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Tranculturação e novas utopias

Transculturation and new utopia

Resumos

A partir de uma análise de diversos pensadores sociais progressistas situados no mundo periférico, o artigo relaciona o fenômeno da transculturação - concebido como o "outro lado" da galáxia processual chamada de globalização - com a produção, real e possível, de novas utopias. Utopias produzidas a partir do confronto, contraste e interpenetração entre formas de racionalidade "ocidental" e formas sócio-culturais do mundo periférico, os quais geram novos modos de racionalidade baseados na transculturação. Conclui-se que os novos pensamentos progressistas vindos do Sul, do "Terceiro Mundo", onde mais longe foram os processos de transculturação, são os que têm, potencialmente, mais poder criativo diante do caráter complexo e abrangente da modernização na Era do Globalismo.

Globalização; Transculturação; Centro e Periferia; Utopia


Out of the endeavour of some progressive social thinkers situated in the peripheral world, this article relates the transcultural phenomenon - conceived as the "other side" of the processual galaxy called globalization - and the production, actual and possible, of new utopias. Utopias resulted from the confrontation, contrast and interpenetration between forms of "Western" rationality and socio-cultural forms of the peripheral world, which create new modes of rationality based on transculturation. The article concludes that the new progressive elaborations of the South, the "Third World", where the transculturation process is more advanced, have potentially creative powers to better deal with the complex and large aspects of the modernization in the Age of Globalism.

Globalization; Transculturation; Center and Periphery; Utopia


Tranculturação e novas utopias

Transculturation and new utopia

Luis Antonio Groppo

Professor do Programa de Mestrado em Educação Sócio Comunitária do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal)

RESUMO

A partir de uma análise de diversos pensadores sociais progressistas situados no mundo periférico, o artigo relaciona o fenômeno da transculturação – concebido como o "outro lado" da galáxia processual chamada de globalização – com a produção, real e possível, de novas utopias. Utopias produzidas a partir do confronto, contraste e interpenetração entre formas de racionalidade "ocidental" e formas sócio-culturais do mundo periférico, os quais geram novos modos de racionalidade baseados na transculturação. Conclui-se que os novos pensamentos progressistas vindos do Sul, do "Terceiro Mundo", onde mais longe foram os processos de transculturação, são os que têm, potencialmente, mais poder criativo diante do caráter complexo e abrangente da modernização na Era do Globalismo.

Palavras-chave: Globalização; Transculturação; Centro e Periferia; Utopia.

ABSTRACT

Out of the endeavour of some progressive social thinkers situated in the peripheral world, this article relates the transcultural phenomenon – conceived as the "other side" of the processual galaxy called globalization – and the production, actual and possible, of new utopias. Utopias resulted from the confrontation, contrast and interpenetration between forms of "Western" rationality and socio-cultural forms of the peripheral world, which create new modes of rationality based on transculturation. The article concludes that the new progressive elaborations of the South, the "Third World", where the transculturation process is more advanced, have potentially creative powers to better deal with the complex and large aspects of the modernization in the Age of Globalism.

Keywords: Globalization; Transculturation; Center and Periphery; Utopia.

Em Homenagem a Celso Furtado (1920 - 2004)

Em vários pontos do que é hoje chamado de "Sul" do planeta, outrora mais conhecido como "Terceiro Mundo", existem diversos pensadores sociais refletindo sobre os problemas da globalização sob um ângulo diferente daquele dos países centrais do capitalismo ocidental. No Brasil, há diversos exemplos de cientistas consagrados que têm repensado sua própria trajetória intelectual diante de novas questões impostas pela globalização, cientistas vindos da Geografia, como Milton Santos, da Economia, como Celso Furtado, ou da Sociologia, como Octavio Ianni. Mas, "Terceiro Mundo" afora, são muitos os exemplos de pensadores que recriam não apenas sua própria obra, mas a própria reflexão sobre a globalização, como Samir Amin, Walden Bello ou o grupo reunido em torno do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (que afirma ser Portugal parte do mundo "semi-periférico", tanto quanto o Brasil). São exemplos que indicam que, talvez, no pensamento social e nas novas doutrinas políticas geradas no mundo periférico, esteja depositado o futuro da teoria social e das ideologias progressistas, capazes de dar conta realmente dos significados sociológicos e políticos do atual processo de globalização. Parece que idéias revolucionárias, inclusive para repensar a prática política e as ideologias na era do globalismo, virão ou já estão vindo do "Sul", do "Terceiro Mundo". Apesar de viverem aí os povos que mais sofrem com os novos problemas socioeconômicos, ao mesmo tempo são estes os lugares mais ricos em "transculturação".

Emir Sader (2001), analisando os movimentos e grupos participantes do primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2001, concluiu que as forças sociais de protesto contra a globalização hegemônica estavam mais acumuladas na periferia do planeta. As novas forças sociais mobilizadas indicam uma transformação correlata no pensamento social e político, em que é possível dizer que a produção dinâmica (em termos qualitativos, não quantitativos) pode estar sendo gerada em diversos pontos do mundo "não-ocidental". E, se considerarmos o grau de transculturação, talvez a América Latina seja um local privilegiado para tanto.

Sempre, o pensamento progressista, no século XIX ou hoje, foi capaz de olhar para adiante, imaginar utopias. Mas não basta, atualmente, como indicam inclusive autores como Serge Latouche (1996), apenas pensar adiante. É preciso também pensar de modo abrangente e desterritorializado, para além do "ocidentalismo". No passado e no presente, percebe-se que diversas versões do pensamento progressista decaíram no ocidentalismo, quando a necessária busca de uma concepção abrangente – quem sabe, universal – de emancipação humana limitou-se à elaboração de uma nova versão do racionalismo abstrato típico da civilização ocidental. Contra isto, o pensamento desterritorializado persegue o reconhecimento das múltiplas racionalidades, reais e possíveis, elaboradas no seio das culturas e sociedades humanas, buscando ou permitindo – quem sabe? – um universalismo pensado de modo não restrito, ao contrário do racionalismo ocidental.

Boaventura de Sousa Santos (2002a), apresentando um projeto de pesquisa amplo concebido e realizado fora dos centros hegemônicos da produção científica, acredita poder fazer da relativa marginalidade e excentricidade destes pesquisadores da periferia, energia inovadora. Sua hipótese diz que é nos países semiperiféricos que com mais força colidem as globalizações hegemônicas e contra-hegemônicas (em que as segundas lutam para impedir a implantação total e definitiva das primeiras), além de serem locais onde se constituíram fortes comunidades científicas. Nestas comunidades reside um paradoxo, de onde provêm sua força criativa potencial. Trata-se da tendência desses cientistas periféricos conhecerem a ciência social central até melhor que os cientistas dos países centrais, dado que os primeiros conhecem os limites da ciência na aplicação de suas teorias em outras realidades diferentes das dos países centrais. Na América Latina, por exemplo, para Fernando Cocchiarale, os cientistas sociais partiram das teorias geradas no mundo europeu para criarem as suas próprias versões, aplicadas à realidade desse continente:

Fundadas em matrizes intelectuais européias que foram transformadas em função de sua adaptação à realidade, as teorias dos intelectuais latino-americanos são para o intelectual europeu e norte-americano simultaneamente familiares, se consideradas suas raízes teóricas, e estranhas, devido à crítica aguda que fazem a algumas delas. De qualquer modo, essas teorias possuem legitimidade epistemológica suficiente para terem se tornado um dado novo no relacionamento entre o mundo europeu/norte-americano e a América Latina (Cocchiarale, 2000, p. 97-8).

Autores diversos também têm indicado que, no Leste Asiático – o local fora do Ocidente onde a modernização capitalista parece ter alcançado mais sucesso, mas sem implicar em "ocidentalização" –, pode estar o novo centro dinâmico do sistema econômico mundial (Arrighi & Silver, 2001, cap. 4). As surpreendentes combinações entre heranças ocidentais e não-ocidentais no Leste da Ásia produziram desafios cada vez mais vultosos à supremacia ocidental: imperialismo japonês, comunismo chinês e, desde o final da década de 1970, "... o desafio econômico de toda a região do Leste da Ásia...", desafios que revelam uma "... trajetória descendente da capacidade de o Ocidente exercer o domínio global com base no poderio militar superior". Os caminhos apontam, portanto, para uma "... recentralização da economia global no Oriente" – como o foi, em sentidos diferentes, antes da era moderna (Arrighi & Silver, 2001, p. 228-9).

Ianni (2000, cap. IV) denomina de modo revelado como "transculturação" o fato de a globalização ser, ao mesmo tempo, um processo de "ocidentalização do mundo" e de "orientalização". Acrescenta que se trata também da influência ou adoção de elementos de culturas africanas, indo-americanas e afro-americanas pelo mundo. Neste sentido, a globalização não é um processo recente, mas uma tendência que acompanha a própria modernidade, ainda que tenha acentuado-se recentemente e caracterizado a época atual como a "era do globalismo". Se a modernidade de modo inicial e mais forte, pelo menos até há pouco, realmente foi um projeto de "ocidentalização" do mundo, ela implicou desde sempre o encontro, mescla, conflito, amálgama, absorção e mundialização também de orientalismos, africanismos e indigenismos.

Esse projeto moderno de "ocidentalização" assumiu no Sul e Leste da Ásia – parte significativa do "Oriente" –, na visão da pesquisa coordenada por Arrighi & Silver (2002, cap. 4), seu momento mais contraditório. Aí as potências hegemônicas ajudaram as autoridades tradicionais asiáticas a combater justamente os movimentos sociais que assumiram caracteres "ocidentalistas". Também, procuraram instalar estruturas de governo e administração "modernos" que nada ou pouco tinham dos ideais ocidentais de direito e liberdade apregoados, que promoviam apenas formas mais eficientes de rapina ou de direcionamento das economias servilizadas na Ásia para interesses econômicos imediatos do Ocidente.

Um pouco diferenciado, entretanto, deve ser este olhar sobre locais como a América Latina, alcançados pela modernidade desde o início. Na verdade, a "América" serviu, sim, para criar a própria idéia de "Europa", ou seja, a idéia e o projeto de ser o Ocidente uma força autônoma significativa, capaz de conquistar o planeta e moldar o mundo à sua imagem e semelhança (Ianni, 2000, cap. 2). O continente latino-americano, mais do que qualquer outro local do mundo, talvez tenha sido quem mais sentiu na pele essa arrogância ativista da Europa (e, mais tarde, do novo baluarte do ocidentalismo, os Estados Unidos). Mais do que nunca também, talvez, na América Latina tenham se dado os mais profundos processos de transculturação da modernidade, onde mais poderosa foi a mescla de "...culturas e civilizações, ou modos de ser, agir, pensar e imaginar" (Ianni, 2000, p. 93).

Ianni propõe que adotemos para a questão da cultura na era do globalismo uma outra perspectiva de análise, não mais baseada na ilusão da identidade nacional, mas sim na "... perspectiva aberta pela idéia do contato, intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação, hibridação, mestiçagem ou mais propriamente, transculturação". Deste modo, a história do mundo moderno transforma-se na "... história de um vasto e intricado processo de transculturação..." (Ianni, 2000, p. 95). Não apenas narrativas literárias, de viajantes ou estudos científicos da civilização ocidental expressaram ou procuraram interpretar a transculturação. Ianni cita também diversos "...estudos e posicionamentos de intelectuais e líderes políticos situados em sociedades africanas, asiáticas e latino-americanas..." (Ianni, 2000, p. 104), como Amin Maalouf, André Lévy, Jawaharlal Nehru, Michio Morishima, Domingo Sarmiento, Frantz Fanon e Nelson Mandela. Trata-se de uma crescente tradição de pensar o mundo moderno como transculturação, sob outras óticas, para além da concepção que apregoa a superioridade inconteste do "ocidentalismo". Parece que hoje se atingiu o ponto mais alto do que tem sido a história moderna no seu aspecto de transculturação, como "...um imenso laboratório em movimento... de heterogêneos, diversos, desiguais e não-contemporâneos..." (Ianni, 2000, p. 109-10). Portanto, é bem possível que nos lugares onde se mesclaram as culturas não-ocidentais e ocidentais surjam significativas utopias e ideais progressistas que criem soluções e alternativas, que criem melhores respostas diante dos desafios desta nova era de modernização social, que é a globalização.

MESTIÇAGENS

Serge Gruzinski, em O pensamento mestiço, discute as mesclas culturais produzidas a partir do contato conflituoso entre a Europa e a América nos séculos XV e XVI, destacando o caso do México. O autor propõe a globalização como uma "mestiçagem", que vem ocorrendo pelo menos desde a virada do século XV ao XVI. Na sua introdução, reflete sobre até que ponto pode-se resumir a atual voga de produções mestiças a uma estratégia sinistra da globalização:

Volta e meia associam-se mestiçagens, uniformização e globalização. Acelerando as trocas e transformando qualquer objeto em mercadoria, a economia-mundo teria acionado circulações incessantes que alimentam um melting-pot agora planetário. As produções mestiças ou exóticas divulgadas pela World Culture constituiriam uma manifestação direta da globalização, um filão sistematicamente explorado pelas indústrias culturais de massa (Gruzinski, 2001, p. 16).

Ou, como afirma Canclini, "uma visão simplificada da hibridação, como a propiciada pela mercantilização da arte, está facilitando vender mais discos, filmes e programas de televisão em outras regiões" (2000, p. 80).

No entanto, contra esta simplificação, Gruzinksi defende que diversas – ou muitas – das mestiçagens não são simplesmente mercadorias criadoras de novas formas de lucro. Essas outras mestiçagens, na verdade, estariam "...francamente na contramão da globalização": "É o caso das mestiçagens localizadas que, por todo lado, transbordam as recuperações orquestradas pela World Culture", como invenções sincréticas dos subúrbios de Los Angeles, dos bairros pobres do México e Bombaim (Gruzinski, 2001, p. 17). Por exemplo, o melhor do rock mexicano ou russo continua desconhecido dos públicos do Primeiro Mundo.

"Desde o Renascimento, a expansão ocidental não parou de provocar mestiçagens nos quatro cantos do mundo e reações de rejeição" como o espetacular caso do Japão, que se fechou ao mundo ocidental no início do século XVII (Gruzinski, 2001, p. 18). A globalização econômica e a mestiçagem se iniciam em conjunto já no século XVI. O livro de Gruzinski, ao pretender voltar ao século XVI, discutindo a colonização ibérica da América, principalmente o caso do México, deseja ser também uma forma de falar do presente, já que "...o estudo das mestiçagens de ontem levanta uma série de indagações que permanecem atuais" (Gruzinski, 2001, p. 19). Em primeiro lugar, o estudo das misturas requer uma nova forma de conceber as temporalidades, algo já indicado acima por Octavio Ianni – que concebe a transculturação como um processo que permite a simultaneidade de tempos e espaços (2000, cap. 4). A concepção da história como linear – herança positivista – é imediatamente quebrada quando se concebe a realidade das mestiçagens. As mestiçagens fazem conviver, confluindo ou conflitando entre si, temporalidades distintas, como no século XVI, por exemplo, fazendo defrontarem-se a temporalidade do Ocidente cristão e a dos mundos ameríndios: "Ao juntar abruptamente humanidades há muito separadas, a irrupção das misturas abala a representação de uma evolução única do devir histórico e projeta luz nas bifurcações, nos entraves e nos impasses que somos obrigados a levar em conta" (Gruzinski, 2001, p. 58).

Mais especificamente sobre as mestiçagens do século XVI no México, Gruzinski reflete sobre o uso dos grotescos e as fábulas (formas trazidas da Europa Renascentista), entre os artistas indígenas mexicanos, como meios de expressão de conteúdos híbridos e mestiços. Ambos eram meios de expressão que usavam imagens capazes de traduzir modos de pensamento complexos, usando a memória de modo diverso da do texto alfabético. A linguagem figurada dos grotescos (arte decorativa redescoberta em ruínas na cidade de Roma, no tempo do Renascimento, e que inspirou uma "moda" maneirista na Europa) permitia aos artistas indígenas "...codificar visualmente um pensamento e, portanto, eventualmente, difundi-lo de modo disfarçado ou distorcido" (Gruzinski, 2001, p. 190). Assim como as fábulas, os grotescos eram um meio de expressão trazido do Velho Mundo que podia ser usado para formularem-se idéias proibidas e salvarem-se vestígios de suas antigas crenças.

As aproximações mútuas entre os modos ameríndio e europeu de cultura, na verdade, não se deu sem muitos mal-entendidos e deformações, os quais estiveram presentes nas suas obras mestiças:

As criações mestiças parecem ter uma dinâmica própria que se subtrai em parte das intenções e dos hábitos estéticos de seus autores. Pois as misturas dão origem a limitações e virtualidades, antagonismos e complementaridades, cujo resultado são configurações imprevisíveis. É nessa liberdade de combinações que reside provavelmente a fonte da inovação e da criação (Gruzinski, 2001, p. 223).

Gruzinski também aborda outra questão essencial para este texto, sobre a racionalidade ocidental. Isto se dá quando critica a lógica ocidental restritiva que identifica irredutibilidade com irracionalidade. Contra isto afirma que, como comprova a lógica das mestiçagens, "o irredutível não é o irracional" (Gruzinski, 2001, p. 242). Ao analisar textos mestiços produzidos no México no século XVI, em destaque os Cantares de artistas de origem indígena, afirma que eles são baseados em regras diferentes das nossas, em que se admite a contradição. Não se tratam, por outro lado, de regras exóticas que representam fenômenos culturais totalmente isolados, dado que se originam justamente do contato com a ocidentalização. Trata-se de um "espaço novo", uma "zona estranha" para cuja compreensão é preciso ainda "...inventar novos procedimentos e fazer coexistir elementos irredutíveis, sem que daí surjam verdadeiras lógicas" (Gruzinski, 2001, p. 243). Mas isso se choca com nosso pensamento usual, que considera a presença de contradições como prova da presença do irracional. Citando excertos de Gilles-Gaston Granger, Gruzinski reitera o estranhamento produzido no pensamento racionalista ocidental diante das formas culturais surgidas a partir das mestiçagens:

É difícil aceitar que as "leis da lógica, terceiro excluído e contradição sejam arbitrárias", que nossa racionalidade ou nossa "lógica ordinária", seja convencional, produto de uma história, de uma tradição e de um meio. As criações mestiças dos índios do México nos lembram brutalmente essas evidências, que marcam também os limites em que esbarram nossos saberes (Gruzinski, 2001, p. 243).

O tema das mestiçagens, bem como do caráter restritivo da racionalidade ocidental, remete-nos a Serge Latouche (1996). Em certos momentos de sua obra, Latouche parece recuar em sua tese sobre a máquina "Ocidente", quando aborda os limites da ocidentalização. A ocidentalização, como máquina de modernização, funciona a partir da destruição de tecidos sociais e culturais tradicionais ou diferentes. Mas quando o "combustível" começa a rarear, a ocidentalização entra em colapso. Só que, diferente de um mero apocalipse destruidor, há fortes possibilidades de advir uma nova era "pós-ocidentalização", construída a partir daquilo que sobreviveu, fugiu, resistiu ou se "misturou" criativamente com a ocidentalização. A esperança no futuro está naquilo que sobreviveu ao "rolo compressor da ocidentalização... (a saber), os recifes... submersos..., os excluídos dos benefícios materiais e simbólicos da 'modernização', cada vez mais numerosos (que) podem e devem inventar soluções novas para sobreviver como espécie e como humanidade". Soluções improvisadas, criadoras de formas sociais e econômicas informais. Tal criatividade e vitalidade podem tanto "gerar monstros" quanto ser recuperadas "pela máquina", mas, por outro lado, têm potencial para se tornar "a aurora de uma nova busca da humanidade plural" (Latouche, 1996, p. 14).

A falência da ocidentalização no Terceiro Mundo parece gerar, num primeiro momento, o perigo de um retorno ao caos ou barbárie. Latouche tenta demonstrar ser esta hipótese um pouco forçada, tendo mais a ver com o temor do imaginário ocidental diante da possibilidade de uma ordem mundial sem o seu predomínio. Por outro lado, essa falência da ocidentalização pode ser lida também "...como uma resistência ao Ocidente e uma vontade de recomposição das socialidades". Nesse sentido, as resistências, sobrevivências e permanências são na verdade "testemunhos da vitalidade e da criatividade culturais". As "formas sincréticas, desvios, contraculturas" que surgem, testemunham a "...persistência de razões do mundo irredutíveis à metafísica ocidental". Tratam-se, por exemplo, de cultos sincréticos como o quimbandismo e o kitawala na bacia do Congo, o vudu na Costa de Benin, no Haiti e Cuba, bem como o candomblé no Brasil, "...crenças vivas em plena expansão onde ritos cristãos ou elementos modernos se integram a um velho substrato de valores ancestrais" (Latouche, 1996, p. 112).

Mais caracteristicamente, a urbanização acelerada do Terceiro Mundo – que significou, para muitos, a favelização – também "...é o lugar de amadurecimento de verdadeiras 'contraculturas'", seja nas poblacions de Santiago do Chile, favelas do Rio de Janeiro, de Casablanca e do Cairo e cidades como Abidjan. São lugares onde a auto-organização popular procura resolver os muitos problemas cotidianos, onde são efetivados verdadeiros milagres e em que, "contra todas as expectativas, a despeito das estatísticas, ali se vive" (Latouche, 1996, p. 114). Latouche anuncia que, através da urbanização do Terceiro Mundo, se dá a criação, via mestiçagem e criatividade, de algo diferente e para além de uma simples repetição do modo de vida "ocidental". Para Milton Santos (2002b), como será retomado, trata-se da emergência de novas racionalidades opositoras à racionalidade instrumental dominante.

Latouche destaca desta sobrevivência criativa, em meio à urbanização e favelização do mundo, uma proliferante economia "informal". Tratam-se de formas de economia estruturadas com uma lógica diferente da economia capitalista, a partir de uma organização social mais ou menos tradicional, em que engenhosidade combina-se com astúcia diante de problemas concretos a serem resolvidos:

No seio do desalento das favelas desenvolve-se uma vitalidade extraordinária. O importante não é contentar-se com uma sobrevivência biológica para constituir manadas dóceis e passivas...Trata-se de uma criação, da reconstrução de uma sociedade humana pelo desvio e recuperação dos objetos e das forças da modernidade a partir dos valores culturais e dos laços residuais das comunidades tradicionais (Latouche, 1996, p. 117).

Para Latouche, a sociedade-mundo, a "sociedade global", é uma ficção. Ainda, assim, entretanto, reconhece que o "Terceiro Mundo" sofreu certa integração na civilização ocidental, algo irreversível, que impede a nostalgia, dado que será impossível uma simples volta ao passado. A vitalidade, possível onde as resistências, sobrevivências e adaptações florescem, diferencia-se de um mero retorno a formas tradicionais de sociabilidade. Trata-se sim do desejo de "...viver assumindo a dupla herança de sua cultura e de sua passagem pelo sorvedouro da modernidade", de forma que "ocorre uma verdadeira síntese entre as duas heranças na vida cotidiana concreta..." (Latouche, 1996, p. 117).

As obras de Serge Latouche e de Serge Gruzinski parecem indicar a força – tradicionalmente menosprezada pelas Ciências Sociais e a História – das mestiçagens no processo da modernização do mundo. Também, um papel relevante – talvez fundamental – no esboço de novas formas de civilização, alternativas àquelas até agora oferecidas pela modernidade-mundo. A utopia, como no imaginário de Thomas More, volta a se localizar também em "outro lugar", e não apenas em "outro tempo". Na verdade, a utopia mestiça deve ser tratada no plural, já que ela começa a ser pensada e vivida em muitos espaços. Locais e espaços sem localização nítida, já que estão não apenas intricados entre si, mas se infiltram perigosamente no corpo virtual da racionalidade instrumental que a modernidade-mundo apresenta em sua face hegemônica.

CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL

Rupturas atualmente visíveis com diversos princípios do Iluminismo, no pensamento social e até nas relações sociais cotidianas, não indicariam para Anthony Giddens uma superação da modernidade, nem o advento da pós-modernidade. Indicariam, isto sim, uma radicalização da modernidade enquanto "reflexividade". Giddens considera como aspectos da radicalização da modernidade a dissolução do evolucionismo, o fim da teleologia histórica, o reconhecimento da reflexividade meticulosa e o fim da posição privilegiada do Ocidente. "A ruptura com as concepções providenciais da História, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o 'esvaziamento' do progresso pela mudança..." (Giddens, 1991, p. 57) não significam a irrupção da pós-modernidade, mas sim uma maior consciência sobre a própria modernidade, uma maior auto-elucidação do pensamento moderno. Passa a se compreender melhor os limites das promessas da razão, passa a se perceber melhor que um mundo baseado cada vez mais em conhecimento reflexivamente aplicado é também um mundo com cada vez mais incertezas, em que qualquer elemento dado deste conhecimento pode ser revisado e superado a qualquer momento.

Para Giddens (1991), outro aspecto da modernidade avançada, que é mesmo o outro lado da expansão mundial da modernidade, é o declínio gradual da hegemonia global européia-ocidental. Demonstra-se com isto que a modernidade não é simplesmente um outro tipo de civilização e que o declínio do "Ocidente" não resulta da minimização atual do impacto das instituições da modernidade – pelo contrário, é fruto deste impacto ampliado. O Ocidente não se diferencia tanto mais, do resto do mundo, em poder econômico, político e militar.

Vê-se, no sociólogo inglês Anthony Giddens, que a capacidade de relativizar o poder da razão moderna o leva ao mesmo tempo a relativizar a hierarquia dos povos, a conceber como artificial a noção Oriente versus Ocidente. Para Giddens (1991), mais poderosa e permanente que a razão instrumental criada pela "racionalidade com relação a fins", num ponto de vista ao mesmo tempo mais amplo historicamente e penetrante espacialmente, seria a reflexividade da práxis na modernidade. Para além da imposição dos valores socioculturais do Ocidente europeu, a extensão espacial da modernidade significaria a revelação e o advento de outros arcabouços de conhecimento não-ocidentais. Arcabouços que, desafiados pelo "ocidentalismo", quando sobreviventes, deixam de ser apenas referenciados pelas tradições, passando a buscar formas de justificativa racional, dando origem, talvez, a formas híbridas e mestiças de racionalidade.

Apesar desta tendência da modernidade-mundo, Boaventura de Sousa Santos (2001, cap. 4) considera que ainda existem monopólios de interpretação, que a guerra contra esses monopólios ainda não está ganha, principalmente porque as vitórias parciais foram capazes mais de criar "milhões de renúncias à interpretação" do que criar "mil comunidades interpretativas" (Santos, 2001, p. 109). Contudo, existem inúmeras indicações de que estamos próximos do advento destas comunidades interpretativas. Seus exemplos ecoam justamente aqueles apresentados acima, por Serge Latouche, e abaixo, por Milton Santos, como o processo de resolução de conflitos em favelas do Rio de Janeiro, realizado "...através de uma argumentação tópico-retórica, um conjunto de topoi, que eram a condensação de costumes e experiências do cotidiano que, pouco a pouco, se convertiam em critérios de razoabilidade desse mesmo cotidiano" (Santos, 2001, p. 109).

O resgate do termo socialismo por Boaventura de Sousa Santos, num contexto pensado para além da modernização como ocidentalização, sob a influência até mesmo de paradigmas "pós-modernistas", indica que, como no início do século XIX, renasce a esperança de constituir uma civilização alternativa àquela exigida, outrora, pela utopia liberal do progresso e, hoje, pela versão neoliberal da globalização. Nele, o socialismo deixa de ser associado imediatamente ao modelo combalido do comunismo soviético, nem mesmo com suas versões sobreviventes na Ásia e em Cuba ou, enfim, com a decadente social-democracia européia. Passa a indicar uma miríade de desejos, projetos, utopias. Algumas delas, como a de Boaventura de Sousa Santos, talvez "pós-modernas" – termo que expressa o desejo de superar os dilemas insolúveis da modernidade. Outras procuram sistematizar o desejo que emana não apenas da busca de um "outro tempo", mas também das experiências oriundas de "outros espaços", fomentadas por relações alternativas – relações que vão da rejeição à mistura – com as versões "ocidentais" da modernidade.

DO TERCEIRO-MUNDISMO À GLOBALIZAÇÃO ALTERNATIVA

América Latina, África e Ásia foram produtores, durante os anos da Guerra Fria, de um vigoroso pensamento "terceiro-mundista". Na verdade, o terceiro-mundismo desde o início se forjou principalmente como uma retórica e uma prática política efetiva, sob muitas faces, é claro, bem como inúmeras contradições e limitações, através dos governos de territórios recém-libertos do Terceiro Mundo, ou mesmo de povos e movimentos sociais insatisfeitos com os desígnios para eles traçados pela geopolítica da Guerra Fria.

Os anos 1990 e o fim da Guerra Fria promoveram uma necessária reavaliação dos valores e objetivos que animaram o terceiro-mundismo, este outro rebento das lutas sociais do século XX que entrava em colapso, ao lado do comunismo soviético. Diversos pensadores fizeram a necessária transição do terceiro-mundismo para outras concepções de mundo e práticas políticas, em geral igualmente radicais, progressistas e esquerdistas. Como indicou Emir Sader (2001), o fato da concentração principal de forças de resistência se encontrar novamente no mundo periférico, não deveria autorizar um retorno às teses terceiro-mundistas, que seriam incapazes, apesar da tentação nostálgica, de dar conta hoje da complexidade das lutas sociais e do processo da globalização.

Celso Furtado publicou em 1998 um pequeno livro, O capitalismo global, em que se opera a busca de uma "ponte", uma ligação histórica, política e valorativa entre suas teses sobre o subdesenvolvimento, criadas dentro da Cepal1 1 A Cepal, órgão da ONU para pesquisas econômicas sobre a América Latina, foi constituída em 1948 pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, por um período experimental de três anos, transformando-se em entidade permanente da ONU em 1951. nos anos 1950 e 60, e a reflexão sobre os problemas trazidos pela globalização aos povos do "Terceiro Mundo". Mas o que se destaca é sua busca de uma nova imaginação política, inclusive "utópica", termo surpreendentemente presente no mais importante economista da história brasileira. Celso Furtado considera os novos desafios colocados pelo capitalismo global, em destaque o problema mundial da exclusão social, como de "...caráter social, e não basicamente econômico como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo". Torna-se urgente colocar, dada essa inversão, "a imaginação política... ao primeiro plano. Equivoca-se quem imagina que já não existe espaço para a utopia". Torna-se necessário instaurar, contra "a administração das coisas", o "governo criativo dos homens", a "imaginação prospectiva que nos habilita a pensar o futuro como História" (Furtado, 2001, p. 33-4).

O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação num curto horizonte de tempo para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos... estabelecer novas prioridades para a ação política em função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. (Furtado, 2001, p. 64)

Percebem-se na citação acima diversos temas que parecem aproximar Furtado de teóricos mais conservadores e "reformistas" do movimento de crítica à globalização, como o norte-americano David Korten (1996, 2002): a absorção da questão ambiental, valores de solidariedade e cooperação, crítica da lógica materialista exercida pelos administradores do capital, crítica à confusão entre crescimento econômico e desenvolvimento social. Logo adiante, Furtado fala nos dois objetivos estratégicos para a ação política do século XXI: a preservação do patrimônio natural (a questão ambiental); a liberação da criatividade humana, que precisa desprender-se da lógica da acumulação econômica e do poder militar, "...a fim de que ela possa servir ao pleno desenvolvimento de seres humanos concebidos como um fim, portadores de valores inalienáveis" (Furtado, 2001, p. 66).

Como se sabe, Celso Furtado e outros economistas ligados à Cepal geraram, nos anos 1950, uma verdadeira revolução na forma de pensar o "desenvolvimento". Com Furtado e a Cepal, os países da América Latina e do Terceiro Mundo deixavam de ser pensados como entidades "em desenvolvimento" para serem concebidos como "subdesenvolvidos". Por sua vez, partindo das teses cepalinas, radicalizadas, os teóricos da dependência localizaram a causa primordial do "subdesenvolvimento" na dependência econômico-política a que era submetido o Terceiro Mundo. Samir Amin foi, segundo Wallerstein (2001), fora da América Latina, o principal representante da radicalização das teses desenvolvimentistas oriundas da Cepal, ajudando a gerar a teoria da dependência na sua primeira versão. Dependentistas como Amin defendiam que os países periféricos, bem mais do que substituir importações, deveriam "...desligar-se definitivamente da economia-mundo capitalista – seguindo, implicitamente, o modelo dos países comunistas" (Wallerstein, 2001, p. 236).

Em 2001, transformado em diretor do Fórum do Terceiro Mundo (ONG com sede em Dakar, Senegal) e presidente do Fórum Mundial de Alternativas, Amin exemplificava a possibilidade de retomar os mesmos ideais que animavam a teoria da dependência, mas agora buscando superar sua formulação original, que se tornou presa a um tempo marcado pela bipolarização geopolítica, pela alternativa civilizatória socialista encarnada pela União Soviética e pelo terceiro-mundismo. Amin passa a pensar, teorizar e sugerir outra forma de práxis política a partir de novos eixos paradigmáticos. Fala em mundialização, reformas neoliberais, capitalismo financeiro, recessão mundial, democracia de baixa intensidade, regionalização e blocos econômicos (Amin, 2001). Temas que não estavam, nem poderiam estar, na ordem do dia do pensamento e da prática política do Pós-Segunda Guerra Mundial, durante a descolonização, a criação do Bloco dos "Não-Alinhados", os "anos dourados" da economia mundial (que vigorou até o início dos anos 1970) e a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, porém, a necessidade de pensar a resistência dos povos periféricos aos processos de exploração e dominação econômico-política continua a ser a principal motivação de Samir Amin.

Amin, inclusive, é ele próprio parte da análise da superação das formas de sociedade do Pós-Guerra (1945-1990), baseadas em três tipos de ordem interna: "o grande compromisso social capital-trabalho" nos países ricos, com o Estado de Bem-Estar e políticas keynesianas; "os modelos nacionalistas populistas modernizadores do Terceiro Mundo" e "o modelo soviético do socialismo", que Amin prefere chamar de "capitalismo sem capitalistas". Estes três modelos de organização social foram erodidos e, hoje, substituídos pela "recomposição de força favoráveis ao capitalismo dominante" (Amin, 2001, p. 19).

Viveria-se hoje a retomada ou a revanche da lógica estrita do capitalismo, dissolvendo a presença da lógica dos movimentos anti-sistêmicos na organização social. Esta concepção do avanço da lógica capitalista levará Samir Amin a considerar a noção de "mundialização" ou globalização como mera ideologia, buscando esconder o retorno de formas imperialistas de dominação. A ideologia burguesa dominante vem negando a polarização criada pelo capitalismo mundial, afirmando "que a mundialização oferece uma 'oportunidade' que as sociedades podem aproveitar ou não, segundo razões que lhe são próprias" (Amin, 2001, p. 19). Mas, na verdade, trata-se simplesmente de um discurso triunfalista que substitui o termo imperialismo pelo termo "mundialização" nos argumentos das classes dominantes. Capitalismo mundial e imperialismo tornam-se, em Amin, praticamente sinônimos. Desse modo, as reformas neoliberais significam o restabelecimento da "lógica unilateral do capital", expressa em políticas impostas por todos os lados, com as mesmas características: "taxas de lucros elevadas, redução do gasto público social, desmantelamento das políticas de pleno emprego..., redução de impostos em benefício dos ricos, desregulações, privatizações". Ganham ou recuperam espaço os "...blocos hegemônicos anti-operários, antipopulares" (Amin, 2001, p. 22).

Para Amin, o Sudeste Asiático oferece um importante exemplo de resistência ao neoliberalismo. Enquanto as regiões do mundo que mais se abrem ao capitalismo mundial, via reformas neoliberais, são as que mais sofrem suas conseqüências negativas (América Latina, Europa, Oriente Médio e Japão), Leste Asiático, China, Coréia, Sudeste Asiático e Taiwan escapam desta armadilha, pelo menos enquanto conseguirem os seus governos resistir à mundialização desenfreada. Mas a verdadeira resistência à mundialização estaria na luta de movimentos populares contra os cinco monopólios que são reforçados pelo capitalismo mundial: o monopólio das novas tecnologias, o "controle dos fluxos financeiros de escala mundial", o "controle de acesso aos recursos naturais do planeta", o "controle dos meios de comunicação" e o "monopólio das armas de destruição massiva". Em ação conjunta, às vezes sob tensões, mas geralmente de modo funcional, estes monopólios são implementados pelo "grande capital das multinacionais industriais e financeiras e dos Estados que se encontram ao seu serviço". Resistir à mundialização, portanto, significa principalmente lutar pela redução destes cinco monopólios. Para tanto, seria preciso criar "frentes populares democráticas antimonopólios/antiimperialistas/anticompradores" (Amin, 2001, p. 25-6).

Para Amin, a dimensão nacional das lutas não deve ser menosprezada. Ele propõe até mesmo um uso mais consistente do nacionalismo como forma de resistência, em seu sentido progressista, que não exclui a cooperação regional. Tais formas de cooperação regional, em escalas como a da América Latina, África, mundo árabe, Sudeste Asiático, China, Índia e Europa, poderiam se efetivar através de "alianças populares e democráticas" e um "projeto de um mundo policêntrico autêntico", uma "outra modalidade de mundialização". Remodulando o discurso "dependentista" dos anos 1960 e 70, Samir Amin afirma sonhar com a passagem do capitalismo mundial ao "socialismo mundial" (2001, p. 26-7).

Vale a pena discutir como as idéias de Samir Amin reverberam nas de diversos outros pensadores de esquerda dos países fora do Centro. Por exemplo, Walden Bello, que em 2001 era diretor executivo do Focus on the Global South, programa de pesquisa e promoção social do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Chulalongkorn em Bancoc, Tailândia. Walden Bello escreveu um interessante texto em 2000, preparatório para as jornadas de protesto na cidade de Praga, República Checa.2 2 Em 26 de setembro de 2000, 15 mil manifestam-se em Praga contra reunião conjunta do FMI e Banco Mundial. (Bello, 2001).

No que chama de "Luta pelo futuro", Walden Bello destaca a "desglobalização" e a criação de um sistema mundial plural. Percebe-se nesse pensador a forte presença do espírito que animava o terceiro-mundismo. No entanto, nas suas propostas, é possível perceber o quanto parece convergir Bello com pensadores "reformistas" como David Korten. Para Bello, a desglobalização significa a reorientação das economias, que retomariam como seu objetivo principal a produção para o mercado local. Seguem-se diversas propostas macroeconômicas e políticas, como: redistribuição de rendas e terras para criar mercado interno vibrante; redução do desequilíbrio ambiental; decisões econômicas democraticamente orientadas; constante monitoramento pela sociedade civil do Estado e do setor privado; criação de um novo complexo de produção e troca que inclua cooperativas comunitárias, empresas privadas e empresas estatais, excluindo transnacionais; promoção da produção de bens a nível local e nacional através de subsídios, com a intenção de preservar a comunidade; reinserção da economia na sociedade, em vez de ser a sociedade impulsionada pela economia. Para Walden Bello, a desglobalização é explicitamente o reforço do local e do nacional – um objetivo que também é marcante na obra do "conservador" David Korten.

Mas, afirma Bello, esta desglobalização deve ser feita dentro de "...um sistema alternativo de governo econômico global" (Bello, 2001, p. 165). Deve haver a desconcentração e descentralização do poder institucional (e não a centralização), com um sistema pluralista de instituições e organizações interagindo umas com as outras para acordos e entendimentos amplos e flexíveis. Afirma que é preciso reduzir radicalmente o poder das transnacionais, da Organização Mundial de Comércio, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, convertendo-as em apenas outros atores coexistentes, observados por outros organismos internacionais, acordos e agrupamentos regionais. Baseando-se inclusive em John Gray (1999), outro crítico "conservador" da globalização, defende uma maior flexibilidade e maior compromisso social do sistema econômico mundial. Em vez de fundar-se num distópico "livre mercado global", é preciso evoluir para um novo sistema de governo econômico global, com múltiplos monitores e balanços. O trecho seguinte parece repetir, num tom mais otimista e progressista, as propostas de John Gray, ao mesmo tempo em que recupera o tema da "criatividade da vida" de David Korten:

Devemos por fim a este projeto globalista arrogante de converter o mundo em uma unidade sintética de átomos individuais sem cultura ou comunidade. Devemos anunciar, em vez disto, um internacionalismo que está baseado em respeitar e incrementar a diversidade das comunidades humanas e a diversidade da vida (Bello, 2001, p. 167).

É notável que as propostas de Amin soem com mais radicalidade que as de Bello e, apesar de seu tom mais genérico, que as de Celso Furtado. Os segundos até poderiam ser chamados, retomando chavões de outrora, de "reformistas" no interior do campo dos movimentos críticos da globalização. Walden Bello, inclusive, parece muito próximo de ideais comunitaristas e pluralistas dos "conservadores" John Gray e David Korten. Já Samir Amin não teme referendar o termo "socialismo". Mas não se trata do mesmo socialismo evocado por organizações sindicais e partidárias ligadas à "velha" esquerda que também se fazem presentes – nem sempre tão marcadamente – nos atos de protesto contra a globalização hegemônica. Amin, como Boaventura de Sousa Santos (2001), articula a utopia temporal, a imaginação a respeito de um outro futuro, com a defesa da diversidade sócio-cultural, diversidade que se torna a principal contribuição dos povos do "Terceiro Mundo" para as novas utopias.

Octavio Ianni chama essa retomada do socialismo de "neo-socialismo" (Ianni, 1997, cap. 9). Trata-se do socialismo transfigurado no contexto do globalismo, nascido de forças que emergem do interior de uma possível e nascente sociedade civil mundial. Trata-se da expressão, dentro do contexto do globalismo, de anseios, desejos e sonhos que emanam das classes sociais subalternas. Muitos dos novos movimentos sociais criados no contexto do globalismo enriquecem o neo-socialismo: ambientalismo, feminismo, pacifismo, movimentos indígenas, ONG's que mobilizam populações e questões sociais relativas a crianças, adolescentes, mulheres, indígenas, imigrantes, refugiados e desempregados. São movimentos diversos e múltiplos que expressam o outro lado do globalismo, que esboçam um outro contrato social e uma outra cidadania, que expressam experiências históricas alternativas vividas durante e até antes da era do Estado nacional. O neo-socialismo busca ser, também, um balanço crítico dos experimentos socialistas, repensando suas conquistas efetivas e os problemas debelados nas suas tentativas de implementação. Expressa-se nesse neo-socialismo em esboço, enfim, a denúncia da exploração global da força de trabalho, tornada agora mundial, uma espécie de trabalhador coletivo global. Revela-se que continua essencial, pulsando por trás das lutas sociais, a contradição nas relações entre capital e trabalho, bem como a tensão entre classes subalternas e classes dominantes e a questão da exploração da força de trabalho.

Ianni (1997) cita diversos pensadores que defendem que o socialismo é uma perspectiva alternativa, civilizatória e moderna, que busca criticar e superar a forma civilizatória capitalista. Mas também o socialismo busca abrir novas possibilidades de emancipação humana a partir do olhar e perspectiva dos que estão por baixo da escala social, a partir dos grupos e classes subalternos. Enfim, Ianni reafirma a tese de que o neo-socialismo é – ou deveria ser – a expressão da nascente sociedade civil mundial e, neste sentido, ser um caminho em prol da emancipação individual e coletiva.

Pablo González Casanova, por sua vez, defende a utopia de uma sociedade civil mundial, numa versão "globalizada" da democracia radical. Segundo ele, essa utopia já estaria entre nós, fincando as raízes de uma democracia global e plural, em que uma sociedade civil "...controla o multiestado" e assume "...o problema social com o poder da maioria em cada nação e na humanidade. Essa utopia surge nas mais diversas regiões e países, em pequenos e grandes movimentos, muitos deles populares" (Casanova, 2001, p. 60).

Casanova e Ianni indicam o caráter plural, múltiplo e diverso dos pontos de onde emergem as resistências e projetos "utópicos" para uma outra globalização – democracia global para um, neo-socialismo para outro.

MILTON SANTOS E AS CONTRA-RACIONALIDADES

Um outro excelente exemplo – por ora, deste esforço do pensamento desterritorializado, abrangendo ao seu modo a perspectiva da História como transculturação e exibindo toda a força criativa do pensamento científico do mundo "periférico"– é o geógrafo brasileiro Milton Santos. Sua obra Uma outra globalização (Santos, 2002b), procura fugir das ciladas das matrizes ocidentalistas do pensamento moderno. Também, oferece saídas utópicas que não olham apenas adiante no tempo, mas abarcam muitos outros espaços e territórios, além do Ocidente, no seu projeto de emancipação.

Milton Santos também enfatiza em sua obra o aspecto técnico e tecnológico da racionalização do mundo. Contudo, em consonância à Escola de Frankfurt (Horkheimer, 1976), demonstra o caráter mistificador dessa razão instrumental, já que "a técnica apresenta-se ao homem comum como um mistério e uma banalidade" (Santos, 2002b, p. 45). As técnicas são impostas como racionais e baseadas na ciência, a serviço do mercado e com um absolutismo que reforça sua pretensa inevitabilidade:

Quando o sistema político formado por governos e pelas empresas utiliza os sistemas técnicos contemporâneos e seu imaginário para produzir a atual globalização, aponta-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indispensável ao funcionamento do sistema como um todo (Santos, 2002b, p. 45).

Na perspectiva conservadora, tratar-se-ia da destruição pela racionalização técnica de estilos de vida, tradições e instituições sociais que protegiam o ser humano diante das vicissitudes da natureza, da economia e da ambição política. Restariam o medo e a insegurança como sentimentos dominantes. Ecos dessa perspectiva parecem ressonar em Milton Santos, quando afirma que "jamais houve na História um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro..." (2002b, p. 59). Mas, na verdade, trata-se da perspectiva de um pensador progressista, diferenciado inclusive daqueles que falam da perspectiva dos países do Norte, já que Milton Santos pensa também de outra perspectiva espacial – o mundo periférico. Numa perspectiva progressista, Santos é capaz de denunciar o processo de globalização, sobretudo, como a ruptura das conquistas da modernidade, com a globalização paralisando o "... processo de evolução social e moral que se vinha fazendo nos séculos precedentes" (2002b, p. 64). Numa perspectiva não-ocidentalista, como se verá, aparece a proposta de que, contra a racionalidade tecnicista dominante, irrompem muitas outras racionalidades.

Milton Santos indica que a origem das outras racionalidades (ou contra-racionalidades) é o local (o "território"), recuperando assim temas caros ao conservador David Korten – o localismo e a vitalidade: "O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi" (Santos, 2002b., p. 96). Por sua vez, o âmbito do global é o da verticalidade, das redes, dos fluxos, da temporalidade do relógio universal e da racionalidade tecnicista hegemônica, que cada vez mais procura colonizar os locais, transformando-os em pontos para seus velozes fluxos. Mas, apesar dessa colonização, os espaços, as localidades, continuam a ser o reino das horizontalidades, onde a vida humana é realmente vivida: zonas de contigüidade, extensões contínuas, espaço banal e espaço das vivências.

Outras racionalidades se desenvolvem no interior das horizontalidades, pois os territórios as admitem a despeito da hegemônica (que chama as primeiras de irracionalidades). Tais racionalidades diferentes são, na verdade, também contra-racionalidades, pois são "... formas de convivência e de regulação criadas a partir do próprio território e que se mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e homogeneização típica das verticalidades" (Santos, 2002b, p. 110). As horizontalidades admitem vários relógios, várias temporalidades e permitem solidariedade. Mas, tanto elas quanto as solidariedades criadas no âmbito da vida cotidiana, são atacadas pelo processo hegemônico da globalização, que opera em prol da desagregação delas. No entanto, essa desagregação é só uma parte de um processo dialético, processo no qual o espaço banal consegue sempre se reconstruir.

As horizontalidades – territórios, espaços, locais – são os lugares onde é possível a vivência real da Política, com acordos e debates (em vez da policy empresarial). Os territórios podem buscar sentido e vida reflexiva – e não apenas atividades pragmáticas –, permitindo vida e emoção. Mais do que recurso, pelo trabalho e pelas estratégias cotidianas de sobrevivência e criação sociocultural, o território vira também abrigo. O lugar é a base da nova construção do território para a cidadania e "espaço da existência plena". Principalmente através da criatividade das classes subalternas, emanam das horizontalidades manifestações da vida, contra-racionalidades e emoção. O local, espaço do vivido, da experiência, é a base para pensar opções e alternativas, é a base para a revolta contra a globalização.

Por sua vez, a propagação heterogênea da racionalidade global é a oportunidade e o recurso que permitirá existirem as contra-racionalidades. O Projeto Racional Hegemônico demonstra mais do que nunca as suas limitações ao se expandir desmesuradamente. Hoje, esse projeto transforma a razão em racionalidade totalitária que, enfim, gesta a própria perdição da "razão" – que debocha das carências e do empobrecimento crescente. A incapacidade de numerosas parcelas da população em seguir as normas de tal racionalidade leva-as a decaírem em situações caracterizadas pela racionalidade hegemônica como "ilegais", "irregulares", "informais". Mas o caldo de cultura que mistura velhas e novas criações diferentes gera um momento potencial de conscientização, em que se dá a redescoberta da razão justo nos lugares "não conformes" à racionalidade dominante (Santos, 2002b, p. 120). A própria globalização, dialeticamente, favorece esse processo de gestação de contra-racionalidades, ao aumentar o "caldeamento" de filosofias e elementos culturais produzidos não só pelo racionalismo tecnocrático – o que Octavio Ianni chamara de "transculturação".

Milton Santos, semelhante ao comunitarismo expresso por conservadores e progressistas românticos, fala também em compaixão, redução das fraturas sociais, nova ética, vida como ponto de partida criativo, interesse social acima do econômico e o fim da regra da competitividade como padrão dos comportamentos. Entretanto, semelhante apenas aos progressistas, interpreta as possibilidades de recriação do princípio "comunitário" como uma utopia. Ou seja, interpreta a solidariedade social abundante nos territórios, germes de uma outra globalização, como um avanço, não como um retorno àquilo que foi perdido com o novo choque de modernização.

Mas, como pensador situado em outra ótica, para além do ocidentalismo, Milton Santos acrescenta algo de novo nessa crítica progressista da globalização. Primeiro rejetia a idéia da imponderabilidade da globalização, que considera uma falácia ligada à idéia errônea de que Europa e EUA são os únicos e legítimos agentes da História. Na verdade, os países centrais impõem a globalização de cima para baixo aos demais países, ainda que no coração desses haja disputa (entre EUA, Japão e Europa). Milton Santos acredita que os países do Sul precisam e irão compreender que cooperar com os países centrais significa aumentar a dependência. A globalização recriará o fenômeno do terceiro-mundismo e da terceiro-mundização, incluindo mesmo parte da população marginalizada e/ou imigrante dos países ricos. Terceiro-mundismo renovado, para além da perspectiva maniqueísta do terceiro-mundismo de meados do século XX, capaz agora de avaliar com novos instrumentos e perspectivas o processo da globalização.

Para Milton Santos, enfim, a fonte da outra globalização, diferente de outros impulsos que provocaram rupturas no capitalismo, não virá dos países centrais, mas sim dos países subdesenvolvidos. Nesse sentido, é de suma importância compreender a transculturação, analisar os germes das utopias mestiças, valorizar também fontes alternativas de produção do conhecimento – nascidas a partir da resistência diante da modernização e da sobrevivência criativa diante dos fenômenos de ruptura social –, fenômenos que se fazem valer principalmente fora dos países centrais do capitalismo global. Fenômenos que indicam presentes alternativos àquilo que as teorias sociais e doutrinas políticas criadas nos países centrais costumam apontar como sendo o "mundo" contemporâneo. Outros presentes, outras formas de viver e sobreviver à modernidade-mundo, que podem conter novos futuros, novas perspectivas em prol de uma humanidade realmente plena e fraterna.

Pode-se vislumbrar que a fonte da qual poderão emergir essas novas utopias são as racionalidades alternativas, geradas a partir da luta pela sobrevivência, do trabalho e da criatividade das classes populares do Terceiro Mundo. Serge Latouche (1996) e, principalmente, Milton Santos (2002b), chegam a conclusões que apontam para essa possibilidade. Partem de questões ou paradigmas que se originaram dos problemas específicos da experiência da modernidade no mundo não-ocidental. Primeiro, a questão da miséria gerada pelas rupturas socioculturais nas tentativas de "desenvolvimento" econômico. Na verdade, um processo análogo àquele vivido pela Europa Ocidental no início do século XIX, revelando um efeito universal desagregador da modernização. Segundo, a questão do enfraquecimento das culturas específicas dos povos não-ocidentais. Terceiro, a questão da falta de autodeterminação dos povos não-ocidentais, sedentos de uma autonomia e emancipação prometidas pelos valores da modernidade e que o processo de modernização renegou através de práticas colonialistas, imperialistas, neo-imperialistas e, hoje, "globalizantes", impostas, ao longo da História, pelas elites e poderes do "Ocidente".

Os autores abordados aqui indicam a emergência de um pensamento, ou melhor, de pensamentos sociais criativos. Quanto à prática política, entre os muitos movimentos sociais do Terceiro Mundo, um deles parece ser o mais representativo – exceto por ter sua origem fora das zonas urbanas. Trata-se dos zapatistas, guerrilheiros indígenas de Chiapas, sul do México. Os zapatistas ilustram a enorme criatividade e radicalismo da práxis política das classes populares das regiões pobres do mundo, capazes, por exemplo, de aglutinar interesses sociais tradicionais ligados a classes camponesas e povos indígenas (a "tradição", a "pré-modernidade"), com práticas guerrilheiras que lembram os momentos mais radicais do terceiro-mundismo (uma forma particular de "modernidade" gerada nas zonas periféricas do mundo capitalista) e, enfim, com uma retórica que junta o democratismo radical (exacerbando valores "modernos", como a cidadania e a emancipação) com o "pós-modernismo" expresso tipicamente pelas políticas da identidade.3 3 Ver, por exemplo, a análise de Ceceña, 2001. Tempos, espaços, experiências, valores, estratégias e práticas que formam um todo, ao mesmo tempo, caleidoscópico e sistêmico, adaptado o melhor possível para esse nicho específico de resistências e sonhos utópicos. Utopia que, talvez, saiba que seus sonhos são ao mesmo tempo bastante particulares – expressando interesses e pontos de vista de uma dada região, classe e etnia – e universais – buscando fazer reverberar seus próprios sonhos de emancipação e autonomia nos dos demais indivíduos e grupos em todo o planeta.

CONCLUSÃO

O pensamento progressista pode reencontrar o caminho da humanização, fugindo do racionalismo abstrato e formalista (tipo particular de racionalidade que se pensa como exclusiva e universal), se considerar a criatividade humana, a diversidade histórica e cultural e o acúmulo de lutas sociais pela emancipação.

Mas para a realização mais plena dos novos ideais progressistas, entretanto, o novo momento histórico requer uma outra dimensão, além da dimensão temporal expressa pela utopia. Trata-se da dimensão espacial. Para ilustrá-la, vale a pena retomar o último aspecto tratado acima, quando Milton Santos (2002b) afirma que outras globalizações (anti-hegemônicas) deverão vir dos países subdesenvolvidos. Concordo com Milton Santos, pelo menos no fato de que é daí, provavelmente, que se dará (e já se dá, efetivamente) a criação de novas ideologias políticas progressistas mais abrangentes, diante do caráter transcultural da modernização.

Isso não significa a defesa de um novo terceiro-mundismo intransigente, preconceituoso às avessas, rejeitando de antemão qualquer forma de ocidentalismo. Trata-se, sim, de levar a sério a análise que preconiza o esgotamento das formas de emancipação pensadas somente através dos valores da modernidade ocidental. Trata-se, também, da conclusão de que o pensamento progressista precisa abandonar os limites do racionalismo de origem européia, que precisa ser capaz de dialogar, compreender e inserir na sua utopia outras racionalidades, produzidas fora ou – principalmente – a partir da transculturação promovida pelos projetos de ocidentalização do mundo.

Esta última conclusão pode conduzir ao diagnóstico de que os germes dos novos pensamentos progressistas vindos do Sul, do "Terceiro Mundo", onde mais longe foram os processos de transculturação, são os que têm, potencialmente, mais poder criativo diante do caráter complexo e abrangente da modernização na era do globalismo – que, definitivamente, deixou de ser apenas a expansão da modernidade de tipo "ocidental" pelo planeta, para ser uma intricada galáxia processual promotora da transculturação.

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  • 1
    A Cepal, órgão da ONU para pesquisas econômicas sobre a América Latina, foi constituída em 1948 pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, por um período experimental de três anos, transformando-se em entidade permanente da ONU em 1951.
  • 2
    Em 26 de setembro de 2000, 15 mil manifestam-se em Praga contra reunião conjunta do FMI e Banco Mundial.
  • 3
    Ver, por exemplo, a análise de Ceceña, 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005
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