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Técnica e liberdade

Technics and liberty

Resumos

Argumenta-se que o dilema entre técnica e liberdade permanece como tal, como dilema não resolvido, enquanto não se conseguir repensar a questão por uma perspectiva que alcance mais longe e mais fundo do que a tradição antropocêntrica do pensamento ocidental. As concepções de autores como Marcuse, Habermas e Marx são examinadas por um prisma que incorpora sugestões de Heidegger.


The dilemma between technics and liberty remains unsolved as long as we do not succeed in facing the question through a view that goes farther and deeper than the anthropocentric tradition of Western thought. The conceptions of authors like Marcuse, Habermas, and Marx are examined from a viewpoint akin in several points to Heidegger's.


REPÚBLICA

Técnica e liberdade* * Agradeço à amiga Cynthia Hamlin por ter comentado uma primeira versão deste ensaio.

Technics and liberty

Jonatas Ferreira

Doutor em sociologia pela Universidade de Lancaster e atualmente professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, onde desenvolve atividades de ensino e pesquisa relacionados ao pensamento tecnológico no século XX. Contato: jonfer@npd.ufpe.br

RESUMO

Argumenta-se que o dilema entre técnica e liberdade permanece como tal, como dilema não resolvido, enquanto não se conseguir repensar a questão por uma perspectiva que alcance mais longe e mais fundo do que a tradição antropocêntrica do pensamento ocidental. As concepções de autores como Marcuse, Habermas e Marx são examinadas por um prisma que incorpora sugestões de Heidegger.

ABSTRACT

The dilemma between technics and liberty remains unsolved as long as we do not succeed in facing the question through a view that goes farther and deeper than the anthropocentric tradition of Western thought. The conceptions of authors like Marcuse, Habermas, and Marx are examined from a viewpoint akin in several points to Heidegger's.

Ainda na década de 60, Jürgen Habermas tomou para si a tarefa de repensar o tema central daquilo que se convencionou chamar processo de racionalização do Ocidente, a saber, a relação entre ciência e técnica na modernidade. Seu intuito era tanto purgar a teoria crítica de um certo viés weberiano e pessimista quanto firmar sua própria posição dentro da Escola de Frankfurt. Sob alguns aspectos, o investimento habermasiano dessa época, materializado em textos como 'Técnica e ciência como ideologia", "Progresso técnico e mundo vivido social", "Política cientificada e opinião pública", parece datado. Ele parece pressupor o welfare state. A reflexão que esse esforço promove ainda se aquece junto às chamas de 68, ainda procura recolocar o problema da liberdade num mundo que se tornara mais afluente sem que uma correspondente liberação política tivesse se verificado. Apesar disto, no que pese a falência do welfare state, a inocuidade de criticar a praxis política marxista a partir da efervescência e dos sonhos do movimento estudantil de então (Habermas 1973:70-74), apesar dos limites daquela afluência, o esforço habermasiano continua mostrando vitalidade. Qualquer que seja nossa apreciação de sua obra, a questão específica a partir da qual ela pretende abordar o problema que nos lega a tradição crítica e, num sentido amplo, a própria modernidade, há que ser considerada seriamente. Esta questão poderia ser formulada do seguinte modo: dado o entrelaçamento profundo entre ciência e técnica que, a partir do século dezenove, passa a caracterizar e determinar a história do Ocidente, deveríamos aceitar como dado que o espaço reflexivo, e a perspectiva de libertação pela reflexão, passa a ser inextricável do universo da técnica? Mais que isso, aceitaríamos, como a teoria crítica chegou a formular através de Adorno e Horkheimer, que existe aqui um problema metafísico mais profundo, que a própria razão esteve desde o princípio, desde que o astuto Ulisses atou-se ao mastro de seu barco e tapou os ouvidos dos seus companheiros com cera, comprometida com sua dimensão instrumental? A formulação destas questões continua sendo orientadora, quer aceitemos ou não a perspectiva segundo a qual o homo loquax resgataria o homo faber, ou seja, que a separação entre as esferas da comunicação e da técnica deva ser sustentada como garantia da liberdade humana.

Porém, que tradição é essa sobre a qual Habermas pretende nos oferecer sua própria contribuição? Mais importante: como essa tradição nos ajuda a formular e superar o antagonismo que parece existir entre técnica e liberdade? Tomemos o depoimento de alguns de seus maiores expoentes. Tanto para Horkheimer, quanto para Adorno ou Marcuse, a relação entre ciência e técnica constitui um espaço de investimento intelectual sobre o qual não apenas a modernidade deve ser apreciada mas o próprio projeto crítico em seu esforço libertador e esclarecedor. Em 1944, Horkheimer e Adorno posicionavam-se a este respeito do seguinte modo: "O Esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo da calamidade triunfal." (Adorno/Horkheimer 1985:19) A associação entre ciência e técnica, que Max Weber já havia pressentido como potencialmente apriosionadora, não resultou no mundo eticamente mais perfeito com o qual sonhara o Iluminismo; sua racionalidade sequer representou o controle e a integração social que o positivismo tanto desejara. Seu resultado foi antes uma brutal instrumentalização do mundo da vida.

Se os caminhos que a teoria crítica adota para discutir este problema divergem, uma preocupação central permite identificar um campo teórico comum, qual seja, tentar entender em que medida a liberdade ainda é uma bandeira possível dentro do horizonte histórico de uma civilização em que a técnica já não pode ser pensada como um meio dócil de realização de intenções e interesses subjetivos. A emancipação da razão instrumental, conseqüência não pretendida da associação entre técnica e ciência, imporá limites claros ao sonho iluminista de constituir uma sociedade de indivíduos livres. E assim, pode-se chegar à conclusão mais sombria: "O Esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los." (Adorno/Horkheimer 1985:24) Diante deste quadro, Adorno investirá no potencial libertador que a obra de arte parece apresentar quando contrastada com outros produtos do mundo técnico. Distintamente destes, a obra das vanguardas artísticas nas sociedades industriais ainda constitui uma campo de reflexão potencialmente libertário. Bem entendido, para Adorno não se trataria de escapar do mundo tecnológico moderno nas asas do belo, ou mediante um retorno à grande obra de arte (como em Heidegger), mas de promover a implosão da razão instrumental através de um tipo de produção artística que negue a utopia fácil, que se torne insuportavelmente incômoda na exata medida em que se recuse a promover fugas da rígida civilização industrial. (Adorno 1970) Neste sentido, o conceito kantiano do sublime parece constituir para Adorno uma possibilidade concreta de recuperação de um potencial revolucionário moderno que se materializaria na vanguarda artística. O papel desta vanguarda não seria, então, o de propor novas formas ou novas utopias, mas mostrar no disforme o verdadeiro rosto do mundo moderno, tornando deste modo possível o exercício de uma reflexão libertadora.

Se Max Weber já percebera que a razão instrumental não é apenas uma forma de organizar de modo calculável o mundo natural, mas um valor cultural e uma forma de pensar e organizar as relações entre os seres humanos, caberá a Marcuse aprofundar este insight a partir da percepção de que tais relações envolvem na modernidade uma dinâmica de classes específica. A crítica à razão instrumental e ao pensamento tecnocrático passaria então por uma crítica à sociedade burguesa e ao aparato ideológico aí mobilizado para justificar uma determinada dinâmica social, e não mais por esperanças depositadas em uma vanguarda artística, como pretendia Adorno. "Nós não perguntamos pela influência ou efeito da tecnologia nos indivíduos. Pois eles próprios são uma parte integral e fator da tecnologia, não apenas como aqueles que inventam ou se ocupam com máquinas mas também como grupos sociais que dirigem sua aplicação e utilização. Tecnologia, como um modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, aparelhos e mecanismos que caracterizam a era das máquinas é assim, ao mesmo tempo, um modo de organizar e perpetuar (ou mudar) relações sociais, uma manifestação de pensamento e padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação." (Marcuse 1993:138-139)

Para Marcuse, o ideal burguês do sujeito livre e autônomo materializou-se como luta competitiva e busca de eficiência, ou seja, ser livre passa a ser sinônimo de tomar as decisões necessárias para ser eficiente e competitivo. Se para a tradição iluminista a razão é considerada como locus da autonomia e da liberdade, e se para ser racional o indivíduo tem de submeter-se aos ditames da força tecno-científica moderna (1993:145), parece inevitável que se conclua que esta técnica e esta ciência não são tão neutras quanto se supunha. No que diz respeito a essa neutralidade aparente, Marcuse observa: "A razão teórica, permanecendo pura e neutra, passou a prestar serviço à razão prática. (...) Hoje, a dominação se perpetua e se expande não apenas através da tecnologia mas enquanto tecnologia, e esta última fornece a grande legitimação do poder político em expansão, absorvendo todas as esferas da cultura." (Marcuse 1964:158) A liberdade com a qual o mundo burguês sonhou consubstanciou-se no final das contas no seu verdadeiro e triste significado: na "livre escolha entre marcas e aparelhos".

Através da promessa "liberdade do fardo do trabalho" a tecnologia moderna constituiu-se em ideologia que propõe a reconciliação de interesses tradicionalmente opostos, como os do capital e os do trabalho. "Sob as condições de uma melhoria no padrão de vida, a não conformidade com o sistema parece ser socialmente inútil, tanto mais quanto ela implique desvantagens econômicas e políticas e ameace a fluência das operações como um todo." (1964:2) Uma pergunta parece se impor, então, de imediato: "Como as pessoas que têm sido objeto de uma dominação efetiva e produtiva poderiam criar por si próprias as condições de liberdade?" (Marcuse 1993:6) Ora, se a técnica moderna constituiu-se em ideologia, em um ethos da eficiência, diria Weber, é concebível que as 'falsas necessidades' que ela toma como legítimas sejam substituídas por 'necessidades verdadeiras'. A conclusão de Marcuse, deste modo, é que uma "mudança qualitativa" neste quadro implicaria necessariamente uma "mudança na base técnica sobre a qual esta sociedade se apoia". Em outras palavras, se as "técnicas de industrialização são técnicas políticas" e "enquanto tais, elas prejulgam as possibilidades da Razão e da Liberdade" (1993:18), uma mudança significativa nas sociedades industriais demandaria uma nova concepção de técnica que não se curvasse aos ditames de uma razão instrumentalizada.

A transformação tecnológica é ao mesmo tempo transformação política, mas a transformação política só seria convertida numa transformação social qualitativa apenas na medida em que alterasse a direção do progresso técnico - ou seja, desenvolvesse uma nova tecnologia. (1993: 227)

A solução marcusiana para o problema da 'racionalização do Ocidente' (uma nova tecnologia, uma nova ciência) é bem conhecida, assim como são conhecidas as influências sobre ele exercida por um certo clima que contagia o pensamento alemão na primeiras décadas do século vinte e que prevalece na obra de filósofos como Heidegger e de Husserl. Refiro-me aqui à tese, comum aos três pensadores, segundo a qual se faz necessário repensar as bases do pensamento científico ocidental, para afastá-lo do positivismo, do cientificismo e do pensar instrumental, assim como do relativismo e da decadência - que formariam como que o outro lado de um mundo instrumentalizado, incapaz de discernir entre o essencial e o irrisório, entre o "autêntico" e o "inautêntico". Em Heidegger, essa percepção passaria por repensar a base ontológica do logos ocidental, só a este nível o projeto científico moderno poderia vir ocupar uma posição verdadeiramente à altura do desafio proposto pela Antigüidade Clássica. A técnica poderia então ser repensada a partir desta nova verdade. O projeto fenomenológico de Husserl, com um propósito semelhante, tenta já a partir da Filosofia da Aritmética, de 1891, promover uma crítica ao conceito moderno de ciência, retornando de sua aparente objetividade e abstração ao 'mundo da vida' onde esta ciência se afirma como possibilidade de controle e certeza1 1 A este respeito Marcuse (1964:162) comenta: "Esta base pré-científica da ciência localizada no mundo das práticas (Lebenswelt), que determinou a estrutura teórica, não foi questionada por Galileu; mais que isso, ela foi encoberta por desenvolvimentos posteriores da ciência. O resultado foi a iluscão de que a matematização da natureza criava uma verdade autônoma e absoluta, enquanto que, na realidade, ela permanecia para a Lebenswelt um método específico e uma técnica". . Porém, ao invés da passividade e dos conteúdos não refletidos do mundo da vida, Husserl propõe uma ciência que se estruture a partir da inquietação da 'atitude teórica', ou seja, a partir do logos como valor transcendental da civilização ocidental. É este o contexto intelectual a partir do qual Marcuse nos fala de uma nova ciência e uma nova técnica que procurariam no mundo natural não um objeto, ou seja, algo passível de ser controlado, mas um Outro a quem se deve reconhecer potencialidades inerentes a serem realizadas.

Isto que Marcuse oferece como alternativa ao dilema 'tecnologia ou liberdade' pode ser objeto de crítica sob vários aspectos. Uma apreciação crítica particularmente distante da generosidade é apresentada por Habermas, no que pese sua reconhecida dívida para com a idéia marcusiana de uma técnica convertida em ideologia. Para Habermas, Marcuse quer tratar o mundo natural como uma outra subjetividade, quando da perspectiva da razão técnica a única alternativa que se pode conceber de relação entre o ser humano e a natureza seria precisamente esta: instrumentalização. Embora isto não corresponda rigorosamente à posição de Marcuse (que não nega o conteúdo instrumental da razão técnica, mas sonha com o ideal grego de uma natureza a ser realizada, e não tanto controlada a partir dos interesses do antropos, ou seja, sonha com a técnica como um elemento da ordem cósmica e não como mero aparato humano), tanto a crítica de Habermas quanto as dificuldades com as quais se depara o pensamento marcusiano nos ajudam a definir os contornos do problema que discutiremos neste ensaio. Este problema não é outro senão aquele que a própria teoria crítica e o pensamento moderno como um todo vêm delimitando há um tempo considerável: em que medida aquilo que somos, a reflexão que podemos realizar, a liberdade com a qual podemos sonhar não está intimamente vinculada ao aparato técnico a partir do qual podemos perceber e questionar nossa própria existência? Até que ponto a nossa própria compreensão de nós mesmos como seres inelutavelmente "protéticos" não inviabilizaria um projeto de liberdade? Se este problema é bem maior que a teoria crítica (o Estruturalismo e o Pós-Estruturalismo, por exemplo, têm se entretido com o mesmo problema), este parece um bom espaço para empreendermos um tal esforço reflexivo - haja vista seu compromisso e vínculo com uma tradição de pensamento para quem tanto a técnica como a liberdade, e fundamentalmente a liberdade, são forças históricas a partir das quais o moderno pode se compreender.

Dito isto, faz-se necessário precisar um pouco mais claramente os conceitos que nos parecem centrais para definir o problema em foco. Não se trata aqui, obviamente, de uma definição exata, abstrata de nossa terminologia, mas de tornar possível uma compreensão histórica da questão que a teoria crítica nos propõe. Neste sentido, a oposição metafísica que se estabelece desde a Antigüidade Clássica entre ciência e técnica parece-nos de uma relevância evidente e um lugar óbvio para começarmos nossa tarefa. É a esta oposição e à possibilidade de sua superação que ainda nos reportamos sempre que nos perguntamos até que ponto a reflexão, e a liberdade pela reflexão, seria incompatível com o mundo da técnica. É precisamente o momento em que o conhecimento se opõe ao mundo do trabalho e das técnicas, momento estruturante da própria economia metafísica, que estabelece os termos e as contradições sobre as quais a reflexão crítica se ergue. O caminho que adotamos, assim, será o de localizar o dilema 'técnica ou liberdade' no contexto da tradição à qual pertence, procurando entender em que medida a modernidade possibilitaria a superação deste impasse. Se pudermos realizar este primeiro esforço com algum sucesso, estaríamos em melhores condições de compreender a verdadeira força teórica do pensamento crítico, assim como aquelas áreas turvas em que o seu engajamento com a modernidade parece não tirar proveito do verdadeiro significado revolucionário desta última. Porém, mais importante, estaríamos mais próximos de entender em que medida a oposição entre técnica e liberdade nos ajuda a pensar a extensão teórica daquilo que está aqui envolvido.

PENSAMENTO ANTROPOCÊNTRICO E TÉCNICA

A concepção antropocêntrica da técnica corresponderia, grosso modo, à proposição segundo a qual o ser humano age sobre o mundo natural, servindo-se livremente de instrumentos para alcançar fins previamente estabelecidos. A condição mesma deste agir é que ele seja entendido não apenas como capacidade de dispor sobre meios técnicos, mas também, e principalmente, como sendo sua instância originária e que, portanto, o mundo técnico seja apenas mediativo em relação a tal agência. Ao qualificar como antropocêntrica tal abordagem, valho-me da observação oferecida por Heidegger (1996:313): a "concepção corrente de tecnologia, segundo a qual ela é um meio e uma atividade humana, pode [...] ser chamada uma definição instrumental e antropológica de tecnologia". Se no decorrer deste ensaio procuro dar destaque à idéia de antropocentrismo, isto deve-se basicamente a dois motivos. Em primeiro lugar, pela capacidade explicativa que tal conceito revela em relação ao de instrumental idade, pois o universo técnico só pode ser pensado como meio, como mero instrumento dentro de uma cultura antropocêntrica. Em segundo lugar, pela possibilidade de, mediante este artifício, chamar atenção para aspectos importantes da relação agência-tecnologia, que constitui o problema central deste ensaio. O interesse sociológico de uma tal relação é tanto mais evidente quanto mais se perceba sua inscrição numa tradição do pensamento ocidental consideravelmente anterior à própria idéia de Sociologia.

Assim, importa enfatizar que a formalização de tal compreensão do mundo técnico coincide, e não por acaso, com o despertar do pensamento metafísico no Ocidente. A mesma operação filosófica que opõe forma e matéria, mundo transcendental e mundo empírico, também separa conhecimento e técnica, episteme e techné. Em todos esses casos, produz-se ao mesmo tempo uma articulação daquilo que foi cindido. Importa observar, que esta articulação age no sentido da subordinação do segundo desses domínios ao primeiro e que esta operação dupla, de fratura e restauração, é organizadora da economia metafísica. Este pensar que se esforça por demonstrar a origem primordial do 'mundo das aparências' no âmbito não contaminado das 'Idéias', busca num mesmo movimento afastar do horizonte do humano a evidência de sua suplementaridade técnica fundamental2 2 Neste ponto é necessário ser mais preciso. A economia aqui estabelecida, a rigor, não é produtora de um modo antropocêntrico de perceber a relação entre o ser humano e a técnica. Diríamos com mais propriedade que ela já pressupõe esta forma de percepção, ou seja, que a metafísica já é antropocentrismo. .

O que permanece velado ao pensamento metafísico, portanto, é uma suplementaridade técnica originaria, ontológica, sem a qual o próprio pensar é inconcebível. Seria por acaso concebível pensar sem a intermediação deste claro recurso técnico que é a linguagem? Este esquecimento funda um entendimento instrumental, antropocêntrico do universo técnico. Atentemos para este fato: ao subordinar a técnica ao conhecimento, o pensamento ocidental define como âmbito essencial da verdade um ser humano não suplementar - apenas este ser humano pode se debruçar livremente sobre seus instrumentos. Já na Física Aristóteles chamava atenção para a existência de uma diferença fundamental entre o ser natural e o técnico - diferença esta que confere ao primeiro seu próprio "princípio de movimento e fixidez" e ao segundo uma determinação que lhe é heterônoma: "pois a natureza é um princípio e uma causa do movimento e do repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente, por essência e não por acidente." Por outro lado, nenhuma "coisa fabricada trás em si o princípio de sua fabricação" (Aristóteles 1952). Mesmo naqueles casos em que o ser técnico trás dentro de si o seu próprio princípio de movimento e fixidez, esse estado de coisas é acidental e não essencial. Tomemos o célebre exemplo do médico capaz de auto-medicar-se. Ora, a capacidade técnica de curar não reside essencial e indissociavelmente naquele que é paciente, observa Aristóteles; mesmo neste caso a técnica se subordina à intenção daquele que escolhe livremente o tratamento mais eficiente.

Assim, é possível dizer que enquanto o ser natural (uma árvore) causa a si mesmo, o ser técnico (um machado, um modo de preparar o pão) é determinado pelo seu uso e utilidade. Distintamente do ser orgânico, a existência do instrumento não se revela como um produzir-se autônomo, mas como um funcionar, como um 'para-que'. Para que serve um machado? Para derrubar árvores, rachar madeira etc. A mesma pergunta soará absurda se tivermos em mente a árvore. Mesmo que possamos de algum modo respondê-la, isto seria apenas evidência da instrumentalização deste ser orgânico. A árvore, deste modo, pode ser entendida como meio para a produção de celulose ou construção de cabanas; o seu ser entretanto independe deste ou outros possíveis usos. Ademais, sempre que é instrumentalizada deixa de ser árvore. Em suma, para Aristóteles o instrumento é causado e tem seu ser definido por um princípio e um fim que lhe são extrínsecos. Se a técnica não é fim em si mesma, isso deve-se ao fato de que ela é entendida como um meio, como repositório da intenção humana através do qual o mundo natural é transformado e realizado.

Assim, não parece acaso que o livro II da Física dê prosseguimento às reflexões sobre o ser técnico com a célebre exposição dos quatro tipos de causalidade, a saber, causa formal, causa material, causa efetiva e causa final. Mas, afinal, sobre o que se estrutura uma conexão entre a doutrina da causalidade e as considerações sobre o mundo natural e o mundo técnico? Heidegger nos responde a essa pergunta da seguinte forma: o que interessa a Aristóteles é entender como aquilo que é vem a ser, ou seja, como é garantido o produzir das coisas, artefatos ou não. Se todo produzir (no sentido de poiesis, ou seja, tanto o produzir técnico quanto o natural) é considerado uma "ocasião para algo que passa para além do não-presente e vai adiante até a presença" (Platão apud Heidegger, 1996:317), apenas o produzir natural é um "levar-adiante"3 3 Tanto o verbo alemão hevorbringen quanto o português produzir guardam em sua etimologia estreita ligação com a idéia grega de poiesis, com este sentido de 'levar-adiante' ressaltado por Heidegger. de si em si mesmo. "Em contraste, aquilo que é levado adiante pelo artesão ou artista [...] tem a irrupção do levar-adiante, não em si mesmo, mas em outro (en alloi), no artesão ou no artista." (1996, 317)4 4 Deste modo, pode se chegar a seguinte conclusão: "Quem quer que construa uma casa ou um barco ou forje um cálice sacrificial revela aquilo que deve ser levado adiante, de acordo com os termos dos quatro modos produzir. Esse ato de revelação reúne de antemão o aspecto e a matéria do barco ou casa", ou seja, sua causa formal e causa material, "com vistas à coisa acabada percebida como completa" - com vistas à sua causa final - "e dessa reunião determina a maneira da sua construção" - sua causa eficiente (1996, 319).

Bernard Stiegler, no seu excelente La technique et le temps, observa que a desvalorização da techné em relação à episteme está presente já em Platão. De fato, a subordinação da técnica ao agir humano se opera no mesmo espaço teórico em que este criticara aos sofistas o fato de tomarem por conhecimento verdadeiro a mera técnica - sendo o combate socrático à retórica sofista o caso mais notório de crítica à confusão entre o domínio da técnica e o do conhecimento. Recordemos também a crítica feita por Sócrates ao registro escrito, que supostamente arruinaria um elemento vital na educação do cidadão ateniense, nomeadamente, a memória. Mais uma vez, a oposição entre técnica e conhecimento é organizadora da economia metafísica: o contraste entre escrita e memória só é concebível se esquecermos que o domínio do pensar é a linguagem e que essa constitui uma técnica no sentido mais essencial desta palavra. Não há memória que não se estruture a partir da suplementaridade do humano. A propria maêutica socrática, pensada como técnica que, mediante o diálogo, busca vencer o esquecimento em que somos atirados ao nascer, é uma evidência que aponta nesta direção.

A dimensão política da economia que se estabelece com a delimitação do âmbito da episteme e da techné torna-se clara se nos reportarmos, por exemplo, à República. Se o âmbito de atuação técnica é sempre o contingente, o do conhecimento filosófico, por outro lado, são as verdades absolutas. Posto isto, todo produzir (no sentido de poiesis, isto é, produzir) deve se subordinar à Idéia. Neste contexto, chama atenção o lugar específico que o artista passa a ocupar na república platônica. No livro 10 de A República podemos observar algo novo para o pensamento grego: a distinção entre a produção artesanal e a artística. "A língua grega usava a mesma palavra para designar a atividade produtiva do artesão e a produção do pintor, escultor, poeta épico, e poeta trágico. Esta palavra é poiesis. Do mesmo modo uma única palavra, techné, designava o know-how tanto do artesão como do artista. Platão reage contra este uso lingüístico. O artesão, sustenta, é o único cuja produção é verdadeiramente uma poiesis, porque apenas tal pessoa tem em vista Idéias específicas e as imita." (Taminiaux, 1993:2-3) E se o valor da produção do artesão é enaltecida pelo fato deste tipo de ação se estruturar a partir da imitação de um padrão ideal e a ele se subordinar, o artista, em contraste, deve se acautelar contra uma tendência que lhe é natural, qual seja, reproduzir o mundo das aparências, imitar aquilo que em si já é uma imitação. A ironia platônica aqui fala por si só. Buscando retratar um mundo contingente, o artista ilude a si próprio como uma criança que, de posse de um espelho, pensa ter a capacidade de criar o mundo a sua volta, plantas, céu, animais e a si, apenas girando seu brinquedo ocasional em torno de si própria. Bem recentemente, o pensamento feminista5 5 Ver os trabalhos de Donna Haraway e Sadie Plant, por exemplo. pôs a nu toda uma política patriarcal definida a partir da subordinação metafísica do produzir material à idéia de uma forma ideal. É esta política que já em Platão hostiliza qualquer pretensão da arte de produzir um mundo independente do poder masculino do conceito. É essa subordinação que importa perceber claramente definida como símbolo da abordagem antropocêntrica da técnica.

Os resultados concretos desta subordinação são claros. No livro VIII de As Leis, por exemplo, Platão observa: "Quanto ao conjunto dos artesãos, eis a conduta a seguir. Não permitir que trabalhe no ofício de artesão nenhum cidadão residente nem servidor de cidadão residente. Pois ele tem, o cidadão, uma tarefa que lhe é suficiente e que exige muita prática e muitos estudos no cuidado de assegurar e manter a ordem geral da cidade.." (846a) De modo similar, Aristóteles observa em A Política: "A cidade mais perfeita não fará cidadão do operário; e no caso que o considere cidadão, a virtude do cidadão [...] não se dirá de todos, nem sequer dos apenas livres, mas dos que estão isentos dos trabalhos necessários. Daqueles que realizam os trabalhos necessários, os que os fazem para serviço de um só são escravos, e os que servem a comunidade, operários e lavradores."

MODERNIDADE E TÉCNICA

Num sentido fundamental, diríamos que o Iluminismo exacerbou esta forma de compreender a técnica já presente no mundo grego. Apesar das fraturas sobre as quais se estrutura o edifício crítico kantiano, dentro de cuja arquitetura as capacidades de transformar e de conhecer obedecem a regras independentes, o sentimento geral que orienta o pensamento iluminista é a fé num conhecimento que oriente a prática. Só assim a tarefa crítica, ou seja, a tarefa de submeter todos os valores ao crivo da razão, é de fato concebível. Na Filosofia do Direito Hegel fala das esperanças que envolvem o Iluminismo numa atividade social revolucionária da seguinte maneira: "Desde que o sol brilha no firmamento e que os planetas gravitam à sua volta, ninguém ainda havia percebido que o homem se ergue sobre a cabeça, isto é, sobre a idéia e constrói a realidade segundo a idéia. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o nous, a razão, governa o mundo; mas só agora o homem compreendeu que a idéia deve governar a realidade espiritual. Era, pois, uma magnífica aurora. Todos os seres pensantes celebraram a nova época. Uma emoção sublime reinava nesse tempo, um entusiasmo de espírito abalou o mundo inteiro como se, pela primeira vez, se assistisse à reconciliação do mundo com a divindade".

Há, no entanto, algo de consideravelmente novo no pensamento moderno. A verdade é que, apesar de seu sentido instrumental, a técnica em Aristóteles buscava ainda realizar o mundo físico. A idéia de verdade que orientava a busca do saber para a Grécia clássica ainda era definida como aletheia. A esse respeito ouçamos Gerd Bornheim: "Sabe-se hoje que a concepção de verdade na Grécia clássica - aletheia - consistia numa manifestação ou desvelamento que se verifica independentemente do homem; era a própria dinamicidade da natureza, e de uma natureza interpretada de modo muito amplo, que compreendia em si tudo o que é, inclusive os deuses, e dotada, já por isso de certa inteligência que a armava em função de certos fins - é essa natureza que se manifestava a partir de si mesma. E o homem, basicamente, assistia passivo a essa manifestação. A verdade, por conseguinte, equacionava-se em nível ontológico e não gnosiológico." (Bornheim in Adauto Novais, 1999:38) Bornheim ainda ressalta que é precisamente o formalismo platônico que inicia o processo de corrosão do pensamento grego pré-metafísico, cujo resultado será num esquecimento da verdade como aletheia. Em outras palavras, a separação do verdadeiro e do aparente, sobre a qual se estrutura a filosofia platônica, resultará num novo sentido para o verdadeiro: omoiosis, ou adequatio em sua tradução latina. Adequatio significa literalmente 'ir para a igualdade', idéia sobre a qual se estrutura toda a apropriação lógica de Aristóteles pela escolástica. Como adequação, "a verdade pode ser constatada sempre que a idéia que o sujeito forma de determinado objeto coincida com este objeto". E é esse sentido de verdade que se mostrará tão perturbador da relação clássica entre episteme e techné, pois a dificuldade reside precisamente aí: em admitir que esta adequação não é garantida per se mas demanda uma técnica específica. Ora, por irônico e contraditório que pareça, trata-se aqui, desde o princípio, de indicar os caminhos técnicos pelos quais o processo de conhecer pode chegar à igualdade, ao conceito.

Não é fortuito, portanto, que a postura antitradicionalista de Francis Bacon se manifestasse como oposição à idéia aristotélica de uma técnica 'realizadora' do potencial do mundo físico. "O que importa não é aquela satisfação que os homens chamam de verdade, o que importa é a operation, o proceder eficaz. 'O verdadeiro objetivo e serventia da ciência' não reside nos 'discursos plausíveis, deleitantes, veneráveis, que fazem efeito, ou em quaisquer argumentos intuitivamente evidentes, mas sim no desempenho e no trabalho, na descoberta dos fatos particulares anteriormente desconhecidos que nos auxiliem e nos equipem melhor na vida'." (Adorno/Horkeheimer, 1985:4) Trata-se aqui de uma nova apreciação do mundo técnico, indiferente à perspectiva de realizar o mundo físico, indiferente àquela dimensão de verdade que ainda orienta o pensamento aristotélico, ou seja, deixar aquilo que é vir a ser. Trata-se de transformar o mundo natural, domesticá-lo, fazê-lo ir à igualdade do conceito. A importância da idéia de experimentação científica, neste contexto, é indicativa da nova posição ocupada pela técnica na produção de conhecimento e na busca dessa acepção de verdade que amadurece com o cristianismo. Paolo Rossi (1989, 41) realizou um trabalho significativo de recuperação dessa passagem. De uma relação de divórcio entre conhecimento e técnica, sobre o qual o mundo medieval ainda se estrutura, nós nos deparamos agora com uma relação de aparente cooperação. "Os textos técnicos medievais dão instruções amplas e detalhadas sobre o modo de "trabalhar", apresentando-se como um conjunto de regras, receitas e preceitos. Neles, a "teoria", entendida como tentativa de deduzir preceitos a partir dos princípios gerais e de fundá-los sobre um conjunto de fatos verificáveis, está totalmente ausente." Em que pesem os desvios de seu racionalismo, a dúvida radical cartesiana, ao estruturar um pensamento a partir da indução e não mais da dedução, mostra um sinal dos horizontes que se abrem. É fato sabido que a relação entre teoria e prática sofre uma mudança significativa com a perda de garantias transcendentais que marca a passagem das sociedades tradicionais para a modernidade. Também por isso, a técnica já não pode mais realizar o mundo natural. Assim, quando Bacon protesta contra a "esterilidade" da vida cultural tradicional, ele o fará a partir de uma proposta de rearticulação entre conhecimento e técnica, em que o método passa a desempenhar um papel fundamental.

Aconteceu que, por mais dois mil anos, as ciências permaneceram paradas e se mantêm sempre quase nas mesmas condições, sem realizar nenhum progresso digno de nota [...] Ao invés disso nas artes mecânicas, que se fundam na natureza e na luz da experiência, vemos suceder o contrário: elas [...] como se penetradas por um espírito vital, continuamente crescem e progridem: antes toscas, depois convenientes, enfim refinadas, sempre progredindo." (em Rossi, 1989:76)

Embora a relação entre tecnologia e ciência permaneça sendo articulada por uma subordinação da primeira pela segunda, algo de substancialmente novo existe no pensamento das Luzes, algo que fará Voltaire afirmar no Tratado de Metafísica: "Quando não podemos utilizar o compasso da matemática ou o archote da experiência e da física, é certo que não podemos dar um só passo adiante." (1973:74) Salientemos o óbvio: trata-se aqui de uma apologia ao experimento científico, da necessidade de referenciar o mundo do conhecimento no duro mundo da experiência e das evidências sensíveis. Essa operação, no entanto, não se dá sem um custo para o próprio status aristocrático do conhecimento em relação ao mundo de esforços físicos, de secreções e fadigas que caracterizam o domínio da técnica. Um sintoma das transformações em curso na Europa é sem dúvida o fato de que desde o século quinze o técnico, o artesão não ser mais concebido como naturalmente vinculado a uma comunidade ou soberano6 6 "Luís XI, durante seu reinado (1461-83), chama vidraceiros e estampadores alemães, engenheiros militares italianos e espanhóis; Conônia, Marselha, o duque de Bretanha - entre 1470 e 1480 - apelam aos trabalhadores de seda italianos; engenheiros genoveses e napolitanos trabalham para Francisco I; o arquiteto Fioravante ensina em Moscou o método da "coíata" para a construção de canhões; os czares dirigem-se aos impressores dinamarqueses e aos metalúrgicos alemães (1550 e 1556); o herege italiano Giacomo Aconcio - para lembrar um nome entre muitíssimos outros - obtém em 1563 o contrato para os trabalhos de drenagem do terreno inundado pelo Tâmisa, e passa a fazer parte de uma comissão de especialistas enviada por Elizabeth para preparar as fortificações nas fronteiras com a Escócia." (Rossi, 1989:45) , como o entendia Aristóteles.

Pode-se dizer que a modernidade se estrutura a partir de uma consciência dúbia, numa má consciência por vezes, no que tange ao mundo da técnica. Essa consciência tanto se estrutura a partir de uma crítica radical do pensamento antropocêntrico, pois questiona as bases sociais sobre as quais o mundo da técnica se encontra subordinado ao mundo transcendental dos saberes, quanto na tentativa de restaurar-lhe a dinâmica ameaçada - que se manifesta como te positiva numa ciência que, tendo reconhecido a importância da técnica, é capaz de subordiná-la novamente. A própria idéia iluminista e positivista de um projeto para a humanidade atesta essa nova subordinação da técnica em que a ciência pretende desempenhar o papel de guia. Dentro e fora dos limites desta ambigüidade, a produção marxiana é emblemática - da perspectiva do nosso esforço, esta referência é obviamente crucial. Se por um lado ela pode, num certo sentido, se revelar escatológica e antropocêntrica, pois sonha com um mundo no qual a razão científica poderá, por fim, subordinar o mundo da produção ao ideal de uma distribuição equânime das riquezas, ela também reconhece que a reflexão, científica ou não, se opera a partir de condições técnicas muito precisas. Posto isto, o principal problema com o qual o marxismo se depara será o de definir uma filosofia da ação capaz de indicar alternativas a um pensamento ideologicamente comprometido com um visão olímpica do conhecimento. É neste sentido que se deve entender sua preocupação de definir a práxis como condição de todo pensar efetivo. Trata-se, pois, de entender que a práxis política não se dá no abstrato de relações puramente humanas, mas que, pelo contrário, deve reconhecer o mundo de produções e técnicas onde ela se efetiva.

A questão se é possível atribuir verdade objetiva ao pensar humano não é uma questão de teoria mas uma questão prática. "O homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e poder, a efetividade do seu pensamento na prática. A disputa acerca da realidade ou não-realidade do pensamento que é isolado da prática é uma questão puramente escolástica." (Marx e Engels, 1976:6)

i) Marx: implicações políticas da técnica moderna

A clareza marxiana está, deste modo, em grande medida determinada por uma possibilidade histórica já aberta a pensadores como Saint-Simon, ou seja, poder se colocar teoricamente do lado do mundo da produção, da capacidade de transformação, da técnica. A partir de níveis distintos de sensibilidade para com essa nova conjuntura histórica, tanto Marx quanto Saint-Simon acreditam que a ciência deixa de ser senhora absoluta do mundo da produção e do trabalho para compartilhar com a técnica a responsabilidade e o direito de transformar a natureza. Como já indicamos anteriormente, isso significa abandonar um tipo de conhecimento engajado na reprodução temporal da ordem cósmica para entendê-lo como agente de transformação do mundo. Não se trata aqui de uma mera inversão de prioridades, como nos embates entre empiricismo e realismo, em que, partindo de posições opostas, os filósofos afirmam a mesma economia metafísica. Trata-se, mais especificamente, de pensar acerca das novas oportunidades e dificuldades políticas que se abrem a um agir estruturado sobre uma redefinição das relações entre ciência e tecnologia. Por este motivo, quando Marx observa que o ser humano faz sua própria história7 7 "Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por e!es, mas sim nas condições herdadas do passado" (Marx, 1976:17) , mas a partir de condições dadas, muito está dito, e modernamente enunciado, acerca das perspectivas políticas que se abrem a partir da evidência histórica de um realinhamento cultural entre conhecimento e técnica. Ora, esse passado de que nos fala Marx - passado que nos é dado e que constitui nossa única chance de, mediante uma prática crítica, nos erguermos - só resulta problemático se o pensarmos como horizonte técnico que circunscreve a possibilidade de qualquer práxis política, mesmo sendo esta de cunho crítico, revolucionário, transgressivo. Se um tal horizonte técnico não nos destina a respostas inevitáveis, ela se materializa sempre como um leque de questões políticas que legitimam o que é assumido como relevante ou irrelevante.

O maior defeito de todo materialismo existente até agora (incluindo o de Feucrbach) é que coisa [Gegenstand], realidade, sensibilidade, é concebida apenas sob a forma de objeto ou de contemplação, mas não como uma atividade humana sensível, prática, não subjetivamente. Assim, em contradistinção com o materialismo, o lado ativo foi desenvolvido abstratamente pelo idealismo - que, evidentemente, não conhece a atividade real, sensual como tal. Feuerbach deseja objetos sensuais realmente diferenciados dos objetos do pensamento, mas ele não concebe a atividade humana ela própria como atividade objetiva. Assim, em Das Wesen cies Christenthums, ele considera a atitude teórica como a única atitude genuinamente humana, enquanto que a prática é concebida e fixada apenas em sua suja manifestação judaica. Assim ele não percebe o significado de uma atividade 'revolucionária', 'prático-crítica'." (Marx e Engels, 1976:3)

Que agir novo é esse que não pode mais se conceber como um livre mobilizar de meios para obtenção de fins? A resposta a essa pergunta é o problema mais fundamental da praxis política marxista; daí decorre, no meu entender, a sua importância teórica. As dificuldades de pensar uma política a partir dessa transformação crucial continuam sendo as nossas dificuldades, e nesse sentido todos somos herdeiros do marxismo, não importa o quanto tenhamos nos afastado da sombra de suas bandeiras. Que tipo de agência nos resta quando percebemos que o mundo das transformações técnicas não está exatamente à nossa disposição como mero meio, como mero instrumento! Para entender a formulação específica do problema tal como o marxismo nos propõe, ajudaria se pudéssemos contrastá-lo com a obra de Claude-Henri de Saint-Simon, que já percebera o cerne das transformações em curso e, reconhecidamente, exerce influência decisiva na obra de Marx. Esse contraste é tanto mais importante quanto percebamos o grau de ruptura com a tradição antropocêntrica em um e outro pensadores.

Para Saint-Simon, tratava-se da construção de uma nova ordem social que tenderia mais e mais a ser determinada por uma ética do trabalho, da produção de riquezas, e paulatinamente se afastaria de um modelo de sociedade que tem na nobre arte da vadiagem um paradigma de honradez e distinção. Esta nova ordem, então, há de se construir sobre uma moral positiva que ofereça a coesão que o cristianismo ofereceu durante séculos, porém a partir de valores novos. Em 1817 Saint-Simon irá defender uma tese que um século depois Max Weber associará à própria consolidação de um ethos moderno:

"Mas um trabalho tão grande quanto o de mudar o sistema da moral por completo não é obra de um só dia. É fácil reconhecer que não está reservado à nossa geração viver sob a influência do novo sistema; pois esse sistema não se encontra ainda organizado, ele não está mesmo concebido e menos ainda adotado. O trabalho capaz de produzi-lo pode se considerar iniciado pela reforma de Lutero. Para os povos que adotaram a reforma, o ensinamento da moral se faz sob princípios mais positivos. Para os outros, as instituições permaneceram submissas a todo o antigo império da teologia; [...] Para passar ao novo sistema, falta realizar trabalhos filosóficos necessários para rever todas as idéias, para assentá-las sobre princípios da indústria, para relacionar toda moral à produção, do mesmo modo que nós a relacionaremos à política." (Saint-Simon, 1965:86)

É claro que nos defrontamos aqui com uma contradição. Por um lado, a sensibilidade histórica de perceber o âmbito do produzir - e do modo de produzir, donde, da técnica - como tendendo a se libertar da estrutura metafísica que o subordina a um pensar e a um conhecer originários. Por outro lado, a limitação também histórica, o compromisso iluminista de conceber uma razão autônoma como guia deste processo. A própria idéia de sistema indica essa dimensão do pensamento de Saint-Simon, que anseia por um controle da idéia sobre o mundo das formas tecnológicas, que positivamente pretende conduzir a humanidade de uma ordem tradicional a uma ordem superior e moderna. Em certa medida, trata-se do mesmo Iluminismo que Saint-Simon pensa ter superado e que aparece em sua obra sob a forma de um 'projeto' para a humanidade que evitaria as "calamidades políticas" inerentes a todo processo de transformação radical da sociedade.8 8 E aqui, por uma questão de rigor e justiça, faz-se necessário também distinguir entre a idéia de razão científica na tradição iluminista e na tradição positivista. Embora antropocêntrica, a razão iluminista acredita que o saber é um valor em si próprio, ou seja, que o valor da reflexão posta em movimento por esse conhecimento lhe é em grande medida imanente. "Ousa saber", diz-nos a máxima kantiana. Já a razão positiva demanda um tipo de conhecimento que não pretende ser mais que um instrumento, não possuindo em si nenhum valor que não seja determinado por aquilo que consegue mobilizar de forma instrumental. Tudo se torna previsível e controlável mediante o uso da razão: o passado desemboca num presente, desde sempre anunciado, que carrega dentro de si um futuro a ser construído. A ciência positiva poderia, deste modo, prever e evitar as catástrofes resultantes das transformações políticas radicais e guiar os passos a serem trilhados pela técnica. O recurso à imagem da sociedade como sistema mecânico, neste ponto, não deve ser entendido como ocasional. Pelo contrário, esta é uma imagem a qual a metafísica recorreu desde Descartes, desde que o pensamento cartesiano entendeu o 'mecanismo' social como ente a se subordinar ao cogito, à razão auto-centrada.

A fisiología9 9 No jargão saint-simoniano este termo corresponde basicamente ao que contemporaneamente chamaríamos de "sociologia". é então a ciência, não apenas da vida individual, mas também da vida geral, onde as vidas dos indivíduos constituem apenas engrenagens. Em toda máquina a perfeição dos resultados depende da manutenção da harmonia primitiva estabelecida entre todas as molas que a compõem; cada uma delas deve necessariamente fornecer seu contingente de ação e de reação; a desordem advém prontamente quando causas perturbadoras aumentam viciosamente a atividade de umas às custas de outras. Saint-Simon (1965:58)

Em que pese seu desejo de se libertar da tradição, o modo como Saint-Simon concebeu a relação entre ciência e técnica ainda resultava em algo semelhante ao rei-filósofo em Platão; ele ainda não consegue entender a técnica moderna como elemento cultural que influencia a própria produção do saber. Essa é a ambigüidade teórica do seu trabalho. A sociologia pode então se tornar positiva neste sentido tão caro ao positivismo clássico, ou seja, poderá se investir no papel de guia de uma nova fase da civilização ocidental.

Marx, por outro lado, parece estar muito mais disposto a assumir as conseqüências teóricas que apontavam o próprio desenvolvimento do capitalismo industrial do que Saint-Simon, que poderia ainda ser associado a um momento da modernidade em que o artesanato ainda não havia sido destronado pela grande indústria. Em contraste, a própria passagem de um sistema capitalista produtor de manufaturas para um sistema industrial fornece a Marx a substância histórica e o cenário adequado a um tipo de reflexão que golpeia bem mais duramente o pensamento antropocêntrico. Entram em cena as máquinas, esses entes que simplesmente não se ajustam ao formato de nossa mão, ao ritmo biológico de nosso trabalho, mas que, pelo contrário, demandam uma nova mão, um novo corpo e um novo ritmo que se ajustem à sua dinâmica. São elas que tecerão o espaço dentro do qual será possível realizar uma crítica do pensamento metafísico tradicional. Pois um tear mecânico, e a partir dele todo uma série de avanços técnicos que resultarão em usinas nucleares, computadores etc, constitui uma dinâmica que já não é comensurável com o humano. Pensemos na força de um cavalo e não nos seria difícil pensar em quantos seres humanos adultos seriam necessários para anular sua força de tração. Pensemos em seguida numa explosão atômica. O que é próprio do aparato técnico que a modernidade desenvolve é que ele já não pode ser pensado como mera extensão do corpo humano.

E assim já "não é possível realizar uma libertação real a não ser no mundo real e apenas por meios reais; [...] a libertação é um fato histórico não um fato intelectual". (Marx e Engels, 1975: 31) Considero, por esse motivo, o XIII capítulo do primeiro volume de O capital central tanto no corpo da obra como fundamental para discutirmos a questão proposta neste ensaio. Se é possível a Habermas (1987) interpretar vários textos do jovem Marx como um desenvolvimento da lógica fichteana, em que a idéia de mundo do trabalho constituiria a instância de mediação, e mais especificamente de síntese, entre mundo subjetivo e mundo objetivo, ou entre espírito e natureza (ou seja, o mundo do trabalho e a técnica ocupariam o lugar que o conceito de ação ocupam na filosofia especulativa de Fichte), o que temos aqui já não nos permite pensar a técnica como mero instrumento, como mero meio10 10 Obviamente uma leitura menos hegeliana pode se fazer da obra de Fichte, como o fizeram os pré-romanticos, notadamente Novalis e Schlegel. ."Na manufatura, cada operação parcial tem de ser executável manualmente pelos operários, trabalhando isolados ou em grupos, com suas ferramentas. Se o trabalhador é incorporado a determinado processo, foi este antes ajustado ao trabalhador. Na produção mecanizada desaparece esse princípio subjetivo da divisão do trabalho". (Marx, 1980: 453) Ou ainda: "Na manufatura, o ponto de partida para revolucionar o modo de produção é a força de trabalho, na indústria moderna, o instrumento de trabalho" 424). É neste sentido que o luditismo do século XIX mostra-se como um tipo de práxis política curiosa, pois, por um lado, reconhece acertadamente a importância da máquina dentro de uma dinâmica produtiva com a qual a produção artesanal não pode competir; por outro lado, de modo equivocado, pensa na máquina como mero instrumento que se poderia destruir, ou suprimir historicamente. A dinâmica da máquina é social e por isso transcende não apenas a figura concreta do operário, mas a do próprio industrial. É assim que ela passa a constituir a base potencial de uma revolução que libertaria os seres humanos da exploração econômica. A máquina que abstrai o processo produtivo da figura subjetiva do trabalhador também é potencialmente independente da figura do empreendedor, do dono dos meios de produção.

ii) Retorno ao modelo antropocêntrico: Jürgen Habermas

Marx é uma referência fundamental para que o pensamento crítico possa pensar uma perspectiva de superação do dilema 'técnica ou liberdade' dentro do âmbito da modernidade. O engajamento teórico tanto de Marcuse quanto de Habermas numa tradição crítica passa pelo reconhecimento do vulto desta influência, assim como pelo esforço de localizar sua limitação histórica. Para ambos, Marx não conheceu plenamente a extensão e significado da associação entre ciência e técnica na modernidade, ou seja, essa associação implicou a formação de uma tecno-ciência, de uma técnica que não pode mais se estruturar sobre os conhecimentos da vida quotidiana. Assim, ele também não pôde prever que o capitalismo teria habilidade de superar a falência de um aparato ideológico calcado na neutralidade do mercado, falácia que o próprio marxismo ajudou a desnudar, oferecendo como alternativa a fé na tecno-ciência. Se pensarmos em termos da dinâmica de classes do capitalismo industrial, Marx não poderia prever a importância que a tecnocracia viria a desempenhar nas sociedades capitalistas avançadas, nem o fato de que sua importância econômica não se traduziria em capacidade política de revolucionar as relações de produção. Ora, esse último fato deve-se em princípio ao próprio conteúdo ideológico por meio do qual a tecnocracia percebe sua posição social validada. Sua posição privilegiada frente ao proletariado depende em grande medida da fé de que a tecno-ciência é o único caminho que levaria a um mundo melhor, ou a um futuro menos tenebroso. .

As críticas de Habermas, todavia, não se detêm ao nível da economia política, mas acrescentam um plano epistemológico que atinge a própria idéia marciana de prática revolucionária. Ora, num certo sentido esta crítica está contida na própria evidência histórica de que Marx não pôde perceber que a associação entre ciência e técnica passaria a representar um obstáculo, tanto à perspectiva de libertação mediante a razão científica quanto às promessas de afluência para todos que esta técnica parece garantir. Neste sentido, trata-se ainda de uma crítica que acumulou o ressentimento de duas guerras mundiais, que se não podem ser creditadas completamente à ciência e técnica modernas, são inconcebíveis sem a forma instrumental como estas afinal se definiram. Tal crítica, no entanto, vai além, tentando entender onde a ciência moderna desviou-se de seus propósitos libertários, em que ponto a sedução da técnica a aprisionou. Assim é que, para Habermas, a redução da possibilidade de crítica e de reflexão à base técnica de uma sociedade abre espaço a um positivismo e mesmo um conformismo teórico bem distantes daquilo que Marx tinha em mente ao criticar a idéia de "auto-reflexão hegeliana". Reduzindo a constituição da consciência histórica ao âmbito do trabalho social, Marx por certo livra-se dos "pressupostos da filosofia da identidade", mas encarcera a reflexão e a crítica no mundo da técnica e do agir instrumental.

"Marx reduz o curso da reflexão ao nível do agir instrumental. Ao devolver o ato-de-por do Eu absoluto a formas mais manuais do ato-de-produzir da espécie, a reflexão se lhe vai escapulindo de todo como uma forma de movimento da história; e isso apesar da armação da filosofia da reflexão manter-se intacta. A reinterpretação da fenomenología de Hegel trai as conseqüências paradoxais de um esvaziamento materialista da filosofia do Eu de Fichte. Se o sujeito que apropria não encontra no Não-Eu exclusivamente um produto do Eu mas sempre atinge também uma porção de natureza contingente, então o ato de apropriação não mais coincide com a recuperação reflexiva de um sujeito que pela reflexão antecipa-se continuamente a si mesmo. [...] Marx entende reflexão seguindo o modelo da produção. Pelo fato de partir tacitamente de tal premissa, a conseqüência se impõe: Marx não distingue entre o status lógico das ciências da natureza e o status da crítica." (Habermas, 1987:60-61)

A crítica habermasiana a Marx, assim, passa em grande medida pela necessidade epistemológica de separar trabalho e conhecimento, ou o mundo da técnica e mundo da reflexão científica. Para Habermas, a sociologia compreensiva parece um campo óbvio para ancorar seu esforço -todos sabemos que na Alemanha a definição de um projeto não positivista para as ciências sociais significou uma demarcação de cunho epistemológico entre os dois campos distintos das ciências do espírito e das ciências da natureza, Geisteswissenschaften e Naturwissenschaften. A partir desta delimitação seria possível pensar a abertura de um espaço reflexivo dentro do qual pudéssemos contrapor ao mundo abstrato, exato, controlado que a razão instrumental gerou (âmbito das ciências naturais), a possibilidade da liberdade humana. Para isso, entretanto, é necessário livrar a sociologia compreensiva, sobretudo como ela aparece em sua forma mais elaborada, ou seja, em Max Weber, de algumas armadilhas que a razão instrumental lhe reservou e que dizem respeito a um entendimento da razão (quer sob sua forma instrumental ou substantiva) como estando determinada pela consecução de fins previamente estabelecidos. O "agir racional-com-respeito-a-fins" encontra-se rigidamente aprisionado em sua própria compreensão estratégica do agir, quer este seja motivado por interesses ético-substantivos ou técnico-instrumentais. Se a verdadeira reflexão pressupõe, senão a suspensão de todos os pressupostos ao menos o intuito expô-los como tais, é natural que ela esteja manietada já de partida naqueles casos em que os fins não podem ser questionados. A este agir, Habermas contrapõe um agir comunicativo, vocação mais legítima das ciências sociais e que se caracteriza pela busca de consenso entre os cidadãos. "O seu sentido objetiva-se na comunicação lingüística quotidiana. Enquanto a validade das regras e estratégias técnicas depende da validade de enunciados empíricamente verdadeiros ou analíticamente corretos, a validade das normas sociais só se funda na intersubjectividade do acordo acerca de intenções e só é assegurada pelo reconhecimento geral das obrigações". (1997:57-58) A tese habermasiana, então, é de que o mundo da técnica é inevitavelmente instrumental, e deve continuar a sê-lo. Caberia ao agir comunicativo garantir que, através de uma reflexão baseada no diálogo entre sujeitos, o mundo da técnica fosse retornado à sua condição de estrutura de mediação da vontade humana, mais especificamente, do interesse coletivo.

Deste modo, a conclusão final que "Técnica e ciência como ideologia" nos oferece não deve ser tomada apenas em seu "valor nominal", ou seja, como expressão da importância que o movimento estudantil assumiu no final da década de 60. Trata-se antes de retornar o marxismo a um esquema metafísico com o qual ele pretendera romper - rompimento este que constitui a meu ver a sua própria força teórica - e que se torna agora condição essencial da liberdade humana. Senão vejamos. Para Habermas, apenas um segmento social pareceria capaz de confrontar o mundo da razão instrumental, dos objetivos pré-concebidos, do controle, da abstração matemática. Trata-se do estudante ativista, ator social que nos é oferecido de um modo bastante peculiar: "trata-se essencialmente de frações do meio estudantil beneficiadas por um situação privilegiada, recrutadas nas camadas sociais economicamente favorecidas, e não frações socialmente ascendentes." (1973:71) Trata-se também de estudantes vindos das "ciências sociais", da "história" ou das "disciplinas filológicas" que, tanto por sua posição economicamente privilegiada como por sua proximidade das Geisteswissenschaften, estariam mais aptos a deixar de lado o agir orientado para obtenção de fins, ou seja, o agir instrumental, estratégico, para abraçar o agir comunicacional. "Eis o motivo porque, a longo prazo, o protesto dos estudantes universitários e secundaristas poderia destruir definitivamente esta ideologia da performance individual, passando a abalar e minar os fundamentos de legitimação do capitalismo avançado, cobertos apenas pela despolitização." (1973:74) Não se trata aqui de tripudiar sobre um deslize, ou mais propriamente um erro de avaliação histórica, deste que é um herdeiro legítimo de uma tradição tão rica quanto a teoria crítica, mas de perceber a coerência desse lapso no contexto de uma opção metafísica clara: preservar uma separação entre a práxis científica e o fazer técnico, confiando a tarefa da reflexão e da libertação a parcelas da sociedade não comprometidas com a reprodução técnica.

"Os modelos coisificados das ciências transmigram para um mundo sociocultural da vida e obtêm ali um poder objectivo sobre a auto-compreensão. O núcleo ideológico desta consciência é a eliminação da diferença entre práxis e técnica [...]." (1997:82)

Habermas tenta salvaguardar a economia metafísica de modo a preservar a possibilidade de liberdade pela reflexão. O problema que, mais uma vez, se coloca é em que medida se pode desenhar este espaço de democracia e liberdade entre os seres humanos sem negar-lhes a técnica como elemento essencial de sua condição de seres suplementares no mundo. Como pode a linguagem, que viabiliza qualquer ação comunicativa, ser pensada fora de um regime de competências, que inevitavelmente resulta em posições de poder diferenciadas? Mais especificamente, como pode a troca simbólica que a linguagem estabelece ser pensada fora do domínio da técnica? Ora, um retorno à idéia hegeliana de espírito objetivo materializada em estruturas específicas e distintas tais como "interação", "trabalho" e "ética" não oferece uma resposta, mas é claramente uma parte do próprio problema. Se a crítica marxista a Hegel por certo mostra sérios limites, ela ao menos nos livra do erro de pensar a idéia de interação em abstrato - isto é, fora do mundo das técnicas onde ela se estrutura - como uma solução para este problema. Não raciocinemos aqui a partir de um regime de competências técnicas que nos abstraia do mundo em que concretamente vivemos, pensemos antes na possibilidade de estabelecer uma razão comunicativa, democrática e esclarecedora a partir da evidência da comunicação mediada por computador, da telefonia, dos satélites etc. Qualquer possibilidade de diálogo teleologicamente aberto, não estratégico, não teria de partir dos horizontes técnicos abertos por estes instrumentos? No fundo, a possibilidade de um agir comunicativo que retorne a técnica ao seu posto de meio para consecução de fins (mesmo que indeterminados) implica a existência de uma comunidade que possa estabelecer uma forma comunicação não mediatizada, independente de próteses, não técnica. Apenas uma tal comunidade estaria habilitada a reivindicar um retorno pleno à lógica antropocêntrica. Essa alternativa, entretanto, obscurece aquilo que humaniza o ser humano, nomeadamente, um ser-para-o-mundo que se estrutura a partir da técnica.

Se a alternativa de retornar ao esquema metafísico clássico parece inócua, que outra resposta poderíamos oferecer que nos orientasse dentro do mundo técnico rumo a um mundo mais livre?

PARA ALÉM DE UMA TÉCNICA ANTROPOCÊNTRICA

Inicialmente, admitimos, como Habermas, que o problema temporal que a técnica traz consigo, qual seja, a relação do presente para com o seu futuro, constitui o cerne desta questão. Para ele, trata-se de assegurar que o futuro não seja predeterminado por um agir estratégico, teleológico, que tem na consecução de fins o seu estímulo primordial. Se a relação que o ser humano pode estabelecer com a técnica implica necessariamente um agir condicionado pelo pensar estratégico, a razão instrumental pareceria nosso destino inevitável. Neste caso, o futuro seria para sempre prisioneiro dessa razão e desse pensar. O detalhe, no entanto, é que a técnica não pode ser pensada de forma monolítica, como o faz Habermas, e de resto toda a tradição antropocêntrica para quem, idealmente ao menos, ela seria apenas um veículo dos interesses humanos. Partindo desse pressuposto, ou bem o desenvolvimento da técnica nos ofereceria o paraíso na terra, caso pudéssemos confirmar o sonho da metafísica, ou a terrível jaula de ferro em que nossa liberdade ficaria para sempre aprisionada. Por esse motivo, não parecem existir esperanças nesse nível para Habermas, nem mesmo para Marcuse, cuja idéia de uma nova ciência e uma nova técnica no fundo almeja colocar a questão da técnica a partir de uma perspectiva que lhe seja externa. A técnica, entretanto, é em si ambígua, como a entende Bernard Stiegler (1996). Por um lado, apenas através dela o tempo é colocado como questão ontológica fundamental, uma vez que sua própria possibilidade é o reconhecimento de nossa mortalidade e indeterminação. Ao mesmo tempo, a técnica é elemento de ocultação dessa verdade, pois sua possibilidade se estrutura como perspectiva de afastar do horizonte de nossa existência a nossa mortalidade. Se aceitamos que o nosso engajamento no mundo técnico é estruturalmente duplo, levando-nos tanto a possibilidade de verdade do ser quanto ao seu ocultamente, qualquer tentativa de fazer face ao processo que determinou a razão instrumental como valor inquestionável da civilização ocidental teria que reconsiderar toda a economia metafísica sobre a qual se estruturou o pensamento antropocêntrico, e, neste ato, reconsiderar o dilema "técnica ou liberdade". Se entendemos aqui o próprio pensar metafísico como uma técnica neste sentido mais amplo, entenderemos que uma tal reconsideração não poderia de modo algum se dar às margens da metafísica, mas a partir do seu interior, assim como nenhuma crítica à técnica ocidental poderia ser feita fora dos seus limites.

Efetivar uma tal crítica não pode, evidentemente, ser tentada dentro dos limites deste ensaio. Seu intento foi antes o de mostrar como o pensamento antropocêntrico mostra-se desequipado para pensar de forma radical o problema da técnica na modernidade, bem como sinalizar a necessidade de repensar a estrutura de antinomias que o sustentam.

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  • TAMINIAUX, Jacques 1993. Poetics, Speculation and Judgment. The Shadow of the Work of Art from Kant to Phenomenology. State University of New York Press
  • THOMPSON, E. P. 1991. Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism', in Custom in Common. Penguin
  • VOLTAIRE, François Marie Arouet de 1973. Cartas Inglesas, in Voltaire-Diderot. Coleçăo "Os Pensadores". Săo Paulo. Abril Cultural
  • *
    Agradeço à amiga Cynthia Hamlin por ter comentado uma primeira versão deste ensaio.
  • 1
    A este respeito Marcuse (1964:162) comenta: "Esta base pré-científica da ciência localizada no mundo das práticas
    (Lebenswelt), que determinou a estrutura teórica, não foi questionada por Galileu; mais que isso, ela foi encoberta por desenvolvimentos posteriores da ciência. O resultado foi a iluscão de que a matematização da natureza criava uma verdade autônoma e absoluta, enquanto que, na realidade, ela permanecia para a
    Lebenswelt um método específico e uma técnica".
  • 2
    Neste ponto é necessário ser mais preciso. A economia aqui estabelecida, a rigor, não é
    produtora de um modo antropocêntrico de perceber a relação entre o ser humano e a técnica. Diríamos com mais propriedade que ela já pressupõe esta forma de percepção, ou seja, que a metafísica já é antropocentrismo.
  • 3
    Tanto o verbo alemão
    hevorbringen quanto o português
    produzir guardam em sua etimologia estreita ligação com a idéia grega de
    poiesis, com este sentido de 'levar-adiante' ressaltado por Heidegger.
  • 4
    Deste modo, pode se chegar a seguinte conclusão: "Quem quer que construa uma casa ou um barco ou forje um cálice sacrificial revela aquilo que deve ser levado adiante, de acordo com os termos dos quatro modos produzir. Esse ato de revelação reúne de antemão o aspecto e a matéria do barco ou casa", ou seja, sua
    causa formal e
    causa material, "com vistas à coisa acabada percebida como completa" - com vistas à sua
    causa final - "e dessa reunião determina a maneira da sua construção" - sua
    causa eficiente (1996, 319).
  • 5
    Ver os trabalhos de Donna Haraway e Sadie Plant, por exemplo.
  • 6
    "Luís XI, durante seu reinado (1461-83), chama vidraceiros e estampadores alemães, engenheiros militares italianos e espanhóis; Conônia, Marselha, o duque de Bretanha - entre 1470 e 1480 - apelam aos trabalhadores de seda italianos; engenheiros genoveses e napolitanos trabalham para Francisco I; o arquiteto Fioravante ensina em Moscou o método da "coíata" para a construção de canhões; os czares dirigem-se aos impressores dinamarqueses e aos metalúrgicos alemães (1550 e 1556); o herege italiano Giacomo Aconcio - para lembrar um nome entre muitíssimos outros - obtém em 1563 o contrato para os trabalhos de drenagem do terreno inundado pelo Tâmisa, e passa a fazer parte de uma comissão de especialistas enviada por Elizabeth para preparar as fortificações nas fronteiras com a Escócia." (Rossi, 1989:45)
  • 7
    "Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por e!es, mas sim nas condições herdadas do passado" (Marx, 1976:17)
  • 8
    E aqui, por uma questão de rigor e justiça, faz-se necessário também distinguir entre a idéia de razão científica na tradição iluminista e na tradição positivista. Embora antropocêntrica, a razão iluminista acredita que o saber é um valor em si próprio, ou seja, que o valor da reflexão posta em movimento por esse conhecimento lhe é em grande medida imanente. "Ousa saber", diz-nos a máxima kantiana. Já a razão positiva demanda um tipo de conhecimento que não pretende ser mais que um instrumento, não possuindo em si nenhum valor que não seja determinado por aquilo que consegue mobilizar de forma instrumental.
  • 9
    No jargão saint-simoniano este termo corresponde basicamente ao que contemporaneamente chamaríamos de "sociologia".
  • 10
    Obviamente uma leitura menos hegeliana pode se fazer da obra de Fichte, como o fizeram os pré-romanticos, notadamente Novalis e Schlegel.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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