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Regime ou cultura no estudo da democratização

Regime or culture in the study of democratization

Resumos

Argumenta-se que as análises de regime e os estudos culturais são abordagens excludentes ao estudo dos processos de democratização, embora apresentem interfaces acerca de certos dilemas teórico-históricos principais (tais como a questão do clientelismo, a da conceituação normativa da democracia, os atores sócio-políticos relevantes, a unidade e o nível de análise) que revelam as limitações internas de ambas, como desafios a uma abordagem empírica e conceptual mais abrangente dos processos de democratização.

democratização; institucionalismo; culturalismo


Regime analyses and cultural studies are exclusionary approaches to the study of democratization but they present thematic interfaces on theoretical and historical problems. Such are the issues of clieritelism and of the normative concept of democracy, the relevant sociopolitical actors, the level and unit of analysis, etc - which both approaches face differently. This article reviews these differences, and maintains that they reveal the internal limitations and unsolved theoretical problems of both approaches, as challenges for a more comprehensive theoretical and empirical approach to democratization.

democratization; institutionalism; culturalism


FACES DA DEMOCRACIA

Regime ou cultura no estudo da democratização* * Versões anteriores deste trabalho foram publicadas pela Revista de Ciências Humanas (UFSC), Revista Mexicana de Sociologia (UNAM) e International Sociology (ISA). O autor agradece as críticas e comentários recebidos de vários colegas, especialmente a Stephen Chilton por várias sugestões que ajudaram a aperfeiçoar o foco e o tratamento do tema.

Regime or culture in the study of democratization

Paulo J. Krischke

Professor do Doutorado Interdisciplinar em çiências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

RESUMO

Argumenta-se que as análises de regime e os estudos culturais são abordagens excludentes ao estudo dos processos de democratização, embora apresentem interfaces acerca de certos dilemas teórico-históricos principais (tais como a questão do clientelismo, a da conceituação normativa da democracia, os atores sócio-políticos relevantes, a unidade e o nível de análise) que revelam as limitações internas de ambas, como desafios a uma abordagem empírica e conceptual mais abrangente dos processos de democratização.

Palavras-chave: democratização; institucionalismo; culturalismo

ABSTRACT

Regime analyses and cultural studies are exclusionary approaches to the study of democratization but they present thematic interfaces on theoretical and historical problems. Such are the issues of clieritelism and of the normative concept of democracy, the relevant sociopolitical actors, the level and unit of analysis, etc – which both approaches face differently. This article reviews these differences, and maintains that they reveal the internal limitations and unsolved theoretical problems of both approaches, as challenges for a more comprehensive theoretical and empirical approach to democratization.

Keywords: democratization; institutionalism; culturalism

O objetivo deste trabalho é o exame de duas entre as mais importantes abordagens ao estudo da democratização, a saber as análises do regime e os estudos culturais, avaliando algumas de suas interfaces temáticas, e as limitações e problemas conceptuais deixados em aberto para futuras sistematizações. A preocupação central é a avaliação das contribuições dessas abordagens para a compreensão da mudança sócio-política durante os processos de democratização. Veremos adiante que essas abordagens oferecem contribuições importantes, seja para a avaliação do comportamento das elites durante a transformação das instituições (análises do regime), seja para a interpretação das mudanças culturais entre a população como um todo (estudos culturais). Elas inclusive convergem, ao priorizar temas centrais, apresentando interpretações alternativas a problemas históricos e teóricos como o clientelismo, a conceptuação normativa da democracia, os atores sócio-políticos relevantes, o nível e a unidade de análise, etc. – que ambas abordagens tratam diferentemente. Essas abordagens criticam-se mutuamente com rigor, e a sugestão deste artigo é que ambas deixam de apresentar uma interpretação abrangente da democratização – ou ao menos, uma que seja capaz de articular as mudanças em curso nos campos político, social e pessoal.

Após duas décadas de estudos sobre a transição dos regimes autoritários, o estudo dos processos de democratização na América Latina teria levado os cientistas sociais a tornarem-se mais democráticos, pelo menos em dois aspectos de nossa atividade profissional. O primeiro é que estaríamos melhor preparados a tolerar o dissenso, e apreciar as diferenças entre abordagens alternativas, na medida em que recebemos as contribuições que outros colegas têm a oferecer para nossos temas comuns de pesquisa. O segundo ponto acompanha o primeiro, no sentido de que aprendemos a relativizar nosso próprio ponto de vista, ao precisá-lo melhor para enfrentar as críticas dos colegas, evitando as tendências à generalização excessiva e elasticidade conceptual (conceptual stretching), de modo a contribuir mais efetivamente ao processo de debate.

Mesmo assim, esse diálogo entre abordagens competitivas ao estudo da democratização ressoa muitas vezes como áspera disputa, em que bloqueios circunstanciais e incompatibilidades teóricas de fundo compõem um emaranhado aparentemente intransponível. Mas não surpreenderá ninguém o fato de que a democracia seja controvertida mesmo no campo teórico. Pois os debates e críticas recíprocas ajudam a esclarecer a competição entre abordagens teóricas alternativas: oferecem contribuições específicas de cada abordagem a temas comuns (interfaces), revelando assim os problemas práticos e conceptuáis não resolvidos, os quais por sua vez revelam os limites internos de cada abordagem O nosso conhecimento da democratização é ampliado por tais controvérsias, que mostram o aprendizado político como processo em aberto, que vai muito além do estado presente de nossas teorias.

Nesta oportunidade examino certas interfaces e limitações de duas das correntes mais influentes no estudo da democratização na América Latina, que se têm notabilizado por suas contribuições alternativas, e se têm criticado reciprocamente, de forma vigorosa e excludente. A primeira abordagem foi denominada por Munck (1998) "análise do regime político", e a segunda é considerada como "estudos culturais" pelos seus mais recentes autores (Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998). Essas contribuições estão entre as mais atuais, relevantes e representativas de ambas abordagens ao estudo da democratização. Iniciarei apontando as contribuições e limites das análises do regime, apoiado na aguda revisão que Munck (1996) oferece desses estudos – à qual remeto o leitor para um tratamento rigoroso e abrangente da literatura. A seguir utilizo o livro organizado por Alvarez et al. para exemplificar as características dos estudos culturais, e a natureza de seu desacordo com as análises do regime. Finalizo esboçando algumas interfaces entre as duas abordagens, ao redor de temas comuns da democratização, bem como as limitações ou problemas práticos e conceptuais não resolvidos. Mas estas interfaces temáticas e limitações teóricas não são vistas aqui como o único resultado possível deste debate. Outros terão também que arriscar as suas próprias conclusões, como desafios ao futuro da pesquisa.

AS ANÁLISES DO REGIME

A concepção "minimalista" schumpeteriana da democracia – como "o método democrático (que) é um sistema institucional para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir, mediante uma luta competitiva pelo voto do eleitor" (Schumpeter, 1961, p.328) – tornou-se central à teoria política denominada "elitista", e tem sido a principal corrente interpretativa dos processos de democratização na América Latina. Tal êxito não é fortuito ou indevido, uma vez que o foco puramente * institucional, na criação e aperfeiçoamento das regras e mecanismos de formação, autorização e negociação das elites políticas, condiz com os requisitos de implantação e estabilidade do novo regime, sua reprodução jurídico-constitucional, e a definição (formal ou informal) dos seus procedimentos.

Certamente, a abordagem elitista ou minimalista inclui uma série de especificações procedimentais (conforme a idéia de poliarquía, de Dahl, 1971) de modo a tornar a democratização do regime político suscetível à análise empírica (Sartori, 1987). Gerardo Munck (1996) revisa vários estudos sobre a democratização política, e sustenta que a ênfase procedimental das análises do regime tornou-se dominante na literatura:

"Há um consenso geral de que parte do que define um regime político são as regras procedimentais que determinam: (1) o número e o tipo de atores que recebem acesso às principais posições de governo; (2) os métodos de acesso a tais posições; e (3) as regras que são obedecidas na tomada de decisões públicamente vinculantes". (Munck, 1996: 3-4).

Contudo, a literatura reconhece que o estabelecimento das novas "regras do jogo", durante as transições ao regime democrático na América Latina padece de sérios constrangimentos, em parte decorrentes da longa tradição do liberalismo oligárquico e da pesada herança institucional implantada pelas ditaduras militares na região. Por isso Garretón (1994) propôs o termo "enclaves autoritários" para identificar os persistentes bloqueios institucionais que ameaçam a consolidação da democracia na região. E Guillermo O'Donnell, um dos mais influentes analistas do regime, reconheceu:

"Nossas teorias devem reconhecer...a medida em que um regime poliárquico coexiste com um império da lei propriamente democrático. Para este fim, embora isso amplie grandemente o âmbito e a complexidade da análise, énecessário concluir que um enfoque apenas baseado no regime é insuficiente." (0'Donnell, 1998:21)

Em poucas palavras, não basta estabelecer novas leis e procedimentos institucionais que garantam uma seleção dos atores políticos através de eleições competitivas, o equilíbrio entre os poderes, a accountability pública entre as elites, e destas para com os eleitores, etc. — os mínimos atributos institucionais estipulados pela teoria "elitista". Para que estes atributos formais do regime tenham vigência, é necessário o seu acatamento através do desempenho comportamental dos principais atores políticos.

Portanto, Munck propõe uma "desagregação do conceito de regime político" em suas duas dimensões, que incluem, juntamente com seu caráter procedimental (o estabelecimento das novas " regras do jogo" que fazem a transição à democracia), o seu componente comportamental qual seja "o acatamento estratégico de tais procedimentos por todos os atores políticos principais, e a ausência de sua rejeição normativa por qualquer um deles" – que determinaria a consolidação do regime. (Munck, 1996: 6). Esta ênfase no caráter bidimensional do regime facilita também sua desagregação analítica numa seqüência temporal, de "desconsolidação/transição/consolidação". Pois ao distinguir entre os procedimentos institucionais e a adesão comportamental dos atores pode-se compreender o regime político em sua dependência das interações estratégicas dos atores políticos relevantes, que devem iniciar a transição e eventualmente também promover a consolidação do novo regime.

Por certo, vários dos estudiosos que Munck revisa (como O'Donnell, Schmitter, Whitehead e Przeworski) enfatizaram também uma seqüência temporal para as várias etapas de democratização política. Mas nenhum deles considerou tais etapas tão estritamente dependentes da adesão individual e do comportamento independente dos atores políticos, como Munck propõe:

"A análise do regime consiste de três amplas áreas de pesquisa, caracterizadas por temas analíticos diferentes: a criação das novas regras pelos atores, (que é) o ponto central do processo de transição; as próprias regras, (que são) o resultado central do processo de transição; e o acatamento ou rejeição das regras definidas pelos atores durante a fase detransição, (que é) o foco característico do processo de consolidação."(p. 8).

Coerentemente com o caráter puramente estratégico atribuído aos atores, a resposta de Munck descarta qualquer tentativa de caracterização coletiva dos atores governamentais, especialmente as concepções alternativas do regime político propostas por Michael Mann e outros, nos termos de uma "coalizão dominante": "O regime é uma aliança dos atores do poder ideológico, econômico e militar, coordenada pelos governantes do Estado" (Mann, 1993: 18-19). Esta é uma interpretação que Munck considera "reducionista", pois "concebe o regime apenas nos termos de seus atores, ou trata as regras institucionais como epifenômenos" (p.20). E, "uma vez que ignora a importância dos procedimentos institucionais na estruturação da política, essa abordagem tende a descartar a gama de diversidade institucional que pode coexistir entre um conjunto similar de atores" (p.21). Além disso, "também deixa de considerar a interação entre os atores e os procedimentos (...) tornando inconcebível a própria noção de um processo de transição, em que os atores negociam uma alternativa às regras existentes. A conceituação reducionista do regime político como 'coalizão dominante' conduz, em suma, a uma drástica mutilação da agenda de pesquisa".

Munck não apenas rotula como "reducionistas" as concepções marxistas de regime político defendidas por Mann, e por Anglade/Fortin (1985), mas igualmente as social-democráticas de Helio Jaguaribe (1973) e outros autores, que distinguem entre "regime de poder" e regime político, e consideram a última dependente da primeira categoria de atores. O objetivo da crítica é nítido e preciso, no sentido de afirmar a autonomia do regime político frente aos demais fatores e agentes de poder, bem como a autonomia dos atores políticos frente a outros constrangimentos, no acatamento dos procedimentos da democracia através do seu desempenho comportamental. Aparentemente, nenhuma vinculação extra-política (classe social, interesses ideológicos, orientações doutrinárias, etc.) poderia desviar os atores políticos de seu acatamento formal aos procedimentos democráticos.

Como vimos, Munck dispensa qualquer consideração normativa nessa adesão dos atores ao regime: a relação entre atores e procedimentos é contingente, e referida a um contexto de interações puramente estratégicas, em que as considerações normativas só aparecem ex negationes – "ausência de rejeição normativa das novas regras por qualquer ator político relevante". Contudo, é lícito perguntar se a adesão estratégica às regras e procedimentos democráticos não necessita ou supõe, por parte dos atores, uma adesão normativa ao regime democrático, que deveria ser explicitamente reconhecida. A única explicação plausível, que faça juz à arguta resenha de Munck, é que a maioria dos atores políticos responsáveis pelos procedimentos democráticos, através do seu comportamento, efetivamente oferecem sua adesão normativa ao novo regime, embora tal adesão pareça irrelevante neste contexto interpretativo.

De fato, esta fundamentação normativa é tão relevante para a dimensão comportamental do regime democrático, que alguns dos estudiosos minimalistas têm repetidas vezes salientado o caráter "híbrido" das novas democracias da América Latina. Por exemplo, Guillermo O'Donnell (1996) sublinhou a importância de "uma outra institucionalização" na América Latina, que é informal e até ilegal – a saber, o clientelismo, o particularismo e a corrupção. Essas disseminadas práticas culturais e institucionais ameaçam a consolidação dos ideais liberais e republicanos da democracia, e a própria sobrevivência deste regime político na América Latina. (Neste artigo O'Donnell parece considerar a própria noção de consolidação democrática como um viés etnocêntrico, importado das experiências dos países centrais do Ocidente).

A desagregação bidimensional do regime político, proposta por Munck, levanta a questão de quem são esses atores políticos relevantes. Quanto ao número e tipo dos atores envolvidos, estes, segundo Munck, "são muitos: as lideranças de múltiplos partidos políticos". Mas, considerando o caráter híbrido das novas democracias, não é suficiente dizer que os atores são as lideranças dos partidos políticos (embora "muitos e múltiplos"). Pois os partidos e demais atores políticos participam do caráter contingente do regime político, ou seja, podem entrar em transição, consolidação, desconsolidação, etc. Isto ocorre na medida em que realizam através do seu comportamento as regras e procedimentos do regime, ou então negociam regras diferentes para um novo regime, com os mesmos ou com outros atores políticos.

Portanto, os partidos podem até emergir ou desaparecer repentinamente na arena política – como aconteceu, por exemplo, com o PRN de Fernando Collor de Melo no Brasil (e têm havido casos semelhantes, de candidatos outsiders (anti-sistema) em outros países, como Fujimori no Peru, ou Chávez na Venezuela). Independente do que se pense desses atores, o fato é que atores políticos relevantes emergem da sociedade, e sua adesão aos procedimentos democráticos pode ser testada já no seu comportamento enquanto cidadãos que são de uma sociedade "híbrida". É certo que devido a sua natureza informal, tais procedimentos e comportamentos híbridos situam-se usualmente fora do enfoque institucional e da abordagem teórica que se dedica à análise do regime político. Contudo, na medida em que tais comportamentos individuais ameaçam as tentativas atuais de institucionalização da democracia, os analistas do regime tiveram que buscar as origens de tais anomalias no comportamento real dos atores.

É interessante constatar que esta abordagem, que alega sustentar uma perspectiva puramente estratégica às vezes recai num apelo quase moralista a categorias weberianas, quando aplicáveis aos traços informais do comportamento político. Assim, uma categoria como clientelismo é freqüentemente usada mais como argumento de autoridade, que dispensa sua utilização como categoria heurística, para a análise de comportamentos empíricos específicos (Zabludoski, 1989). Contudo, há também notáveis exceções quanto a isso, entre os analistas do regime, como por exemplo o estudo do clientelismo nos comportamentos e instituições do Legislativo brasileiro, feito por Fabiano G. Santos (1994). Da mesma forma, quando os analistas do regime denunciam candidatos, governantes e partidos por seu particularismo e práticas "híbridas", o eleitorado é muitas vezes avaliado através de hiper-generalizações, como "voto plebiscitário", caudillismo, etc. – apesar da aparente falta de interesse desses autores pelo estudo da cultura política do país, ou pelas orientações normativas das elites (por exemplo, O'Donnell, 1991).

É ocioso recordar aqui que estas observações críticas não pretendem descartar as relevantes contribuições das análises do regime para o estudo da democratização. A rigorosa revisão que Munck apresentou sobre essa literatura assinalou suas muitas realizações, que certamente colaboram para ampliar o conhecimento da democratização na América Latina. Contudo, todas as correntes de interpretação têm suas limitações, e esses problemas não resolvidos não diminuem a importância de seus resultados, mas lançam novos desafios para a pesquisa. Os grandes méritos da abordagem de análise do regime (por exemplo, a economia do seu modelo do ator racional, e de suas interações estratégicas) a colocaram em sua atual predominância entre os estudos da democratização. De fato, algumas de suas limitações parecem resultar de sua mais decantada característica – a ênfase necessária e rigorosa na análise institucional do regime político. Tais limitações também se relacionam a certos limites internos da abordagem, que depararam com elementos contraditórios do comportamento político, situados além das instituições formais que essa corrente se propõe a interpretar. Mas a sua proposta atual de "desagregar o regime político" em suas dimensões procedimental e comportamental, entre as elites políticas, teve o mérito de apontar os bloqueios que impedem, a este nível de análise, uma conclusão satisfatória para os processos de democratização.

OS ESTUDOS CULTURAIS

A área de "estudos culturais" teve seu desenvolvimento principalmente na Inglaterra, com Stuart Hall (1992) e seus associados no Birmingham Center for Contemporary Cultural Studies, sob o impacto do Tatcherismo e em oposição à onda neo-conservadora dos anos 70/80. Mas as suas origens deitam raízes no marxismo inglês dos historiadores da cultura (com Raymond Williams, 1963, e outros), sob influência gramsciana, e mais recentemente em relação com o pós-estruturalismo (de Foucault, Laclau, etc.). A influência desta linha sobre os estudos da democratização na América Latina é bastante recente, mas encontra vínculos germinativos, claramente assumidos por seus autores, com os estudos anteriores sobre movimentos sociais, realizados durante a transição dos regimes militares latino-americanos. O livro organizado por Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar, sobre "As políticas da cultura e as culturas da política. Revisando os movimentos sociais na América Latina" (1998) é a obra mais atual desta tendência. Por isso abordaremos nesta seção principalmente os resultados que ali se apresentam, em termos de "estudos culturais", em sua controvérsia com as análises do regime

Os organizadores do livro sustentam na introdução que os trabalhos apresentados na coletânea foram concebidos como "estudos culturais" principalmente para enfatizar que "a política cultural dos movimentos sociais desencadeia contestação cultural ou pressupõe diferença cultural". E acrescentam:

"Consideramos a política cultural como o processo iniciado por conjuntos de atores sociais, corporificando diferentes significados e práticas que entram em conflito uns com os outros. Tal definição supõe que estas práticas e significados — (...) todos concebidos em relação com uma dada ordem cultural dominante — podem ser a origem de processos que devem ser aceitos como políticos (...) Ou seja, os movimentos engajam-se numa política cultural quando afirmam concepções alternativas da feminilidade, da natureza, da economia, democracia ou cidadania, as quais desafiam os significados culturais dominantes. Falamos de formações político-culturáis neste sentido, como resultantes de articulações discursivas originadas de práticas culturais existentes — sempre híbridas, nunca puras, no entanto mostrando contrastes significativos em relação às culturas dominantes — e no contexto de condições históricas específicas." ( p. 13 – as páginas referem-se à versão digitada em agosto de 1996).

Esta é sem dúvida uma abordagem inovadora e sofisticada, que claramente descarta as pretensões de homogeneização cultural e integração política dos estudos usuais na linha da "modernização" e do desenvolvimento institucional — inclusive levantando uma crítica contundente à abordagem minimalista da democratização, considerada conivente com o elitismo excludente dos projetos de institucionalização pós-autoritária vigentes na América Latina. Pois este enfoque político-cultural, coerentemente com os "estudos culturais" na Europa, ocupa-se com os projetos emancipatórios dos "subaltern counterpublics" (Fraser, citada na introdução), através dos conflitos e oposições que levantam à democratização, concebida apenas no plano institucional — tal como é patrocinada pelas elites políticas e econômicas e teorizada pelos minimalistas. No dizer da introdução ao livro:

"Uma concepção alternativa da democracia (...) consideraria o próprio processo de sua construção como abrangendo não apenas a redefinição do 'sistema político' mas também as políticas econômicas, sociais e culturais que gerariam uma ordenação democrática da sociedade como um todo. Tal concepção chama atenção para uma vasta gama de esferas públicas possíveis, onde a cidadania se poderia exercer, e os interesses sociais seriam não apenas representados mas também fundamentalmente reformulados" (p.2).

Os autores da introdução recolhem o termo "subaltern counterpublics" (de difícil tradução ao português) do livro de Nancy Fraser (1993, p. 14), onde é conceituado como "espaços alternativos, (...) arenas discursivas paralelas onde membros dos grupos sociais subordinados inventam e circulam contra-discursos, de modo a formular interpretações opositoras para suas identidades, interesses e necessidades" (Ibid.) Essa conceituação é recolhida por Alvarez/Dagnino/Escobar enquanto crítica da posição de Habermas acerca da esfera pública liberal, caracterizada por Fraser como "informada por um suposto valorativo subjacente, a saber que o confinamento da vida pública a uma única e compreensiva esfera pública é uma situação positiva e desejável, já que a proliferação de uma multiplicidade de públicos representa um desvio da democracia, em lugar de seu avanço" (p. 13).

Ao final da seção voltaremos a estes temas. Mas não se pense ser esta abordagem uma simples repetição aperfeiçoada das análises dos anos 80 sobre movimentos sociais na América Latina, que sustentavam usualmente uma rígida dicotomía entre a sociedade civil e o Estado (que não era então totalmente desfocada, dada a pesada herança dos regimes militares sobre os processos de transição que se iniciavam). Os "estudos culturais" introduzem uma compreensão da política que é muito mais sofisticada, matizada e flexível que aquelas herdadas do marxismo e das lutas contra a ditadura. Os ensaios incluídos no livro, sobre o movimento negro no Rio de Janeiro (Cunha), ou sobre as mulheres no Chile (Schild) e os Zapatistas no México (Yúdice) enfatizam por sua vez as ambigüidades e o desenvolvimento não-linear das relações entre os atores sociais e o Estado, em contextos históricos e com conseqüências político-sociais inteiramente diversificados. Pois o livro retrata os atores sociais como sendo responsáveis pela afirmação do significado e da relevância política dos seus atos, em seus respectivos contextos nacionais (ver também os capítulos de Jelin e Grueso/Rovero/Escobar sobre a importância decisiva dos contextos nacionais).

Todos os capítulos do livro encaram seriamente (mesmo quando não examinam detalhadamente) as mudanças institucionais em cada contexto nacional, inclusive as reformas da constituição e as transformações principais do sistema político como um todo. Tais contribuições vão pois muito além da polarização binaria entre sociedade civil e Estado, sustentada por muitas análises anteriores acerca dos movimentos sociais na América Latina. Os ensaios individuais de Alvarez, Dagnino, Jelin e Baierle, bem como a introdução do livro, desenvolvem o conceito de "esfera pública", como extensão ou expansão da política institucional para além das fronteiras do Estado. Esta é uma inovação conceituai importante, que permite aperfeiçoar a interpretação da relevância dos atores políticos e sociais fora dos limites estritos das estruturas usuais de governo e representação política. Sem dúvida, há sempre também no livro a expectativa, mais ou menos explícita, de que as diferenças nacionais e a diversidade social que tematiza possam ser avaliadas conjuntamente, desde uma perspectiva comparativa e transcultural. Tal perspectiva deveria ser proporcionada pelo foco nos "estudos culturais", e sobre este ponto também voltaremos adiante.

É de esperar que este novo enfoque dos estudos culturais seja avaliado futuramente, no mesmo teor de seus antecessores na Inglaterra (Hall e associados), que foram assim considerados, numa resenha abrangente (nada hostil, mas muito rigorosa):

"A abordagem gramsciana (dos estudos culturais) abriu uma quantidade de temas à inspeção crítica, de modo interessante e inovador. Foi responsável pela emergência de uma sociologia crítica da cultura e pela politização da cultura, gerando programas de pesquisa e ensino acadêmico muito exitosos. Contudo (...) há também umas quantas tendências ao estreitamento no gramscianismo. Em resumo, os estudos parecem demasiado prontos a encerrar suas investigações da realidade social, tornando seus conceitos prematuramente identificados a elementos dessa realidade, sob várias formas (...) Também se encerram prematuramente por serem demasiado 'estratégicos' — ao permitir que certa política privilegie a análise, tanto uma política nacional explícita, como uma política acadêmica local menos explícita. Tais estreitamentos trazem benefícios, mas também perdas consideráveis". (Harris, 1992, p. 195).

A nova abordagem cultural dos atores sociais na América Latina certamente aprendeu dos estudos culturais na Inglaterra e outros países, de modo a evitar as tendências ao "estreitamento". Talvez seja esta a razão pela qual Gramsci é raramente citado no livro de Alvarez/Dagnino/Escobar. E o conceito de "hegemonia" (este "fashionable floating signifier", no dizer da crítica de Harris, p. 14) é abertamente descartado pela introdução do livro, porque "as culturas políticas dominantes na América Latina —com talvez umas poucas e efêmeras exceções — não podem ser vistas como exemplos de ordenação hegemônica da sociedade". Esclarecendo-se a seguir:

"De fato, todas se comprometem, sob graus e formas diferentes, com o autoritarismo social profundamentre arraigado, que permeia a organização excludente das sociedades e culturas latino-americanas (...) A falta de diferenciação entre o público e o privado — onde não apenas o público é apropriado privadamente mas também as relações políticas são vistas como extensão das relações privadas — normaliza o favoritismo, personalismo, clientelismo e paternalismo como práticas regulares da política (...) Portanto, as redefinições emergentes de conceitos como democracia e cidadania apontam direções de confrontação com a cultura autoritária, através da resignificação de noções como direitos, espaços públicos e privados, formas de sociabilidade, ética, igualdade, diferença, etc. Estes múltiplos processos de resignificação revelam claramente definições alternativas daquilo que conta como político" (¡bid., p. 16-19).

A ênfase dos estudos culturais nas ações emergentes da sociedade, como fonte e expansão do regime democrático, parte portanto de uma contestação direta das modalidades de institucional idade "informal", personalista, clientelista e excludente, que caracterizam a vida social e política na América Latina.

Parece que um passo necessário a seguir, nesta retomada e revalorização da política, entre os estudiosos dos atores sociais nos processos de democratização, será o reconhecimento de que uma interpretação tanto política como social desses processos supõe a adoção de uma escala comparativa que permita avaliar o seu "desenvolvimento político" (e aqui re-emerge um termo muito controvertido na literatura). E certamente compreensível que os "estudos culturais" ofereçam resistência a conceitos que envolvem comparações institucionais e culturais, anteriormente feitas a partir das experiências históricas dos países democráticos centrais do Ocidente. Mas não se trata de retornar às ilusões da "modernização" dos politólogos dos anos 50/60. O que se tem em mente (por exemplo) é algo como o "desenvolvimento moral-cognitivo" da cidadania, em sua homologia ou correspondência com a democratização sócio-política das instituições (Cf. Habermas, 1990, Kohlberg, 1981-4)), já proposta como abordagem viável ao estudo dos movimentos sociais nos processos de democratização latino-americanos (Krischke, 1993; 2000).

O ponto aqui é que o restabelecimento dos direitos de cidadania nos regimes pós-autoritários permitiu e acompanhou uma expansão da esfera pública, através da qual os atores sócio-políticos adquirem e desenvolvem novas estratégias, identidades e uma cultura cívica — ainda que incipiente, sempre transitória e certamente limitada pelas condições históricas de sua realização cultural e institucional em cada país. Em suma, há um processo de aprendizado da democracia através do exercício dos direitos de cidadania, que se pode avaliar comparativamente em cada contexto local, nacional e regional. (Ver em Chilton, 1990, uma abordagem metodológica de estudo do desenvolvimento político-cultural consentânea com esta proposta). É importante sublinhar que a abordagem de Habermas ao desenvolvimento moral-cognitivo é multidimensional, incluindo uma dimensão cognitiva (desenvolvimento de visões do mundo), juntamente com uma dimensão normativa (desenvolvimento moral e jurídico), e uma dimensão subjetiva (desenvolvimento de identidades e estruturas da personalidade).

Por outro lado, é certo que as mudanças institucionais não podem ser ingenuamente concebidas como paralelas às transformações individuais ou subjetivas. E é certo também que as várias dimensões da vida social devem ser examinadas através de pesquisas empíricas específicas. Mas a ênfase no desenvolvimento moral-cognitivo é apenas um exemplo de propostas que podem ampliar o alcance das "políticas culturais" contempladas pelos novos estudos culturais dos movimentos sociais, no sentido de abarcar os fenômenos da democratização social, política e intersubjetiva desde uma perspectiva de conjunto, para poder interpretá-los comparativamente. E ela tem também o mérito de enfrentar outro problema metodológico raramente considerado com seriedade pela literatura anterior acerca dos movimentos sociais na América Latina: a questão de qual deve ser a unidade de análise em tais estudos. Este último tema tem sido especialmente debatido fora da América Latina sob a rubrica do "individualismo metodológico" (cf. Levine, Sober e Wright, 1987; Birnbaum e Leca, 1990), e os estudos norte-americanos sobre "resource mobilization" o têm levantado desde a obra pioneira e controvertida de Olson (1966) acerca da "lógica da ação coletiva".

Alguns ensaios do livro de Alvarez/Dagnino/Escobar enfrentaram o tema indiretamente, nos termos de um "um novo conceito de cidadania coletiva" (por exemplo, os capítulos de Dagnino e de Telles/Paoli). Paoli o interpreta como uma noção de cidadania que é "diferente da concepção liberal, e concebida como participação coletiva ativa no diálogo e negociação (...) relacionada ao conjunto da sociedade e suas desigualdades"; e Dagnino define a cidadania coletiva como constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos);. Na verdade, todos os autores do livro parecem endossar concepções sociais da cidadania, às vezes lado a lado com a interpretação mais convencional da cidadania enquanto exercício de direitos individuais básicos, civis, políticos e sociais. Esta definição da participação social como forma de cidadania é certamente relevante, e acompanha a reavaliação e expansão da esfera política já notada acima. Contudo, ela também corre o risco de apenas dar um novo nome a uma antiga dificuldade dos estudos anteriores sobre movimentos sociais na América Latina, a saber, sua incapacidade ou desinteresse em considerar a dimensão pessoal e individual no seu foco de análise.

Esta recusa tem sido às vêzes justificada como forma de oposição aos interesses egocentrados e individualistas, que se supõe serem o único foco analítico do "individualismo metodológico" (embora Elster, Birnbaum e Leca, evine et al. e outros tenham rejeitado esta crítica, desde diferentes pontos de vista). Sejam quais forem os méritos desse debate, seria irônico se uma linha de estudos culturais que procura sublinhar (entre outros aspectos culturais da vida política) a dimensão subjetiva da democratização sócio-política, esquecesse os interesses individuais e as motivações pessoais que levam os setores populares (e quaisquer outros atores) à participação social e política. Na verdade, é necessário dar conta do fato de que os atores e movimentos sociais são constituídos por indivíduos. E a maioria dos estudos anteriores sobre movimentos sociais têm seguido uma direção oposta, qual seja, a de atribuir aos atores sociais características de personificação e individuação — "reificando" assim suas ações e orientações. Este lapso pode ser semelhante às conceituações marxistas anteriores acerca das classes sociais (como Kowarick, 1995, sugeriu).

É certo que a abordagem principalmente pós-estruturalista do livro de Alvarez/Dagnino/Escobar foi capaz de identificar muitas peculiaridades e diversidades dentro dos grupos sociais que estudou, conforme as clivagens de gênero, raça, renda, idade, etc. Por exemplo, o ensaio de Warren argumenta contra o "paradigma marxista anticapitalista" na sua abordagem dos grupos indígenas em Centro América, e Cunha argumenta de modo similar sobre o movimento negro no Brasil. Mas algo mais poderia ser feito para avaliar as diferenças pessoais e individuais no interior dos grupos e movimentos sociais que atuam na América Latina. Uma abordagem do desenvolvimento moral-cognitivo, em sua correspondência com as transformações sócio-políticas e normativas, seria capaz de oferecer uma visão comparativa para a democratização em seu conjunto.

Finalmente, deve-se mencionar outra relevante contribuição destes novos estudos culturais acerca dos movimentos sociais na América Latina : os capítulos de Ribeiro, Yúdice e Cunha sublinham de modo inovador a importância do imaginário, do mito e da utopia para a vida cultural dos movimentos sociais. E a pergunta é: não seria o caso de introduzir a ênfase já constatada do livro, na ambigüidade, também na consideração da esfera do imaginário? Neste sentido, a sugestão que Telles e Paoli apresentam no livro é muito valiosa, por considerar os conflitos e negociações sociais no Brasil como parte de um "contrato social", que se está manifestando através da construção e expansão da esfera pública. Esta espécie de utopia concreta apresenta a vantagem, sobre outras formas de utopia, de ser passível de uma análise empírica, através da avaliação dos seus resultados. De fato, as relações contratuais podem ser consideradas como um mito ou utopia operacional que oferece/produz resultados específicos, os quais podem atualizar (embora parcial e episódicamente) a esperança de eqüidade suposta pelo ideal do contrato (conforme os debates acerca do neo-contratualismo rawlsiano).

Assim, tanto Bohman (1990) como Benhabib (1987) mostraram, de formas distintas, que o "Outro Generalizado" da utopia contratualista da eqüidade deve levar em consideração as desigualdades e diversidades de cada "Outro Concreto" — corrigindo desse modo a Rawls desde uma perspectiva habermasiana acerca do agir comunicativo. O foco nas relações contratuais em processo de realização pode pois ampliar nosso entendimento da democratização na América Latina, no contexto de "sociedades hierárquicas ou não-liberais" (Rawls, 1993). Já que proporciona aquilo que Yúdice, neste livro, denominou "ideoscapes" : "processos materiais através dos quais interagem as comunidades imaginadas" — ou seja, permitem comprovar a construção do ideal e da prática da democracia em meio às desigualdades, diferenças e injustiças gritantes que caracterizam as nossas sociedades.

À luz desta discussão, cabe questionar aqui a leitura que fizeram Alvarez/Dagnino/Escobar da conceituação habermasiana da esfera pública (a partir da crítica de Nancy Fraser, mencionada acima). Bohman (1990) sugere que a definição habermasiana da "democracia como institucionalização de discursos" supõe que '*os discursos são institucionalizados na medida em que é criado um contexto social que permita acordos coletivos, pós-convencionais, os quais, por sua vez, criam sejam quais forem as estruturas partilhadas por esses atores" (Habermas, 1979: 73). A democracia é vista, assim, como uma "hipótese prática", já que as instituições democráticas "colocam sob controle o desenvolvimento dos sistemas sociais, através de uma institucionalização do discurso efetivamente política" (Habermas, 1973: 398). (1) Por outro lado, a teoria habermasiana da mudança social repousa em dois postulados: o primeiro é que "o aprendizado é o mecanismo evolutivo básico da cultura"; o segundo é que "há padrões homólogos de desenvolvimento cognitivo, nos planos ontogenético e filogenético" (Habermas, 1979: 99 e 205). Ademais, já vimos que a sua teoria do desenvolvimento moral-cognitivo (Habermas, 1989) é multidimensional, incluindo a dimensão cognitiva ao lado da dimensão normativa e da dimensão subjetiva.

Esta leitura que Bohman faz de Habermas é apenas uma entre muitas outras possíveis já feitas, mas ela não parece contradizer as orientações centrais adotadas pelos estudos culturais acerca de uma esfera pública expansiva e multifacetada. As diferenças, contudo, podem estar em outra parte: na teorização foucaultiana e pós-estruturalista, cujas limitações Habermas (1989b) criticou agudamente, e que não podemos tratar neste espaço.

CONCLUSÕES

As duas abordagens ao estudo da democratização, que vimos acima, revelam um paralelismo aparentemente inconciliável entre duas importantes linhas de pesquisa, que estão orientando decisivamente os estudos sobre o tema na América Latina. Este paralelismo se deve ao desacordo dessas abordagens acerca do significado e dos limites da democratização.

Basta uma recapitulação, lado a lado, de alguns dos seus temas, para constatar as suas diferenças: os analistas do regime oferecem uma concepção minimalista do espaço público, enquanto os estudos culturais ocupam-se com a expansão da esfera pública além das fronteiras do Estado; as análises do regime focalizam a ação das elites, individualmente consideradas, enquanto os estudos culturais concentram interesse nos "cidadãos coletivos" como unidade de análise; os analistas do regime consideram os partidos e o governo como seus atores relevantes, enquanto os estudos culturais elegem como tal os "subaltern counterpublics"; a perspectiva temporal dos primeiros é o ciclo de desinstitucionalização/reinstitucionalização do regime (desconsolidação-transição-consolidação), enquanto a dos segundos é a expansão participativa em aberto; o regime político, para os primeiros, é o conjunto de regras e comportamentos governamentais, enquanto os últimos privilegiam o confronto entre as políticas culturais e as instituições dominantes, da perspectiva dos setores subordinados; e assim por diante.

Vários problemas de ambas as abordagens foram indicados acima, no decorrer da exposição de cada linha, e — embora não possamos desenvolver aqui esta afirmação — parece que se relacionam principalmente aos fundamentos teóricos de cada uma delas, e às limitações que estes fundamentos originam, na seleção de seus métodos e objetivos de análise. Daí se deriva apenas a sugestão final de que tais limitações impedem cada abordagem de incorporar à análise exatamente aqueles temas que a outra privilegia. E que, portanto, ambas lançam luz sobre aspectos complementares da realidade. Isto, contudo, não significa que se deva desconsiderar as fundamentais discrepancias teóricas e práticas em que se apóiam ambas as correntes: como elas mesmas se encarregam de explicitar em suas críticas recíprocas, o que está em questão são projetos concorrentes para a democracia, cuja conciliação não se vislumbra no futuro imediato.

Não obstante, vimos também que há interfaces temáticas entre essas abordagens, sendo que pelo menos três delas são muito inovadoras e inter-relacionadas, podendo resultar de especial relevância para os estudos futuros da democratização na América Latina:

(1) A "desagregação bidimensional" do regime político, numa dimensão procedimental e outra comportamental (privilegiando recentemente a segunda) nos estudos minimalistas é, de certa forma — e num sentido aparente ao menos — similar à dicotomia central dos estudos culturais, entre uma esfera política institucional dominante e as "políticas culturáis" (em que se privilegia, como vimos, o comportamento opositor dos subaltern counterpublics). Mas os estudos culturais sustentam que as "políticas culturais" também se exercem a partir das instituições e atores dominantes do sistema político — o que, aliás, dá razão de ser à atividade opositora dos setores subordinados.

Portanto, (2) a ênfase recente dos minimalistas na "institucionalidade informal" do clientelismo, privatismo, etc. enquanto principal obstáculo à pretendida consolidação do regime democrático na América Latina, recebe dos estudos culturais um apoio analítico fundamental. Estes estudos ajudam a especificar historicamente os traços particularistas informais involucrados nos conflitos sobre a participação e o sentido da ação e dos discursos, que colaboram para a mudança social e a expansão da esfera pública, a partir de suas raízes no cotidiano.

Finalmente, (3) a ênfase no comportamento individual e interação estratégica dos atores políticos, pelos minimalistas, parece necessitar o reconhecimento explícito das orientações normativas desses atores, em apoio à democracia. Estas orientações normativas aparecem nos atores coletivos dos estudos culturais — embora (tanto nesta como na outra corrente) careçam de uma teoria normativa sobre a conduta individual capaz de integrar-se à análise da democratização desde um ponto de vista comparativo. Portanto, ambas abordagens carecem uma teoria normativa explícita da democracia (como as de um Rawls ou um Habermas, por exemplo) que interprete compreensivamente as transformações políticas, sociais e individuais que acompanham os processos de democratização.

Certamente, não se trata de propor um retorno à filosofia da história, da consciência ou do sujeito, ou que a democratização só se possa entender através de uma definição essencialista do homem e seu destino. Mas a democratização é um processo histórico de aprendizado de novos valores, atitudes e comportamentos sócio-políticos, que capacita grupos e indivíduos a criar e sustentar um novo modo de vida e novas instituições para organizar esse mundo vivido. As análises do regime e os estudos culturais têm lançado luz sobre muitos aspectos desse processo de aprendizado, tanto no nível institucional como no nível cultural de nossas sociedades. Cabe aos cientistas sociais acumular novas evidências e propor novos insights acerca do aprendizado da democracia na América Latina, para que esse processo histórico receba uma interpretação de conjunto, que seja tão comparativa quanto universalista.

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    Versões anteriores deste trabalho foram publicadas pela
    Revista de Ciências Humanas (UFSC),
    Revista Mexicana de Sociologia (UNAM) e
    International Sociology (ISA). O autor agradece as críticas e comentários recebidos de vários colegas, especialmente a Stephen Chilton por várias sugestões que ajudaram a aperfeiçoar o foco e o tratamento do tema.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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