Acessibilidade / Reportar erro

Direitos humanos, cidadadania e globalização

Human rights, citizenship and globalization

Resumos

Examina-se a ameaça à cidadania e aos direitos humanos representada pelos efeitos conjuntos da ação incontrolada de atores econômicos transestatais e da expansão das tecnologias de comunicação global instantânea.

cidadania; direitos humanos; globalização


The threat to citizenship and human rights presented by the joint effects of the unbridled action of transnational economic actors and of the expansion of instantaneous global communication technologies is examined.

citizenship; human rights; globalization


FACES DA DEMOCRACIA

Direitos humanos, cidadadania e globalização

Human rights, citizenship and globalization

J. A. Lindgren Alves

Diplomata, atualmente Cônsul Geral do Brasil em São Francisco (EUA), ex-Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores, autor dos livros Os Direitos Humanos Como Tema Global (São Paulo, Perspectiva,1994) e A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos (São Paulo, FTD, 1997)

RESUMO

Examina-se a ameaça à cidadania e aos direitos humanos representada pelos efeitos conjuntos da ação incontrolada de atores econômicos transestatais e da expansão das tecnologias de comunicação global instantânea.

Palavras-chave: cidadania; direitos humanos; globalização

ABSTRACT

The threat to citizenship and human rights presented by the joint effects of the unbridled action of transnational economic actors and of the expansion of instantaneous global communication technologies is examined.

Keywords: citizenship; human rights; globalization

Not the loss of specific rights, then, but the loss of a community willing and able to guarantee any rights whatsoever, has been the calamity which has befallen ever-increasing numbers of people. Hannah Arendt

O fenômeno da globalização, entre os muitos efeitos que acarreta, tem provocado alterações profundas nas idéias de soberania e cidadania vigentes do mundo ocidental desde a Revolução Francesa. Esta já modificara ambos os conceitos, antes prevalecentes na versão absolutista, ao transferir a titularidade da soberania do monarca para os cidadãos, detentores de direitos. A modificação atual é, porém, mais radical.

Não tanto porque a globalização tende a deslocar a soberania para entidades políticas supranacionais, mas porque os agentes econômicos transestatais e as tecnologias da comunicação instantânea praticamente inviabilizam seu exercício. Ao inviabilizar o exercício da soberania, a globalização incontrolada engendra o risco de anular a cidadania e, com ela, os direitos humanos. É preciso, portanto, encontrar meios de resgatar a cidadania ainda que modificada, para que a convivência humana não retorne aos modelos hobbesianos, seja o da "lei da selva", do homem como lobo do homem, seja o da solução absolutista, esmagadora dos direitos. Os meios talvez possam ser os próprios direitos humanos, utilizados no discurso contemporâneo de maneira distorcida, devidamente reenfocados em sua indivisibilidade.

O CONCEITO DA CIDADANIA

Desde que o absolutismo foi superado nos estados modernos, os conceitos de soberania e cidadania são vinculados à idéia de direitos humanos. Enquanto outros elementos, como a localidade, a identidade e a história comum, influem na construção da nacionalidade, a noção de cidadania reporta-se à de Nação como espaço de realização individual e coletiva, politicamente organizada no Estado soberano, nacional ou plurinacional (a Suíça, por exemplo), como entidade garantidora dos direitos e do Direito. Obviamente isso não quer dizer que os direitos fundamentais tenham sido inteiramente respeitados, nem que todos os habitantes de um Estado qualquer tenham alguma vez vivido em perfeita harmonia. Significa que o Estado, administrado por representantes da própria cidadania, para levar seus nacionais à guerra, para estabelecer-lhes normas coercitivas ou para cobrar-lhes impostos, assumia o compromisso de assegurar seus direitos.

Ao proclamar, em 1789, a declaração de direitos de maior repercussão na História até a adoção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Assembléia Nacional Francesa definiu a cidadania até mesmo no título do documento, "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", ou seja: todo homem, como expressão da espécie, tem direitos inerentes a sua natureza humana, que são, porém, exercidos no contexto da cidadania. Com linguagem e efeitos universalizantes, a declaração da França revolucionária redefiniu também a soberania estatal, estabelecendo, em seu Artigo 2º, que "o objetivo de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e inalienáveis do homem" (à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão) e no Artigo 3º, que "a fonte fundamental de toda soberania reside na nação".

Até mesmo a crítica marxista ao Estado e ao Direito subentende a vinculação entre cidadania e direitos humanos. As reservas de Marx aos "direitos burgueses" consagrados nas declarações norte-americanas e francesa do século XVIII prendiam-se à percepção de que, ao protegerem a propriedade privada como um atributo natural e inalienável, elas estabeleciam uma igualdade jurídica meramente formal, legitimando a exploração capitalista do proletariado. A cidadania política seria, pois, a seu ver, um artifício do capitalismo para administrar a mais-valia em territórios estanques, ocultando a luta de classes, resolúvel somente pela revolução proletária, necessariamente internacionalista.

As análises não-marxistas mais influentes da vinculação entre a cidadania e os direitos humanos advêm de T. H. Marshall, desde o final da década de 40 (a primeira edição de Citizenship and Social Class é de 1950 e aprofunda idéias expostas em conferência de 1949). Com base nas experiências britânica e norte-americana por ele examinadas mais de perto, os três elementos articuladores da cidadania moderna seriam os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, historicamente conquistados nessa ordem: os civis no século XVIII, os políticos no século XIX e os sociais no século XX. Diferentemente do entendimento marxista, os direitos civis e os direitos políticos não são, para Marshall e para a social-democracia clássica, dissimulações falsamente igualitaristas; são, ao contrário, instrumentos legais de luta para a conquista dos direitos econômicos e sociais sem recurso à revolução.

Embora com relação a governos autoritários, no final do Século XX como no Século das Luzes, as primeiras preocupações se voltem naturalmente para a obtenção das liberdades civis e políticas, nos países de regime democrático o entendimento hoje predominante no movimento em prol dos direitos humanos parece aproximar-se bastante da interpretação de Marshall (ainda que não-formulada explicitamente nesses termos): os direitos humanos não abulem nem negam a idéia de luta de classes, mas são importantes para se atenuarem os malefícios sociais do capitalismo incontrolado. A atenuação se obtém pela expansão do conceito de direitos fundamentais e inalienáveis das tradicionais "liberdades burguesas" – ou direitos "de primeira geração", que exigiram do Estado apenas "prestações negativas" – de forma a abranger também os direitos econômicos e sociais ou direitos "de segunda geração", pelos quais o Estado passa a ter obrigação de realizar "prestações positivas" para a garantia do trabalho, da remuneração justa e eqüitativa, da proteção social, da educação gratuita, pelo menos nos graus elementares, de condições apropriadas de vida, em particular na esfera da saúde.

Em rapidíssimas pinceladas, esse é o quadro em que se desenvolve a cidadania no Estado constitucional moderno. Ele se acha consagrado, desde 1948, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que entroniza no mesmo nível os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todo ser humano. Esse é o quadro que inspira os esforços contemporâneos nacionais – não apenas brasileiros, mas de qualquer sociedade democrática consciente (embora a doutrina jurídica norte-americana ainda relute em aceitar a idéia de direitos econômicos e sociais)– para a plena observância dos direitos humanos. Esse não é, porém, o quadro predominante no cenário internacional.

O QUADRO JURÍDICO INTERNACIONAL

Pela ótica estrita dos direitos humanos, muitos autores entendem que sua asserção internacional percorreu caminho inverso àquele observado por Marshall. Tendo em conta que a Organização Internacional do Trabalho – OIT remonta à Liga das Nações (1919), antecedendo as Nações Unidas e a Declaração Universal, os direitos sociais teriam precedido temporalmente os direitos civis e políticos. O entendimento pode ser correto – embora não seja claro na doutrina se os direitos trabalhistas, inclusive o direito de constituir organizações sindicais e o direito à greve, são propriamente direitos sociais ou liberdades civis. Mas não dá conta das dificuldades empíricas do tema, nos tempos pretéritos e atuais.

Desde que afirmaram como tema legítimo da agenda internacional, entre os propósitos das Nações Unidas, os direitos humanos sempre padeceram de desequilíbrios em seu tratamento, em favor dos direitos "de primeira geração". A essencial idade de todos os direitos e liberdades fundamentais, conquanto evidente na igual importância atribuída pela Declaração Universal a todos os direitos por ela relacionados, nunca se traduziu com adequação no próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos. Os dois pactos de 1966, um sobre direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais, que dariam natureza jurídica obrigatória aos dispositivos da Declaração Universal, ainda que aprovados pela ONU simultaneamente (e sem abrigarem o direito à propriedade), eram profundamente diferentes em termos de mecanismos de proteção. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos dispunha desde o início de um comitê de peritos independentes encarregado de monitorar a implementação de suas disposições, com capacidade, inclusive, para acolher queixas individuais (conforme seu Protocolo Facultativo). Esse comitê é, sintomaticamente, denominado "Comitê dos Direitos Humanos". O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não dispunha originalmente de mecanismo supervisor assemelhado. Somente em 1985 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas decidiu estabelecer um comitê de peritos para examinar os relatórios nacionais dos Estados-partes, formalmente idêntico a seu homólogo do outro pacto, mas sem capacidade para acolher comunicações individuais. Apropria denominação dos dois comitês põe em relevo a diferença de nível atribuída aos direitos protegidos por cada um: o novo "Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais" não denota no nome o fato de que esses direitos, tanto quanto os civis e políticos, também são inalienáveis e fundamentais.

Em função desse desequilíbrio, sempre agravado pelas atenções internacionais voltadas mais para as violações de direitos civis e políticos do que para a situação dos direitos econômicos e sociais, os países em desenvolvimento, com apoio dos antigos países socialistas, insistiam na necessidade de reafirmar a indivisibilidade de todos os direitos humanos. Ela foi reafirmada pela ONU inúmeras vezes, em resoluções e documentos vários. O problema que acompanha essa insistência justa se encontra no fato de ela ter sido, e ainda ser, postulada com particular veemência por países que violam deliberadamente os direitos civis e políticos de seus cidadãos com a alegação de que sua preocupação primeira é com o desenvolvimento e com os direitos econômicos e sociais. A alegação é comprovadamente absurda: o desenvolvimento entendido como simples crescimento econômico nunca de per si garantia de direitos, nem civis e políticos, nem econômicos e sociais. Como explicitava Marshall e a experiência confirma, os direitos civis e políticos são instrumentos legais importantes para a conquista da cidadania social. Sem eles a economia do Estado até pode crescer, e a de muitos tem realmente crescido, sem que esse "desenvolvimento" traga benefícios ao conjunto da cidadania.

O QUADRO PÓS-GUERRA FRIA

Quando a Guerra Fria terminou, em fins de 1989, no episódio simbólico da queda do muro de Berlim, acreditou-se que o mundo havia entrado numa onda democratizante irreversível (a obra mais significativa do período foi o célebre ensaio de Francis Fukuyama sobre o fim da História, bastante controverso). Foi exatamente essa crença que inspirou a convocação pelas Nações Unidas da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena em 1993.

A conferência de Viena foi importante para a resolução de dificuldades conceituais que sempre envolveram os direitos humanos, como a questão de sua universalidade; a da legitimidade do monitoramento internacional de violações; a da inter-relação entre os direitos humanos, o desenvolvimento e a democracia; a do direito ao desenvolvimento e a da interdependência de todos os direitos fundamentais. A declaração de Viena, com suas recomendações programáticas, constitui o documento mais abrangente sobre a matéria na esfera internacional, com uma característica inédita: adotada consensualmente por representantes de todos os Estados de um mundo já sem colônias, sua validade não pode ser contestada como fruto do imperialismo (o que era possível dizer-se até então, com alguma lógica, da Declaração Universal de 1948, aprovada pelo voto de 48 países independentes e 8 abstenções, numa época em que a maioria da população extraocidental vivia em colônias do Ocidente, sem representação na ONU).

Envolvendo 171 estados, cerca de 1000 organizações não-governamentais e um total de mais de 10 mil indivíduos, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos teve efeito decisivo para a disseminação, em escala planetária, dos direitos humanos no discurso contemporâneo. Por mais que os governos criticados defendam-se como podem, inclusive com invocação de particularismos políticos-culturáis e com alegações de que a abordagem internacional desses direitos é atentatória à soberania nacional, ou – o que é a mesma coisa dita de outra maneira – como violação do princípio da não-intervenção em assuntos internos (formalmente vigente nas relações interestatais desde os Tratados de Westfália de 1648, e consagrado entre os princípios das Nações Unidas, no artigo 2º, parágrafo 7º, de sua carta), esses argumentos são agora, no mínimo, contraditórios com o assentimento dado pelos representantes dos mesmos Estados à Declaração de Viena. A universalização do discurso político dos direitos humanos – útil, em qualquer circunstância, para a popularização da idéia de tais direitos – não se coaduna, porém, com o fenômeno da globalização em curso e com o discurso que a impulsiona nos moldes atuais. Incorre, por isso, no risco de deturpar-se, perdendo as características de abrangência e equilíbrio que haviam levado ao consenso de 1993.

O fenômeno mais marcante do mundo Pós-Guerra Fria é, sem dúvida, a aceleração do processo de globalização econômico. Enquanto a situação estratégica planetária tinha conformação bipolar, com as ideologias liberal e comunista em competição, a existência de barreiras comerciais e não-comerciais era recurso protetivo dos Estados, aceito como necessário à defesa da soberania. O Estado-providência era forte, nos países desenvolvidos, sobretudo porque dificultava a contaminação das respectivas populações pela utopia antagônica. Com o fim da bipolaridade estratégica e da competição ideológica entre o liberalismo capitalista e o comunismo, a ideologia que se impôs em escala planetária não foi, entretanto, a da democracia baseada no Welfare State, justificado até mesmo pela filosofia lockeana1 1 No Segundo Tratado do Governo, Locke ressaltava, nos parágrafos 134 e 135, que o objetivo fundamental do Estado é a preservação da sociedade e de cada pessoa que a compõe, não se lhe permitindo "destruir, escravizar ou deliberadamente, empobrecer seus súditos" (John Locke, The Two Treatises of Government, Londres, Everyman, 1997, p. 184). . Foi a do laissezfaire absoluto, com a alegação de que a liberdade de mercado levaria à liberdade política e à democracia. Eticamente justificou-se, dessa forma, o investimento econômico maciço em países de regimes autoritários, neles se aceitando a substituição das liberdades civis e políticas pelo crescimento econômico como problema a ser resolvido pela "mão invisível do mercado".2 2 Daí a "exemplaridade" dos chamados "Tigres Asiáticos", erigidos em modelos a serem imitados no Terceiro Mundo. Por outro lado, nos países de sistema democrático, não somente as proteções mercadológicas , trabalhistas e previdenciárias passaram a ser objetadas em nome da modernidade, mas a própria noção do Estado-providência tornou-se condenada como inepta à competitividade, num momento em que o desemprego era aceito como fatalidade "estrutural". É com essas premissas ideológicas que a globalização se tem acelerado em ritmo vertiginoso.

O problema para a democracia embutido no credo ultraliberal ora dominante é que, dentro do quadro jurídico-político conhecido até agora, os direitos humanos somente se realizam em sua indivisibilidade dentro de territórios nacionais e com as instituições do Estado-providência. Sem as prestações positivas necessárias, oferecidas por tais instituições como garantias de subsistência à população, a cidadania, na acepção de Marshall, é uma cidadania incompleta, assemelhada àquela criticada por Marx. Os direitos humanos, tão difundidos no planeta, acabam por parecer-se àquilo que, na cidadania democrática, eles se propõem combater: um discurso legitimante de iniqüidades que se agravam por efeito da própria globalização.

CENTRALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO

A globalização incontrolada tem provocado tendências centrípetas e centrífugas, apenas aparentemente antagônicas. O estabelecimento da economia-mundo como tendência centrípeta não unifica nada. Engendra, ao contrário, divisões continuamente acentuadas na esfera social e uma dispersão cultural enorme disfarçada no fato de que todos os povos agora, quando podem, vestem calças jeans, comem hamburguers, ouvem e compõem rock and roll e querem ver filmes de Steven Spielberg.

Pela ótica econômico-social, o fenômeno derivado mais visível é a emergência de duas classes que extrapolam limites territoriais: a dos globalizados (aqueles abarcados positivamente pela globalização) e a dos excluídos (mais de três quartos da humanidade). Essa divisão é sensível em nível internacional e dentro das sociedades nacionais. Os globalizados de todos os rincões têm ou aspiram a padrões de consumo de Primeiro Mundo.

Os excluídos (da globalização e do mercado) aspiram tão somente a condições mínimas de sobrevivência e, se não puderem contar com o direito inalienável à segurança social, são marginalizados da sociedade.

Em nível internacional, o agravamento da distância entre países ricos e pobres vem sendo denunciado em todos os relatórios de organizações intergovernamentais. Dos dados amplamente divulgados vale a pena recordar alguns mais ilustrativos. Segundo os Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD – , em 1962, os 20% mais ricos da população mundial tinham recursos 30 vezes superiores aos dos 20% mais pobres. Em 1994 esse diferencial passara a ser de 60 vezes e em 1997, de 74 vezes. Em 1997, os recursos acumulados de 600 milhões de pessoas dos países menos desenvolvidos não alcançavam a fortuna somada dos três maiores bilionários.3 3 Relatórios do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano de 1994 e 1997 (dados de 1997 extraídos do texto de Ignacio Ramonet em resposta a Thomas Friedman, no debate "Dueling globalizations", Foreign Policy N. 116, outono de 1999, p. 126). Para uma comparação mais próxima, inteligível em nossa própria pele, as 400 maiores fortunas individuais dos Estados Unidos, listadas anualmente pela revista Forbes, acumulam atualmente um total bastante superior ao do PIB do Brasil: 1 trilhão de dólares4 4 E da China, com seus 1,2 bilhões de habitantes! ("The Forbes 400", edição especial da Forbes, outubro de 1999, p. 169). (contra os nossos 800 bilhões de 1997, reduzidos em 1998 e, previsivelmente, em 1999). Enquanto quase todo o resto do mundo enfrenta situações agravadas, a quantidade de milionários norte-americanos, com fortunas cada vez mais impressionantes, vem aumentando acentuadamente: contra 1,3 milhões de famílias com renda líquida superior a US $ 1 milhão em 1989, o número atual é de 5 milhões, devendo, segundo estimativas da mesma Forbes, quadruplicar nos próximos 10 anos.5 5 Dinesh D'Souza, "The billionaire next door", ibid, p. 52. Dos 400 relacionados em 1999, com renda líquida não inferior a US $ 625 milhões, 268 são bilionários, 79 a mais do que em 1998.

Não é porém somente nos países em desenvolvimento que se concentra a exclusão social. Mais de 100 milhões de pessoas sofrem privações nas sociedades mais ricas. Os Estados Unidos, com a maior renda média dos países desenvolvidos, têm, segundo o PNUD, a maior população abaixo da linha de pobreza: 17% do total.6 6 Human development report 1998, p. 2. Melhores índices de desenvolvimento humano têm aqueles países onde as instituições do Welfare State são mais sólidas, como a Suécia (7% de pobres) ou os Países Baixos (8%). Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, acrescenta que a União Européia tem atualmente 5Q milhões de desempregados e 15 milhões de habitantes em condições miseráveis.7 7 Ignacio Ramonet, "A new totalitarianism", Foreign Policy nº. 116, outono de 1999, p. 118. A diferença entre eles e os pobres do Terceiro Mundo está no nível das privações enfrentadas. A faixa de pobreza nos Estados Unidos é tão mais elevada que, segundo o Banco Mundial, 81% da população global contam com uma renda que naquele país seria suficiente apenas para um regime de sub-alimentação.8 8 Veja Ano 32, nº. 40, Edição de 6 de outubro de 1999, p. 136. O escritório federal do censo norte-americano (Census Bureau) estabelece atualmente como faixa de pobreza, abaixo da qual as famílias têm direito a receber vales alimentares e outros benefícios, rendimentos brutos anuais da ordem de US $ 16,600.00 e está estudando a possibilidade de elevar esse limite para US $ 19,500.00 (Louis Uchitelle, "Devising new math to define poverty", New York Times, edição de 18/10/99, pp. A1 e A4). Qualquer dessas duas quantias, num país onde o custo de vida médio não é muito mais elevado do que no Brasil, seria simplesmente astronômica para os pobres brasileiros. Na Europa ocidental, além disso, mais do que nos Estados Unidos, as proteções sociais mínimas do Estado-providência em defesa da cidadania perduram e se transnacionalizam na União Européia – contra os preceitos do credo que delas se propõe desfazer.

Os globalizados de qualquer região tendem a saudar a globalização incontrolada com entusiasmo. Nas sociedades ricas, cujos segmentos sólidamente "incluídos" de empresários e trabalhadores especializados em tecnologia de ponta são os verdadeiros sujeitos da globalização, os efeitos colaterais são sentidos principalmente no incômodo da imigração aumentada, ou na ansiedade provocada pela oscilação de bolsas quando há crises em países emergentes. Os incômodos são controlados, conforme o caso, com barreiras quantitativas ou de outra ordem à entrada de imigrantes não-qualificados e pela reorientação das aplicações financeiras para mercados mais promissores no momento, enquanto se aliviam as consciências com a prática da filantropia (descontada no imposto de renda). Nas camadas intermediárias os efeitos podem representar o fim do emprego e a exclusão do consumo hoje – expressão sinônima de marginalização social, com tudo o que pode implicar em termos de miséria, violência e criminalidade, sobretudo em países que não conseguem oferecer compensações previdenciárias ou outras alternativas de subsistência.

Para a criminalidade comum, observada com maior freqüência entre as camadas mais pobres (também pelo lado das vítimas), a saída dos Estados Unidos (que algumas pessoas de boa fé parecem ter a intenção de copiar alhures) tem sido a repressão rigorosa, com a intolerância punitiva transformada em plataforma eleitoral unânime. A reclusão prisional passa a ser a regra para qualquer comportamento delitivo, levando muitas vezes a sentenciamento absurdo. Pela regra imperativa dos three strikes (três golpes) vigente da Califórnia, há, nesse Estado mais rico da mais opulenta Federação, indivíduos em situações que lembram a do Jean Valjean de Victor Hugo. Duas vezes reincidentes no mesmo delito, ou com três situações variadas, cumprem penas mínimas de 25 anos até a de prisão perpétua todos os delinqüentes violentos ou não, sejam homicidas contumazes não-condenados à morte, sejam pessoas marginalizadas que furtam comida, cidadãos normalmente ordeiros que dirigem seus carros após ingestão de bebida, pequenos traficantes ou portadores de maconha9 9 Segundo recentemente noticiado, 88% das prisões registradas nacionalmente em conexão com drogas em 1998 teriam sido por posse e não por tráfico de maconha (Reuters, 1988 pot arrests near record; most for possession", San Francisco Examiner, 18/10/99). (os estrangeiros, legais ou ilegais, são em seguida, deportados, quando a pena não é de prisão perpétua ). Como recursos econômicos não faltam para esses fins, os Estados Unidos têm hoje a maior população carcerária do mundo: quase 2 milhões de prisioneiros, segundo informações do Departamento de Justiça, após sete anos consecutivos de redução nos números totais e relativos de delitos graves.10 10 Com 12,5 milhões de delitos graves registrados em 1998, o somatório de assassinatos, estupros, assaltos, roubos violentos e furtos, inclusive de veículos, nos Estados Unidos, foi inferior em 5,3% ao de 1997. A taxa de crimes de 4.616 por 100.000 habitantes acusou redução de 6% com relação a 1997, 14% a 1994 e 20% a 1989 (Mark Helm, "Murder rate lowest in three decades – serious crime drop for 7th straight year", ibid). É interessante notar que as autoridades federais, conquanto efusivas com esse declínio, explicam-no sobretudo por razões demográficas (envelhecimento do grupo nascido no baby boom, entre 1946 e 1964, correspondente a 25% da população), não pelo crescimento econômico do país, nem pelo rigor repressivo. O aumento constante da população carcerária se deve reconhecidamente à intensificação da campanha de "guerra às drogas". Daí a interpretação de Zygmunt Bauman de que, nas sociedades pós-modernas do capitalismo globalizado, mais do que no período clássico analisado por Foucault, o problema da exclusão social tende a ser resolvido pelo encarceramento, agora sem objetivos disciplinares ou de recuperação.11 11 Zygmunt Bauman, Globalization – The Human Consequences, New York, Columbia University Press, 1998, pp. 103-127. O encarceramento dos excluídos, como recurso crescente à prisão para a também crescente penalização de atos relativamente banais, seria a contrapartida natural do autoconfínamento dos ricos, em sociedades crescentemente inseguras.

Em quase todas as sociedades, um vasto segmento populacional, situado na tradicional classe média (que abrange atualmente os trabalhadores formalmente empregados, sobretudo do Primeiro Mundo) usufrui de alguns benefícios da globalização. Viaja-se hoje muito mais do que antes; os turistas já não são propriamente cidadãos privilegiados; a Internet propicia comunicação instantânea e barata com todo o mundo (desde que se tenha acesso a computador ligado à rede), a competição internacional torna mais assecíveis produtos antes adquiridos somente pelos mais abastados e a sedução consumista é praticamente imbatível. As empresas multinacionais trazem novos empregos e novos hábitos aos países em desenvolvimento – ainda que em muitas vezes à custa de desemprego maior – enquanto os trabalhadores dos países mais ricos batem-se para evitar a transferência territorial, dos empregos que têm, acusando os países mais pobres de dumping social. A volatilidade dos capitais financeiros em busca de juros fáceis e a montagem e desmontagem de investimentos produtivos, sempre em busca de mão de obra barata, com incentivos fiscais, podem jogar mitos desses indivíduos semi-globalizados abaixo da linha de pobreza.

As diferenças entre as novas classes nas sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas são essencialmente quantitativas. Nas primeiras os globalizados são muitos e excluídos, relativamente poucos, enquanto a maioria da população é semi-globalizada. Nas sociedades mais pobres, evidentemente, os números se invertem, com a qualificação de que os semi-globalizados são substancialmente menos "incluídos", caindo na faixa de exclusão com muita facilidade. É importante assinalar que essas duas novas classes, oriundas da globalização incontrolada, não eliminam a divisão tradicional entre ricos e pobres, tendo de permeio a classe média. O que se encontra muitas vezes superada é a idéia de solidariedade classista numa realidade demasiado competitiva, onde as iniciativas de "racionalização" significam quase sempre demissões em massa. Como, em termos de recursos, as classes médias de países pobres já se assemelham às classes pobres de países ricos, enquanto os pobres são mais pobres e os ricos têm níveis comparáveis aos dos homólogos desenvolvidos, o dualismo social dos países emergentes se aprofunda infinitamente. É significativo que, segundo dados da Fundação Seade divulgados no Brasil em outubro em 1999, na área do país mais diretamente afetada pelo fenômeno da globalização, a Região Metropolitana de São Paulo, a renda familiar tenha crescido 37% para os 10% mais ricos e 24% para os 10% mais pobres, desde o lançamento do Plano Real – que, não obstante, logrou promover para cima da faixa brasileira de pobreza mais de 10 milhões de indivíduos (14 milhões, segundo a estatística dos períodos iniciais).

Impulsionada pela globalização incontrolada e pelo fim das ideologias alternativas ao status quo, com o respaldo militante das teorias pós-estruturalistas, um outro tipo de fragmentação se manifesta, de caráter cultural, na exacerbação do comunitarismo simbólico ou imaginário. Como o Estado é aparentemente fraco, em todos os quadrantes da terra, e o espaço nacional não assegura a realização dos direitos fundamentais de todos, a nação perde em parte sua conotação valorativa. Não sendo realista a auto-indentificação por classe, conceito relativizado pelo consumo de massas e pela competição exacerbada por empregos escassos, nem pela idéia de nação organizada em Estado, entidade sem capacidade de garantir a não discriminação entre seus cidadãos, o indivíduo passa a identificar-se com outro tipo de comunidade, por coloração epidérmica ou religião, por gênero ou orientação sexual, por origem étnica ou nacional, diversa da maioria. Na Europa crescentemente integrada pelas instituições da União Européia, assiste-se hoje a uma acentuada revalorização de localismos sub-nacionais, inclusive com o cultivo de línguas antes quase extintas, como o bretão no norte da França, o gaélico na Escócia e no País de Gales, ou o catalão oficializado na cosmopolita Barcelona e em toda a Catalunha. Nos próprios Estados Unidos, país extraordinariamente patriótico que funciona como pólo econômico e estratégico do planeta globalizado, o cidadão norte-americano se orgulha – mais, sem dúvida, do que em outras nações – de sua cidadania nacional. Mas ela não é sua única, nem principal, lealdade. A identidade é crescentemente marcada antes como branca ou negra, protestante ou não-protestante (judia, mulçumana, católica romana, ortodoxa hindu ou exotérica de mil matizes), feminina, masculina ou homossexual, nativa, hawaiana ou asiática. A descendência étnica vira "raça": brancos (euro-americanos, sobretudo anglo-saxões) ou hispânicos (que não incluem necessariamente os espanhóis), sendo semitas apenas os judeus, não os árabes.

Se, por um lado, esse mosaico de lealdades tem permitido às comunidades simbólicas lutarem pelo reconhecimento de direitos particularizados (através, por exemplo, da "ação afirmativa" ou do aprendizado de qualquer matéria do currículo escolar na língua de origem12 12 Conquistas sobretudo norte-americanas que, por sinal, vêm sendo nacionalmente contestadas e revertidas por leis estaduais aprovadas em referendo popular (como ocorreu há pouco na Califórnia). ), por outro, ao enfraquecer a noção marshalliana de cidadania, ele pode ter também efeitos perigosos. A afirmação do "direito à diferença" é positiva quando utilizada num sentido anti-discriminatório. Se instrumentalizada, porém, numa linha de radicalização, ou em sociedades onde o dualismo entre os segmentos modernos e arcaicos seja muito acentuado, ela pode levar a impasses para avanços sociais, até porquê o "direito à diferença" de uns pode servir de escusa à intolerância de outros.

Resultante da mistura de causas econômicas e culturais, a fragmentação da comunidade nacional assume feições paroxísticas quando as comunidades simbólicas de auto-identificação se tornam fundamentalistas, em torno da religião, da etnia ou de qualquer outro desses liames simbólicos. Até o fim da Guerra Fria, o fenômeno parecia localizado em regiões específicas, servindo de amálgama ideológico para alguns movimentos anti-ocidentais ou contrários as forças dominantes: os Black Muslims norte-americanos, organizados na Nação do Islã (antípoda à "Identidade Cristã",13 13 Movimento protestante originado na Europa no Século XIX e ainda agora existente nos Estados Unidos, que encara os brancos como filhos de Deus, sendo todos os demais "raças espúrias", oriundas do diabo. inspiradora da Ku-Klux-Klan); a revolução xiita do Irã (contra o regime ocidentalizado do Xá), o Exército Republicano Irlandês (contra o domínio de Londres); os separatistas bascos na Espanha e na França, etc. No início da década de 90, o fundamentalismo baseado na religião manifestou-se de forma bélica sobretudo nos Bálcãs iugoslavos (primeiro na Croácia, em seguida na Bosnia – e finalmente no Kossovo). Espalhou-se pelo mundo muçulmano, com atentados terroristas anti-ocidentais ou anti-seculares , dentro e fora dos países de origem, de forma tão vigorosa que permitiu ao ocidente, durante um certo tempo, assimilar o fundamentalismo à religião islâmica (sem levar em conta que sua primeira e mais duradoura manifestação na década foi cristã e européia, na Iugoslávia pós-comunista). Hoje o fundamentalismo muçulmano não soa diferente de outros fundamentalismos mais ou menos virulentos, hinduísta, católico, protestante, judeu ortodoxo, ou diante da proliferação de seitas salvacionistas, do crescente nacionalismo pan-eslávico na Rússia, da força persistente de bandos e partidos de ultradireita na Europa, do ressugirmento das milícias "nativistas" e outros grupos militantes propagadores do ódio (hate-groups) anti-negro, anti-judeu, anti-imigrañte, anti-homossexual e anti-aborto (que defendem a vida do feto colocando bombas em clínicas) nos Estados Unidos – sem falar dos casos isolados, cada dia mais freqüentes, de jovens que executam seus colegas com armas de fogo, para em seguida suicidar-se, em colégios de classe média abastada.

É difícil apontar com precisão as causas que influem nesse estado de coisas. Nas discussões sociológicas fala-se da natureza da "nova cidadania", definida pela capacidade de consumo, sob risco de exclusão; da substituição, nas sociedades pós-modernas, da ética pela "estética", qué leva ao desejo de posse de bens desnecessários, simbolizantes de status, eternamente satisfeito porque a produção se encarrega de gerar novas "necessidades"; da descrença generalizada na política como campo de luta social; da falta de comunicação interpessoal na sociedade tecnológica pós-industrial, levando o indivíduo atomizado a buscar identificações imaginárias para compensar a perda de vínculos tradicionais; da falta de utopias seculares com sentido teleológico para a realização de esforços sociais coletivos de maior envergadura. Ainda que muitos desses argumentos se amoldem essencialmente a situações do Primeiro Mundo, pois no Terceiro a luta majoritária é "primitiva", por condições de sobrevivência, eles também se aplicam, com maior ou menor adequação, aos segmentos globalizados e semi-globalizados de todas as áreas do planeta. Os problemas propulsores dessa fragmentação têm, de qualquer forma, pelo que tudo indica, muito a ver com o culto do mercado como ideologia dominante. Como os antigos romanos já diziam e praticavam: Divide et impera! Quanto mais esgarçada a comunidade nacional, quanto mais fracos, em todos os sentidos, os Estados novos e antigos, quanto mais insignificantes, econômica e politicamente, as unidades dotadas de soberania política, mais fácil é a afirmação do capital, produtivo e improdutivo, no mercado mundializado. Não é nenhum esquerdista, mas o próprio megainvestidor George Soros, quem reconhece a "aliança prevalecente na política entre os fundamentalistas do mercado e os fundamentalistas religiosos".14 14 George Soros, The Crisis of Global Capitalism, New York, Public Affairs, 1998, p. 231.

A CIDADANIA NO MUNDO GLOBALIZADO

Ao estudar o fenômeno dos totalitarismos de nosso século, à luz sobretudo dos horrores perpetrados contra os judeus destituídos da cidadania alemã pelo regime nazista, Hannah Arendt definiu a cidadania como o pertencimento a uma comunidade disposta e capaz de lutar pelos direitos de seus integrantes, como o "direito de ter direitos".15 15 Hannah Arendt, The Origins of Totalitarism, New York, Harcourt Brace Jovanovitch, 1993,pp. 299-302. Com seus efeitos excludentes, a globalização, nos termos em que está posta, produz um resultado curioso: de um lado, os globalizados, em qualquer sistema político, gozam de todos os direitos que lhes interessam; de outro, os socialmente excluídos, providos ou desprovidos de direitos políticos, têm, em teoria, quase sempre, uma cidadania política, mas ela não lhes proporciona, na prática, nem direitos, nem esperanças.

A globalização é, de qualquer forma, fenômeno factual, com aspectos positivos e negativos. Em paralelo às facilidades reais, mencionadas um pouco acima, que encantam e seduzem globalizados e semi-globalizados, pode ser computada em seu ativo a disseminação das idéias de liberdade e democracia (juntamente com as de ódios e fundamentalismos) propiciada mais pela rapidez das comunicações do que pela liberdade de mercado. A tecnologia, aparentemente libertadora, acarreta, por sua vez, dificuldades adicionais em matéria de desemprego, supostamente estruturadas pela mundialização do mercado.

Grande parte das discussões atuais, no Brasil e no exterior, giram em torno de posições em favor ou contra a globalização. Tais discussões, por mais brilhantes que sejam os argumentos levantados, tendem a ser sempre desfocadas. Sendo um fato cada dia mais inconteste, a globalização em si não comporta posturas pró ou contra, independentemente da boa fé que as possa (ou não) inspirar. Nada impede, porém, que se busquem alternativas para uma inserção positiva no desenvolvimento desse fato, nem para que se procurem estabelecer controles para o processo. A não ser, obviamente, a vontade e o poder daqueles que dele se beneficiam nas condições atuais. Na medida em que o fenômeno não é localizado, nem no tempo (a globalização não é de hoje, vem sendo construída há séculos), nem no espaço (envolve pelos aspectos positivos e negativos praticamente todo o globo terrestre), o isolacionismo e o globalismo ideológico não encontram soluções para os males do presente, até porque não as procuram. O isolacionismo é irrealista e pode ser contraproducente na medida em que se dispõe a barrar os aspectos positivos do processo, sedutores e, em certos casos, úteis. O laissez faire, por sua vez, não oferece contrapartidas para os efeitos negativos.

Outras formas de responder ao desafio do processo globalizador, nem isolacionistas, nem conservadoras, estão em curso há anos, tendo ultrapassado o estádio de posturas. Algumas são pouco palpáveis porque se desenvolvem no plano de valores, outras, bastante objetivas, têm tido resultados concretos. As mais visíveis são os esforços intergovernamentais para a constituição de mercados integrados regionais, como a União Européia, a NAFTA e o Mercosul. A primeira, mais antiga, mais abrangente e mais sólida, supera agora largamente a etapa de construção de um simples mercado comum. É dotada de legislação e instituições supranacionais que esboçam uma nova cidadania, dos "cidadãos europeus" previstos nos acordos de Maastricht, construída pouco a pouco no caminho inverso daquele identificado por Marshall: dos direitos econômicos passando aos sociais e destes para os civis, para chegar, talvez, no futuro, à cidadania política européia, sem esmagar as nacionalidades.16 16 Para um exame exaustivo do assunto, v. Joaquim Leonel de Rezende Alvim, Citoyenneté euwpéene: contribution á l'étude d'un lien polycentrique, Villeneuve d'Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 1999 (tese de doutorado defendida em 1997). Na medida em que o processo de unificação europeu, iniciado pelo Tratado de Roma de 1950 e agora aprofundado pelos acordos de Maastricht de 1991, responde aos desafios da globalização econômica dentro da lógica do liberalismo prevalecente na escala mundial, procurando adaptá-la às peculiaridades européias, a crescente revalorização dos localismos tem sido interpretado como uma reação cultural assemelhada à fragmentação genericamente observada alhures, mas nesses casos como decorrência da intensificação da transferência das soberanias nacionais para instituições assumidamente supranacionais. Não é à toa que o Conselho da Europa, órgão máximo da União Européia, adotou decisão no sentido de encorajar o uso e o ensino de línguas locais. Como declara o escritor Maurice Le Bris, que escreve em bretão para os habitantes da Bretanha: "Nós agora aceitamos que nossa identidade pode ter diversas camadas. Podemo-nos sentir europeus, franceses e bretões simultaneamente. Mas a definição deve permanecer em abeito. Do contrário, você se torna um bastião, uma Sérvia"(apud Marlise Simons, "In new Europe, a lingual hodgepodge", New York Times, 17/10/98, p. A4). Mais incipiente é o processo de integração desenvolvido no âmbito do Mercosul, que não prevê, no momento nada de semelhante, mas conta com órgão consultivo que extrapola a esfera econômica. Ele também, mais do que a NAFTA, pode, talvez, encaminhar-se para modificações no territorialismo das cidadanias.17 17 É significativo que desde 1992-93 os sindicatos dos quatro países que compõem o Mercosul tenham decidido participar com voz ativa do processo de integração negociado pelos respectivos governos. Ainda que sua atuação se tenha pautado até agora mais pelo recorte de nacional do que pelo enfoque classista, o envolvimento das centrais de trabalhadores da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (v. sobre a matéria Tullo Vigevani, Mercosul – Impactos para trabalhadores e sindicatos, São Paulo, LTr/FAPESP/CEDEC, 1998) é fenômeno a ser acompanhado com interesse também pelo que pode vir a representar sob o prisma de urna eventual "cidadania"regionalizada.

Na escala planetária nada parecido ocorre de concreto, nem indica que venha a ocorrer. Fala-se, com freqüência, de comunidades transnacionais existentes na linha das comunidades simbólicas de identificação que dividem as comunidades nacionais ( negros, mulheres, homossexuais, nacionalidades, etnias e religiões em diaspora),18 18 Ver, por exemplo, Arjun Appadurai, Modernity at Large – Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis e Londres, University of Minnesota Press, 1997. assim como de "comunidades de objetivos ", que lutam por causas específicas (ambientalismo, movimento das mulheres e dos direitos humanos ). Como recurso retórico fala-se também de uma "sociedade civil internacional" identificada na atuação das ONGs e da Academia na esfera de valores. Tudo isso vem sendo, evidentemente, reforçado pela rapidez da comunicação moderna, física e virtual. Não constitui, porém, nem de longe, uma cidadania universal. Até porque, mundializado o mercado, quem dispõe dos instrumentos para a conquista de direitos não são propriamente homens e mulheres, mas empresas e capitais.

Dentro desse panorama confuso de tendências conflitantes, há pelo menos um elemento positivo. Pela primeira vez na história, valores universalmente compartilhados hoje se afirmam com legitimidade na agenda internacional. As conferências mundiais da ONU na década de 90 trataram de temas efetivamente globais e, malgrado as dificuldades havidas nas negociações, todas adotaram seus documentos por consenso. O que se faz pelo meio ambiente, após a Rio-92, é pouco, mas incomparavelmente mais do que se fazia antes. As mulheres enfrentam dificuldades e retrocessos na luta por seus direitos, mas nunca como neste fim de século tiveram voz tão ativa no espaço público. Os direitos humanos são violados e distorcidos, mas jamais tiveram no passado a força mobilizadora, em escala planetária, do presente. Os valores podem estar sendo usados de maneira utilitária, às vezes em empreitadas duvidosas, como a da OTAN, recentemente, no Kossovo. Entretanto, ainda que para legitimar políticas de poder, são eles agora ingredientes necessários a que os próprios Estados poderosos não podem deixar de recorrer.19 19 V. sobre o assunto Gelson Fonseca Jr., A legitimidade e outras questões internacionais, São Paulo, Paz e Terra, 1998, em especial a Parte II.

Os efeitos das conferências mundiais da década de 90 sobre os temas globais têm sido limitados. Seus documentos foram, todavia, todos consensuais. Foram-no, é bem verdade, porque se tratava de declarações e programas recomendatorios, sem força jurídica cogente. Mas o foram também porque tinham características abrangentes, não-seletivas e equilibradas, acolhendo os direitos humanos como elementos imprescindíveis ao alcance das metas acordadas. Respaldados no consenso e com as características com que foram adotados, os documentos das conferências podem e devem ser utilizados, não como obstáculos fictícios, como instrumentos humanizadores do processo de globalização. Isso não será feito espontaneamente pelos governos: alguns porque, submetidos a variados tipos de pressão, não dispõem de força autônoma suficiente, outros porque, usufruindo de vantagens na situação vigente, simplesmente não a querem modificar. Quem os pode utilizar com convicção e sem constrangimentos de outra ordem na esfera internacional são as comunidades novas acima referidas, simbólicas, "de objetivos", de ONGs e acadêmicas, em particular os movimentos sociais abrangentes, ambientalistas, de direitos humanos, de mulheres e de trabalhadores. Se o fizerem resolutamente, não apenas no âmbito da ONU ou junto a governos isolados, em campanhas consistentes de mobilização mundial, confirmarão a impressão incipiente de que representam o embrião de uma sociedade civil transfronteiriça, capaz de algum dia conformar uma cidadania universal.

INSTRUMENTO HUMANIZADOR

Passados dez anos desde o fim da Guerra Fria, o que permanece no mundo com incidência planetária são apenas o mercado e o discurso dos direitos humanos. Verso e anverso da mesma medalha no sentido mais nobre da social-democracia, na situação presente eles se têm associado no enfraquecimento do indivíduo cidadão: o mercado porque excludente, os direitos humanos porque incompletos. Já que a cidadania se exerce por intermédio dos direitos, agora parece ser hora de retomar seu discurso num sentido diferente daquele em que vem sendo empregado, mais acorde com o consenso de Viena.

A solidariedade internacional existe e se manifesta de formas várias. Foi ela, mais do que a vontade dos Estados, movidos por interesses num jogo complicado de poder, que levou os próprios Estados a construírem, na ONU e em esferas regionais, um arcabouço jurídico para os direitos fundamentais do indivíduo, somente realizáveis na órbita doméstica de cada cidadania. Hoje a solidariedade se expressa na prática do humanitarismo. Os direitos humanos, por seu lado, perderam o vigor combativo. Não tendo possibilidade de impor sua indivisibilidade em Estados democráticos – e é somente nestes que se podem realizar como direitos – ,acabam funcionando a conta-gotas, com efeitos paliativos para casos específicos, em defesa de algumas crianças, de alguns indivíduos, de algumas pessoas despersonalizadas em situações-limites. Ou, pior, são brandidos com veemência somente em sua versão punitiva, necessária como dissuasão, mas nunca, de maneira alguma, correspondente a sua totalidade. A punição de violadores é premissa em que se baseia o Estado de Direito, cujo descumprimento escarnece a idéia de Justiça. Não pode ser a única causa mobilizadora na luta maior e constante pelos direitos humanos, de sentido emancipatório.20 20 Os tribunais supranacionais para julgar responsáveis por crimes contra a humanidade, existentes para a ex-Iugoslávia e Ruanda, e o Tribunal Internacional aprovado pela Conferência de Roma de 1998 representam passo importante para a idéia de "justiça universal". Assim como o processo de extradição contra o General Pinochet, ao pôr em uso, pela primeira vez, as disposições pertinentes da Convenção contra a Tortura de 1988, é importante confirmação da legitimidade dos direitos humanos como tema global. Não configuram, contudo, de per si, avanços no sentido de uma "cidadania transnacional".

Se a solidariedade foi capaz de utilizar os direitos "de primeira geração" como instrumento da ação internacional contra ditaduras, não parece inviável que o mesmo tipo de atuação possa desenvolver-se contra o absolutismo do mercado. Nas lutas nacionais da cidadania viu-se, e ainda se crê, que isso é, em princípio, possível. Na esfera internacional mais difícil é saber o destinatário certo, tão elusivo e difuso, das ações a serem empreendidas. Assim como pouco adiantam, na prática, denúncias de violações contra governos democráticos que sinceramente desejam fazer respeitar os direitos civis – e as violações devem sempre ser denunciadas – pouco adiantariam cobranças internacionais apenas contra governos que não atendem adequadamente aos direitos econômicos e sociais quando não o podem fazer nas circunstâncias vigentes. A batalha democrática por melhores condições para a realização desses direitos dentro do quadro atual é obviamente necessária, mas essencialmente interna, no exercício da cidadania em moldes tradicionais.

Para ter efeitos como contrapeso à globalização incontrolada, não apenas na área econômico-social, mas também na civil e política, as denúncias internacionais devem ir de encontro aos verdadeiros agentes do processo: empresas transnacionais e organismos financeiros, bancos e investidores, fundos de pensões com aplicações internacionais e associações de classe patronais e sindicais, a Organização Mundial do Comércio e o FMI, a Comissão dos Direitos Humanos em Genebra e o foro empresarial de Davos. A atuação não pode tampouco restringir-se a denúncias. Experiências interessantes começam a ser empreendidas nos Estados Unidos, no campo do direito privado, que talvez possam ser multiplicadas em outras jurisdições: as ONGs de direitos humanos vêm movendo ações de indenizações vultosas contra empresas que abusam de trabalhadores, não somente quando violam seus direitos civis, mas também quando os exploram aproveitando-se das condições de mercado (contra a Gap em ilhas do Pacífico, contra maquiladoras com mão de obra mexicana, contra imobiliárias que despejam sem compensação adequada inquilinos pobres e assim por diante). Tal como já se vêem esporadicamente "correntes" na Internet contra a compra de produtos de determinados países como protesto por atentados aos direitos civis e políticos (por exemplo, contra a Indonésia, durante os massacres pós-referendo no Timor Leste), não é inconcebível algo de semelhante contra empresas e organismos que estimulam o desemprego nacional ou estrangeiro.

Nada disso é propriamente novo. O processo criminal movido contra a Nestlé na década de 70, relatado por Cassese,21 21 Antonio Cassese, Human Rights in a Changing World, Oxford, Polity Press, 1990, pp. 138-151. é emblemático. Acusada criminalmente por grupo organizado de cidadãos suíços de promover a fome e mortes de crianças no Terceiro Mundo com sua propaganda de leite em pó em sociedades que não dispunham de meios sequer para esterilizar mamadeiras, a Nestlé foi inocentada por Tribunal de Berna, enquanto os acusadores pagaram multas por difamação A Nestlé, porém, e outras exportadoras de alimentos processados adotaram um "código de ética", adaptando suas técnicas de propaganda de maneira menos nociva aos países-alvos. Paralelamente, movimentos da sociedade civil norte-americana lançaram forte boicote aos produtos da Nestlé, e a Organização Mundial da Saúde conseguiu, pouco tempo depois, estabelecer parâmetros universais para o assunto. Ganharam, com certeza, por outro lado, maior vigor em todo o mundo as campanhas educativas pelo aleitamento materno.

O que se propõe aqui não é tampouco original. Estudos e recomendações nessa linha são abundantes há anos. Em artigo recentemente publicado nos Estados Unidos, Chris Jochnick oferece referencial jurídico internacional para o embasamento de ações contra atores não-estatais que infringem direitos econômicos e sociais em situações diversas.22 22 Chris Jochnick, "Confronting the impunity of non-state actors: new fields for the promotion of human rights", The Human Rights Quartely Vol. 21 n.o 1, The John Hopkins University Press, fevereiro de 1999, pp. 56-79. Seu estudo abrange entre os alvos contemplados as corporações, as instituições financeiras e aquilo que ele chama de third-party States ("estados terceiros"): países cujas iniciativas diretas ou indiretas causam os problemas registrados no Estado em consideração.

O que se visualiza aqui é, sem embargo, mais ambicioso. Tendo por alvo o laissez faire imperante no processo de globalização atual com o objetivo de humanizá-lo, a atuação necessária exigiria mobilização muito maior. Seu foco não seriam apenas os direitos econômicos e sociais, de baixo apelo e pequena credibilidade no quadro internacional. Seriam os direitos humanos na própria maneira enviesada em que se acham incorporados no discurso contemporâneo, com ênfase nos direitos "de primeira geração": à vida, à liberdade e à segurança da pessoa (Artigo 3º da Declaração Universal). Já que a fome conscientemente causada é também uma forma de tortura, poder-se-ia invocar igualmente o direito de não ser torturado (Artigo 5º da Declaração Universal e 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). A idéia pode parecer utópica, mas não é, com certeza, absurda. Se o ambientalismo militante foi capaz de salvar as baleias da extinção anunciada e de levar ao estabelecimento de normas que têm diminuído o nível poluente das indústrias, não é impossível que a militância constante e esclarecida pró-direitos humanos consiga criar solidariedades capazes de estabelecer critérios humanos para a eficiência no mercado mundializado.

O discurso dos direitos humanos é pouco imediatista, mas tem derrubado ditadores. Há pouco tempo destituiu o sistema do apartheid. Quando não chega a demitir pela base governos autoritários de natureza secular, tende pelo menos a controlar seu arbítrio, utilizando tão somente a "mobilização da vergonha".23 23 A expressão é de Alice Henkin, do Aspen Institute. Aprendi-a de Paulo Sérgio Pinheiro, que a cita com freqüência. Se a imagem é importante para os governos, ela o é a fortiori para os agentes do mercado. Se o mesmo tipo de pressão brandida contra os autoritarismos for exercida e divulgada com insistência "mercadológica" contra os agentes da globalização, algum resultado terá. Ajudará, quando menos, a fazer ver as complexas interligações do mundo contemporâneo, nitidamente ignoradas do homem comum das sociedades ricas, que, não obstante, pratica com denodo – descontos tributários – filantropia e humanitarismo. Os direitos humanos não são panacéia para os males do mundo. Têm, contudo, atração aos olhos do público de países desenvolvidos e dispõem de notável transversal idade no espectro político – exceto para os extremismos de direita e de esquerda, ou para os fundamentalismos que sinceramente encaram a política como braço temporal de disposições divinas. Assim como qualificaram juridicamente o conceito de soberania, transferindo-lhe a titularidade do Príncipe para o cidadão, os direitos humanos podem ainda, quiçá, pela ótica econômica, ajudar mais uma vez, com a mobilização externa, o exercício da cidadania.

Não existindo uma cidadania internacional, os direitos humanos não têm no mundo globalizado de hoje a força instrumental identificada por Marshall, no passado, para a construção da cidadania social dentro de Estados soberanos. Mas os direitos humanos, inclusive os de primeira geração, malgrado as reservas de Marx, sempre foram um recurso progressista, dos desprovidos de poder, para obter modificações no status quo. Da mesma forma que foram utilizados pela burguesia contra o Anclen Régime e pelos trabalhadores europeus para o reconhecimento de seus direitos, podem e devem ser reapropriados em sua indivisibilidade para a obtenção de ganhos perante os globalizados em favor dos excluídos. Não se quer com isto incentivar a exumação de condicionalismos peremptos que subordinavam os direitos civis e políticos à prévia consecução de metas desenvolvimentistas, alegadamente em favor dos direitos econômicos e sociais, nem endossar as posturas anacrônicas que ainda neles se escudam na tentativa de escapar ao monitoramento internacional. Os direitos humanos devem, sem dúvida, ser utilizados também na denúncia do arbítrio das ditaduras, dos excessos praticados por movimentos que se proponham chegar ao poder violando os direitos do cidadão comum, bem como de práticas atentatórias aos direitos civis persistentes em regimes democráticos. Comprovadamente incapazes, porém, de produzir efeitos mais sólidos em Estados liberais que por eles se pretendem pautar e não conseguem, melhor será reorientá-los prioritariamente no sentido da luta social internacionalizada, para o estabelecimento de controles ao capital financeiro e de parâmetros aceitáveis à competitividade no mercado mundial. Tais controles são hoje imprescindíveis aos próprios direitos civis, que, sem eles, comprovam-se frágeis e reversíveis. Se os direitos humanos não servirem a essa causa justa, dificilmente outra coisa servirá.

  • 1 No Segundo Tratado do Governo, Locke ressaltava, nos parágrafos 134 e 135, que o objetivo fundamental do Estado é a preservaçăo da sociedade e de cada pessoa que a compőe, năo se lhe permitindo "destruir, escravizar ou deliberadamente, empobrecer seus súditos" (John Locke, The Two Treatises of Government, Londres, Everyman, 1997, p. 184).
  • 3 Relatórios do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano de 1994 e 1997 (dados de 1997 extraídos do texto de Ignacio Ramonet em resposta a Thomas Friedman, no debate "Dueling globalizations", Foreign Policy N. 116, outono de 1999, p. 126).
  • 4 E da China, com seus 1,2 bilhőes de habitantes! ("The Forbes 400", ediçăo especial da Forbes, outubro de 1999, p. 169).
  • 7 Ignacio Ramonet, "A new totalitarianism", Foreign Policy nş. 116, outono de 1999, p. 118.
  • 8Veja Ano 32, nş. 40, Ediçăo de 6 de outubro de 1999, p. 136.
  • O escritório federal do censo norte-americano (Census Bureau) estabelece atualmente como faixa de pobreza, abaixo da qual as famílias tęm direito a receber vales alimentares e outros benefícios, rendimentos brutos anuais da ordem de US $ 16,600.00 e está estudando a possibilidade de elevar esse limite para US $ 19,500.00 (Louis Uchitelle, "Devising new math to define poverty", New York Times, ediçăo de 18/10/99, pp. A1 e A4).
  • 9 Segundo recentemente noticiado, 88% das prisőes registradas nacionalmente em conexăo com drogas em 1998 teriam sido por posse e năo por tráfico de maconha (Reuters, 1988 pot arrests near record; most for possession", San Francisco Examiner, 18/10/99).
  • 11 Zygmunt Bauman, Globalization The Human Consequences, New York, Columbia University Press, 1998, pp. 103-127.
  • 14 George Soros, The Crisis of Global Capitalism, New York, Public Affairs, 1998, p. 231.
  • 15 Hannah Arendt, The Origins of Totalitarism, New York, Harcourt Brace Jovanovitch, 1993,pp. 299-302.
  • 16 Para um exame exaustivo do assunto, v. Joaquim Leonel de Rezende Alvim, Citoyenneté euwpéene: contribution á l'étude d'un lien polycentrique, Villeneuve d'Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 1999 (tese de doutorado defendida em 1997).
  • Na medida em que o processo de unificaçăo europeu, iniciado pelo Tratado de Roma de 1950 e agora aprofundado pelos acordos de Maastricht de 1991, responde aos desafios da globalizaçăo econômica dentro da lógica do liberalismo prevalecente na escala mundial, procurando adaptá-la ŕs peculiaridades européias, a crescente revalorizaçăo dos localismos tem sido interpretado como uma reaçăo cultural assemelhada ŕ fragmentaçăo genericamente observada alhures, mas nesses casos como decorręncia da intensificaçăo da transferęncia das soberanias nacionais para instituiçőes assumidamente supranacionais. Năo é ŕ toa que o Conselho da Europa, órgăo máximo da Uniăo Européia, adotou decisăo no sentido de encorajar o uso e o ensino de línguas locais. Como declara o escritor Maurice Le Bris, que escreve em bretăo para os habitantes da Bretanha: "Nós agora aceitamos que nossa identidade pode ter diversas camadas. Podemo-nos sentir europeus, franceses e bretőes simultaneamente. Mas a definiçăo deve permanecer em abeito. Do contrário, vocę se torna um bastiăo, uma Sérvia"(apud Marlise Simons, "In new Europe, a lingual hodgepodge", New York Times, 17/10/98, p. A4).
  • 17 É significativo que desde 1992-93 os sindicatos dos quatro países que compőem o Mercosul tenham decidido participar com voz ativa do processo de integraçăo negociado pelos respectivos governos. Ainda que sua atuaçăo se tenha pautado até agora mais pelo recorte de nacional do que pelo enfoque classista, o envolvimento das centrais de trabalhadores da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (v. sobre a matéria Tullo Vigevani, Mercosul Impactos para trabalhadores e sindicatos, Săo Paulo, LTr/FAPESP/CEDEC, 1998) é fenômeno a ser acompanhado com interesse também pelo que pode vir a representar sob o prisma de urna eventual "cidadania"regionalizada.
  • 18 Ver, por exemplo, Arjun Appadurai, Modernity at Large Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis e Londres, University of Minnesota Press, 1997.
  • 19 V. sobre o assunto Gelson Fonseca Jr., A legitimidade e outras questőes internacionais, Săo Paulo, Paz e Terra, 1998, em especial a Parte II.
  • 21 Antonio Cassese, Human Rights in a Changing World, Oxford, Polity Press, 1990, pp. 138-151.
  • 22 Chris Jochnick, "Confronting the impunity of non-state actors: new fields for the promotion of human rights", The Human Rights Quartely Vol. 21 n.o 1, The John Hopkins University Press, fevereiro de 1999, pp. 56-79.
  • 1
    No
    Segundo Tratado do Governo, Locke ressaltava, nos parágrafos 134 e 135, que o objetivo fundamental do Estado é a preservação da sociedade e de cada pessoa que a compõe, não se lhe permitindo "destruir, escravizar ou deliberadamente, empobrecer seus súditos" (John Locke,
    The Two Treatises of Government, Londres, Everyman, 1997, p. 184).
  • 2
    Daí a "exemplaridade" dos chamados "Tigres Asiáticos", erigidos em modelos a serem imitados no Terceiro Mundo.
  • 3
    Relatórios do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano de 1994 e 1997 (dados de 1997 extraídos do texto de Ignacio Ramonet em resposta a Thomas Friedman, no debate "Dueling globalizations",
    Foreign Policy N. 116, outono de 1999, p. 126).
  • 4
    E da China, com seus 1,2 bilhões de habitantes! ("The Forbes 400", edição especial da
    Forbes, outubro de 1999, p. 169).
  • 5
    Dinesh D'Souza, "The billionaire next door",
    ibid, p. 52. Dos 400 relacionados em 1999, com renda líquida não inferior a US $ 625 milhões, 268 são bilionários, 79 a mais do que em 1998.
  • 6
    Human development report 1998, p. 2. Melhores índices de desenvolvimento humano têm aqueles países onde as instituições do
    Welfare State são mais sólidas, como a Suécia (7% de pobres) ou os Países Baixos (8%).
  • 7
    Ignacio Ramonet, "A new totalitarianism",
    Foreign Policy nº. 116, outono de 1999, p. 118.
  • 8
    Veja Ano 32, nº. 40, Edição de 6 de outubro de 1999, p. 136. O escritório federal do censo norte-americano
    (Census Bureau) estabelece atualmente como faixa de pobreza, abaixo da qual as famílias têm direito a receber vales alimentares e outros benefícios, rendimentos brutos anuais da ordem de US $ 16,600.00 e está estudando a possibilidade de elevar esse limite para US $ 19,500.00 (Louis Uchitelle, "Devising new math to define poverty",
    New York Times, edição de 18/10/99, pp. A1 e A4). Qualquer dessas duas quantias, num país onde o custo de vida médio não é muito mais elevado do que no Brasil, seria simplesmente astronômica para os pobres brasileiros.
  • 9
    Segundo recentemente noticiado, 88% das prisões registradas nacionalmente em conexão com drogas em 1998 teriam sido por posse e não por tráfico de maconha (Reuters, 1988 pot arrests near record; most for possession",
    San Francisco Examiner, 18/10/99).
  • 10
    Com 12,5 milhões de delitos graves registrados em 1998, o somatório de assassinatos, estupros, assaltos, roubos violentos e furtos, inclusive de veículos, nos Estados Unidos, foi inferior em 5,3% ao de 1997. A taxa de crimes de 4.616 por 100.000 habitantes acusou redução de 6% com relação a 1997, 14% a 1994 e 20% a 1989 (Mark Helm, "Murder rate lowest in three decades – serious crime drop for 7th straight year",
    ibid). É interessante notar que as autoridades federais, conquanto efusivas com esse declínio, explicam-no sobretudo por razões demográficas (envelhecimento do grupo nascido no
    baby boom, entre 1946 e 1964, correspondente a 25% da população), não pelo crescimento econômico do país, nem pelo rigor repressivo. O aumento constante da população carcerária se deve reconhecidamente à intensificação da campanha de "guerra às drogas".
  • 11
    Zygmunt Bauman,
    Globalization – The Human Consequences, New York, Columbia University Press, 1998, pp. 103-127. O encarceramento dos excluídos, como recurso crescente à prisão para a também crescente penalização de atos relativamente banais, seria a contrapartida natural do autoconfínamento dos ricos, em sociedades crescentemente inseguras.
  • 12
    Conquistas sobretudo norte-americanas que, por sinal, vêm sendo nacionalmente contestadas e revertidas por leis estaduais aprovadas em referendo popular (como ocorreu há pouco na Califórnia).
  • 13
    Movimento protestante originado na Europa no Século XIX e ainda agora existente nos Estados Unidos, que encara os brancos como filhos de Deus, sendo todos os demais "raças espúrias", oriundas do diabo.
  • 14
    George Soros,
    The Crisis of Global Capitalism, New York, Public Affairs, 1998, p. 231.
  • 15
    Hannah Arendt,
    The Origins of Totalitarism, New York, Harcourt Brace Jovanovitch, 1993,pp. 299-302.
  • 16
    Para um exame exaustivo do assunto, v. Joaquim Leonel de Rezende Alvim,
    Citoyenneté euwpéene: contribution á l'étude d'un lien polycentrique, Villeneuve d'Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 1999 (tese de doutorado defendida em 1997). Na medida em que o processo de unificação europeu, iniciado pelo Tratado de Roma de 1950 e agora aprofundado pelos acordos de Maastricht de 1991, responde aos desafios da globalização econômica dentro da lógica do liberalismo prevalecente na escala mundial, procurando adaptá-la às peculiaridades européias, a crescente revalorização dos localismos tem sido interpretado como uma reação cultural assemelhada à fragmentação genericamente observada alhures, mas nesses casos como decorrência da intensificação da transferência das soberanias nacionais para instituições assumidamente supranacionais. Não é à toa que o Conselho da Europa, órgão máximo da União Européia, adotou decisão no sentido de encorajar o uso e o ensino de línguas locais. Como declara o escritor Maurice Le Bris, que escreve em bretão para os habitantes da Bretanha: "Nós agora aceitamos que nossa identidade pode ter diversas camadas. Podemo-nos sentir europeus, franceses e bretões simultaneamente. Mas a definição deve permanecer em abeito. Do contrário, você se torna um bastião, uma
    Sérvia"(apud Marlise Simons, "In new Europe, a lingual hodgepodge",
    New York Times, 17/10/98, p. A4).
  • 17
    É significativo que desde 1992-93 os sindicatos dos quatro países que compõem o Mercosul tenham decidido participar com voz ativa do processo de integração negociado pelos respectivos governos. Ainda que sua atuação se tenha pautado até agora mais pelo recorte de nacional do que pelo enfoque classista, o envolvimento das centrais de trabalhadores da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (v. sobre a matéria Tullo Vigevani,
    Mercosul – Impactos para trabalhadores e sindicatos, São Paulo, LTr/FAPESP/CEDEC, 1998) é fenômeno a ser acompanhado com interesse também pelo que pode vir a representar sob o prisma de urna eventual "cidadania"regionalizada.
  • 18
    Ver, por exemplo, Arjun Appadurai,
    Modernity at Large – Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis e Londres, University of Minnesota Press, 1997.
  • 19
    V. sobre o assunto Gelson Fonseca Jr.,
    A legitimidade e outras questões internacionais, São Paulo, Paz e Terra, 1998, em especial a Parte II.
  • 20
    Os tribunais supranacionais para julgar responsáveis por crimes contra a humanidade, existentes para a ex-Iugoslávia e Ruanda, e o Tribunal Internacional aprovado pela Conferência de Roma de 1998 representam passo importante para a idéia de "justiça universal". Assim como o processo de extradição contra o General Pinochet, ao pôr em uso, pela primeira vez, as disposições pertinentes da Convenção contra a Tortura de 1988, é importante confirmação da legitimidade dos direitos humanos como tema global. Não configuram, contudo, de per si, avanços no sentido de uma "cidadania transnacional".
  • 21
    Antonio Cassese,
    Human Rights in a Changing World, Oxford, Polity Press, 1990, pp. 138-151.
  • 22
    Chris Jochnick, "Confronting the impunity of non-state actors: new fields for the promotion of human rights",
    The Human Rights Quartely Vol. 21 n.o 1, The John Hopkins University Press, fevereiro de 1999, pp. 56-79.
  • 23
    A expressão é de Alice Henkin, do Aspen Institute. Aprendi-a de Paulo Sérgio Pinheiro, que a cita com freqüência.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br