no que tange ao seu quadro institucional e à maneira em que tais estruturas se relacionam com a sociedade. Isso significa que o subcontinente vive um momento de transição de suas instituições e dos conteúdos substantivos que estas adquirem. é possível que o velho populismo se recrie em novos populismos. No entanto, as condições em que emergem são politicamente e economicamente diferentes. As lideranças que surgem e suas organizações políticas já não contam com massas tão facilmente disponíveis para serem mobilizadas para seus propósitos de poder ou de modernização. E o expediente dos recursos econômicos, através dos quais era viável estabelecer pactos de governabilidade e manter a uma clientela satisfeita dentro de certos limites, parece ter-se esgotado. Com isso se esgota tanto uma forma tradicional de fazer política quanto as elites propriamente ditas do antigo regime. O que se processa e se coloca na agenda política contemporânea é uma criação de condições para a circulação das mesmas. Mas, na medida em que a mudança se opera dentro das regras mínimas de concorrência eleitoral, essa renovação pode escapar do controle dos agentes políticos que se postulam como candidatos a renovar as velhas oligarquias. Desta maneira, somos confrontados com a pergunta sobre quais são os meios através dos quais se está operando esse processo de transição de elites na América Latina.

Como resposta a essa questão a ciência política vem enfatizando, desde quase uma década, que um desses meios é o sentimento antipolítico que tomou conta das sociedades latino-americanas. Essa tese repensa a política em termos de um mecanismo em que certos agentes políticos individuais potencializam a subjetividade (o sentimento de descontentamento) dos cidadãos. Convenhamos que essa hipótese supõe de alguma maneira a anulação do espaço público enquanto esfera onde se agregam e se contrapõem interesses. A conseqüência disso é o deslocamento da política para as dimensões da supra ou da sub-política e uma extrema individualização da ação política 26 25 26 Leonardo Vivas. Chávez: la última revolución del siglo, op. cit., p. 233. . Dito de outra forma, a subjetivação da política e de suas instituições é o capital fundamental a ser operado pelos agentes individuais que aspiram a ocupar os postos de comando das velhas elites. Desde esta perspectiva, América Latina vem sendo um laboratorio privilegiado para estas experiências. Exemplos claros de países que já tiveram ou têm esse tipo de experiência seriam Argentina, Brasil, Equador, Peru e a Venezuela. No entanto, no fundo, essa forma de subjetivação da política coloca um questionamento sobre a realização substantiva daquilo que Bobbio chamou das promessas da democracia. As promessas não cumpridas superam de longe aquelas que foram atingidas. Na América Latina uma das principais promessas não cumpridas é talvez a de que a modernização econômica seria acompanhada por uma modernização política, e de que consequentemente a democracia política acompanharia a democracia social. é quase obvio a constatação de uma profunda assimetria entre ambos valores e práticas democráticas na região. Para retomar uma velha dicotomía, existem profundas diferenças entre países reais e países formais.

A partir dessas assimetrias se engendram fenômenos como o chavismo na Venezuela. Assim, a circulação das elites exprime a esperança dos povos latino-americanos no cumprimento daquela promessa. Tendo por ponto de partida essa perspectiva mais otimista, é possível pensar também que a renovação das elites na região se opera dentro da procura de novas formas de representação e de novos métodos de legitimação. é possível pensar também que dentro desse quadro seja possível a incorporação de agrupamentos políticos antes excluídos pelos pactos de governabilidade. Não se deve esquecer que numa definição procedimental de democracia, como a de Schumpeter, esta se resume na concorrência entre elites através de mecanismos eleitorais bem definidos que a permitam. Dentro dessa tese bem cabem as palavras de Bobbio: "A existência de grupos de poder que se sucedem mediante eleições livres permanece, ao menos até agora, como a única forma na qual a democracia encontrou sua concreta atuação. Assim acontece no que se refere aos limites que o uso dos procedimentos próprios da democracia encontrou para ampliar-se em direção a centros de poder tradicional, como a empresa ou o aparato burocrático: mais que de uma falência, trata-se de um desenvolvimento não existente"27 27 Paul Hirst e Grahame Thompson. Globalização em questão. A economia internacional e as possibilidades da governabilidade. 2 a. edição. Petrópolis, Editora Vozes, 1998. (sublinhado nosso).

Essa possibilidade dialética de nos acharmos ante um desenvolvimento democrático não conhecido sugere a necessidade de dar mais tempo para o amadurecimento político de algumas experiências, como o chavismo, para não correr o risco de qualificá-las a priori como fenômenos autoritários, populistas ou antipolíticos. Voltando ao velho Marx, é necessário que, na nossa impaciência por compreender as causas do fenômeno, nos vacinemos contra a tentação de "jogar fora a criança junto com a água da bacia". De qualquer maneira, importa ressaltar o fato de que Chávez, com consciência ou não de suas intenções, acabou gerando as condições institucionais para a renovação do quadro de elites venezuelanas. Mesmo porque os homens, como novamente nos alerta Marx no 18 Brumário, nem sempre fazem a história sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com as que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado 28 28 Para o desenvolvimento desses temas ver: Ulrich Beck. The Reivention of Politics. Rethinking Modernity in the Global Social Order. London. Polity Press, 1997. Veja-se também os dois trabalhos citados de Alfredo Ramos Jiménez, especialmente, Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Latina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997. 29 Norberto Bobbio. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. 6a. edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1986. P. 11. 30 Karl Marx. O 18 Brumário e cartas a Kugelman. 6a. edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. P. 19. .

  • 1 Max Weber. Economía y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1944. Pp. 44-5.
  • 2 Alfredo Ramos Jiménez. Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Lattina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997. P. 126.
  • 3 Aníbal Romero. "Situación y perspectivas del sistema político venezolano". In: Manuel Vicente Magallanes (org.) Sistema político venezolano, clubes franceses y tendencias electorales. Caracas, Consejo Supremo Electoral, 1989. Pp. 25-6.
  • 5 Juan Carlos Rey. Problemas socio-políticos de América Latina. Caracas, Editorial Ateneo y Editoría Jurídica Venezolana, 1980. P. 315.
  • 6 Leonardo Vivas. Chávez: a última revolución del siglo. Caracas: Planeta, 1999. Pp. 96-7.
  • 8 Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximaçăo ao fenómeno Chávez" (mimeo.) Universidade de los Andes (Venezuela), 2000. P. 7.
  • 9 Aníbal Romero. Decadencia y crisis de la democracia. A donde va la democracia venezoelana. 3a. ediçăo. Caracas, Editorial Panapo, 1999. P. 155.
  • 11 Angela Zago. La rebelión de los angeles. Los documentos del movimiento. 4a. ediçăo. Caracas, Impresores Micabil, 1998.
  • 14Time. Latin American Edition. "The Chávez revolution", (August, 1999). P. 17.
  • 15 Para um estudo mais aprofundado do aspecto simbólico no chavismo pode se consultar: Luis José Uzcategui. Chávez el mago de las emociones. Análisis psicosocial de un fenómeno político. Caracas, Lithopolar, 1999.
  • 19 Ver Carlos Romero. "Venezuela: del ordem a la incertidumbre". Carta Internacional. Ano VII, No. 79(1999). P. 15
  • 27 Paul Hirst e Grahame Thompson. Globalizaçăo em questăo. A economia internacional e as possibilidades da governabilidade. 2a. ediçăo. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
  • 28 Para o desenvolvimento desses temas ver: Ulrich Beck. The Reivention of Politics. Rethinking Modernity in the Global Social Order. London. Polity Press, 1997.
  • Veja-se também os dois trabalhos citados de Alfredo Ramos Jiménez, especialmente, Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Latina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997.
  • 29 Norberto Bobbio. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. 6a. ediçăo. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1986. P. 11.
  • 30 Karl Marx. O 18 Brumário e cartas a Kugelman. 6a. ediçăo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. P. 19.
  • 1
    Max Weber.
    Economía y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1944. Pp. 44-5.
  • 2
    Alfredo Ramos Jiménez.
    Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Lattina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997. P. 126.
  • 3
    Aníbal Romero. "Situación y perspectivas del sistema político venezolano". In: Manuel Vicente Magallanes (org.)
    Sistema político venezolano, clubes franceses y tendencias electorales. Caracas, Consejo Supremo Electoral, 1989. Pp. 25-6.
  • 4
    Este modo de relacionamento civil-militar revelou-se tão eficaz que somente em 1989, no segundo governo de Carlos Andrés Peres, a institucionalidade do sistema viu-se questionada por uma tentativa de golpe de setores nacionalistas das Forças Armadas, inconformadas com os novos rumos neoliberais que começavam a tomar a política e a economia venezuelanas.
  • 5
    Juan Carlos Rey.
    Problemas socio-políticos de América Latina. Caracas, Editorial Ateneo y Editoría Jurídica Venezolana, 1980. P. 315.
  • 6
    Leonardo Vivas.
    Chávez: a última revolución del siglo. Caracas: Planeta, 1999. Pp. 96-7.
  • 8
    Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximação ao fenómeno Chávez"
    (mimeo.) Universidade de los Andes (Venezuela), 2000. P. 7.
  • 9
    Aníbal Romero.
    Decadencia y crisis de la democracia. A donde va la democracia venezoelana. 3a. edição. Caracas, Editorial Panapo, 1999. P. 155.
  • 10
    Leonardo Vivas.
    Chávez: a última revolución del siglo. Op. cit., p. 108.
  • 11
    Angela Zago.
    La rebelión de los angeles. Los documentos del movimiento. 4a. edição. Caracas, Impresores Micabil, 1998.
  • 12
    Leonardo Vivas.
    Chávez: a última revolución del siglo. Op. Cit., p. 101
  • 13
    Cf., Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximación al fenómeno Chávez" .
    Op. Cit. P. 1.
  • 14
    Time. Latin American Edition. "The Chávez revolution", (August, 1999). P. 17.
  • 15
    Para um estudo mais aprofundado do aspecto simbólico no chavismo pode se consultar: Luis José Uzcategui.
    Chávez el mago de las emociones. Análisis psicosocial de un fenómeno político. Caracas, Lithopolar, 1999.
  • 16
    Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo",
    op., cit., p. I
  • 17
    Ibid., p. 3.
  • 18
    Na oportunidade da posse na presidência não perdeu Chávez a oportunidade de sinalizar suas intenções ao declarar ante uma platéia cheia de estadistas estrangeiros que fazia seu juramento perante uma "moribunda Constituição".Esse objetivo de refundar a república é recolhido normativamente no preâmbulo da nova Constituição.
  • 19
    Ver Carlos Romero. "Venezuela: del ordem a la incertidumbre".
    Carta Internacional. Ano VII, No. 79(1999). P. 15
  • 20
    Ibid., idem.
  • 21
    Leonardo Vivas.
    Chávez: a última revolución del siglo. Op. cit., Pp. 158-59
  • 22
    Ibid.,. p.. 110.
  • 23
    Em relação aos sindicatos o efeito da ação do chavismo não tem sido tão fulminante como o foi em relação a outras instituições que formavam parte do pacto de governabilidade. Quando se fala em sindicatos na Venezuela está-se falando da Confederação de Trabalhadores da Venezuela. Foi essa organização o elo entre trabalhadores e elites nos últimos 50 anos. E, como quase todas as experiências latino-americanas, o sindicalismo venezuelano viveu guarnecido pela sombra do corporativismo estatal. Os principais sindicatos nomeavam seus representantes nas empresas estatais, onde negociavam regalias, vantajosos contratos e recebiam volumosos salários. A ação da Constituinte, enquanto poder originário, se dirigiu contra os sindicatos exatamente em direção a este ponto: destitui os representantes sindicais nas empresas estatais, instituindo um mecanismo de eleição direta para os representantes sindicais no futuro. De outro lado, como a CTV é ligada, desde seu nascimento, à social-democracia venezuelana, o enfraquecimento desta significou também o enfraquecimento dessa central sindical. Ou, dito de outra forma, ainda quando o governo não conseguiu intervir diretamente como era seu desejo, nem por isso deixou de miná-la também, como ao resto dos atores do pacto de elites.
  • 24
    Alfredo Ramos Jiménez. "El escenario del nuevo comienzo: aproximação ao fenómeno Chávez" .
    Op., cit., p. 4.
  • 25 26
    Leonardo Vivas.
    Chávez: la última revolución del siglo, op. cit., p. 233.
  • 27
    Paul Hirst e Grahame Thompson.
    Globalização em questão. A economia internacional e as possibilidades da governabilidade. 2
    a. edição. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
  • 28
    Para o desenvolvimento desses temas ver: Ulrich Beck.
    The Reivention of Politics. Rethinking Modernity in the Global Social Order. London. Polity Press, 1997. Veja-se também os dois trabalhos citados de Alfredo Ramos Jiménez, especialmente,
    Las formas modernas de la política: estudios sobre la democratización de América Latina. Mérida-Venezuela, Centro de Investigaciones de Política Comparada, 1997.
    29 Norberto Bobbio.
    O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. 6a. edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1986. P. 11.
    30 Karl Marx.
    O 18 Brumário e cartas a Kugelman. 6a. edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. P. 19.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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