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Hart, Dworkin e discricionariedade

Hart, Dworkin and discretion

Resumos

A questão central discutida neste artigo é a existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de uma determinada forma em caso de 'lacuna da lei', termo empregado por H. L. A. Hart, ou em 'casos difíceis', termo adotado por Ronald Dworkin. Este artigo conclui que embora Hart e Dworkin admitam uma forma fraca de discricionariedade judicial, eles adotam visões opostas quanto à existência daquele dever. Ao defender uma noção de completude legal, ao discordar da regra social de reconhecimento e ao incluir princípios não convencionais no conceito de direito, Dworkin fundamenta a existência daquele dever judicial, oferecendo critérios objetivos de decisão mesmo para casos difíceis.

Discricionariedade; lacunas e casos difíceis; regras de reconhecimento e princípios


The central issue discussed in this article is whether a judge has a legal duty to decide in an specific manner in cases of legal lacunae, to use H. L. A. Hart's expression, or in hard cases, to use Ronald Dworkin's expression. It argues that, though both Hart and Dworkin admit a weak form of judicial discretion, they hold opposite views on the existence of that duty. By adopting a notion of legal completeness, which may disagree with a social rule of recognition, and by including non-conventional principles in the concept of Law, Dworkin offers the justification for that judicial duty. He also offers objective criteria of judicial decision even in hard cases.

Discretion; lacunae and hard cases; rules of recognition and principles


Hart, Dworkin e discricionariedade1 1 O presente artigo foi redigido com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, da qual a autora é bolsista.

Hart, Dworkin and discretion

Daniela R. Ikawa

Doutoranda da Faculdade de Direito da USP e coordenadora de programa na Rede Universitária de Direitos Humanos

RESUMO

A questão central discutida neste artigo é a existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de uma determinada forma em caso de 'lacuna da lei', termo empregado por H. L. A. Hart, ou em 'casos difíceis', termo adotado por Ronald Dworkin. Este artigo conclui que embora Hart e Dworkin admitam uma forma fraca de discricionariedade judicial, eles adotam visões opostas quanto à existência daquele dever. Ao defender uma noção de completude legal, ao discordar da regra social de reconhecimento e ao incluir princípios não convencionais no conceito de direito, Dworkin fundamenta a existência daquele dever judicial, oferecendo critérios objetivos de decisão mesmo para casos difíceis.

Palavras-chave: Discricionariedade; lacunas e casos difíceis; regras de reconhecimento e princípios.

ABSTRACT

The central issue discussed in this article is whether a judge has a legal duty to decide in an specific manner in cases of legal lacunae, to use H. L. A. Hart's expression, or in hard cases, to use Ronald Dworkin's expression. It argues that, though both Hart and Dworkin admit a weak form of judicial discretion, they hold opposite views on the existence of that duty. By adopting a notion of legal completeness, which may disagree with a social rule of recognition, and by including non-conventional principles in the concept of Law, Dworkin offers the justification for that judicial duty. He also offers objective criteria of judicial decision even in hard cases.

Keywords: Discretion; lacunae and hard cases; rules of recognition and principles.

A questão da discricionariedade do juiz é um ponto central tanto na teoria positivista de H. L. A. Hart, quanto na teoria construtivista de direitos de Ronald Dworkin, por se basear nas idéias de completude, de princípios e regras e de testes últimos para a identificação da lei. Tratar-se-á aqui, inicialmente, das acepções da discricionariedade, propostas por Dworkin, como ramificações no diálogo feito entre esse filósofo e Hart, no tocante às suas concepções de completude ou incompletude da lei, ao grau de distinção entre princípios e regras, à existência de uma regra social ou de uma regra normativa de reconhecimento. A cada passo, voltaremos à seguinte questão: teria o juiz o dever legal de decidir de uma determinada forma, em caso de lacuna da lei, para usar o termo empregado por Hart, ou em casos difíceis, para utilizar o termo adotado por Dworkin?

Este trabalho terá como principais pontos de referência quatro artigos: o Postscript de The Concept of Law, de H. L. A. Hart, o Model of Rules I, o Model of Rules II e Hard Cases, de Ronald Dworkin.2 2 O Postscript é pertinente a esta discussão por ser uma resposta de Hart a críticas de Dworkin. Os Modelos de Regras I e II são relevantes por perfazerem uma resposta de Dworkin a críticas positivistas, tomando como modelo positivista a teoria de Hart. Já o artigo Hard Cases é importante por traçar uma alternativa ao modelo positivista de Hart, possibilitando um melhor entendimento acerca das divergências entre os dois filósofos. Model of Rules I, Model of Rules II e Hard Cases encontram-se no livro Taking Rights Seriously (1997). Não tratarei no presente trabalho das respostas dadas por Hart no Postscript a críticas de Dworkin que não constem em um desses três artigos.

DISCRICIONARIEDADE

O estudo da divergência entre Hart e Dworkin quanto à existência ou não de discricionariedade do juiz em casos difíceis pode ser mais bem explicitada apontando-se as três acepções para o termo "discricionariedade", indicadas por Dworkin. A primeira é a aplicação, por funcionários, de critérios estabelecidos por uma autoridade superior3 3 Dworkin 1997: 32. , ou mais especificamente, na escolha, pelo juiz, entre critérios "que um homem razoável poderia interpretar de diferentes maneiras".4 4 Id.: 69 e 329. A segunda acepção é a ausência de revisão da decisão tomada por uma autoridade superior5 5 Id.: 32. . Essas duas primeiras acepções perfazem, para Dworkin, uma discricionariedade em sentido fraco, sendo amparadas também por Hart. Apenas a terceira acepção indica, de acordo com Dworkin, o ponto de discordância.6 6 Dworkin, portanto, não defenderia a tese de que o juiz não teria qualquer discricionariedade, mas apenas a tese de que o juiz não teria discricionariedade em sentido forte. Ela corresponde à discricionariedade em sentido forte, implicando a ausência de vinculação legal a padrões previamente determinados7 7 Dworkin: 32. ou, em outras palavras, à idéia de que os padrões existentes não impõem qualquer dever legal sobre o juiz para que decida de uma determinada forma.8 8 Id.: 69. Essa terceira acepção estaria por fim ligada às questões da completude ou incompletude do direito, da natureza legal ou meramente moral dos princípios, da competência ou incompetência do juiz de elaborar leis.

Embora essa classificação seja esclarecedora para o entendimento das questões de completude e incompletude, de princípios e regras, ela não é um ponto pacífico. Vale destacar duas divergências a respeito. A primeira parte de Hart. Dworkin entende que Hart descreveria a discricionariedade em sentido fraco como a possibilidade do juiz de estabelecer uma regra legal nos casos de lacuna9 9 Id.: 34. , confundindo o sentido fraco com o sentido forte. Confundidos os dois sentidos, restaria pouco clara a diferena entre a tese de Dworkin e a de Hart. A segunda divergência parte de Robert Yanal. Yanal classifica a discricionariedade em Hart não como uma discricionariedade em sentido forte, mas em sentido moderado, pela qual o juiz decidiria dentro de parâmetros e regras relevantes ao caso. Indica esse filósofo que "Hart, I am quite sure, never intended that judges have a 'strong' sense of discretion. Of course, neither did he intend them to have only discretion in the 'weak' sense either. In fact, I wonder if there is any weak sense of 'discretion'. If I say to you, 'File these memos. How? Use your discretion', am I only saying, 'I nominate you to do it'? I believe that Hart would grant a 'moderate' sense of discretion to judges: that judges cannot decide a hard case just any way (hence they do not have strong discretion), but within the parameters of the rules and principles relevant to the case there is a legally unconstrained choice."10 10 Yanal 1985: 394-95.

Parte-se aqui, todavia, da tese de que nem a crítica de Yanal a Dworkin, nem a identificação, feita por Hart, da discricionariedade com a liberdade do juiz de dar a lei em casos de lacuna, afastam a diferença entre a discricionariedade no primeiro e no terceiro sentidos, uma vez que essa diferença pauta-se na existência ou não de um dever legal do juiz em decidir de determinada maneira, e não na existência de padrões puramente morais e não vinculantes, pelos quais os juízes poderiam se guiar.

Caberia afirmar, apenas, que Yanal aproxima Hart de Hobbes, e não de Dworkin, no sentido de que também este reconheceria a existência de padrões aos quais o juiz poderia recorrer nas hipóteses de lacuna legal. Esses padrões, "teoremas da razão" no caso de Hobbes, não seriam, todavia, lei, isto é, não criariam deveres legais ao julgador. Enuncia Hobbes, em Leviathan: "These dictates of Reason, men use to call by the name of Lawes; but improperly: for they are but Conclusions, or Theoremes concerning what conduceth to the conservation and defence of themselves; whereas Law, properly is the work of him, that by right hath command over others."11 11 Hobbes: 216-217. (Destaque-se que a noção de lei em Hart não parte da idéia de comando, como em Hobbes e Austin, mas da idéia de uma regra secundária de reconhecimento baseada em fatos sociais. Destaque-se ainda que Hart não entende, como Hobbes, haver teoremas objetivos da razão. A aproximação ocorre apenas no que toca à existência de padrões não legais a serem utilizados em caso de lacunas.)

Prevalece, portanto, apesar das divergências, a idéia de que a primeira acepção de discricionariedade destacada por Dworkin distingue-se da terceira, por apresentarem visões diversas acerca da existência ou não de um dever legal do juiz em decidir de determinada forma mesmo em casos difíceis ou lacunosos ou, em outras palavras, por apresentarem visões diversas acerca da completude ou incompletude da lei. A divergência destacada por Dworkin, por conseguinte, persiste.

COMPLETUDE OU INCOMPLETUDE

A questão da discricionariedade ou da existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de determinada forma remete à questão da completude ou incompletude da lei. Essa segunda questão abarca, por sua vez, três outras, concernentes à regra social de reconhecimento, à teoria bifásica ou monofásica de lei e à natureza dos princípios, que serão detalhadas nos próximos itens.

De modo geral, a questão da incompletude ou completude da lei indica os pontos de partida de Dworkin e Hart. Esse último busca traçar uma teoria puramente descritiva de lei, capaz de identificar critérios que digam quais regras e, segundo Hart, quais princípios12 12 Hart 1997: 263-65. , são lei. Sua preocupação em identificar a lei tem como fundamento a busca pela segurança jurídica,13 13 Mesmo Joseph Raz concorda com a afirmação de Dworkin de que positivistas legais estão preocupados em "provide a settled public and dependable set of standards for private and official conduct, standards whose force cannot be called into question by some individual official’s conception of policy of morality" (Dworkin apud Raz 1985: 320). pela eficiência da pressão social e pela possibilidade de alterações deliberadas da lei.14 14 Hart: 92-99. Para essa busca, pondera, a justificação é irrelevante.15 15 Id.: 250. Já Dworkin procura traçar uma teoria normativa de lei apta não apenas a identificar a lei, mas também a justificá-la moralmente do melhor modo possível.16 16 Ver, por exemplo, Hart: 240-41 e 269. Para esse filósofo, contudo, tanto a justificação quanto a identificação da lei só podem ser feitas com o auxílio, dentre outros, da moral.17 17 Ver, por exemplo, Kelly 1996: 270-71. A principal preocupação de Dworkin é afastar a possibilidade da edição, por parte do juiz, de leis novas, ex post facto, desconsiderando, desse modo, direitos individuais pré-existentes.18 18 Ver, por exemplo, Hart: 257; e Dworkin: 129. Vale frisar que dentro da teoria de Hart, contudo, não haveria essa preocupação de desconsideração de direitos, simplesmente porque tais direitos não existiriam onde houvesse lacuna legal, ou, nos termos de Dworkin, em casos difíceis.19 19 Ver, por exemplo, Hart: 276.

Nessa linha, se Dworkin critica o conceito de lei de seu interlocutor, apontando-o como insuficiente para identificar a complexidade do sistema legal20 20 Ver, por exemplo, Dworkin: 46. , Hart posiciona sua doutrina em um ponto intermediário entre conceitos formalistas e céticos21 21 Hart: 135. , ou, mais propriamente para esta discussão, entre conceitos de que a lei existente abrange todos os casos e conceitos de que não há regras em absoluto22 22 Dworkin: 293 , acusando Dworkin de se enquadrar no primeiro caso. (A diferença entre o positivismo formal ou legalista e a teoria do direito de Dworkin será apontada ao tratarmos especificamente da regra de reconhecimento.)

Destaca-se, nesse sentido, a maior tendência da teoria de Dworkin a abarcar princípios morais legalmente vinculantes que impossibilitarão a existência de lacunas e, portanto, a existência de discricionariedade judicial em sentido forte.

REGRA DE RECONHECIMENTO

Tendo-se indicado os pontos de partida de Hart e Dwokin, cabe tratar agora da regra social de reconhecimento de Hart e da análise holística de identificação e justificação da lei proposta por Dworkin23 23 A divergência entre Hart e Dworkin neste ponto remonta à distinção entre moral e direito formulada por Hart, e não acatada por Dworkin (Dworkin.: 46). Embora não defenda uma separação estanque entre lei e moral, Hart distingue esses dois sistemas por quatro critérios: importância, imunidade quanto a mudanças deliberadas, caráter necessariamente voluntário das ofensas morais e formas de pressão (Hart: 173-180). É sobre essa distinção entre moral e direito que pousa a regra social de reconhecimento de Hart. Dworkin não defende, contudo, como indica Hart (id.: 268-269), que só exista dever legal quando houver justificativa moral para tal dever. Ele defende a existência de outros deveres legais além dos que se apóiam em práticas sociais. É nesse sentido que se direciona Dworkin ao afirmar que direitos institucionais serviriam de limite para os background rights (Dworkin: 101). , partindo-se da contraposição entre sistemas bifásicos e monofásicos. Um sistema pode ser dito bifásico ou monofásico de acordo com a existência ou não de um momento de discricionariedade em sentido forte do juiz. Nessa linha, o sistema de Hart, identificado pela regra social de reconhecimento, seria bifásico, enquanto o sistema proposto por Dworkin, identificado por uma análise holística das instituições e da moral de uma comunidade, seria um sistema monofásico. Essa distinção deve ser destacada aqui, por elucidar o teor da discricionariedade em sentido fraco, admitida por Dworkin em sua análise holística, em contraposição ao teor da discricionariedade em sentido forte, admitida por Hart após o exaurimento da regra social.

Tanto Hart quanto Dworkin concordam que a regra social de reconhecimento, proposta por aquele filósofo, exaure-se. Todavia, o exaurimento da regra social representa para Hart o exaurimento da lei e o início da discricionariedade em sentido forte do juiz, marcando a passagem de uma para outra fase em um sistema bifásico; enquanto, para Dworkin esse exaurimento representa uma falha na teoria da regra social.24 24 Ver, sobre o exaurimento da regra social, Yanal: 390-92. Discutir-se-á aqui, partindo-se da análise dos critérios de identificação da lei utilizados pelos dois autores, primeiramente o sistema bifásico e, em seguida, o monofásico, tentando responder à provocação posta por Hart acerca da admissão, por Dworkin, da discricionariedade judicial quando da escolha entre princípios conflitantes em casos difíceis.25 25 Hart: 275.

O sistema bifásico envolve a análise da regra social de reconhecimento de Hart. Essa regra apresenta, segundo Dworkin, critérios insuficientes para a identificação do que seria a lei, ocasionando a falsa visão de que essa apresentaria lacunas e, por conseguinte, a falsa visão de que o juiz teria, ao menos por vezes, discricionariedade em sentido forte.

Dworkin distingue duas versões, ambas bifásicas, da teoria da regra social de Hart, uma versão forte e uma versão fraca.26 26 Dworkin: 52-53. Pela primeira versão, aparentemente adotada por Hart, um dever legal existiria apenas na pré-existência de uma regra social. Como os fatos sociais que originam a regra social podem se exaurir, haveria um espaço não regulamentado legalmente no qual o juiz teria discricionariedade em sentido forte, isto é, no qual o juiz não se submeteria a qualquer dever legal de decidir de determinada forma. Em outras palavras, haveria uma primeira fase da existência da lei, na qual seria admissível apenas a discricionariedade em sentido fraco, e uma segunda fase da inexistência da lei, na qual seria admissível ou mesmo imprescindível o uso da discricionariedade em sentido forte. Dworkin critica essa versão por entender que há casos onde pode ser identificado um dever legal, mesmo na ausência de uma regra social.27 27 Ver o exemplo do vegetariano, acerca de um dever de não matar animais. Dworkin: 52 e 55. Esse argumento exigiria, portanto, a adoção de uma versão fraca da regra social.

Pela versão fraca da teoria da regra social, um dever legal pressupõe apenas por vezes a existência de uma regra social. Segundo Dworkin, essa versão é ainda enfraquecida pelo fato de Hart abarcar apenas um tipo de moral, a moral convencional, determinada pelo consenso, deixando de lado a moral concorrente, independente do consenso. Como a regra social de reconhecimento aponta como fontes da lei apenas a validade e a aceitação,28 28 Dworkin: 20, 21 e 43. a única forma de moral que originaria um dever legal seria a convencional, isto é, aquela moral aceita pela massa (bulk) de uma população.29 29 Ver, sobre a moral convencional, Dworkin: 54. Não trata, por conseguinte, da moral não convencional. Essa restrição na abrangência da regra social, reconhecida por Hart no Postscript30 30 Hart: 256. , importa na identificação, segundo Dworkin, apenas de parte dos deveres legais em geral e, portanto, de parte dos deveres legais do juiz. A verificação da incompletude na identificação da lei mesmo na primeira fase, anterior ao exaurimento da regra social, retira dessa regra, ainda segundo Dworkin, seu caráter de teste de reconhecimento da lei.

Nesse sentido, a regra social de reconhecimento de Hart implica um alto grau de incertezas31 31 Dworkin: 61-62. e injustiças, apontando lacunas onde, em verdade, poderiam existir deveres legais que imporiam ao juiz uma determinada decisão. Esse alto grau de incertezas, que possibilita o exercício indevido de uma discricionariedade em sentido forte, é incoerente, para Dworkin, com a preocupação positivista com a segurança jurídica.

Cabe lembrar aqui dois argumentos: um utilizado por Hart, outro utilizado por Joseph Raz, mas que poderia ter sido apontado pelo próprio Hart. O primeiro importa na acusação de que Dworkin exagera o grau de certezas buscado pelos positivistas.32 32 Hart: 251. De acordo com Hart, "the funcion of the rule is to determine only the general conditions which correct legal decisions must satisfy in modern systems of law".33 33 Id.: 258. A regra social não pretende, nessa linha, fornecer respostas certas, completamente determinadas. O segundo argumento envolve a visão de que deveres, inclusive deveres legais, não podem ser controversos.34 34 Dworkin: 70. Não podem, portanto, pautar-se em regras conflitantes, em regras acerca das quais não haja um consenso mínimo, isto é, em regras baseadas em padrões não convencionais. A segunda fase, posterior ao exaurimento da regra social, não comporta, portanto, qualquer dever legal não identificado na primeira fase.

Coloca-se, nesse sentido, a seguinte questão. O que geraria maiores incertezas, ocasionando um maior grau de incompatibilidade com a teoria positivista de Hart: (i) a não identificação de certos deveres, que para Dworkin seriam vinculantes, como deveres legais ou (ii) a identificação de deveres legais com bases complexas e, eventualmente, conflitantes na esfera não convencional? Para Hart, a primeira resposta indica provavelmente um menor grau de incompatibilidade, por pressupor, segundo coloca o próprio Dworkin35 35 Id.: 80. , que uma comunidade não está comprometida com qualquer dever moral, a ponto de necessariamente reconhecer tais deveres como vinculantes. Para Dworkin, as duas respostas importam provavelmente em graus inadmissíveis de incompatibilidade com o positivismo de Hart, seja por gerarem incertezas ao não reconhecerem deveres morais não convencionais como vinculantes, seja por não serem capazes de abarcar deveres legais com bases complexas, compostas não apenas por práticas sociais, mas também por princípios morais não convencionais.

No que toca ao sistema monofásico ou à análise holística de identificação e justificação da lei proposta por Dworkin, cabe abordar dois aspectos, tendentes ao esclarecimento da questão da discricionariedade: (i) em que consiste essa teoria; e (ii) se comporta uma regra de reconhecimento. A teoria construtivista não abarca duas fases, uma institucional ou convencional, onde existem leis vinculantes, e outra, discricionária, onde a lei, ainda inexistente, é criada pelo juiz. Não abarca, portanto, uma fase onde seria admitido o uso da discricionariedade em sentido forte. Trata, diversamente, da busca de uma justificação coerente para todos os precedentes, dispositivos legais e costumeiros, princípios convencionais e filosóficos presentes em uma determinada comunidade36 36 Id.: 116-17. , formando um sistema sem o uso de uma regra de reconhecimento de pedigree. (A idéia de pedigree será abordada abaixo.)

Alguns elementos possuem central importância na teoria construtivista ou monofásica: as instituições, o caráter, os princípios, a responsabilidade política, os direitos e os deveres. Nessa linha, o sistema abrange não apenas direitos, deveres e princípios históricos, emanados tanto de leis escritas quanto de precedentes, mas também aqueles que decorrem da aplicação de princípios convencionais ou não convencionais de justiça. É por não se restringir ao aspecto histórico ou institucional que abarca mesmo os casos difíceis.

O funcionamento do sistema apresentado por Dworkin pode ser explicitado em parte pela idéia de caráter, em parte pelo papel dos princípios na justificação das decisões judiciais. O caráter de um sistema se expressa por conceitos que ofereçam o apanhado (account) mais profundo ou mais exitoso sobre o que a lei realmente é, internalizando a justificação geral da instituição.37 37 Id.: 104-105. Esse caráter pode ser buscado pelo juiz quando da análise de cada caso difícil (hard case), nas pontes entre a justificação da idéia de que as leis criam direitos e os casos difíceis, assim como entre o princípio de que casos iguais devem ser decididos igualmente e os casos difíceis.38 38 Id.: 105.

O funcionamento do sistema pode ser ainda explicitado pelo papel dos princípios na justificação das decisões judiciais. Dworkin ressalta esse papel tanto ao distinguir princípios de políticas (policies), quanto ao tratar da responsabilidade política dos funcionários públicos. No que concerne à primeira distinção, os princípios têm como base o respeito ou a garantia de algum direito individual ou de grupo, enquanto políticas têm por base a implementação ou a proteção de algum bem coletivo.39 39 Id.: 82. Os princípios estão, portanto, ligados a um caráter distributivo voltado ao indivíduo40 40 Ver, por exemplo, Dworkin: 90. , ou, em outras palavras, à consideração do indivíduo como um fim em si mesmo. As políticas estão, por sua vez, conectadas a um caráter distributivo voltado à comunidade como um todo. Nessa linha, as decisões judiciais estão preocupadas principalmente com direitos individuais ou de grupo e não com a delineação do bem comum, papel a ser deixado ao sistema político-democrático. Estão preocupadas, por fim, com princípios de justiça que levem em consideração o indivíduo, tornando necessária a análise do futuro e não unicamente do passado, na figura dos precedentes.41 41 Na discussão sobre precedentes, Dworkin ressalta muitas vezes a necessidade de se conectar o passado e o futuro, a moral convencionada e a não convencionada, a coerência histórica e a justiça. Indica, por exemplo, que precedentes retiram sua força vinculante de um princípio de justiça, tangente ao tratamento de casos semelhantes de maneira semelhante (Dworkin: 111-13). Indica, ainda, que mesmo a análise dos precedentes deve-se voltar para o futuro. Nesse sentido, um novo precedente poderia prevalecer, por exemplo, se também justificado por um grande número de decisões ou se justificado por decisões de instâncias superiores (id.: 118). No que diz respeito à responsabilidade política, Dworkin coloca que "an argument of principle can supply a justification for a particular decision, under the doctrine of responsibility, only if the principle cited can be shown to be consistent with earlier decisions not recanted, and with decisions that the institution is prepared to make in the hypothetical circunstances."42 42 Id.: 88. Dworkin requer, portanto, que os princípios assegurem não apenas uma coerência histórica, mas também a justiça de decisões futuras, ressaltando a ligação entre aspectos históricos e aspectos morais não convencionais.

Dworkin não propõe, por conseguinte, a completude da lei, ou a impossibilidade de discricionariedade em sentido forte, nos moldes que um formalista propô-la-ia, vendo na regra positivada a totalidade dos casos a serem resolvidos pelo direito. Apresenta frente ao formalista um único ponto em comum: acredita que a lei cobre todos os casos, sem lacunas. Diverge do formalista por identificar a lei como muito mais do que a regra positivada. Identifica-a, aliás, como mais do que todas as regras sociais ou convencionais. Essa distinção é relevante para o estudo da discricio­nariedade, porque irá ressaltar as razões pelas quais Dworkin não aceita a discricionariedade em sentido forte, razões bem diversas daquelas do formalista.

Tomada essa visão geral da análise holística a ser efetivada pelo juiz na teoria construtivista, monofásica, de Dworkin, resta questionar se existiria aqui alguma forma de regra de reconhecimento que poderia ser contraposta à regra social proposta por Hart. No Modelo de Regras II, Dworkin admite se filiar a alguma forma complexa de regra normativa.43 43 Id.: 61. Afasta, contudo, a tentativa de configuração de tal regra, feita por Sartorius. O teste, proposto por esse último e aprimorado pelo próprio Dworkin, consiste no seguinte: "a principle is a principle of law if it figures in the soundest theory of law that can be provided as a justification for the explicit substantive and institutional rules of the jurisdiction in question".44 44 Id.: 66. O argumento utilizado por Dworkin para afastar tal teste é semelhante ao utilizado para afastar a regra social de reconhecimento delineada por Hart: o teste apresentado seria um teste de pedigree, incapaz de proporcionar um critério para discernir o conjunto mais apropriado de princípios a ser aplicado ao caso concreto.45 45 Id.: 68. Conclui-se, portanto, que Dworkin não desconsidera a possibilidade de traduzir sua teoria holística em uma regra de reconhecimento. Essa regra, contudo, tem natureza diversa da regra social, especialmente por considerar questões de conteúdo e não apenas questões formais.

Seria, todavia, a regra social apresentada por Hart realmente um teste de pedigree, voltado unicamente a questões formais? A resposta a essa pergunta pode indicar o grau de comprometimento da teoria de Hart com o uso da discricionariedade em sentido forte, na medida em que implicaria um menor ou um maior alcance da regra social na identificação de hipóteses legais. Quanto maior esse alcance, menor o espaço de discricionariedade em sentido forte no sistema bifásico de Hart. No limite, esse espaço seria completamente afastado.

Cabe iniciar essa discussão pela posição de Hart. Segundo esse filósofo, a regra social de reconhecimento abarca não apenas fatos históricos, mas também princípios de justiça e valores morais substantivos, não consistindo em um mero teste de pedigree.46 46 Hart: 247-48, 250. Haveria, entretanto, princípios e valores passíveis de identificação pela regra social? A regra social de reconhecimento, de acordo com Hart, consiste em "a form of social practice comprising both patterns of conduct regularly followed by most members of the group and a distinctive normative attitude to such patterns of conduct which I have called 'acceptance'."47 47 Id.: 255. Os princípios e valores a serem possivelmente identificados são, por conseguinte, aqueles derivados da prática social e da aceitação.

De fato, Dworkin reconheceu que uma espécie de moral pode ser identificada pela regra social de reconhecimento de Hart: a moral convencional.48 48 Dworkin: 52-57. Essa restrição na identificação de padrões morais foi, ademais disso, reconhecido pelo próprio Hart, como já mencionado anteriormente.49 49 Hart: 256. Não se pode afirmar, portanto, como faz Hart, que Dworkin, ao tratar de "consensos, paradigmas e assunções" estaria se referindo indiretamente apenas às práticas indicadas pela regra social de reconhecimento.50 50 Id.: 266. Uma das diferenças centrais entre Hart e Dworkin está exatamente no fato desse último incluir em sua teoria construtivista a moral não convencional. É essa inclusão que possibilitará a esse último, ao menos em tese, o afastamento da discricionariedade em sentido forte.

Há, de qualquer modo, dois argumentos a serem contrapostos à afirmação de que a regra social é capaz de identificar padrões morais convencionais: (i) o primeiro, não explicitado por Dworkin, mas condizente com sua explanação de moral convencional, refere-se ao caráter formal ou substantivo daquela identificação; (ii) o segundo, explicitado por Dworkin, diz respeito à natureza dos princípios e regras.

Quanto ao primeiro argumento, Dworkin poderia dizer que a inclusão de padrões morais convencionais não retira o caráter de teste de pedigree da regra social, já que essa continua a abarcar tão somente os valores morais refletidos em práticas sociais que perfazem um consenso, quaisquer que sejam tais práticas. Ainda, a regra social não é capaz de identificar padrões morais concorrentes ou não convencionais, isto é, padrões que seriam de fato escolhidos pela sua substância, e não pelo seu pedigree. A esse primeiro argumento, pode-se, todavia, contrapor o argumento de Hart, tocante à pressuposição, por Dworkin, da existência de padrões morais objetivos que possibilitam o efetivo afastamento da discricionariedade do juiz. Inexistente essa objetividade, dever-se-ia tolerar a discricionariedade, ainda que em sentido forte.51 51 Id.: 253.

De fato, Dworkin parece apontar, em sua teoria construtivista, que uma análise holística do sistema legal resulta em certos padrões objetivos, capazes de guiar juízes mesmo em casos difíceis. Nessa linha, ao afirmar que "the law may not be a seamless web, but the plaintiff is entitled to ask Hercules [o juiz, capaz de realizar a análise holística proposta por Dworkin] to treat it as if it were",52 52 Dworkin: 116. Dworkin está efetivamente defendendo a existência de um conjunto de padrões legais a ser descoberto, como indica Robert J. Yanal.53 53 Yanal: 395. A sua teoria construtivista está apenas reconstruindo, para o universo de percepção do juiz e das partes, uma rede legal pré-existente, ainda que essa rede seja infinita.

A idéia da lei como uma rede infinita pré-estabelecida pode, contudo, indicar outra interpretação, que melhor responderia ao ataque de Hart, concernente à possível inexistência de valores objetivos. Por essa nova interpretação, a idéia da rede infinita é apenas um estímulo à análise holística, uma análise que permite, mesmo quando imperfeita, que o juiz diminua os erros possíveis no que tange aos direitos das partes. Por esta segunda interpretação, o juiz tem o dever jurídico de buscar sempre, tomado o estudo das instituições existentes, a melhor justificação moral para sua decisão. A proposição quanto à existência de valores morais objetivos representa, nesse sentido, uma alternativa mais segura à proteção dos direitos que a alternativa positivista, que não proporciona qualquer norte em casos difíceis, advogando pela discricionariedade em sentido forte nesses casos. O exemplo de Herbert e Hércules, dado por Dworkin, é aqui elucidativo.54 54 Dworkin: 129-30. Herbert, adepto da teoria tradicional e bifásica da interpretação legal, realizaria, na segunda fase de sua análise, isto é, após o exaurimento da regra social, escolhas discricionárias em sentido forte, recorrendo a quaisquer valores que lhe aprouvessem, fossem eles pessoais ou simplesmente majoritários. A discricionariedade aplicar-se-ia em tal grau, porque, nesta segunda fase, haveria uma completa ausência de princípios vinculantes. Esses princípios, lembre-se, podem, no máximo, ser abarcados pela regra social na primeira fase da análise judicial. Hércules, contudo, adepto da teoria construtivista, submeter-se-ia ao dever legal de buscar, por uma análise holística do sistema jurídico, os princípios que melhor justificariam esse sistema. Esses princípios indicariam, melhor que a discricionariedade em sentido forte, uma decisão mais condizente com o direito das partes.

Dessa forma, parece prevalecer a afirmação de Dworkin de que uma regra social, nos moldes ditados por Hart, apenas pode fornecer um teste de pedigree, um teste que dá às partes menores garantias de seus direitos do que uma análise holística do sistema.55 55 Dworkin não parece, portanto, estar afastando a possibilidade de qualquer regra de reconhecimento estipular um teste substantivo da lei, contrariamente ao que entende Hart (Hart: 264). Dworkin afasta, apenas, a possibilidade de uma regra social de reconhecimento, nos moldes ditados por seu interlocutor, em fornecer um teste outro que não o de pedigree.

Cabe, portanto, tratar do segundo argumento disposto por Dworkin acerca da identificação, pela regra social, de padrões morais convencionais. Esse argumento envolve o estudo da natureza dos princípios e regras.

PRINCÍPIOS E REGRAS

A discussão travada entre os dois autores acerca da natureza dos princípios e regras trespassa a questão da possibilidade ou não de uma regra social de reconhecimento identificar princípios, ainda que convencionais, como lei. Como ocorreu na discussão engendrada no tocante ao primeiro argumento posto por Dworkin acerca dos padrões morais convencionais, a resposta a essa segunda questão implicará a delimitação do espaço ocupado pela primeira e pela segunda fase da análise positivista da lei, e, por conseguinte, a delimitação do espaço de discricionariedade em sentido forte admitido por Hart.

Dworkin coloca, de maneira genérica, em Model of Rules I, que a regra social de reconhecimento não funciona para princípios e que, como princípios existem, a teoria positivista, mesmo na versão aprimorada de Hart, deve ser abandonada.56 56 Dworkin: 36, 39-45. Delineia, então, as razões pelas quais a regra social não funciona para princípios, partindo sempre do ponto de que princípios não têm caráter de tudo-ou-nada (all-or-nothing), diferentemente das regras. Nessa linha, a idéia de validade ou invalidade que acompanha a regra social de reconhecimento não é, segundo Dworkin, aplicável a princípios, pois enquanto aquela perfaz uma idéia categórica, de tudo-ou-nada, os princípios portam peso. Seria, portanto, possível que um princípio não fosse aplicado em um caso, em detrimento de outro princípio, sem que deixasse de figurar como um princípio legal.57 57 Id.: 41. Essa faculdade de ponderaão dos princípios é elucidada, por exemplo, nos casos Riggs v. Palmer (155 N.Y. 506, 1889), no tocante aos princípios de que testamentos devem ser cumpridos e da vedação de tirar vantagem da própria fraude, e Henningsen v. Bloomfield Motors, Inc (32 NJ 358, 1960), quanto aos princípios de que contratos devem ser cumpridos e do justo tratamento de consumidores.58 58 Id.: 22-24. Princípios, nesse sentido, não são capazes de determinar um resultado particular, pois podem ser subordinados a outros princípios, de maior peso. Isso, contudo, não elimina os princípios subjugados da esfera legal.59 59 Id.: 35.

Afastada, de acordo com Dworkin, a possibilidade de identificar os princípios como lei, a partir de critérios de validade postos pela regra social, caberia questionar se haveria a possibilidade de identificá-los pelo critério da aceitação. Lembre-se que Hart reconhece duas fontes para tornar um padrão social vinculante: a aceitação e a validade.60 60 Id.: 20-21. O critério da aceitação seria, todavia, um critério menor, segundo Dworkin, estando presente em qualquer sociedade, mesmo nas primitivas. O critério que de fato distingue sociedades juridicamente primitivas de sociedades juridicamente complexas é o critério da validade. Tomar o critério da aceitação como um critério de peso dentro da regra de reconhecimento é reconhecer que qualquer sociedade possui tal regra, mesmo as primitivas, algo que Hart não admite.61 61 Id.: 40-43.

Hart poderia responder a esse segundo argumento, insistindo na idéia de que duas espécies relevantes de regras seriam identificadas pela aceitação: a regra de reconhecimento e as regras costumeiras. A inclusão de princípios, ao menos de princípios convencionais, na esfera legal pela aceitação não enfraqueceria, portanto, a teoria legal de Hart.

O primeiro argumento, contudo, parece mais complexo. Hart dirige-se a ele, ao indicar uma natureza diversa da apontada por Dworkin a regras e princípios. Para Hart, princípios e regras não podem ser distinguidos pelo critério do peso, pois ambos são entidades relativas, capazes de ser ponderadas entre si. Princípios e regras distinguem-se, segundo esse filósofo, pelo caráter mais amplo daqueles e pela referência mais expressa por parte dos princípios a fins políticos.62 62 Hart: 259-63.

O critério de peso, contudo, é reafirmado por Dworkin, em resposta dada a Joseph Raz, uma resposta que valeria também para Hart. Segundo Dworkin, não há ponderação possível entre o peso de duas regras ou entre o peso de uma regra e o peso de um princípio. Seja no confronto entre regras, seja no confronto entre princípios categóricos, como o sugerido por Raz com a enunciação do princípio de "nunca mentir", só poderá haver ponderação se essas regras e esses princípios forem construídos de modo diverso, isto é, abstraídos de seu caráter de tudo-ou-nada. No que toca à ponderação entre regras e princípios, Dworkin ressalta que o que se pondera de fato são apenas princípios, mas que esses poderão indicar a aplicação de uma ou de outra regra.63 63 Dworkin: 73-78. A possibilidade de ponderação de regras frente a princípios é, portanto, apenas ilusória.

Dworkin afasta de modo convincente o argumento de que os princípios não categóricos – isto é, os princípios relevantes para a questão da discricionariedade – e as regras se distinguem, especialmente, por critérios outros que não o de peso. Ainda que haja outros caracteres acessórios, como o grau de amplitude e o grau de vinculação a fins políticos, o ponto principal de diferenciação parece ser de fato o critério de peso.

Esse critério, contudo, poderia argumentar Hart se o tivesse admitido, não afastaria a possibilidade de identificação por uma regra social de reconhecimento. Essa regra poderia apontar, tendo em vista a prática social, quais seriam os princípios aplicáveis repetidamente em cada circunstância, elevando-os, por uma análise, portanto, convencional, à categoria de lei.64 64 Isso possibilitaria a inclusão na esfera legal, contudo, apenas de princípios convencionais. Não seria necessário, nesse caso, sequer recorrer à aceitação.

A identificação de princípios como válidos ou inválidos pela regra social traz à tona, todavia, uma outra discussão, referente ao grau de incertezas compatível com o sistema positivista. Essa questão, contudo, já foi discutida anteriormente, tendo-se destacado o argumento de Hart, segundo o qual o grau de incertezas tolerável pelo positivismo seria mais alto que o pressuposto por Dworkin.65 65 Hart: 251-52, 258.

CONCLUSÃO

A questão da discricionariedade em Hart e Dworkin aponta, portanto, à existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de determinada forma mesmo em casos difíceis. Essa questão envolve um série de outras, tangentes à completude ou à incompletude da lei, à natureza legal ou meramente moral dos princípios, à tolerância ou não da discricionariedade em sentido forte, isto é, à possibilidade ou não do juiz elaborar leis, ao grau de distinção entre princípios e regras, à existência de uma regra social ou de uma regra normativa de reconhecimento.

Consideradas essas questões, tem-se que o sistema interpretativo bifásico de Hart permite, mesmo com a inclusão de princípios convencionais pela regra social de reconhecimento, a utilização da discricionariedade judicial em sentido forte na decisão de casos difíceis. Não reconhece, portanto, para esses casos, qualquer dever legal do juiz em buscar uma análise holística da lei que forneça critérios mais objetivos, e que, conseqüentemente, diminua a possibilidade de erros judiciais. Embora concorde que vigorarão, no caso, princípios meramente morais, esses princípios, por não possuírem caráter vinculante na teoria positivsta, poderão ou não ser considerados pelo juiz.

Nesse sentido, o sistema interpretativo monofásico de Dworkin se sobrepõe ao de Hart. Ao permitir a escolha, pelo juiz, entre critérios "que um homem razoável poderia interpretar de diferentes maneiras",66 66 Dworkin: 69 e 329. propondo, ao mesmo tempo, a existência de um dever legal do juiz de analisar de modo mais abrangente as fontes da lei, inclusive no que toca a princípios não convencionais; torna a lei capaz de alcançar mesmo casos difíceis, fornecendo a esses casos critérios mais objetivos do que o mero recurso à discricionariedade em sentido forte. Torna, ainda, a lei capaz de alcançar casos difíceis, sem retirar do juiz a discricionariedade em sentido fraco.

  • DWORKIN, Ronald. (1997). Taking Rights Seriously Cambridge: Harvard University Press.
  • HART, H. L. A. (1997). The Concept of Law Oxford: Clarendon Press, 2a. ed.
  • HOBBES, Thomas (1985). Leviathan London: Penguin Classics.
  • KELLY, Paul (1996). "Ronald Dworkin: Taking Rights Seriously". In: FORSYTH, Murray and KEENS-SOPER, Maurice (ed.). Green to Dworkin Oxford: Oxford University Press.
  • RAZ, Joseph (1985). "Authority, Law and Morality". The Monist, vol. 68, no. 3. Illinois: The Hegeler Institute, pp. 295-324
  • SILVER, Charles (1985). "Negative Positivism and the Hard Facts of Life". The Monist, vol. 68, no. 3. Illinois: The Hegeler Institute, pp. 347-363.
  • YANAL, Robert J. (1985). "Hart, Dworkin, Judges, and New Law". The Monist, vol. 68, no. 3. Illinois: The Hegeler Institute, pp. 388-402.
  • 1
    O presente artigo foi redigido com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, da qual a autora é bolsista.
  • 2
    O
    Postscript é pertinente a esta discussão por ser uma resposta de Hart a críticas de Dworkin. Os Modelos de Regras I e II são relevantes por perfazerem uma resposta de Dworkin a críticas positivistas, tomando como modelo positivista a teoria de Hart. Já o artigo
    Hard Cases é importante por traçar uma alternativa ao modelo positivista de Hart, possibilitando um melhor entendimento acerca das divergências entre os dois filósofos.
    Model of Rules I,
    Model of Rules II e
    Hard Cases encontram-se no livro
    Taking Rights Seriously (1997). Não tratarei no presente trabalho das respostas dadas por Hart no
    Postscript a críticas de Dworkin que não constem em um desses três artigos.
  • 3
    Dworkin 1997: 32.
  • 4
    Id.: 69 e 329.
  • 5
    Id.: 32.
  • 6
    Dworkin, portanto, não defenderia a tese de que o juiz não teria qualquer discricionariedade, mas apenas a tese de que o juiz não teria discricionariedade em sentido forte.
  • 7
    Dworkin: 32.
  • 8
    Id.: 69.
  • 9
    Id.: 34.
  • 10
    Yanal 1985: 394-95.
  • 11
    Hobbes: 216-217.
  • 12
    Hart 1997: 263-65.
  • 13
    Mesmo Joseph Raz concorda com a afirmação de Dworkin de que positivistas legais estão preocupados em "provide a settled public and dependable set of standards for private and official conduct, standards whose force cannot be called into question by some individual official’s conception of policy of morality" (Dworkin apud Raz 1985: 320).
  • 14
    Hart: 92-99.
  • 15
    Id.: 250.
  • 16
    Ver, por exemplo, Hart: 240-41 e 269.
  • 17
    Ver, por exemplo, Kelly 1996: 270-71.
  • 18
    Ver, por exemplo, Hart: 257; e Dworkin: 129.
  • 19
    Ver, por exemplo, Hart: 276.
  • 20
    Ver, por exemplo, Dworkin: 46.
  • 21
    Hart: 135.
  • 22
    Dworkin: 293
  • 23
    A divergência entre Hart e Dworkin neste ponto remonta à distinção entre moral e direito formulada por Hart, e não acatada por Dworkin (Dworkin.: 46). Embora não defenda uma separação estanque entre lei e moral, Hart distingue esses dois sistemas por quatro critérios: importância, imunidade quanto a mudanças deliberadas, caráter necessariamente voluntário das ofensas morais e formas de pressão (Hart: 173-180). É sobre essa distinção entre moral e direito que pousa a regra social de reconhecimento de Hart. Dworkin não defende, contudo, como indica Hart (id.: 268-269), que só exista dever legal quando houver justificativa moral para tal dever. Ele defende a existência de outros deveres legais além dos que se apóiam em práticas sociais. É nesse sentido que se direciona Dworkin ao afirmar que direitos institucionais serviriam de limite para os
    background rights (Dworkin: 101).
  • 24
    Ver, sobre o exaurimento da regra social, Yanal: 390-92.
  • 25
    Hart: 275.
  • 26
    Dworkin: 52-53.
  • 27
    Ver o exemplo do vegetariano, acerca de um dever de não matar animais. Dworkin: 52 e 55.
  • 28
    Dworkin: 20, 21 e 43.
  • 29
    Ver, sobre a moral convencional, Dworkin: 54.
  • 30
    Hart: 256.
  • 31
    Dworkin: 61-62.
  • 32
    Hart: 251.
  • 33
    Id.: 258.
  • 34
    Dworkin: 70.
  • 35
    Id.: 80.
  • 36
    Id.: 116-17.
  • 37
    Id.: 104-105.
  • 38
    Id.: 105.
  • 39
    Id.: 82.
  • 40
    Ver, por exemplo, Dworkin: 90.
  • 41
    Na discussão sobre precedentes, Dworkin ressalta muitas vezes a necessidade de se conectar o passado e o futuro, a moral convencionada e a não convencionada, a coerência histórica e a justiça. Indica, por exemplo, que precedentes retiram sua força vinculante de um princípio de justiça, tangente ao tratamento de casos semelhantes de maneira semelhante (Dworkin: 111-13). Indica, ainda, que mesmo a análise dos precedentes deve-se voltar para o futuro. Nesse sentido, um novo precedente poderia prevalecer, por exemplo, se também justificado por um grande número de decisões ou se justificado por decisões de instâncias superiores (id.: 118).
  • 42
    Id.: 88.
  • 43
    Id.: 61.
  • 44
    Id.: 66.
  • 45
    Id.: 68.
  • 46
    Hart: 247-48, 250.
  • 47
    Id.: 255.
  • 48
    Dworkin: 52-57.
  • 49
    Hart: 256.
  • 50
    Id.: 266.
  • 51
    Id.: 253.
  • 52
    Dworkin: 116.
  • 53
    Yanal: 395.
  • 54
    Dworkin: 129-30.
  • 55
    Dworkin não parece, portanto, estar afastando a possibilidade de qualquer regra de reconhecimento estipular um teste substantivo da lei, contrariamente ao que entende Hart (Hart: 264). Dworkin afasta, apenas, a possibilidade de uma regra social de reconhecimento, nos moldes ditados por seu interlocutor, em fornecer um teste outro que não o de
    pedigree.
  • 56
    Dworkin: 36, 39-45.
  • 57
    Id.: 41.
  • 58
    Id.: 22-24.
  • 59
    Id.: 35.
  • 60
    Id.: 20-21.
  • 61
    Id.: 40-43.
  • 62
    Hart: 259-63.
  • 63
    Dworkin: 73-78.
  • 64
    Isso possibilitaria a inclusão na esfera legal, contudo, apenas de princípios convencionais.
  • 65
    Hart: 251-52, 258.
  • 66
    Dworkin: 69 e 329.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2004
    • Data do Fascículo
      2004
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