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Ordem privada e reforma agrária em Nestor Duarte

Nestor Duarte on private order and agrarian reform

Resumos

A proposta pioneira de uma lei de reforma agrária apresentada no Congresso em 1947 por Nestor Duarte é submetida a uma análise que permite trazer à tona traços fundamentais do pensamento de um dos precursores da sociologia política no Brasil. Argumenta-se que para Nestor Duarte a intervenção na vida nacional para superar a ordem privada é necessária, mas não pode ser realizada por via autoritária.

Brasil; Nestor Duarte


The pioneering proposal of a agrarian reform law put forward in the Brazilian Congress in 1947 by Nestor Duarte is studied through an analysis that brings to the fore primary features of the thought of one of the founders of political sociology in Brazil. It is argued that for Nestor Duarte the intervention in the national life aiming at surpassing the private order is necessary but can not be made in an authoritarian way.

Brazil; Nestor Duarte


AMÉRICA LATINA

Ordem privada e reforma agrária em Nestor Duarte* * Este artigo resulta de dissertação de Mestrado em Ciência Política na USP, na qual examino os primeiros projetos de reforma agrária no Brasil que surgiram durante o interregno democrático entre o Estado Novo e o golpe de 64. Agradeço aos professores Eduardo Kugelmas, Gildo Marçal Brandão e Ricardo Abramovay pelos comentários e sugestões, que procurei incorporar.

Nestor Duarte on private order and agrarian reform

Osmir Dombrowski

RESUMO

A proposta pioneira de uma lei de reforma agrária apresentada no Congresso em 1947 por Nestor Duarte é submetida a uma análise que permite trazer à tona traços fundamentais do pensamento de um dos precursores da sociologia política no Brasil. Argumenta-se que para Nestor Duarte a intervenção na vida nacional para superar a ordem privada é necessária, mas não pode ser realizada por via autoritária.

Palavras-chave: Brasil, idéias políticas; Nestor Duarte.

ABSTRACT

The pioneering proposal of a agrarian reform law put forward in the Brazilian Congress in 1947 by Nestor Duarte is studied through an analysis that brings to the fore primary features of the thought of one of the founders of political sociology in Brazil. It is argued that for Nestor Duarte the intervention in the national life aiming at surpassing the private order is necessary but can not be made in an authoritarian way.

Keywords: Brazil, political ideas; Nestor Duarte.

Quando Nestor Duarte apresentou, em abril de 1947, seu projeto de Reforma Agrária, praticamente estava abrindo o debate sobre questão que viria ocupar um lugar privilegiado no cenário político nacional até 19641 1 "Se algum mérito quero ter e pleiteio para mim, neste instante, é o de abrir a discussão em torno de tal problema," dizia Nestor Duarte no discurso de apresentação de seu projeto (ACD, 1956; p. 15). . De fato, se o tema já era debatido em outros fóruns, aquela era a primeira vez que um projeto de lei de reforma agrária era apresentado para deliberação da Câmara dos Deputados 2 2 O pioneirismo de Nestor Duarte é apontado por Camargo (1991) em artigo que estuda a questão da reforma agrária no processo político entre os anos de 1930 e 1964 e por Peral va (1961) que, ainda no início dos anos sessenta, elabora uma cronologia das iniciativas reformistas no Congresso Nacional. .

Esta iniciativa, por si, já suscita reflexão: quem é e o que pensa este deputado que inaugura uma quase infindável série de projetos de reforma agrária que se acumulariam no Congresso Nacional? E, por outro lado, o que representava o projeto por ele apresentado? Qual era a intenção do legislador; o que pretendia reformar e em que sentido caminharia a reforma proposta? Na busca de respostas para essas questões deve-se considerar, em primeiro lugar, que o autor do projeto em questão não era figura menor: foi um dos precursores da sociologia política no Brasil. Desta forma, primeiro tentaremos compreender alguns elementos do pensamento político de Nestor Duarte para, num segundo momento, empreendermos um esforço de compreensão de seu projeto de reforma agrária à luz desses elementos.

A ORDEM PRIVADA

Demonstrando ter plena consciência de que a questão não seria facilmente resolvida, Duarte (1953; p. 11) afirmava que a reforma agrária no Brasil deveria encontrar fortes resistências, pois tocava no "esteio de todo um sistema econômico" e qualquer regime econômico, sentenciava Duarte, "não se restringe ao campo apenas dos interesses econômicos que lhe são próprios, cria uma cultura, uma moral, um sentimento que é uma das formas de sua capacidade de predomínio e persistência". (1953, p. 15)

Essa moral e esse sentimento são frutos de uma história longa, cujos antecedentes remontam à distante origem do Estado português e adquirem seus contornos básicos, segundo Duarte, na penosa gestação histórica da organização econômica, social e política do Brasil.

Tomando a noção de iberismo nas dimensões sugeridas por José Murilo de Carvalho (1993)3 3 Segundo José Murilo de Carvalho (1993), o iberismo pode ser definido, negativamente, como a "a recusa de aspectos centrais do que se convencionou chamar de mundo moderno", ou então, positivamente, como "um ideal de sociedade fundada na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário". , podemos dizer que é ela que orienta a leitura que Nestor Duarte faz da história. é no iberismo, e nas deformações que sofre na sua adaptação ao ambiente inóspito da colônia, que Nestor Duarte encontra a lógica da organização social, econômica e política da nova nação que se formou no continente americano. E, se o iberismo é a manifestação de um 'outro ocidente' que difere daquele marcado pela tradição anglo-saxônica (Carvalho, 1993), em A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, Nestor Duarte estabelece a comparação: "...o português é, comparativamente, menos político, como povo e como indivíduo do que muitos outros povos nacionalizados da Europa". Quem observar a história de Portugal, "principalmente na época de formação do Estado nacional, notará que o português era e continuará a sê-lo, o que é mais mencionável, um povo particularista, comunal, impregnado e convicto do espírito de fração" (Duarte, 1966, p.3).

O Estado, para Nestor Duarte, "é o fenômeno político diferenciado (...) que se constitui para exercer, com a força social, a função mais geral e extensiva de dirigir e governar a todos os membros e grupos menores componentes de uma determinada comunidade nacional" (1966, p.14). Ele não pode ser confundido com o poder familiar ou religioso e ser exercido para atender aos seus fins. Entretanto, é desta degeneração, na sua própria natureza, que viria padecer o Estado português: ele não adquiriu poder para abranger e submeter as demais esferas de poder geradas na organização social, prevalecendo o espírito comunal e o sentido religioso da nação ao espírito político e à noção de comunidade nacional.

Com a transferência da organização social portuguesa para a colônia, o Estado que lhe acompanha sofreria novos percalços, o que contribuiria ainda mais para seu enfraquecimento. Dois fatores "transmigrados com essa organização social e logo exaltados pelas novas condições do meio" competiriam para debilitá-lo e desviá-lo do curso normal: o feudalismo e a família (1966, p.18).

Sobre o primeiro, é bom que diga, Nestor Duarte fala de um feudalismo "atípico, se quiserem, sem as cores tradicionais do sistema europeu, antes de anacronismo e arremedos e mais de tendências" (1966, p.l 8). Devemos, portanto, compreender o que vinha ser esse 'feudalismo atípico', mesmo porque muita tinta seria derramada sobre esta questão até meados da década de 60 e Duarte, no final da década de 30, já se via na contingência de enfrentar o debate. Seu interlocutor nesse ponto foi Roberto Simonsen; mais precisamente, a sua História Econômica do Brasil. Simonsen afirmara então, que nossa história jamais houvera testemunhado uma distribuição de classes organizada pelo critério corporativo, "a perpetuar vínculos de sujeição para o servo e o artesão, que aqui puderam ascender a outras classes e prosperar" (cf. Duarte, 1966, p.l9). Nestor Duarte reconhece a ausência de uma distinção de classes em nossa história nos termos colocados por Simonsen. Entretanto, essa circunstância não descaracteriza, para ele, o caráter feudal da organização social e econômica que aqui se estabeleceu.

A organização das capitanias hereditárias, que inauguraram a colonização das terras brasileiras, segundo Duarte era tipicamente feudal. Primeiro, nas cartas de foral que completavam as doações de capitanias está presente uma hierarquia com o rei em cima, os senhores territoriais logo a seguir e, abaixo deles, o sesmeiro e o colono; e, completando o quadro, o donatário tinha jurisdição civil e criminal em terras de sua propriedade, onde a justiça real não podia penetrar, caracterizando assim, "teoricamente", a organização feudal na colônia (1966, pp. 19-20).

O debate sobre o feudalismo brasileiro se prolongaria por décadas. Aproximadamente quinze anos depois, Duarte ainda se via na obrigação de continuá-lo. Nessa época, em Reforma Agrária, sua publicação de 1953, ele pôde observar que a opinião de Simonsen foi influenciada por "certos aspectos isolados de inversão de capitais próprios da empresa moderna" (Duarte, 1953, p.12). Ou seja, para Duarte a opinião de Simonsen era baseada em elementos puramente econômicos, enquanto ele, sem dissociar os elementos econômicos de um todo histórico-cultural, se ocupava, desde o início, da organização social e política e, nesses termos, o que lhe competia ressaltar do feudalismo é a fraqueza do Estado diante do poderio e da solidez da ordem privada.

Na verdade não escapava a Duarte a dimensão política do pensamento de Simonsen. Este último procurava demonstrar, sobretudo, que o desenvolvimento histórico do Brasil havia percorrido uma série de 'ciclos econômicos', começando com o do pau-brasil e seguindo depois o ciclo do açúcar, do ouro, do café e, finalmente, era a indústria que se abria, naturalmente, para o futuro do Brasil, sendo que as bases para o predomínio do novo ciclo já estavam colocadas. Por isso o 'arauto da industrialização' não via em nossa história aquelas organizações corporativas que impediam a mobilidade social e cristalizavam o sistema. Por sua vez, objetivando a organização social e política, Nestor Duarte somente poderia ver, como de fato viu, uma rígida organização social que, baseada em mandatários locais, rivalizava com o poder do Estado, impedindo a formação de uma comunidade política nacional, e que por isso deveria ser caracterizada como feudal. Da organização econômica, resta a Nestor Duarte que as condições dadas pela extensão territorial forçavam uma ocupação dispersiva do território, ocasionando o isolamento e a dissociação das diversas empresas. Isto, agravado pela ausência do Estado português que deixava o empreendimento colonial desenvolver-se por livre iniciativa, trouxe duas conseqüências a um só tempo: impediu a criação de laços de comunhão que pudessem forjar uma comunidade política nacional, visto que aos indivíduos não era solicitado o exercício de atividades propícias ao desenvolvimento de um espírito público e motivou o fortalecimento da organização familiar "que se constitui a única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu" (Duarte, 1966; pp.64 e segs.). Reunindo e contendo toda atividade social e econômica, a família basta ao homem da colônia, "porque o protege e constrange", e o Estado, não dispondo de poder para contrapor-se a essa realidade e estabelecer limites ao mando dos grandes proprietários, teve que resignar-se a viver com ela e até mesmo a apoiá-la (1966, p.71).

Desta forma, Nestor Duarte pode retomar a argumentação contra Simonsen. Seria perfeitamente lógico que em meio apolítico como esse, se desenvolvesse à maravilha o corporativismo de classes, se essa sociedade não estivesse toda ela enfeixada e resumida dentro dos limites da propriedade imóvel particular. E por isso realmente a Colônia não conhece exemplos dessas associações profissionais, núcleos sindicais das guildas medievais (1966, p.75).

Por sua própria natureza e pela forma como foi organizada a atividade econômica, ao absorver e concentrar todo o trabalho social, "como grupo produtor e consumidor", a família opera como um redutor da vida social da Colônia, agindo contra o comerciante e o artesão. Para Duarte, se outras atividades conseguiram desenvolver-se, isto deu-se "apesar da família", e não sem enfrentar sua resistência:

Contrária ao negociante e ao artesão, como à formação de uma classe média, enfim, que se desdobrasse mais além do vínculo doméstico, a família se opôs à formação da cidade, à urbanização da população, sem ensejo que esta ficaria de erguer-lhe um ciclo econômico autônomo, tão poderoso como o seu (1966, p. 81).

Devemos notar como Duarte toma de Simonsen a noção de ciclo econômico, observando entretanto que, para ele, a organização social baseada na família patriarcal impunha barreiras ao levantamento de um ciclo econômico estranho a ela. Isto nos sugere que Duarte não acreditava que o ciclo industrial, tão obstinadamente defendido por Simonsen, dependesse para seu sucesso apenas de políticas governamentais de incremento e proteção à incipiente indústria nacional (sem que se possa dizer por essa razão, é bom deixar claro, que fosse contrário à industrialização).

Na realidade, Nestor Duarte era um verdadeiro americanista4 4 Sobre americanistas e iberistas, ver, além do já citado artigo de José Murilo de Carvalho (1993), Luiz Werneck Vianna (1993). e, como tal, admirava as sociedades democráticas, sedes do moderno capitalismo industrial. O problema é que isso implicava uma reorganização política e social, com o deslocamento do centro dinâmico da vida nacional para além dos limites da propriedade familiar senhorial, por definição rural e agrícola. Em outras palavras, dependia do fim do "feudalismo". Mas não apenas do feudalismo tomado como forma de organização econômica. A essência do problema estava, como já dissemos, na "moral" e no "sentimento" engendrados por esse sistema ao longo da história. Uma moral apolítica e avessa ao Estado e um sentimento particularista que, apegando-se a valores senhoriais e patriarcais, impedia a formação da comunidade política nacional, negando a universalidade do Estado.

Essa análise, no que diz respeito à herança colonial e ao caráter patriarcal das elites senhoriais, não chegava a ser, propriamente, uma novidade ao final dos anos 30. Pelo contrário, muitos já haviam revirado o passado brasileiro buscando explicações para singularidades nacionais. A diferença maior, se é que podemos pensar nesses termos, estava na atitude tomada diante desse passado; nas inferências feitas a partir dele. De fato, não era apenas com Simonsen que Nestor Duarte dialogava, mas com todo o pensamento de sua época. Intelectual, catedrático da Faculdade de Direito da Bahia desde 19345 5 Os dados biográficos de Nestor Duarte foram extraídos do Dicionário Histórico-Biográfwo Brasileiro do CPDOC/FGV (1984). , Duarte está sintonizado com a produção intelectual brasileira. Percebemos em seu texto como ele caminha com desenvoltura pela bibliografia clássica e contemporânea, carregando citações que vão de Alexandre Herculano a Varnhagem, Capistrano de Abreu e Silvio Romero e debatendo com Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr6 6 Os três últimos autores compõem a tríade que, segundo Antônio Cândido (1969), foi responsável pela formação intelectual de toda uma geração nos anos 30 e 40. .

Político, Nestor Duarte perdera, com a Revolução de 30, o mandato de deputado estadual na Bahia. Militando na oposição ao governo do interventor Juraci Magalhães, retorna ao Legislativo com as eleições para a Assembléia Constituinte Estadual em 1934, através da legenda criada pelo notório político baiano Otávio Mangabeira - Liga de Ação Social e Política da Bahia, LASP - onde permaneceu até 1937, quando, novamente, perde seu mandato, agora em conseqüência do golpe que implantou o regime do Estado Novo. Na ocasião, afastado da vida pública, intensifica os estudos que resultaram na publicação de A Ordem Privada, em 1939. Antes, porém, que qualquer espécie de ressentimento pessoal que se pudesse esperar, o que sobressai nas linhas deste ensaio é a necessidade que sente o autor de compreender os percalços e o caráter das instituições políticas no Brasil, "à luz da moderna ciência social"; daí seu adequado subtítulo, Contribuição à Sociologia Política Brasileira. Político e intelectual, intelectual e político, Nestor Duarte acredita que o caráter científico de um estudo pressupõe isenção, mas que o estudo científico adquire força política a partir mesmo de seu caráter científico.

O caráter instrumental de seu ensaio é claramente definido no prefácio à segunda edição, escrito em novembro de 1965. Quisera o destino que a obra fosse reeditada sob a contingência do regime militar que se instalara em abril de 64. Tendo sido a primeira edição publicada em plena vigência do Estado Novo, Nestor Duarte observava que, "por coincidência", a segunda edição surgia "em época de perigos e de vicissitudes semelhantes", o que, segundo ele, deveria redobrar o interesse pela sua reedição, pois, "um instrumento de estudo e de pesquisa, por mais isento que seja, é uma forma de participação inevitável na luta e nos compromissos do desenvolvimento e da grandeza política de nosso País". (1966, pp. xi-xii)

A preocupação que Duarte demonstra ter em épocas distintas, mas igualadas pela vigência de regimes autoritários, nos dá o sentido normativo da obra revelando o compromisso do autor com a democracia. Essa preocupação coloca-o na linha de frente do combate ao autoritarismo; porém, impedido que estava de travar o combate direto na arena política, irá combatê-lo em outro terreno; leva a luta para o campo do intelectual, o campo das idéias. Não obstante, Duarte não toma como adversário direto neste campo nenhum dos próceres do regime. Evitando a personificação do adversário, irá debater com a vanguarda da intelectualidade contemporânea sem questionar suas ligações com o regime autoritário, mas procurando combater a idéia que lhe fornece sustentação ideológica.

Localizando o problema num patamar superior ao debate sobre qual regime era o mais indicado para conduzir a nação brasileira ao situá-lo no âmbito da formação do Estado nacional, Nestor Duarte firmava posição favorável à democracia, destoando do coro que, insinuando-se hegemônico nos anos 30, dava como certa a incompatibilidade do povo brasileiro com as instituições democráticas e assumia por conta disso uma postura favorável a um regime autoritário. Nesse nível foi possível a Duarte demonstrar que não era simplesmente o regime democrático, mas antes era o próprio Estado que encontrava resistências e não conseguia impor-se a toda a comunidade nacional.

Exercendo o papel de classe política e deformando o Estado, a classe senhorial impediu a sua aproximação da população e bloqueou a formação política do povo, e, depois de deter e exercer tamanho poder, quando começou a declinar, continuou a predominar "pelo poder de sua tradição" (1966, p.109). Nesse cenário, o papel do Estado "não é refletir e conservar tal ou qual ambiência, mas assumir a função de reformar, criar, educar um povo" (1966, p.122). Se a 'educação política' do povo é o tratamento prescrito, o remédio não pode passar, de forma alguma, por qualquer espécie de regime autoritário. Embora padeça de "todas as deformações e negações de nossa realidade política", é o Estado democrático, "entre as formas estatais, aquela de poder educacional mais vivo e direto para interessar uma população, tão alheia e indiferente como a nossa, nos acontecimentos políticos e problemas de uma nação" (1966, p.107). Nesse sentido, a imitação de práticas políticas e jurídicas de outros povos, que sempre recebeu duras críticas por não respeitar a tradição e a cultura do nosso povo, deixa de ser, em Nestor Duarte, uma violência à realidade brasileira, constituindo-se, pelo contrário, louváveis tentativas de construir a estrutura de um Estado democrático, "tentativas por vezes ingenuamente convencidas em face de uma realidade negativa" (1966, p. 118).

Luiz Werneck Vianna (1993; p. 368), afirma em certo momento que o "americanismo não era concebido como uma ampla reforma sociopolítica, moral e intelectual, menos ainda como um projeto popular", mas consistia, isto sim, "na estratégia de estadistas que visavam ao futuro do país, inscrevendo-o no movimento civilizatório, impelidos por imperativos racionais e não pela representação de interesses concretos com os quais estivessem articulados". Se guardamos alguma reserva quanto à primeira parte da afirmação, já que tentamos demonstrar que Nestor Duarte preconizava uma reforma, não resta dúvida de que o seu americanismo se manifesta como uma verdadeira estratégia de estadista. Para Duarte, por ser "quase o único fulcro de nossa vida política, resumindo e absorvendo toda a atividade seja partidária ou não da comunidade política, é o governo o grande obreiro nessa tarefa construtiva" (1966, p. 118). é exatamente nesse ponto, entretanto, que reside o grande problema para os governantes: sendo o governo "fraco para tarefa tamanha, ele pede, por isso mesmo, mais força, mais centralização e mais autoridade, para alcançar por golpes o que será antes resultado de lentos processos do tempo e da ação ininterrupta sob programas demorados".

Antes, porém, de julgar o homem público brasileiro, idealista ou autoritário, Nestor Duarte propõe que se procure na história "a explicação do seu caráter", pois ele é um produto lógico do processo social, e a força do passado, segue Duarte, "há de ser naturalmente superior à força das idéias e dos princípios abstratos" (1966, p. 119). Tendo como único recurso disponível para dar sentido aos seus ideais um Estado reduzido e limitado e não encontrando, além de seus limites, um meio social que possa repercutir e propagar suas ações, o homem público torna-se "um crente da ação pessoal, da iniciativa voluntária que ele a si próprio atribui", inclinado a "conceber e a desejar ambientes de elite" (1966, pp. 127-8). E quando ele ultrapassa aquela esfera mínima que o Estado ocupa, "encontra um país que o recebe dentro de outro estilo de vida", "alheio ao que não for familiar à sua ordem, ao seu gênero de vida e ao mundo das convicções diretoras de sua atividade e pensamento", que lhe impõe outros vínculos de acomodação e relações sociais. Desta forma, não apenas a ação pública acaba sendo desnaturada, como o próprio homem público se modifica. Esse é, segundo Nestor Duarte, "o grande conflito do nosso processo político": "uma realidade infensa, que a ele se submete, também o perverte. Ou o reduz e simplifica" (1966, p.128).

Em outras palavras, o autoritarismo no Brasil é, para Nestor Duarte, prisioneiro do passado, da herança ibérica, e impotente, portanto, para efetuar as transformações necessárias e conduzir o país rumo ao futuro na construção de uma sociedade moderna. é para essa armadilha que Nestor Duarte quer chamar a atenção dos modernizadores. é esse o debate com o seu tempo.

A REFORMA AGRÁRIA

Apesar de Nestor Duarte manifestar sua descrença em propostas redentoras, pois duvida de que se possa de alcançar "de golpe" o que seria resultado de "lentos processos do tempo" (1966, p. 118) não temos como deixar de registrar de que em A Ordem Privada nenhuma proposta concreta é apresentada. O esforço de empreender uma compreensão da realidade nacional serve naquele momento, fundamentalmente, para sustentar a crítica dirigida contra idéias de cunho autoritário.

Não sabemos se Nestor Duarte ainda não havia elaborado sua proposta, ou se avaliava que a conjuntura política não oferecia as condições necessárias para sua implementação. O fato é que o deputado somente apresentaria seu projeto de lei de reforma agrária, quase dez anos depois, em um momento em que tanto o regime como as idéias autoritárias pareciam soterrados sob os escombros de uma guerra mundial. Isso não impede, entretanto, que ele possa ser compreendido como uma continuidade do esforço de análise empreendido em A Ordem Privada. Afinal, é a forma de apropriação e exploração da terra baseada na grande propriedade que para ele conforma a realidade econômica, social e política.

Somos levados a supor que Duarte não pensava apenas em modificar a estrutura de propriedade da terra quando apresentou seu projeto de reforma agrária, mas que sua lei se inseria em um esforço maior, no sentido de criar uma nação brasileira "à moderna"; de criar as condições para a emergência da comunidade política e para a consolidação das instituições típicas das "agremiações superiores".

A formação de uma nação, a constituição de uma comunidade política e a consolidação de suas instituições, para Nestor Duarte, é produto do tempo (1966, p. 117), mas o homem público deve conviver com esta contradição: se é comum, entre outros povos "os fatos se renovarem e imporem modificações na lei e nas ideologias", entre nós, dadas as contradições do nosso passado e face a realidade política, "são as idéias e as leis que as representam, que lutam contra os fatos no esforço de renovação e modificação que eles impedem e contrariam". (1966, p.120)

A nacionalidade, na sua avaliação, dia após dia vai atingindo a sua politização, mas ainda não conseguiu superar os efeitos do passado, "principalmente no Brasil interior, onde nenhuma revolução chegou até agora para modificar costumes, hábitos e sentimentos", permanecendo a ordem privada concorrendo com o Estado, limitando e desnaturando suas ações. (1966, p.120. Grifos meus). Diante deste quadro, a intervenção reformadora do Poder Público revela-se, não apenas justificável como, sobretudo, necessária para a conformação de uma sociedade moderna e democrática. Não resta dúvida, assim, de que esse é o sentido da sua proposta de reforma agrária, mesmo que não seja esta a justificação que acompanha seu projeto de lei. Os objetivos lá explicitados referem-se ao incremento da produção alimentar do país e à abertura de um caminho para a execução de um plano de divisão e ocupação, pelo maior número de agricultores, das terras cultiváveis. Objetivos que seriam alcançados pelo estabelecimento da policultura em lavouras de subsistência, ou seja, em pequenas propriedades de agricultura familiar.

O raciocínio por trás da proposta é simples. A monocultura é, para Nestor Duarte, sinônimo de latifúndio e a policultura, pelo contrário, "implica a divisão do solo, gera a pequena propriedade por via de conseqüência de regime de trabalho agrícola e diversidade das culturas". Na opinião do deputado, "com a policultura pode-se modificar a forma de ocupação do solo, alterar a extensão da propriedade territorial e criar novas relações entre o homem e a terra" (ACD, 1956, p. 1.6).

Desta forma, o projeto, em seu Artigo 3º, propõe que "em toda propriedade de monocultura, indústria agrícola, inclusive a extrativa, de exploração florestal e de pecuária, fica reservado um quarto de sua área, em local ou locais de melhores terras próprias para a lavoura de subsistência".

Em seguida, o projeto determina como obrigação ao proprietário o fornecimento de "solo convenientemente cercado e casa aos que nela morem e trabalhem como parceiros, meeiros ou rendeiros" (Art. 4º) e, depois de definir essas categorias como "todo aquele que mediante paga em dinheiro, serviço, ou parte de produção colhida, tem direito de residir e cultivar por sua conta, determinada porção do imóvel agrícola..." (Art. 5º), o autor detalha as condições estruturais mínimas que deve oferecer a casa rural a ser colocada à disposição do arrendatário (Art. 6º).

Já as terras férteis "mais próximas, ou de mais fácil acesso em torna das vilas e cidades" ficariam, imediatamente, e em sua totalidade, destinadas à pecuária de leite e à lavoura de subsistência (Art. 7º), cabendo ao governo promover "ajusta distribuição da propriedade e assegurar o seu objetivo de terra destinada à produção animal e vegetal de alimentos" ( Art. 7º, § único). Da mesma forma, o Art. 12° reservava as faixas de terras férteis, quer pública, quer particulares, que forem se abrindo ao longo das rodovias e ferrovias recém construídas, "ao povoamento e à lavoura de subsistência daqueles que já as ocupem ou nelas queiram residir e trabalhar".

A reforma agrária, na proposta de Nestor Duarte, começava assim, verdadeiramente, pela distribuição das terras mais próximas aos centros urbanos ou de mais fácil acesso, aquelas que "representam valor socialmente útil", mas adiantava-se na preparação para a redistribuição de toda a terra agricultável, fixando nela, previamente, seu futuro proprietário, o pequeno agricultor sem terra. Por isso, o deputado apresenta seu projeto como a "lei preliminar da reforma agrária" (ACD, 1956, p. 17).

A fixação do camponês era, portanto, um dos objetivos imediatos do projeto, o que ia de encontro a uma das características mais problemáticas da população rural no Brasil: a sua mobilidade. A população rural, dizia Duarte em A Ordem Privada, "tem duplo caráter ou se divide em duas partes - a que se fixa na propriedade imóvel, a população fazendeira, que assegura os quadros da tradição, e a que continua a mover-se corrida pelos desajustamentos econômicos do latifúndio e da monocultura" (1966, p. 91). Dessa divisão decorrem graves conseqüências para a organização política nacional. A parcela fixa da população, a dos proprietários, é a que forma o "povo brasileiro, no seu conceito político", que se resume na classe senhorial. A outra parcela da população é apenas uma "massa" que não pode ser considerada 'povo' no sentido político; da falta de fixação à terra, monopolizada pelo senhorio, resulta "sua índole dispersiva, o seu hábito de transmigrador impenitente, a correr terras, a correr engenhos e fazendas ou a procurar cidades..." (1966, p.87). No estudo de Nestor Duarte, essa parcela da população entra para a história, e nela só tem valor, como "elemento negativo". Ela não representa nenhum fator atuante e positivo na organização social e vale apenas "pelo que deixou de ser e representar na base da organização econômica e política" (1966, p.87). A sociedade que se forma na "longa gestação da época colonial" e que seria a base sobre a qual se ergueria o país independente, resumia-se pois, a duas classes, a do senhor e a do escravo. Entre elas, lamenta-se Nestor Duarte, nenhuma outra classe pode constituir-se.

Ora, seria essa classe média, se ela pudesse crescer, se ela pudesse ter peso econômico, a classe propriamente capaz de formar o melhor contingente de um povo político sobre o qual o Estado poderia, por sua vez, fundar-se e alargar-se, livre de autarquias concorrentes e de castas dominantes. (...) Crescendo sempre e constituindo, por isso, a massa mais numerosa de uma determinada população, essa classe média é que, em todos os sistemas feudais ou com sentido feudal, permite ao poder político a sua liberação e a sua hegemonia (1966, pp. 101-2).

Desta maneira, quando Duarte propunha a fixação do homem pobre do campo à terra, sua intenção não era somente realizar uma preparação prévia para o processo de reforma agrária. Na verdade ele pensava muito à frente, na formação de uma classe média, a única, por sua própria natureza, "capaz de formar o melhor contingente de um povo político". Restando alguma dúvida a esse respeito, outros itens presentes em seu projeto podem contribuir para eliminá-la. Nesse sentido, primeiro destaca-se a obrigação imposta aos proprietários de fornecer aos trabalhadores, além do solo convenientemente cercado, casa para moradia, descendo o projeto, nesse ponto, a detalhes de arquitetura e de condições de higiene (Art. 6º).

Não é outro o sentido que adquire, também, o dispositivo que obriga as prefeituras municipais a manterem, à disposição do pequeno agricultor, máquinas extintoras de saúvas, para empréstimo, e produtos de defensivos agrícolas, para venda "a preços módicos" (Art. 10°). Mas, dentre todos os itens, o que se destaca, pela perspicácia do legislador, é o que trata da disposição física das reservas destinadas à pequena lavoura de subsistência. O Parágrafo único do Art. 3º do projeto determina que "sempre que possível, essa área será una e contínua, delimitada nos extremos da propriedade a fim de assegurar o estabelecimento e desenvolvimento de um plano de edificações e povoamento de pequenos agricultores".

Esse pequeno parágrafo é da maior importância se quisermos entender como a questão da reforma agrária, ou antes, da ocupação do solo, se define para Nestor Duarte enquanto uma questão da sociologia política. Uma pista o autor nos fornece quando, ao justificar seu projeto, faz uma rápida referência a Lynn Smith. Ocorre que o sociólogo norte-americano T. Lynn Smith, que aqui estivera durante o ano de 1942 servindo como adido na embaixada de seu país, em 1946 faz publicar no Brasil sua principal obra, Sociologia da Vida Rural". Nessa obra, ao analisar a "organização social rural, tema ao qual é dedicada a mais extensa das seções de seu livro, Smith inicia, exatamente, pelos "tipos de povoamento". Segundo ele, "a forma pela qual a população rural se distribui sobre a terra" condiciona toda a organização social rural e os processos sociais no campo (Smith, 1946, p. 223).

A natureza da atividade agrícola impõe ao agricultor, segundo Lynn Smith, duas alternativas: "ou construir as residências próximas uma das outras, mas afastadas do campo, ou construí-las isoladas umas das outras, mas no centro da plantação. A escolha de uma ou outra solução cria uma forma diversa de povoamento". Da primeira opção decorre um povoamento distribuído em "aldeias" e a segunda alternativa caracteriza um povoamento baseado em "fazendas isoladas". Cada tipo de povoamento traz consigo vantagens e desvantagens, que precisam ser adequadamente ponderadas. "Caso as condições econômicas prevaleçam, e a administração da propriedade seja o objetivo visado", diz Smith, "a aldeia é altamente indesejável". Não é difícil perceber as desvantagens econômicas decorrentes do fato de o agricultor residir afastado de sua fazenda; por outro lado, tomada do ponto de vista da "eficiência social", são muitas as vantagens do sistema de aldeias. A aproximação das casas dos lavradores torna possível os benefícios resultantes da assistência mútua entre vizinhos, como a proximidade de instituições sociais, desenvolvimento da camaradagem entre as crianças, enfim uma vida social mais rica e proveitosa para os membros da comunidade (Smith, 1946, p. 238).

Mas não se trata, apenas, de confrontar as vantagens econômicas do sistema de fazendas isoladas e as vantagens sociais do sistema de aldeias para fazer uma escolha. "Felizmente, continua Lynn Smith, a escolha não se limita a esses dois tipos de povoamento". Existe um terceiro tipo de povoamento que, se devidamente implantado, pode combinar as vantagens do povoamento concentrado sem perder os benefícios da administração direta pela presença do proprietário. é o sistema de "aldeia alinhada". Se na divisão territorial for observado um ponto de partida comum, se o comprimento da propriedade for grande em comparação com a largura, e se as casas de residência forem situadas de comum acordo na mesmo extremidade de suas fazendas filiformes, ter-se-a então uma aglomeração de habitações sem sacrifícios da proximidade das terras. Essa forma de povoamento se assemelha a uma aldeia alongada, que tivesse uma só rua estendendo-se sobre a paisagem (Smith, 1946, p. 229).

Qualquer tipo de povoamento, uma vez estabelecido, dificilmente pode ser modificado, senão "à custa de grande resistência", porém, sugere Lynn Smith, "deve-se envidar todos os esforços possíveis para experimentar novas formas na colonização de países recém descobertos, ou mesmo nos chamados países de povoamento experimental, afim de evitar que a inércia cultural resulte na transferência de um tipo tradicional para comunidades novas". Sabemos que Nestor Duarte leu Lynn Smith e, ao que parece, o conselho foi acatado. Quando vemos que seu projeto determinava que as reservas para instalação de pequenos agricultores fossem estabelecidas em terras contínuas e nas extremidades das grandes propriedades, "a fim de assegurar o estabelecimento e desenvolvimento de um plano de edificações e de povoamento", facilmente podemos imaginar, compartilhando a utopia do autor, na junção de diversas reservas a instalação de projetos de povoamento, fixando o homem ao campo e, ao mesmo tempo, rompendo o isolamento que muitas vezes caracteriza o mundo rural, favorecendo, assim, o fortalecimento dos vínculos sociais e proporcionando as condições para o pleno desenvolvimento do "espírito político".

CONCLUSÕES

Nos termos em que o apresentamos, o projeto de reforma agrária de Nestor Duarte, pode ser compreendido como uma continuidade do esforço analítico empreendido em A Ordem Privada. Em síntese, se a grande propriedade, por reunir e conter toda a atividade econômica e social desde os primórdios da colonização, impediu a constituição do "poder político", gerando, além de um regime econômico, uma moral e um sentimento apolíticos e avessos a tudo que não lhes fosse familiar, o projeto de Nestor Duarte pretendia, exatamente, liquidar a grande propriedade com a implementação compulsória da policultura em pequenas unidades de subsistência. A reforma agrária preconizada por Duarte é, assim, um meio de superar o feudalismo (definido, basicamente, pelo poderio da ordem privada diante de um Estado fraco e incapaz) e fazer do país uma nação "moderna".

A grande propriedade no Brasil opôs-se à formação das cidades, à urbanização da população e impediu a formação de uma classe de negociantes e artesãos que pudesse impor-lhe qualquer resistência. E mesmo quando começou a declinar economicamente, a grande propriedade, e a moral engendrada por ela, continuou a vigorar pela força da sua tradição. A modernização, para Nestor Duarte, não viria, então, como resultado natural do desenvolvimento histórico da sociedade feudal, tal como ocorrera nas modernas democracias ocidentais.

Diante desta situação, cabe ao homem público, se quiser construir uma nação moderna, interferir e transformar a realidade. Nessa tarefa construtiva, entretanto, o autoritarismo revela-se uma armadilha. Vendo-se fraco para alterar uma realidade tão infensa às suas ações, o governo pede sempre mais força, resultando, ao final, numa aparente contradição, em um Estado fraco com governos fortes. O autoritarismo dos governos fortes é presa fácil do passado e da tradição senhorial. Sem encontrar uma base social que repercuta suas ações, o Estado é facilmente submetido pela classe senhorial, que o domina e o perverte.

Em termos de simplificação podemos dizer que para Nestor Duarte a modernização (e esta era uma das principais discussões dos anos 30) dificilmente seria alcançada por intermédio de um regime autoritário.

A modernização em Nestor Duarte, porém, não pode ser compreendida apenas pelo seu aspecto econômico, como sinônimo de industrialização e desenvolvimento econômico. Para Nestor Duarte, a modernidade referia-se, antes, ao Estado como "fenômeno político diferenciado" que se constitui para exercer a função de dirigir e governar todos os membros e grupos de uma comunidade nacional com a força social desta comunidade (1966, p. 14). Ou seja, "modernização", em Nestor Duarte, refere-se à constituição e à consolidação de instituições políticas e sociais através das quais a nação pudesse expressar sua vontade e sua força.

Passados os anos de autoritarismo do Estado Novo e mesmo diante de uma realidade industrial já em grande parte estabelecida, Duarte podia ver que a comunidade nacional permanecia, ainda, sob a forte influência da tradição senhorial; principalmente nos sertões, onde, em suas próprias palavras, "nenhuma revolução havia chegado" e o Estado não conseguia penetrar. Lá, a realidade permanecia a mesma, com a grande propriedade conformando uma comunidade familiar patriarcal, apolítica e avessa ao Estado. Em outros termos, no Brasil ao final dos anos 40 e início dos 50 era o feudalismo que ainda predominava - mais por força de sua tradição do que por seu poder econômico - e a modernidade não estava garantida. Pois, se o avanço da industrialização podia ser constatado, o mesmo não se poderia dizer da constituição de instituições políticas. A reforma agrária proposta por Nestor Duarte se impunha como um dos únicos instrumentos capazes de alterar a realidade, eliminando a grande propriedade, e com ela, o feudalismo, constituindo, enfim, a base sobre a qual poderia se erguer uma comunidade política nacional.

  • ACD - Anais da Câmara dos Deputados (1956). Anais da Câmara dos Deputados, vol. IV, ano de 1947. Rio de Janeiro, Câmara dos Deputados/Departamento de Imprensa Nacional.
  • CAMARGO, Aspásia de A. (1991)."A questăo agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964)", in Bóris Fausto (org.) HGCD, Tomo III, 3ş volume. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, pp. 121-224.
  • CÂNDIDO, Antônio (1969) "O significado de Raízes do Brasil". Prefácio ŕ 5a ediçăo de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora.
  • CARVALHO, José Murilo de (1993) "A utopia de Oliveira Vianna". in élide Rugai Bastos e Joăo Quartim de Moraes (org.) O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas. Editora da Unicamp.
  • DUARTE, Nestor (1953) Reforma Agrária. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional.
  • DUARTE, Nestor (1966). A Ordem Privada e a Organizaçăo Política Nacional. Săo Paulo. Brasiliense.
  • PERALVA, Oswaldo (1961)"Panorama da Reforma Agrária". O Observador Econômico e Financeiro, maio/1961, pp.22-24.
  • SMITH, T. Lynn (1946) Sociologia da Vida Rural. Rio de Janeiro. Editora da Casa do Estudante.
  • VIANNA, Luiz Werneck (1993) "Americanistas e iberistas: a polęmica de Oliveira Vianna com Tavarez Bastos", in Élide Rugai Bastos e Joăo Quartim de Moraes, op. cit.
  • VERBETE "Duarte, Nestor". Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (1930-1983), CPDOC-FGV. Coordenaçăo de Israel Beloch e Alzira Alves de Abreu.
  • *
    Este artigo resulta de dissertação de Mestrado em Ciência Política na USP, na qual examino os primeiros projetos de reforma agrária no Brasil que surgiram durante o interregno democrático entre o Estado Novo e o golpe de 64. Agradeço aos professores Eduardo Kugelmas, Gildo Marçal Brandão e Ricardo Abramovay pelos comentários e sugestões, que procurei incorporar.
  • 1
    "Se algum mérito quero ter e pleiteio para mim, neste instante, é o de abrir a discussão em torno de tal problema," dizia Nestor Duarte no discurso de apresentação de seu projeto (ACD, 1956; p. 15).
  • 2
    O pioneirismo de Nestor Duarte é apontado por Camargo (1991) em artigo que estuda a questão da reforma agrária no processo político entre os anos de 1930 e 1964 e por Peral va (1961) que, ainda no início dos anos sessenta, elabora uma cronologia das iniciativas reformistas no Congresso Nacional.
  • 3
    Segundo José Murilo de Carvalho (1993), o iberismo pode ser definido, negativamente, como a "a recusa de aspectos centrais do que se convencionou chamar de mundo moderno", ou então, positivamente, como "um ideal de sociedade fundada na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário".
  • 4
    Sobre
    americanistas e
    iberistas, ver, além do já citado artigo de José Murilo de Carvalho (1993), Luiz Werneck Vianna (1993).
  • 5
    Os dados biográficos de Nestor Duarte foram extraídos do
    Dicionário Histórico-Biográfwo Brasileiro do CPDOC/FGV (1984).
  • 6
    Os três últimos autores compõem a tríade que, segundo Antônio Cândido (1969), foi responsável pela formação intelectual de toda uma geração nos anos 30 e 40.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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