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República e democracia

Republic and democracy

Resumos

Com referência a três ideais normativos na cidadania democrática (civismo, plebeísmo e pluralismo) examinam-se as relações entre civismo e plebeísmo, que envolvem a distinção entre a excelência da participação e o direito a participar na comunidade política. Argumenta-se que a expansão da comunidade política requerida pelo plebeísmo coloca o Estado (distinto do governo) na posição de representante da comunidade política e abre para esta a condição de instância fundante, instituinte da ordem política.


With regard to three normative ideals of democratic citizenship (civism, plebeianism, and pluralism) the connection between civism and plebeianism, which involves the distinction between excellence of participation and right to participate in the political community, is examined. It is argued that the expansion of the political community due to the requirements of plebeianism puts the State (as distinguished from the government) in the position of representative of the political community, which on its turn becomes able to act as the founding, instituting part of the political order.


REPÚBLICA

República e democracia* * Registro aqui meu agradecimento à Fapesp, pelo apoio à pesquisa mais ampla da qual este artigo - que é um trabalho em progresso - faz parte.

Republic and democracy

Cícero Araújo

Professor do Departamento de Ciência Política da USP

RESUMO

Com referência a três ideais normativos na cidadania democrática (civismo, plebeísmo e pluralismo) examinam-se as relações entre civismo e plebeísmo, que envolvem a distinção entre a excelência da participação e o direito a participar na comunidade política. Argumenta-se que a expansão da comunidade política requerida pelo plebeísmo coloca o Estado (distinto do governo) na posição de representante da comunidade política e abre para esta a condição de instância fundante, instituinte da ordem política.

ABSTRACT

With regard to three normative ideals of democratic citizenship (civism, plebeianism, and pluralism) the connection between civism and plebeianism, which involves the distinction between excellence of participation and right to participate in the political community, is examined. It is argued that the expansion of the political community due to the requirements of plebeianism puts the State (as distinguished from the government) in the position of representative of the political community, which on its turn becomes able to act as the founding, instituting part of the political order.

Parto da suposição de que a cidadania democrática encerra três ideais normativos:

(1) Civismo, que vou tomar como um ideal de excelência no exercício da cidadania.

(2) Plebeísmo, um ideal de extensão da cidadania.

(3) Pluralismo, que é um ideal de tolerância para com os diferentes estilos de vida e crenças religiosas e filosóficas dos cidadãos.

Esses ideais são complementares, contudo estão em permanente tensão um com o outro. São complementares no sentido de que a justificação moral do Estado democrático funda-se na coexistência desses três ideais: a total ausência de um deles implica solapar as bases normativas da democracia. A tensão significa que as exigências implícitas em cada um deles, levadas às últimas conseqüências, os colocam em irremediável conflito com os demais. Estados democráticos resultam de determinados arranjos ou composições entre os princípios que os justificam, e uma das causas da variedade histórica das democracias provém da maior ou menor ênfase de um dos componentes em relação aos outros dois: há democracias que são mais "cívicas" e menos "pluralistas", outras que são mais "plebeístas" e menos "cívicas" e assim por diante.

A literatura recente da teoria democrática costuma destacar e analisar os conflitos entre civismo (que aparece associado à tradição republicana clássica, antiga e moderna) e pluralismo (que aparece associa do à tradição liberal). Muito pouca atenção se dá à distinção, que quero realçar aqui, entre civismo e plebeísmo e, em conseqüência, à forte tensão que a meu ver está relacionada a essa distinção. Embora plebeísmo e pluralismo sejam dois subprodutos de um mesmo fenômeno normativo, a inclusão, o presente artigo vai deixar de lado a análise mais detalhada do segundo (que espero poder desenvolver numa outra ocasião), para melhor explorar os elementos conceituais relativos ao civismo e ao plebeísmo, e explicar porque sua coexistência tende a ser conflituosa.

I

Em termos conceituais, o ideal de civismo procura responder ao problema dos tipos de pessoas que estariam aptas a fazer parte da comunidade dos cidadãos, a "comunidade política". Trata-se de um ideal de excelência no exercício da cidadania. Por isso mesmo, reflete uma preocupação com o "caráter" ou "virtude", isto é, com as qualidades morais que o participante deve possuir para ingressar naquela comunidade. Essa questão, por sua vez, não é independente de como se pensa a agência coletiva da qual o cidadão faz parte. Afinal, é porque a comunidade política deve ter tais e tais características que se exige certas qualidades de seus membros.

Já o ideal de plebeísmo tenta responder ao problema do universo de pessoas que deveriam participar da comunidade política, em vista de as decisões desta afetarem a todos os que estão sob sua autoridade. Sua ênfase está colocada no direito de participar e não na excelência da participação. Trata-se de um ideal de franquia da cidadania. Seu princípio fundador é expresso, com boa aproximação, pelo "critério de inclusão" formulado por R. Dahl: a comunidade política "deve incluir todos os adultos sujeitos às decisões coletivas obrigatórias da associação" (Dahl, 1989, p.120). Como veremos, nenhum Estado democrático leva nem o princípio estritamente, e nem esse critério, às últimas conseqüências, mas o plebeísmo perenemente pressiona-o a dele se aproximar o quanto possível.

O direito de participar, embora se aplique a indivíduos, não é um direito individual. Ele só tem sentido porque um grupo de pessoas o exercem coletivamente. Essa agência coletiva é a comunidade política. O ideal de excelência, como disse, implica essa agência, mas também o de extensão da cidadania. Nela estão modeladas: a) uma noção de autoridade (ou soberania) sobre as ações de indivíduos ou grupos que atuam no território sobre o qual essa autoridade é reivindicada; b) uma noção de bem comum que dá razão a essa autoridade; c) e uma noção de igualdade entre os membros da agência. Porém, cada uma dessas noções sofrem diferentes qualificações e modificações, dependendo do ideal a que se referem. Falaremos um pouco mais sobre isso oportunamente. Importa fixar no momento a distinção implícita nessas noções, a saber, entre a comunidade política, daqueles que estão credenciados a participar da tomada de decisões - os cidadãos -, e a totalidade dos que estão obrigados a observar e priorizar essas decisões em relação às de qualquer outra agência concorrente - os súditos. Cidadãos, é claro, também são súditos; mas a recíproca não é sempre verdadeira.

Em nenhuma instituição política concreta vamos encontrar os ideais de civismo e de plebeísmo em estado puro. Eles não só são ideais, em sentido normativo, mas também são tipos ideais, em sentido metodológico. As experiências institucionais a que vamos nos referir cristalizam misturas de ambos. Mas a presença de cada um nas misturas varia historicamente. Pode-se dizer que as experiências que a tradição do pensamento político classificou como republicanas, na Antiguidade Clássica e no período moderno nascente, via de regra estão marcadas pela forte presença do civismo. O plebeísmo nunca deixa de aparecer, em maior ou menor grau, mas o elemento dinâmico é o civismo. Já as experiências modernas que, a partir de fins do século XVIII, a tradição cunhou de "democratizantes", têm como elemento dinâmico o plebeísmo, embora o civismo continue presente.

Na Antiguidade, as tentativas de integrar o civismo com um alto grau (para os padrões do tempo) de plebeísmo foram denominadas "democracias". Modernamente, as tentativas de integrar o plebeísmo com um alto grau (para padrões modernos) de civismo receberam o nome de "revoluções". Em ambos os casos, a consciência do tempo reconheceu-os como períodos de grande instabilidade política e espasmo social, mesmo quando receberam divergentes julgamentos de valor.

Assim, há algo de plebeísmo nas repúblicas antigas e de civismo nas democracias modernas. Encontramos uma variedade de doses de cada uma em que a mistura revela-se razoavelmente estável, e também doses em que ela se torna explosiva. Mistura, porém, não é identidade. Contudo, se observarmos um pouco a história do pensamento político, a confusão entre os dois é um tanto freqüente. E não se trata, insisto, apenas de uma confusão terminológica.

Civismo e plebeísmo tendem a ser confundidos nessa história porque, pelo menos a partir da Revolução Francesa, muitos autores e oradores, defensores ou críticos da revolução, começam a usar as palavras "república" e "democracia" como se elas fossem sinônimas. Tomemos, por exemplo, um trecho do discurso de Robespierre feito à Convenção em fevereiro de 1794, um pouco antes de iniciar sua feroz campanha anticorrupção contra o grupo liderado por Danton. Diz ele:

Governo democrático ou republicano - esses dois termos são sinônimos, apesar dos abusos encontrados no palavrório vulgar... Democracia é um estado onde o povo soberano, guiado por suas próprias leis, faz por si mesmo tudo o que pode fazer bem, e por delegados o que não pode fazer por si mesmo... Mas qual é o princípio fundamental do governo democrático ou popular, em outras palavras, o pilar essencial que o mantém e o faz funcionar? É a virtude... que não é outra coisa senão o amor à sua terra natal e às suas leis... este sublime sentimento que supõe a preferência pelos interesses públicos acima de todos os interesses particulares (Textes choisis III. 113, apud Doyle, p.272, e Rosan val Ion, p. 146).

É curioso que Robespierre possa ter feito essa identificação com tanta segurança. Obviamente, mesmo antes da Revolução, "democracia" podia ser pensada como um caso de "república", na medida em que oposta a "monarquia", como ocorre na tipologia proposta por Montesquieu (1949, II.2-3), mas jamais como sinônimo dela e menos ainda como uma forma de república altamente desejável. De qualquer forma, é certo que até mesmo o mestre inspirador de Robespierre não teria visto com bons olhos essa operação. Pois Jean-Jacques Rousseau não só fazia questão de distinguir "república" e "democracia", na medida em que diferenciava a comunidade política soberana da forma de governo, como considerava "democracia" - o tipo em que todos ou a maioria absoluta dos membros da comunidade política são também membros do governo - uma forma praticamente inacessível aos seres humanos, apropriada apenas a "deuses". Deixada a mortais seres humanos, precisamente porque nela o poder legislativo e o executivo, apesar de significarem funções distintas, estão nas mesmas mãos, a democracia é um governo que facilmente se corrompe (Rousseau 1978, pp.78-9 e 84-5).

Mais importante ainda: como estudiosos de sua filosofia política vêm tornando evidente - embora o assunto continue controverso2 2 Referências sobre a controvérsia podem ser encontradas em Rosenfeld. -, Rousseau fazia severas restrições ao ingresso de novos cidadãos à sua comunidade política ideal (a "república"). Primeiro, nela não poderia haver lugar às mulheres; mas até aí a diferença com Robespierre não é tão significativa, pois nem ele nem qualquer outro revolucionário de seu tempo chegou a tais excessos; mas, em segundo lugar, também não poderia haver lugar para sans-culottes, isto é, homens em condições sociais muito desiguais em relação aos outros cidadãos, ou economicamente dependentes deles. Em princípio, a república não deixa de ser república se apenas uma minoria da população adulta que vive sob as leis de uma associação soberana for considerada "cidadã" (quer dizer, com plenos direitos políticos, especialmente o de fazer leis e eleger os membros do governo). Uma conclusão, aliás, perfeitamente condizente com suas freqüentes manifestações de aplauso à constituição de sua cidade natal, Genebra, que excluía de seu corpo de cidadãos tanto as mulheres como a maior parte da população adulta masculina (cf. Rosenfeld, pp.84-5 e 104-5).

Se recuarmos o contexto dessa discussão do século XVIII para a Antiguidade clássica, especialmente a romana, a não identificação entre "república" e "democracia" fica ainda mais enfática. Entre pensadores políticos gregos e romanos, "república" é com freqüência empregada, como no caso de Rousseau, para designar a comunidade política ideal, mas "democracia", o governo dos "muitos" ou "da multidão", é uma forma de governo real, histórica, cuja principal referencia é a experiência ateniense. Se a democracia ateniense poderia ser aproximada da comunidade política ideal, isso certamente era assunto de acesa controversa entre a própria intelectualidade ateniense. Porém, se levarmos em conta os autores da Antiguidade que chegaram até nós, a resposta a essa questão, com raras exceções, é que a democracia não só está longe de ser a comunidade política ideal, como é um dos maiores desvios ou "perversões" dela, comparável, se não idêntico, ao desvio da tirania.

O autor mais resoluto nessa afirmação, como se sabe, é Platão. Mas ela também pode ser encontrada, obviamente com argumentos diferentes entre si, nos filósofos e historiadores que se tornarão fonte de inspiração para toda a tradição republicana moderna. Para ficar nos mais conhecidos: Políbio, Cicero, Plutarco, Tácito, Salústio, Tito Lívio e, principalmente, Aristóteles. Graças à influência dessa linhagem de autores, aquele que, nos tempos modernos, virá a ser chamado "republicano", tomará como modelos de boa constituição as de Esparta e Roma, e será um ardoroso crítico tanto da tirania quanto da democracia.

As razões para não identificar república e democracia podem ser apresentadas sob diversos ângulos, mas creio que em um aspecto pelo menos os argumentos de republicanos antigos e modernos são comuns, e sobrevivem aos problemas de transformação de contexto e de variações no conteúdo semântico dos termos. O problema essencial resume-se à seguinte questão: quem está apto a exercer os privilégios e obrigações advindos do título de cidadão? Se tomarmos como ponto de referência a discussão sobre a experiência ateniense, vamos constatar que os republicanos vão julgar que diferenças consideráveis de riqueza, educação e ocupação, além da flexibidade com relação ao problema do número de cidadãos, tais como eram admitidas na cidadania ateniense, sempre ameaçam a saúde moral da comunidade política, e podem corrompê-la irremediavelmente.

Na falta de medidas para "moderar" severamente tanto essas diferenças como a presença de grande número de cidadãos, um crítico da democracia como Aristóteles, por exemplo, pensava que homens livres (isto é, não-escravos), mas pobres ou dedicados a ocupações consideradas pouco dignas - o trabalho manual, afazeres estritamente domésticos e até mesmo o comércio - não deveriam participar das decisões políticas.3 3 Todo o livro III da Política de Aristóteles, onde ele discute o conceito de cidadania e apresenta sua tipologia das formas de governo, é relevante para o que estou tratando aqui. A crítica dirigia-se precisamente àqueles - a saber, os "democratas" - que pensavam que essas diferenças e o problema numérico eram compatíveis com a igualdade modelada no ideal da comunidade política. A divergência entre quem depois virá a ser chamado "republicano" e o "democrata", portanto, dizia menos respeito ao problema da participação direta do conjunto dos cidadãos nos negócios da polis do que ao grau de abertura da comunidade política à totalidade dos homens livres. Porque tanto para um como para o outro mais, e não menos, participação direta era o que se deveria esperar de um bom cidadão. O que deixava atônito o republicano, ao contemplar a experiência ateniense, é que isso fosse praticado em um universo de cidadãos cuja extensão ultrapassava de muito o desejável.4 4 Nunca é demais lembrar que nem democratas, nem republicanos, punham em questão o trabalho escravo. A divergência dizia respeito apenas à amplitude da cidadania entre homens livres, isto é, adultos não-escravos do sexo masculino. Só i: reira ao progresso do plebeísmo na Antiguidade clássica.

Não por acaso, o futuro republicano era denominado, na linguagem política grega, "oligarca", oligarquia e democracia significando, respectivamente, uma comunidade política de "poucos" e de "muitos" cidadãos. E é em virtude deste contraste específico que um republicano, se tivesse de escolher entre as experiências políticas do apogeu da Grécia antiga, tomaria Esparta - ainda que com muitas restrições -, e não Atenas, como a cidade de sua preferência.

II

A participação direta, como mencionei, não é problema nem para o republicano, nem para o democrata antigos. Contudo, as experiências democratizantes modernas trazem consigo o problema da representação, que por sinal é mencionado no discurso de Robespierre citado acima. A representação é uma herança medieval, e porque o republicano moderno se inspira na experiência das repúblicas antigas, que desconheciam tal instituição, seu surgimento parece introduzir um elemento estranho ao ideal cívico que o orienta.

No Contrato Social, Rousseau revela aguda percepção disso. Lá ele faz a distinção entre comunidade política e governo, mas registra com toda ênfase que o último não pode ser confundido com o instituto moderno da representação: "[O governo] não é absolutamente nada senão uma comissão, uma função na qual, [os governantes] como simples funcionários do soberano, exercem em seu nome o poder que lhes foi emprestado pelo soberano, e que o soberano pode limitar, modificar e tomar de volta sempre que quiser". Assim, "os deputados do povo... não são nem podem ser seus representantes; eles são meramente seus agentes. Eles não podem concluir nada definitivamente. Qualquer lei que o povo em pessoa não ratifica é nula; não é lei." (Rousseau 1978, pp.79 e 102).

Razões puramente lógicas e práticas levam à necessidade de separar a agência de governo da agência soberana. Primeiro, a comunidade só pode tomar decisões que expressem a vontade geral, e esta apenas se apresenta na forma de leis gerais e impessoais, enquanto a implementação dessas leis tem de ser feita através de decisões particulares. E quando os próprios membros, ainda que a totalidade deles, tomam decisões particulares, eles já não estão mais agindo enquanto comunidade política, mas enquanto governo. Segundo, é "inimaginável que o povo permaneça constantemente em assembléia" para resolver todos os negócios públicos indistintamente. Para lidar com a população sujeita à sua autoridade (os súditos), ou com entidades externas, o povo tem de nomear "comissões" compostas de alguns de seus membros. Mas, ao fazer isso, o próprio soberano está, na prática, criando uma agência distinta dele. (pp.78 e 85)

Como Rousseau, creio que a tradição republicana de um modo geral é receptiva ao binomio comunidade política/governo, considerando-o mesmo necessário. Mas uma vez admitido, o grande problema passa a ser o controle de um pela outra: tendo o governo alcançado uma existência separada, ele adqüire uma tendência a usurpar as funções essenciais do soberano - no caso de Rousseau, a função legislativa. E a corrupção dos governos começa a ocorrer quando a própria comunidade política renuncia à capacidade fundamental de exercer esse controle, ao gradualmente deixar escapar para outras mãos suas atribuições básicas. Quando Rousseau ataca a instituição do "representante", é na verdade essa renúncia que ele está atacando e, sob esse ângulo, pode-se dizer que todo republicano compartilha a mesma preocupação do filósofo genebrino, ainda que nem todos necessariamente ataquem aquela instituição. Porém, mesmo quando aceitam a inevitabilidade do representante, isto é, mesmo quando dispõem-se a fazer certas adaptações ao ideal cívico, em vista da presença mais dinâmica do plebeísmo, sua existência sempre os coloca sob grande pressão ideológica. Se o governo é um necessário complemento da comunidade política, a instalação do representante parece ocorrer ao custo da própria razão de ser daquela.

Mas antes de detalhar (na seção IV) em que termos a representação pode se instalar, distintos da instalação do governo, e como ela pode chocar-se com a existência da comunidade política, ainda tenho de enfrentar melhor certas dificuldades na relação comunidade política/governo dentro da própria reflexão republicana, o que ajudará a tornar mais claro o outro problema. As dificuldades giram em torno da seguinte questão. Roma é a constituição republicana mais discutida e homenageada pela tradição. Porém, sua história é marcada por ondas sucessivas de ampliação de seu corpo de cidadãos. Como nos lembra Maquiavel, Roma, ao contrário de Esparta, era uma cidade aberta aos "estrangeiros". Neste aspecto, sua amplitude era mesmo bem maior do que a de Atenas, que restringia sua democracia aos atenienses natos e seus descendentes.5 5 É isso que faz Montesquieu, em certas passagens do Espirito das Leis, sugerir que a república romana era uma "democracia". Mas quando ele leva em conta outros aspectos da constituição romana, entre os quais seu caráter misto, Roma é vista como uma república "inclinada para a aristocracia". Cf. Montesquieu, vol.1, pp.9-13 e 50. Por que, então, a homenagem aos romanos e a rejeição aos atenienses?

Como já mencionei, a resposta republicana é que a constituição ateniense não providencia nenhuma medida severa para contrabalançar a extensão de sua cidadania. Crucialmente preocupado com a tendência à "corrupção" dos governos, o republicano pensa que a ampliação pode conduzir a esse resultado, na medida em que ela ameaça a homogeneidade da comunidade política, expressa tanto na noção de igualdade entre os membros quanto na noção de bem comum, que são os sustentáculos do mais elementar consenso daquela comunidade.

A admissão de pessoas pobres ou "de origem obscura", por exemplo, leva ao desenvolvimento, no interior do corpo dos cidadãos, de interesses opostos: os interesses dos pobres contra os interesses dos ricos, ou os da gente "de estirpe", os patrícios, contra os da gente "comum", os plebeus. E isso induz o cidadão a apegar-se mais a esses interesses "parciais" do que ao interesse público (o bem comum), e portanto a colocar os primeiros acima do segundo. Contudo, a "virtude" do cidadão consiste no comportamento exatamente oposto. Cidadãos sem virtude e comunidade política corrompida implicam-se mutuamente.

Mas Roma incorporou grandes contingentes de novos cidadãos à sua comunidade e sobreviveu, pelo menos por um bom tempo, à corrupção. Como? Os admiradores e estudiosos da história da republica sempre lidaram com dificuldade com essa questão e em geral são levados a admitir que sua glória foi alcançada apesar dos violentos distúrbios internos advindos da cisão entre patrícios e plebeus. Segundo tal visão, isso foi possível graças a uma combinação de inventividade institucional e grande austeridade dos indivíduos e dos grupos em luta.

Entre os produtos da inventividade institutional, o mais destacado é o famosa noção de "constituição ou governo misto". Políbio, um dos autores fundamentais da linha de raciocínio a que estou me referindo, cujas Histórias de Roma foram escritas justamente para explicar a grandeza a que chegou a república após a vitória sobre Cartago, dedica um pedaço da obra para explicar seu funcionamento.6 6 A discussão sobre a constituição romana aparece no livro VI das Histórias. Inspirado em Aristóteles, ele dirá que o lato de as instituições políticas romanas terem amalgamado as três formas "puras" de constituição - a monarquia, a aristocracia e a democracia - teria causado um espetacular retardamento do inevitável ciclo de ascensão, apogeu e decadência a que essas constituições estão submetidas. Roma evitou, desse modo, as perversões dessas formas puras, ou seja, o domínio absoluto de um só (a tirania), o domínio absoluto dos ricos (a oligarquia) e o domínio absoluto da multidão (a oclocracia).

Uma das grandes perversões da constituição ateniense, pensava Políbio, restava na inexistência dos contrapesos monárquico e aristocrático à assembléia popular - a instituição democrática por excelência, onde o voto de cada cidadão, pobre ou rico, nobre ou plebeu, recebia o mesmo peso, em benefício, portanto, das classes mais numerosas. Roma, ao contrário, tinha o Senado (uma instituição aristocrática) e o consulado (componente monárquico) para conter a assembléia popular, e, reciprocamente, os dois últimos para conter o Senado. O próprio fato de os dois cônsules poderem vetar mutuamente suas ações limitiva os poderes de chefia militar que possuíam. Enquanto as instituições romanas conseguissem preservar esse equilíbrio, previa o historiador grego (que escreveu na segunda metade do século dois antes de Cristo), a república sobreviveria à decadência.

Mas a preservação do equilíbrio não dependia apenas de uma distribuição automática, mecânica, de pesos e contrapesos. Políbio faz questão de salientar os costumes profundamente austeros de todos os cidadãos romanos, especialmente a simplicidade dos próprios patrícios -sua permanente autovigilância contra a penetração dos "vícios orientais" (o luxo e o refinamento) - e a grande preocupação de exaltar, nas diversas cerimônias religiosas, o espírito de dedidação pública de seus antepassados, apontado como o mais glorioso caminho para alcançar a felicidade pessoal. Esses eram os grandes combustíveis da maquinaria institucional. Se tivermos em mente o que diz Aristóteles sobre as constituições democráticas -Atenas sendo, claro, o grande exemplo - o contraste mais uma vez é inequívoco: a democracia não só é o governo em que cada cidadão tem o mesmo peso nas decisões, independente de seus "méritos", mas é também onde cada um "vive como quer"7 7 Ver Política, livro VI, cap.2. , sem nenhuma vigilância especial contra a lassidão dos costumes e sem fortes incentivos para impedir que a grande diversidade de interesses particulares da multidão prevaleça sobre o interesse público. A falta de espírito público, por sua vez, conduz à perda de um consenso básico a respeito do destino comum da polis, o resultado sendo o caprichoso predomínio do maior número na assembléia popular.

Estudioso das instituições romanas, Maquiavel, talvez como nenhum outro autor antes dele, tinha aguda consciência da tensão entre a contínua ampliação da cidadania e a saúde cívica da comunidade. E a audaciosa análise que ele nos oferece só faz realçar o virtual paradoxo que este clássico problema do pensamento republicano nos aprisiona. Vou resgatá-la aqui porque penso que ela revela uma das aporias cruciais do ideal cívico.8 8 A exposição abaixo é baseada no livro I, caps.2-6, dos Discursos sobre a Primeira Década de Tilo Lívio.

Como Políbio, Maquiavel elogia a constituição mista de Roma. Mas ao contrário do historiador grego, ele pensa que esse arranjo, ao invés de reconciliar os conflitos entre patrícios e plebeus, só fez agudizá-los ainda mais. A "insolência e rebeldia" dos plebeus contra os patrícios só podia crescer com a concessão de direitos políticos: seus insultos e ressentimentos recíprocos seriam transportados para o coração das instituições políticas. É certo que essas mesmas instituições poderiam providenciar mecanismos de moderação desses conflitos. Os romanos, por exemplo, podiam recorrer a tribunais e exigir medidas contra insultos.9 9 Ibid., 1.7-8. No fim das contas, porém, tais mecanismos traziam pouco alívio. Como os desejos dos homens são sempre maiores do que sua capacidade de satisfazê-los, o resultado é a permanente insatisfação com o que possuem: uma vez obtida a primeira conquista, os plebeus passariam, como passaram, a querer sempre mais.

Conclusão: o ingresso dos plebeus na comunidade dos cidadãos, a passagem de uma comunidade de ottimati para uma comunidade do popólo, leva a conflitos crescentes no seu interior, à perda de seu sentido comum e conseqüentemente à instabilidade política, refletida na volatilidade de suas leis. E a instabilidade é indesejável.

A pergunta que permanece: se este resultado é indesejável, e ela é causada pela inclusão, poderiam os romanos tê-la evitado? A resposta de Maquiavel é que os romanos não poderiam ter evitado a extensão da cidadania. Desde o começo, Roma esteve cercada de vizinhos agressivos e guerreiros. Para defender a cidade e garantir sua própria existência enquanto entidade política independente, os "pais fundadores", os patrícios, tiveram que recorrer ao auxílio de seus habitantes mais humildes. Ainda na infância da república, portanto, os nobres ficaram militarmente dependentes da plebe, e isto determinou a dinâmica política posterior da cidade. Pois a participação nas armas resultou na demanda pela participação na vitória, o que significava participar das instâncias de decisão da república. Mas se o fundamento da cidadania romana é o militante, o cidadão armado, o conflito interno que resulta de sua inclusão só pode encontrar uma válvula de escape na guerra contra o inimigo externo. Incorporação de novos cidadãos, instabilidade política interna e expansão territorial pelas armas passam então a estimular-se reciprocamente, a retroalimentar-se, de tal forma que a segunda, em princípio indesejável, torna-se para Maquiavel uma das causas da virtù romana e, logo, de sua grandeza e glória.

Se fôssemos considerar a constituição romana apenas pelos seus aspectos internos, teríamos que concluir que as constituições de Esparta (o caso antigo pinçado por Maquiavel) e de Veneza (o caso moderno) eram muito superiores. Ao limitar com rigor a amplitude de sua cidadania, essas cidades desfrutaram de grande paz interna e estabilidade política, refletidas na longa durabilidade de suas leis fundamentais, os quais são valores muito desejáveis. Mas é preciso considerar as virtudes da constituição em todos os seus aspectos, internos e externos. E sem a garantia de sua independência externa, a liberdade da república não passa de uma quimera. Sua melhor garantia, porém, é a constante disposição para lutar, e não há melhor estímulo para isso do que a expansão territorial. Portanto, raramente é possível obter esses dois bens ao mesmo tempo: a independência e a estabilidade interna. O desfrute do primeiro significa abrir mão do segundo.

Se pudessem optar, os romanos provavelmente escolheriam a paz e a concórdia interna. Vale dizer, a rigorosa limitação de sua cidadania aos próprios patrícios, junto com mecanismos de controle de seus líderes e de atenuação das facções internas, como a eleição e a rotação dos postos de governo. Mas esta não era uma escolha que os romanos poderiam fazer ao seu bel-prazer. Pois afortuna fora muito benevolente com espartanos e venezianos, as circunstâncias que levaram à sua sereníssima existência devendo-se a acidentes de história e geografia que raramente estão à disposição das repúblicas. Assim, os que não querem ficar à mercê da fortuna acabam escolhendo o menor mal, que é viver sob o vulcão da constituição mista e a inquietude da conquista.

Como se vê, a análise do pensador florentino nos oferece um precioso angulo para entender por que a extensão da cidadania não é desejável como um princípio norteador do ideal cívico, mas ao mesmo tempo por que é um objetivo que dificilmente pode ser evitado. A vantagem das repúblicas sobre as monarquias reside na diversidade de seus cidadãos, que é maior quanto mais extensa e sua comunidade política (Maquiavel, III.9). Porém, a heterogeneidade do corpo de cidadãos corrompe o espírito público, o sentido de destino e lealdade comuns, e o senso de igualdade que sustenta a própria noção de comunidade: agora, interesses contrários se multiplicam, calcados numa visível desigualdade de status social, riqueza, educação etc, entre os membros, gerando conflitos que freqüentemente colocam facções rivais à beira da guerra civil.

Para Maquiavel, a única saída para restabelecer aquelas vigas-mestras da comunidade cidadã é através do senso de que essa entidade esta mergulhada num ambiente mais amplo que é hostil, repleto de outras comunidades políticas cujos destinos são contrários entre si. Em outras palavras: o senso de que, em comparação a esse contraste entre o interior e o exterior, o qual põe em questão a própria existência delas, a heterogeneidade do popolo torna-se praticamente desprezível. Se, portanto, sua homogeneidade não pode ser restabelecida pela simples postulação da "atração mútua" natural entre os membros, o jeito é extorqui-la do inimigo da pátria.

III

Apesar de Rousseau considerar a república romana o "modelo dos povos livres"10 10 Ver o "Prefácio-Dedicalória" do Secundo Discurso. Rousseau (1992), p.l 15. , é difícil acomodar a descrição de Maquiavel exposta acima com sua concepção da república ideal, livre de facções e solidamente unida pela transparência do bem comum. Como ele mesmo adverte, "quando o laço social começa a afrouxar...; quando interesses privados começam a se fazer sentir e pequenas sociedades a influenciar a maior, o interesse comum altera-se e encontra oponentes; a unanimidade não mais prevalece nos votos; a vontade geral não é mais a vontade de todos; contradições e debates surgem e o melhor conselho não é aceito sem disputas" (Rousseau 1978, p. 108). Mas uma dose periódica, às vezes maciça, de novos plebeus na comunidade, como ocorria em Roma, provoca exatamente isso.

Tão difícil quanto esse problema é apontar concretamente qual instância, numa constituição mista, sedia a comunidade política como um todo - o "povo" -, aspecto crucial da teoria rousseauniana da soberania. Mais uma vez ele reconhece, ao analisar a constituição romana, que não há nenhuma instancia que satisfaça inteiramente essa exigência, nem mesmo as assembléias populares. Em Roma, além da existência de dois tipos principais de assembléias - o que significa uma divisão do soberano -, certas funções executivas e legislativas eram misturadas em ambas. Uma delas, chamada comitia centuriata, apesar de reunir todos os cidadãos, tinha como principal função eleger os cargos mais importantes (cônsules, pretores, censores), e nela os votos de patrícios e plebeus tinham pesos diferentes, a favor dos primeiros. A outra, comitia tributa, reunia-se para sancionar as principais leis, mas nela a participação dos nobres não era permitida. Nas palavras de Rousseau:

As comitia por tribos eram realmente o conselho do povo romano... [Contudo] não apenas o senado não fazia parte delas, mas não tinha sequer o direito de assistir a elas; e desde que os senadores eram forçados a obedecer leis nas quais eles não poderiam votar, eles eram menos livres neste aspecto que os últimos cidadãos. Essa injustiça era um erro completo, e sozinha era suficiente para invalidar os decretos do corpo para o qual nem todos os membros eram admitidos. (1978, p.l18)11 11 Rousseau fala ainda de outro tipo de assembléia, comitia curiata, a mais antiga, mas que foi perdendo importância durante a república. Mas ele deixa de registrar que havia, de fato, duas espécies de comitia tributa: uma, talvez a mais importante, graças à força do tribunalo, que excluía os patrícios (o concilium plebis) - é desta que ele está falando aqui - e a outra que os incluía. Ver Wood, pp.26-7.

Se, para a tradição republicana, a constituição mista é uma resposta necessária à expansão do corpo de cidadãos, é certo também que sua invenção e desenvolvimento colocam crescentes dificuldades para fazer do binômio comunidade política/governo o operador básico para descrever a república. Não só a maquinaria do governo torna-se cada vez mais complexa e expansiva, mas também a própria identificação do locus da comunidade política torna-se mais e mais obscura.

Para contrarrestar essas tendências, as repúblicas antigas dependiam essencialmente de dois recursos ideológicos.12 12 As páginas que seguem beneficiam-se de uma coletânea de estudos sobre a civilização romana (editada por Balsdon) e outra sobre as repúblicas da Antiguidade clássica e da Itália Medieval (editada por Molho, Raaflaub e Emlen), além do estudo de Weber sobre as cidades-estado e suas notas sobre "comunidade política" em Economia e Sociedade. Primeiro, manter constante, e a todo vapor, as energias cívicas de seus cidadãos, especialmente de seus líderes, desencorajando qualquer inovação que desviasse suas atenções para outros objetos. Como bem percebeu Maquiavel, manter esse espírito em alta temperatura é quase impossível sem um sentido de unidade forjado em conflitos de todo tipo: a unidade dos cidadãos-soldados para enfrentar o inimigo externo, a própria unidade dos plebeus para enfrentar os patrícios e assim por diante. Toda essa movimentação incessante em torno de matérias políticas sugeriria, então, a existência de um "povo" cujos membros estariam sempre presentes uns para os outros, mesmo brigando. Quanto mais os cidadãos se movimentassem em torno da política, mais plausível a suposição de que a comunidade política era real e presente para si mesma, e, portanto, maiores as chances de manter sua entidade complementar, o governo, sob controle.

Segundo, desencorajando que as obrigações mais graves que o cidadão tivesse de cumprir fossem feitas por outrem e com recursos de outrem. Em outras palavras, estimulando que as práticas de cidadania consideradas cruciais - votar as leis nas assembléias, ocupar postos de governo e, especialmente, defender a pátria - fossem feitas sem intermediários e com recursos do próprio cidadão. As qualidades do cidadão eram mais apreciadas, e conseqüentemente maiores os seus méritos, quanto maior sua independência em relação a outros, o que evidentemente era proporcial à sua capacidade de manter-se auto-suficiente do ponto de vista material. E a auto-suficiência era indicada tanto pela propriedade da terra quanto pela capacidade de defender-se a si mesmo pelas armas.13 13 Para uma exaustiva investigação de como esses dois temas foram capturados pelo pensamento republicano inglês, ver Pocock 1975, esp. cap.XI, e 1985. A ênfase, não em qualquer propriedade, mas na propriedade da terra era, da parte dos nobres, o correlado do desprezo pelos negócios, pelo mundo do comércio e do dinheiro, e a disposição belicista o correlato, da parte dos plebeus, do desprezo pelo trabalho e pelos cuidados domésticos, próprios de escravos e mulheres. Ambas permitiam evitar, criando uma espécie de cinturão protetor, que os assuntos próprios da oikos ingressassem na esfera da polis. Era exclusivamente como sujeito privado, e não como homem público, que o cidadão deveria tratar desses assuntos.

Em vista da distinção de status, não é à toa que, embora enquanto grupos distintos, patrícios e plebeus eram vistos em equilíbrio ou em igualdade na constituição mista, individualmente ao patrício era atribuído maior mérito pela suposição de sua maior auto-suficiência na propriedade da terra e na qualidade das armas. Apesar da admissão da plebe no corpo de cidadãos, a manutenção da precedência de status no interior da comunidade política era um aspecto fundamental do ideal republicano de constituição mista. Tratar "desiguais em mérito" como "iguais" era próprio das democracias, lembra Aristóteles {Política, III. 10), mas não da autêntica república.

A conseqüência dessa noção é que os possíveis custos envolvidos no desempenho das funções a ele designadas - o tempo despendido nas assembléias, as despesas relacionadas ao exercício de cargos governamentais e a mobilização e as armas para enfrentar o inimigo nas batalhas - deveriam ser bancadas pelo próprio cidadão. Quem se revelasse incapaz de desempenhar alguma dessas funções por conta própria não deveria ser um cidadão. Outra vez: tal exigência sugeria a idéia de uma maquinaria governamental que, apesar de complexa, não se autonomizava dos cidadãos, porque seus postos, além de diretamente operados pelos cidadãos, eram exercidos de maneira tal que o sujeito jamais dependeria materialmente deles, enquanto a exercício dos mesmos dependeria de sua disponibilidade de tempo e material.

Daí a precedência tácitamente atribuída ao patrício no preenchimento dos postos mais altos e de novo o contraste com a democracia ateniense, onde as funções governamentais eram pagas. Peculiaridade, aliás, que é uma inevitável decorrência da não transferência, para as relações políticas, da precedência de status nas relações sociais.14 14 Mais uma característica das democracias que não escapa a Aristóteles: cf.. Política, VI.2. Mas daí, também, a enorme importância dada à participação de todos, patrícios e plebeus, sem intermediários, na defesa da pátria. Se dos líderes patrícios era esperada as qualidades da coragem e da prudência na condução da guerra, fundada numa suposta herança dos pais fundadores, de todo plebeu-cidadão esperava-se principalmente a qualidade da coragem, fundada simplesmente na "escola do perigo". E, sendo a comunidade política vista como uma associação cuja condição de ingresso era dispor-se a fazer o "supremo sacrifício" cm sua defesa, era natural que o espírito bélico da cidadania tivesse a maior relevância.15 15 "Quem empunha armas reconhece apenas os capazes de empunhar armas como iguais políticos. Todos os outros, os não treinados em armas e os incapazes de empunhar armas, são lidos como mulheres, e são explicitamente designados como tais em muitas línguas primitivas" (Weber, 199, p.906)

É por conta da centralidade desses recursos que as análises da história da república romana centradas no ideal cívico vão, geralmente, identificar na corrupção moral dos patrícios e na perda do espírito bélico dos plebeus as causas maiores de seu declínio e final extinção. Porque sem a primeira perdia-se a autoridade moral da precedência de status, lida como decisiva para conter a força plebéia "dos números", e sem a segunda perdia-se o instrumento básico dos plebeus para conter "a ganância e ambição" dos patrícios.

Estes dois recursos, enfim, expressam as razões mais substantivas para a rejeição do instituto da representação tal como colocada anteriormente neste texto. E explicam, também, porque o republicano moderno se vê sob forte tensão ideológica ao lidar com esse instituto num contexto novo de ampliação da cidadania, identificável apenas em germe nas democracias antigas. Assim, ao mesmo tempo que essa nova ampliação é geralmente bem vinda, ele tem um forte pressentimento de que certos problemas provenientes dela já não podem ser mais contornados por aqueles dois recursos, por conta de seu crescente descrédito:

Tão logo o serviço público deixa de ser o principal assunto dos cidadãos, e eles preferem servir com seus bolsos e não com suas pessoas, o Estado já está próximo de sua ruína. É necessário marchar para a batalha? Eles pagam tropas e permanecem em casa. É necessário apresentar-se à assembléia? Eles nomeiam deputados e permanecem em casa. Por força da preguiça e do dinheiro, eles finalmente têm soldados para escravizar o país e representantes para vendê-lo. (Rousseau 1978, pp. 101-2)

Que contexto novo de ampliação é este? Estou me referindo à reviravolta da percepção política moderna, ocorrida marcadamente a partir das Revoluções Americana e Francesa, e que trará o ideal do plebeísmo à sua plena maturidade. É esta reviravolta que fará atores políticos e intelectuais retirar cada vez mais, no decorrer do século XIX, o termo "democracia" de seu esquecimento, e associá-lo ao que Tocqueville vai chamar de "igualdade de condições", sugerindo pela primeira vez a idéia de tratar democracia, não como um regime político, mas como uma "forma de sociedade": "A alteração semântica [na França] foi estabelecida no começo dos anos 1830... Naturalmente, foi Tocqueville que expressou a situação com o maior talento e éclat... Ao fazer a igualdade de condições o grande motor da revolução na sociedade moderna, ele estabeleceu (com o primeiro volume de Democracia na América) a definição sociológica de democracia." (Rosanvallon, p. 150)

Apesar de ser crescentemente tratada como uma forma de sociedade, é revelador que, neste período, a democracia acabe encontrando expressão na exigência do sufrágio universal, masculino e depois feminino. Isso guarda íntima relação com o fato de a igualdade de condições referir-se privilegiadamente, como queria Tocqueville, ao declínio da precedência de status. Com esse declínio, rompe-se a barreira que justificava tratar pessoas de diferentes estratos de forma politicamente desigual: agora o nobre deveria ser tratado como o plebeu, dado que as supostas qualidades morais superiores dos primeiros passam a ser vistas como meros disfarces para resguardar privilégios materiais. O resultado é aquele princípio que o republicano antigo freqüentemente denunciava na democracia ateniense -"cada cabeça um voto" - e que será consagrado num bombástico panfleto do abade Sieyès durante a reunião dos Estados-Gerais em 1789.

Mas a propriedade da terra não sendo mais entendida como uma caução moral da cidadania dos estratos sociais superiores, e o empunhar das armas uma caução da cidadania dos estratos inferiores, dois atores sociais vão ganhar pleno reconhecimento de sua condição plebéia: o destituído de terra, mas atarefado com o comércio e a aquisição de dinheiro, e o destituído de armas, mas atarefado com o trabalho manual - o burguês e o proletário.

Poder-se-ia pensar que reconhecer ao proletário o direito de ingressar na comunidade política seria o equivalente moderno de reconhecer, se isso tivesse sido possível, ao escravo antigo tal direito. Porém, o escravo pertencia à oikos e não ao mercado. Se o proletário é totalmente destituído de propriedade, pelo menos é um homem livre, o que facilita o reconhecimento da cidadania. Os últimos prisioneiros modernos da oikos, portanto, eram a mulher e os filhos. Os filhos sempre o foram apenas provisoriamente. Mas para que a onda de plebeização atingisse a mulher, seria necessário que os portões da oikos fossem arrebentados, empreitada provavelmente impossível se a última não tivesse se transformado na família burguesa, emancipando o sexo feminino. E da mulher emancipada para a mulher cidadã, num contexto de igualdade de condições, não seria necessário mais que um passo.

O burguês, o proletário e a mulher são as figuras politicamente mais execradas pela tradição republicana, porque são a própria encarnação do afrouxamento das exigências de excelência no exercício das obrigações da cidadania. Mas são justamente elas as principais contempladas pelo plebeísmo.

IV

No começo deste artigo havia mencionado que o plebeísmo é um princípio de franquia da cidadania. Havia dito também que o "critério de inclusão" de Dahl era uma boa aproximação deste princípio: a comunidade política "deve incluir todos os adultos sujeitos às decisões coletivas obrigatórias da associação" (meu grifo).

Digo "aproximação" porque, primeiro, aparentemente ela é uma aproximação para menos, no que diz respeito ao estrito sentido do princípio, já que, como o próprio Dahl (1989, pp. 127-8) reconhece, em nenhuma democracia moderna as crianças e os jovens até uma certa idade - isto é, os não-adultos -, são reconhecidos como portadores de direitos políticos plenos, e no entanto são obrigados a obedecer suas leis. E, segundo, é uma aproximação para mais, porque mesmo entre adultos, há pelo menos um segmento que é obrigado a obedecer às leis mas não possui direitos políticos -os estrangeiros. A exclusão dos estrangeiros e, principalmente, a exclusão dos não-adultos parecem óbvias, mas há de se reconhecer que cabem muito desconfortavelmente na noção, tão cara ao plebeísmo, de que todos os que estão sob a autoridade das decisões coletivas tem o direito de participar delas, independente do problema da qualidade da participação. Suspeito, porém, que tais exclusões são ainda o sinal da presença do ideal cívico entre nós, ainda que de forma bastante esmaecida, e que, neste aspecto, ele opera complementando o plebeísmo, tornando-o minimamente operacional.16 16 Isso é ainda mais patente quando se trata de justificar a regra da maioria que, para se tornar também minimamente operacional, precisa do suporte, derivado do ideal cívico, de uma noção mínima de consenso, para além das divergências que levam à contagem dos votos. Ver, a respeito, as observações de Dahl (1957), cap.2.

Aparte esse problema, contudo, quero aqui deixar mais claro dois aspectos do critério de inclusão que, embora não explicitados na sua formulação, estão plenamente incorporados na discussão que Dahl faz dele. Esses aspectos são 1) a idéia de que a virtual universalidade da cidadania implica a admissão de uma profunda heterogeneidade da comunidade política; e 2) apesar dessa heterogeneidade, seus membros devem ter igual direito de influenciar suas decisões. Como vimos na seção II, o primeiro aspecto já havia sido agudamente apreendido por Maquiavel. Mas agora temos de, ao mesmo tempo, insistir na igualdade política e introduzir níveis adicionais de heterogeneidade, em doses sequer imaginadas pelo florentino. O plebeísmo moderno tem de incorporar à comunidade política não só cidadãos desiguais econômica e socialmente, com interesses opostos -desnecessário provar que a igualdade de condições identificada por Tocqueville não é incompatível com tais desigualdades - mas cidadãos cujas atenções estão voltadas para objetos de interesse muito distintos uns dos outros.

Assim, parece-me evidente que se o problema da democracia moderna fosse simplesmente estender a cidadania a um número muito grande de pessoas, mas aproximadamente iguais em termos de renda, propriedade, educação etc, e com suas atenções voltadas para idênticos objetos de interesse, enfim, se a questão numérica não levasse a essa diferenciação, é certo que não haveria um conflito dos ideais normativos aqui expostos. Neste caso, acrescento, sequer o ideal do plebeísmo entraria em pauta: ele só tem razão de ser porque a extensão e a heterogeneidade são historicamente concomitantes; e ele pretende providenciar força normativa para a noção de que pessoas obrigadas a obedecer às leis estabelecidas por uma agência coletiva devem ter igual direito de fazer parte daquela agencia, a despeito das diferenças que houver entre elas, sejam de status, classe social, etnia, religião e assim por diante.

Colocar a igualdade política acima de toda e qualquer causa de heterogeneidade é o que põe o plebeísmo e o civismo em tensão um com o outro. Aqui vale a pena refinar o contraste entre a igualdade política modelada no ideal cívico e a modelada no plebeísmo. No primeiro caso, a igualdade supõe laços profundos entre os cidadãos, atados por alguma noção de destino comum entre eles. Não por acaso, seus membros são comumente vistos como "irmãos", "companheiros", "camaradas" que, ainda que tenham de se ocupar com suas vidas privadas (como chefes de família, por exemplo), e mesmo quando aparecem questões que os colocam em conflito entre si, compartilham o mesmo objeto de interesse e mutuamente reconhecem uns aos outros como igualmente capazes de exercer, empregando o melhor de suas qualidades morais - prudência e coragem, para citar duas mencionadas anteriormente -, as obrigações inerentes à participação. A comunidade política é uma espécie de "fraternidade", e é isso que confere igualdade aos membros.

No segundo caso, como vimos, a igualdade provém diretamente do reconhecimento de um direito, qual seja, de que ao súdito, pelo puro e simples fato de estar sob a obrigação de observar regras compulsórias, deve-se garantir igual participação - nas formas, para citar as clássicas, de igual oportunidade de expressar opiniões, de associar-se para defendê-las e de votar - na agência coletiva que autoriza tais regras. A igualdade do plebeísmo, portanto, não se baseia no imperativo de que os membros da comunidade política devem possuir certos vínculos especiais entre si, e as qualidades morais necessárias para preservar esses vínculos.

Como o tipo de igualdade que modela a comunidade política afeta sua configuração como um todo, no fundo estamos falando de dois arranjos institucionais ideais, que podem ser colocados nos extremos de uma escala. Chamemos uma das pontas da escala de república, e a outra ponta de democracia. Num extremo, a expansão da cidadania cria problemas para as exigências de fraternidade e de virtude dos membros; no outro, ao contrário, é a sua restrição, quantitativa (na forma de barreiras para o ingresso de novos membros) ou qualitativa (por exemplo, se se restringe a agenda de questões a decidir), que cria problemas para as exigências de universalismo no exercício dos direitos políticos. Assim, se partirmos do primeiro extremo, podemos ver como esses dois ideais em tensão "negociam" suas exigências respectivas, toda vez que a cidadania amplia-se, introduzindo elementos de heterogeneidade, desigualdade social e conflito. O caso das repúblicas antigas com constituições mistas, por um lado, e a introdução da representação e do sufrágio universal nos Estados modernos, por outro, são situações bem reveladoras dessa dinâmica

As repúblicas de constituição mista, ao estender a cidadania para a plebe, representam um afastamento do primeiro extremo, porém sob firme controle do ideal cívico. Se a fraternidade e a virtude são ameaçadas pela ampliação, então a noção de igualdade tem de ser remodelada a fim de garantir os dois primeiros, que são exigências prioritárias. Já vimos como, na tradição republicana, isso justifica a precedência de status, o sacrifício da estrita igualdade entre os membros individuais e sua reformulação na idéia do equilíbrio entre grupos de status. Se ainda assim a fraternidade e a virtude continuam ameaçadas, por conta do surgimento do espírito de facção e da complicação da maquinaria governamental, uma vigilância mais estrita dos padrões morais do patriciado e do espírito de militância da plebe e, finalmente, um redirecionamento dos conflitos internos para o inimigo externo, tornam-se então recursos cruciais para que o civismo continue dando o tom da vida política.

Repare-se que tais recursos são cruciais porque, a despeito do aumento dos conflitos e da heterogeneidade, os cidadãos continuam voltados para um mesmo objeto de interesses. Isto é, a atividade política continua a ocupar o centro da preocupação de todos, seja por conta da disponibilidade para o exercício de altas funções governamentais, graças à propriedade patrícia da terra; seja por conta da disponibilidade para enfrentar o patriciado, para ir à guerra e conquistar novos territórios, graças à posse plebéia das armas; seja, finalmente, por conta da possibilidade de relegar a terceiros - escravos, clientes, mulheres - os problemas domésticos e de reprodução material da vida.

Também já vimos que o binômio comunidade política/governo vai se tornando menos transparente nas repúblicas mistas, em virtude da crescente dificuldade de identificar a instância que reúne toda a comunidade e do próprio crescimento e ramificação da maquinaria governamental. Contudo, os recursos acima acabam ajudando a preservá-lo como uma boa simplificação da vida política real. Mas é certo que aquele binônimo deixa totalmente de ser plausível na mesma medida em que tais recursos perdem força normativa. E isso ocorre quando a comunidade política se estende a tal ponto e ganha tal heterogeneidade que sua sustentação como centro de autoridade não pode mais depender da suposição de fraternidade e virtude de seus membros. Chegamos a um momento de virada na escala na qual a comunidade política mesma muda de caráter: o plebeísmo passa a dar o tom, e o civismo torna-se uma força normativa subordinada.

Quando as exigências de excelência no exercício de cidadania deixam de dar o tom, isso significa que esse mesmo exercício não mais pode depender de que todos os cidadãos façam da atividade política o centro de suas preocupações. Cada qual tem sua vida para levar, sua específica agenda de preocupações, sua própria lista de prioridades. A lógica da divisão social do trabalho, que na república é excluída da dinâmica interna da comunidade política, é colocada para dentro dela tão logo a democracia incorpora os contingentes de súditos que antes permitiam ao cidadão centrar sua atenção na política. O novo plebeu deixou as armas, e agora tem ou os negócios, ou o trabalho ou as obrigações domésticas, ou mesmo os três juntos, para competir lado a lado com seus deveres de cidadão.

Alcançamos então um ponto em que a extensão da cidadania é tão grande que torna-se altamente implausível que os membros da comunidade política possam estar presentes uns aos outros, possam reunir-se. O problema que quero realçar aqui é menos geográfico, de distância, ou a óbvia impossibilidade de reunir grande número de pessoas. A questão é que a ampliação, praticamente ao limite do possível, da comunidade política, não pode mais ser compensada pela militância do plebeu romano ou pelo ócio do patrício. E sem aquela militância, ou aquele ócio, cai por terra a suposição de que a agência coletiva dos cidadãos é capaz de sustentar-se por si mesma. É isso que significa que a comunidade não pode mais "reunir-se". Agora, para sustentar-se, ela precisa ser "representada", exatamente naquele sentido rejeitado por Rousseau.

Ao introduzirmos a representação, a que mesmo a constituição mista das repúblicas antigas não dava lugar, necessariamente a simplificação oferecida pelo binômio comunidade política/governo chega ao seu limite. Porém, para retratar melhor a nova situação, não precisamos jogar fora nenhum dos dois. Como o termo representação sugere, basta introduzir um terceiro elemento, mediador. Esse terceiro elemento é aquela entidade que está sistematicamente ausente na tradição do pensamento republicano, e que continua sendo objeto de repulsa entre seus herdeiros contemporâneos: o Estado. Em outras palavras, ao passarmos da ponta república da nossa escala para a ponta democracia, esse terceiro termo tem de aparecer no meio do caminho. A democracia é, na verdade, o Estado democrático.

Quando Rousseau fala de representação, e a rejeita, no fundo ele está se referindo ao Estado na acepção moderna que passou a ser predominantemente usada a partir das teorias absolutistas de Bodin e Hobbes. É verdade que Rousseau utiliza positivamente o termo "Estado" quando, por exemplo, referindo-se à comunidade dos cidadãos, ele diz: "Esta pessoa pública, formada assim pela união de todos... antigamente chamava-se Cidade, e agora chama-se República ou corpo político, o qual seus membros denominam Estado quando é passivo, Soberano quando ativo." Mas na visão de Rousseau - como se apreende nessa mesma passagem - a Comunidade Política, o Soberano e o Estado referem-se à mesma agência coletiva. E não poderia ser de outra forma, pois sua intenção é exatamente rejeitar a noção de que a soberania pode ser "alienada", isto é, transferida da comunidade política para uma outra agência. Assim, se é verdade que Rousseau distingue, como outros republicanos modernos, o Estado das pessoas que ocupam postos no aparato governamental, é igualmente verdadeiro que ele não faz a mesma distinção entre o Estado e a comunidade dos cidadãos. Porém, se queremos compreender o sentido predominante que "Estado" adquirirá modernamente, essa segunda distinção é crucial. Resgato aqui o estudo de Quentin Skinner sobre o assunto:

A despeito da indubitável importância desses teóricos republicanos clássicos [ele está se referindo ao primeiros republicanos modernos, renascentistas, a utilizarem o termo "Estado"], entretanto, ainda seria enganoso concluir que seu uso do termo stato e seus equivalentes expressa nosso conceito moderno de Estado. Este conceito veio a incorporar um caráter duplamente impessoal. Nós distinguimos a autoridade do Estado da dos governantes ou magistrados... Mas nós também distinguimos sua autoridade da de toda sociedade ou comunidade sobre a qual seus poderes são exercidos... Os teóricos republicanos abraçam apenas metade desta noção duplamente abstrata. Por um lado não há dúvida, penso eu, que eles constituem o grupo [moderno] mais remoto de escritores políticos que insistem com toda consciência numa distinção categorial entre o Estado e aqueles que o controlam... Mas por outro lado eles não fazem nenhuma distinção comparável entre os poderes do Estado e os de seus cidadãos. Ao contrário, todo o peso da teoria republicana clássica e colocado numa equação última entre os dois. (Skinner, p. 112)

Skinner também assinala que é Hobbes, melhor do que ninguém, que registra em sua teoria da soberania essa dupla distinção, e é portanto em seus escritos que vamos encontrar a melhor expressão do uso moderno de Estado: "A ambição de Hobbes como teórico político sempre fora o de demonstrar que, se há qualquer esperança de se alcançar a paz civil, os poderes completos de soberania não deveriam ser revestidos nem no povo nem em seus governantes, mas sempre na figura de um 'homem artificial." (p. 121)

Pois bem: quero sugerir aqui que quando a comunidade política é estendida no grau exigido pelo ideal plebeísta, algo como a noção de Estado na acepção acima tem de ser mobilizada para intercalar-se entre a comunidade política e o governo. Neste caso, a comunidade política, ao invés de existir na medida em que reunida, passa a ser representada pelo Estado, enquanto o governo passa a ser um órgão do Estado, aquele que o "administra", exercendo funções legislativas, executivas ou judiciárias. Sabemos, como nos mostra o excelente estudo de H. Pitkin sobre o assunto, que há diversos, e muitas vezes contrários, sentidos para "representação política". Porém, se quisermos apreender o conceito de Estado que Skinner assinala, o sentido de representação não pode ser outro senão aquele providenciado por Hobbes no Leviathan, ao formular sua teoria da autorização no capítulo 16 do livro: o representante é o "ator", uma pessoa (natural ou artificial) que age no lugar de outra, o "autor". O contrato que funda o Estado é interpretado, então, como uma "autorização", em que o representante (o ator) adquire irreversivelmente autoridade para agir no lugar de outro, e dá a esse outro uma "personalidade" (persona). A partir do momento em que o ator entra em cena, o autor desaparece e, inversamente, na medida em que o autor está presente, o ator, seu representante, desaparece. De maneira similar, o Estado é uma pessoa artificial que se coloca no lugar da comunidade política. Ele é seu representante, e só pode existir enquanto a comunidade política está suposta como "autora", mas fora de cena.

Mas como essa concepção poderia ajustar-se à noção de Estado democrático? Aqui temos de nos valer não só da distinção entre comunidade política e Estado, mas entre o Estado e as pessoas que ocupam funções de governo. Num Estado democrático, a comunidade política opera através dos direitos políticos que, estendidos ao máximo, possibilitam influenciar as decisões das pessoas que exercem tais funções. Essa.influência se dá pelo exercício dos direitos de expressão, de associação para defender essas opiniões e especialmente pelo exercício do direito de eleger e destituir aquelas pessoas. Porém, a comunidade política não pode dissolver o próprio Estado, cuja representação se consubstancia não em pessoas concretas (como no governo), mas numa ordem jurídica - a ordem democrática.

A pessoa artificial hobbesiana é, na democracia, a ordem jurídica que torna possível e regula os direitos políticos para o conjunto mais extenso possível de cidadãos.17 17 A ordem jurídica, sob a ótica do plebeísmo, é dominada pelos direitos políticos. Seu exercício é coletivo e seus resultados compulsórios. Em princípio, prevalecem sob quaisquer outros direitos não-politicos, sejam eles individuais ou coletivos. Desse modo, o Estado democrático, ao mesmo tempo que tende a universalizar os direitos políticos, tende também a submeter às suas regras compulsórias todas as esferas da vida social. A reação a essa tendência é a pressão normativa para retirar do alcance das decisões políticas uma gama de direitos não-polílicos. Saber como o Estado democrático, a partir de dentro, pode autolimitar-se e dar lugar a esse santuário, é a questão por excelência do moderno ideal de tolerância, o pluralismo. Mas quem a funda, quem a autoriza? Evidentemente, não pode ser a comunidade política atual, pois ela só tem existência e age por intermédio do Estado. A resposta é que a autorização apenas pode derivar do que se poderia chamar - e aqui deixo-me levar outra vez pela linguagem contratualista moderna - de comunidade política originária ou constituinte. É a ela que a ordem jurídica, através de um órgão do Estado especializado para esse fim, ou, dependendo da ordem jurídica, mesmo diretamente através da comunidade política atual, se remete toda vez que alguma questão política grave requer uma interpretação da "vontade" ou das "intenções" da comunidade originária. A comunidade originária, é claro, não pode fazer isso, pois ela deixou de existir a partir do instante em que o Estado passou a existir através de sua autorização.

Contudo, no momento em que uma comunidade política atual, consciente e explicitamente, desafia ou repudia a vontade originária, é a ordem jurídica, o Estado, que está sendo posta em questão. E quando isso ocorre, ela está na prática desqualificando a autoridade da antiga comunidade originária, e constituindo uma nova, que pode resultar, ou não, numa nova entidade estatal. Como disse, quando a comunidade política originária se constitui, enquanto ela existir, o Estado não pode existir. Enquanto ela existir, qualquer ação em seu nome pode retornar a ela e ser por ela tornada nula. Isto é, qualquer ação em seu nome chama-se governo, na sua clássica acepção republicana, e então é o simples binômio comunidade política/governo do ideal cívico que volta a operar. Mas se essa nova comunidade é ao mesmo tempo regida pelo ideal plebeísta, a sobrevivência do binômio só pode ser muito precária e turbulenta. E quando a comunidade política recusa-se a dissolver o binômio e a fundar um novo Estado - o que implica o ato definitivo e sem retorno de renunciar à sua própria existência -, então temos o equivalente moderno da combinação explosiva de república e democracia: a revolução.

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    Registro aqui meu agradecimento à Fapesp, pelo apoio à pesquisa mais ampla da qual este artigo - que é um trabalho em progresso - faz parte.
  • 2
    Referências sobre a controvérsia podem ser encontradas em Rosenfeld.
  • 3
    Todo o livro III da
    Política de Aristóteles, onde ele discute o conceito de cidadania e apresenta sua tipologia das formas de governo, é relevante para o que estou tratando aqui.
  • 4
    Nunca é demais lembrar que nem democratas, nem republicanos, punham em questão o trabalho escravo. A divergência dizia respeito apenas à amplitude da cidadania entre homens livres, isto é, adultos não-escravos do sexo masculino. Só i: reira ao progresso do plebeísmo na Antiguidade clássica.
  • 5
    É isso que faz Montesquieu, em certas passagens do
    Espirito das Leis, sugerir que a república romana era uma "democracia". Mas quando ele leva em conta outros aspectos da constituição romana, entre os quais seu caráter misto, Roma é vista como uma república "inclinada para a aristocracia". Cf. Montesquieu, vol.1, pp.9-13 e 50.
  • 6
    A discussão sobre a constituição romana aparece no livro VI das
    Histórias.
  • 7
    Ver
    Política, livro VI, cap.2.
  • 8
    A exposição abaixo é baseada no livro I, caps.2-6, dos
    Discursos sobre a Primeira Década de Tilo Lívio.
  • 9
    Ibid., 1.7-8.
  • 10
    Ver o "Prefácio-Dedicalória" do
    Secundo Discurso. Rousseau (1992), p.l 15.
  • 11
    Rousseau fala ainda de outro tipo de assembléia,
    comitia curiata, a mais antiga, mas que foi perdendo importância durante a república. Mas ele deixa de registrar que havia, de fato, duas espécies de
    comitia tributa: uma, talvez a mais importante, graças à força do tribunalo, que excluía os patrícios (o
    concilium plebis) - é desta que ele está falando aqui - e a outra que os incluía. Ver Wood, pp.26-7.
  • 12
    As páginas que seguem beneficiam-se de uma coletânea de estudos sobre a civilização romana (editada por Balsdon) e outra sobre as repúblicas da Antiguidade clássica e da Itália Medieval (editada por Molho, Raaflaub e Emlen), além do estudo de Weber sobre as cidades-estado e suas notas sobre "comunidade política" em
    Economia e Sociedade.
  • 13
    Para uma exaustiva investigação de como esses dois temas foram capturados pelo pensamento republicano inglês, ver Pocock 1975, esp. cap.XI, e 1985.
  • 14
    Mais uma característica das democracias que não escapa a Aristóteles: cf..
    Política, VI.2.
  • 15
    "Quem empunha armas reconhece apenas os capazes de empunhar armas como iguais políticos. Todos os outros, os não treinados em armas e os incapazes de empunhar armas, são lidos como mulheres, e são explicitamente designados como tais em muitas línguas primitivas" (Weber, 199, p.906)
  • 16
    Isso é ainda mais patente quando se trata de justificar a regra da maioria que, para se tornar também minimamente operacional, precisa do suporte, derivado do ideal cívico, de uma noção mínima de consenso, para além das divergências que levam à contagem dos votos. Ver, a respeito, as observações de Dahl (1957), cap.2.
  • 17
    A ordem jurídica, sob a ótica do plebeísmo, é dominada pelos direitos políticos. Seu exercício é coletivo e seus resultados compulsórios. Em princípio, prevalecem sob quaisquer outros direitos não-politicos, sejam eles individuais ou coletivos. Desse modo, o Estado democrático, ao mesmo tempo que tende a universalizar os direitos políticos, tende também a submeter às suas regras compulsórias todas as esferas da vida social. A reação a essa tendência
    é a pressão normativa para retirar do alcance das decisões políticas uma gama de direitos não-polílicos. Saber como o Estado democrático, a partir de dentro, pode autolimitar-se e dar lugar a esse santuário, é a questão por excelência do moderno ideal de tolerância, o
    pluralismo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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